Entre a arte e o ofício: discurso, poder e violência simbólica nos meandros do fazer musical

June 2, 2017 | Autor: Rodrigo Heringer | Categoria: Música, Poder, Trabalho, Discurso, Violencia Simbólica, Oficios
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Entre a arte e o ofício: discurso, poder e violência simbólica nos meandros do fazer musical


INTRODUÇÃO

- E com o que você trabalha?
(Eu) - Com música, sou músico.
- Que lindo. Deve ser tão bom trabalhar com o que gosta!

O diálogo acima é um recorte de conversa recente com uma pessoa que conheci há pouco. De significados aparentemente triviais, ele esconde uma gama de valores compartilhados, por musicistas e músicos ou não, que estão diretamente relacionadas a questões de extrema relevância para o cotidiano de profissionais da área e, consequentemente, para a pesquisa a que me proponho.
A positiva referência ao meu trabalho como músico soa elogiosa e de bom grado em primeira análise. Dela, porém, emergiram alguns antigos questionamentos que me incomodavam após anos de prática profissional na área de música. Por que trabalhar com música pressuporia um gosto pelo ofício ou pelo objeto? Se minha resposta ao questionamento supracitado houvesse sido "– Com carpintaria" ou "– Com medicina", haveria semelhante reação? O que traz ao trabalho musical, ou artístico em sua totalidade, tamanha carga positiva para pessoas com ele envolvidas ou não? O que justificaria o fato da idealização de tal prática, cuja metáfora seria a pronta reação de minha colega com a frase "– Que lindo", frequentemente não encontrar ecos em minha realidade profissional e na realidade de meus colegas de profissão? Não poderiam profissionais de qualquer área gostar de suas profissões tais como, a julgar, gostamos da nossa?
Tal incômodo não seria tamanho caso o vislumbre em relação ao trabalho musical não fosse frequentemente utilizado como justificativa para condições de trabalho adversas com as quais frequentemente me confrontava. "– Vocês vão se divertir e irão beber bastante, podem ter certeza. Não temos condições de pagar nenhum valor pelo trabalho, mas vocês irão se esbaldar" propôs-me certa vez um possível empregador. "– Não me importo com o dinheiro. O importante é fazer a minha arte com amor", ouvi de um colega de trabalho que, ainda assim, mostrou-se indignado com a proposta anteriormente referida. "– Ganhamos mal e muitas vezes trabalhamos em péssimas condições, mas, não dá para negar: a gente se diverte", disse uma amiga, sorrindo e consolando-se, após receber a triste notícias de que entraria no palco para cantar 3 horas após o horário inicialmente previsto para uma apresentação. São várias as situações de violência simbólica travestidas de uma "romantização" discursiva acerca da prática profissional das musicistas e dos músicos às quais estxs se submetem em situações cotidianas reais.
Percebendo um hiato entre as narrativas relacionadas à prática musical, principalmente, à atuação dx profissional da música, e a realidade concreta, passei a me questionar sobre quais relações de dominação e poder estariam difusas no próprio emaranhado discursivo reproduzido e recriado por diversos atores quando em referência às atividades artísticas. Compartilhando a crença de Michel Foucault (1992) na indissociabilidade entre verdade e poder cri ser o desvelar dos discursos em disputa sobre a verdade do fazer musical um passo importante para compreensão e transformação da realidade com as quais se deparam x s profissionais da música.
Antes de prosseguir, porém, farei um breve e necessário regresso, buscando compreender como tais profissionais se filiaram a dois universos de valores cuja contradição resultaria no desconforto vivenciado não só por mim, como expus acima, mas pela quase totalidade de minhas colegas e de meus colegas de profissão. Vale ressaltar ainda que grande parte das reflexões motivadoras para a pesquisa proposta se inspiraram em um artigo produzido para uma mesa redonda da qual participei durante o NIEP Marx 2015. Ainda que não partilhe aqui pressupostos estritamente marxistas, sou extremamente grato ao Colóquio por possibilitar o debate em torno de um tema caro aos profissionais da música na atualidade.

1. DA ARTE DE ARTESÃ(O) À ARTE DE ARTISTA
O processo de radicalização do capitalismo europeu a partir do século XVIII, em decorrência não somente de transformações nas relações de produção mas também, entre outros fatores, da acentuada ascensão da ética burguesa (WEBER, 1967), propiciou o surgimento de novas relações de trabalho com a música. Gradualmente, musicistas e músicos deixam, então, a condição de artesãs e artesãos comuns a serviço de sua corte ou clero para assumir outra: de artista. Luciana Requião sintetiza tal processo de transição:
Na área da música, com o aprimoramento das técnicas de impressão musical e com o advento do concerto público – além das aulas particulares que já eram recorrentes –, o músico passa a poder contar com outras possibilidades de trabalho. Porém, esta relativa autonomia do trabalho do músico só vai efetivamente acontecer a partir do início do século XIX, onde se inicia o desenvolvimento de um mercado para a compra e venda de serviços e mercadorias musicais. A possibilidade de se estabelecer um mercado autônomo para a música mudava, aos poucos, o status social de seu produtor. De artesão o músico passava a artista. (REQUIÃO, 2010, p.84, itálico da autora)

O despertar dx artista, na esteira das transformações econômicas, sociais e culturais de uma época, atrela-se a uma concepção comum acerca da musicista e do músico e, consequentemente, às valorações e discursos a elxs dirigidos. Esta transição, porém, é lenta e gradual, como demonstra Norbert Elias (1995, p.29-31) a partir de acontecimentos registrados sobre a vida do compositor Wolfgang Amadeus Mozart. A coexistência de relações que concediam às musicistas e músicos um maior grau de autonomia – musicistas e músicos artistas – com outras que xs subordinavam aos privilégios da corte – musicistas e músicos artesãos – era uma realidade já na época em que viveu Mozart, entre 1756 e 1791. O autor atenta ainda para o êxito da empreitada empreendida por Beethoven como músico "autônomo", em período pouco posterior ao que Mozart buscou se afirmar em tal prática, sem sucesso (ibidem, p.43).
O que tinha a musicista e o músico artistas que ascenderam no período romântico que xs diferenciavam de maneira tão profunda da musicista e do músico artes os? Xs primeirxs, distintamente destxs, possuíam maiores prerrogativas sobre sua criação e, consequentemente, uma maior autonomia sobre ela. Ao contrário da arte de artesã e artesão, que é produzida para um círculo de pessoas próximas, ligadas à igreja ou à realeza que se interessam inicialmente pelo valor utilitário da produção, a arte de artista é produzida visando atingir um público de consumidorxs anônimxs, mais dispersxs em relação a preferências e gostos e com algum poder aquisitivo que xs permitem serem consideradxs consumidoxs de arte. Tais transformações afetaram de maneira drástica a disparidade entre os poderes dxs produtorxs e dxs compradorxs de arte:
(…) o artista individual tem muito mais espaço para a experimentação e a improvisação auto-regulada, individual. Comparado ao artista-artesão, na manipulação das formas simbólicas de sua arte ele dispõe de liberdade bem maior para seguir sua compreensão pessoal dos padrões sequenciais, sua expressividade e seu próprio sentimento e gosto, que se tornaram altamente individualizados. Agora a obra de arte depende, em larga escala, do autoquestionamento dos indivíduos sobre o que lhes agrada particularmente em suas fantasias e experimentos materializados e de sua capacidade para, mais cedo ou mais tarde, despertar um eco em outras pessoas através de tais estruturas simbólicas. Reduz-se a pressão coletiva da tradição e da sociedade local integrada sobre a produção da obra de arte; crescem os auto-condicionamentos, impostos pela consciência do produtor de arte individual. (ELIAS, p.50)

Partindo de parâmetros do individualismo burguês passa a se afirmar x artista no romantismo. Os discursos que x cercam se tornam frutos e reprodutores de valorações também individualistas, tais como autonomia, auto-condicionamentos, consciência e também genialidade, talento e dom.

2. ALÉM DX ARTISTX: X GÊNIO
Com o crescimento do poder e autonomia dx artista, vinculado à uma ideia de produção individualista da arte, eleva-se sobre a figura de algumas e alguns também uma concepção inatista de genialidade e talento. X artista célebre toma, assim, o posto de instituição autônoma e espontânea, responsável pela produção ou execução da obra de arte. Narrativas se adaptam, então, à nova concepção da musicista e do músico artista, que também passa a ser afirmada por aquelas. Em tal perspectiva, é atribuída à gênio e ao gênio uma maturação interior de determinados talentos sobre a qual diferentes configurações sociais, culturais e econômicas teriam pouco poder de influência. Esta concepção estaria vinculada "a outra noção comum, a de que a criação de grandes obras de arte é independente da existência social de seu criador, de seu desenvolvimento e experiência como ser-humano". (ELIAS, 1994, p.53). Pela reprodução e difusão de tais ideias, seria responsável o que Nobert Elias denomina o "conceito romântico" de gênio (p.60).
A influência no mundo ocidental de tal conceito e das valorações por ele difundidas fizeram-se perceptíveis nos discursos de musicistas, músicos e leigxs e se reproduzem, hoje, de maneira constante pelxs envolvidxs direta ou indiretamente com manifestações musicais. Uma concepção romântica dx artista, estendida às musicistas e músicos, ainda é a predominante entre e sobre elxs, como demonstra Sílvia Cordeiro Nassif Schroeder (2004). Em artigo, a autora argumenta que em uma visão por ela qualificada como oriunda de um "senso comum", musicistas e músicos corresponderiam a seres dotados de habilidades inatas relacionadas às práticas musicais de diferentes naturezas, que xs difeririam das pessoas comuns. Argumenta ainda que a percepção e reprodução de tal idealização não seria um privilégio de pessoas excluídas do campo musical, sendo neste reproduzidas pelxs sujeitxs com ele diretamente envolvidxs.
Da análise de cadernos culturais de jornais e revistas relacionadas à área de música, Schroeder conclui ser associada às musicistas e aos músicos não só a ideia de genialidade, mas também outras referentes à intuição, ao talento e à musicalidade. Todas elas possuiriam certa valoração genética, natural, inata ou mística, deixando em segundo plano grande parte da trajetória profissional e artística dxs atorxs.
Em torno das concepções de talento e musicalidade o etnomusicólogo Henry Kigsburry argumenta girar os valores de um conservatório de música por ele pesquisado em etnografia conduzida ao final da década de 1980. Ele resume de maneira enfática: "A vida no Conservatório é inteiramente relacionada ao talento. O talento musical é ao mesmo tempo o fenômeno mais universal e a maior questão na vida do conservatório" (KINGSBURRY, 1988, p.59, tradução minha). Se xs atorxs do conservatório em questão partilham, de um modo geral, uma visão inatista do talento, não é de se espantar que a compreensão de quão talentxs seria cada uma/um delxs seja motivo de grande preocupação entre xs que frequentam aquele ambiente. O autor demonstra, então, a condição irônica representada pelo conservatório de música na sociedade ocidental: em seu interior, algumas/alguns poucxs deveriam ser ensinadxs sobre aquilo que, ao final, não é passível de ensinamento.
A compreensão do talento como algo presente na mente ou corpo dos indivíduos, como uma dádiva ou herança genética, é contestada por Kingsburry ao propor uma análise de tal atributo como uma representação cultural. Segundo ele, no conservatório, estudantes e professorxs comumente não são unânimes ao discorrer sobre o talento de terceirxs. Pessoas consideradas talentosas em um primeiro momento, são, em seguida, taxadas como pouco musicais, frequentemente pelos mesmos indivíduos que outrora as tomavam como exemplos de musicalidade. Tais constatações levantam uma série de questões sobre a "relação entre realidade e a forma que a concebemos" (ibidem, p.67, tradução minha). Para Kingsburry "A validade de um talento musical dado a uma pessoa é função direta da reputação da pessoa que atribuiu talento à primeira" (ibidem, p.68, tradução minha), evidenciando a natureza social de sua compreensão do talento.
Não apenas o "talento" musical é relacional, mas as relações sociais caracterizadas por uma atribuição de talento conecta a reputação das pessoas envolvidas. (...) Uma avaliação de musicalidade ou talento não é apenas algo que é sempre provado ou refutado. Antes, ela é validada com refeência ao mesmo processo social do qual ela emergiu. Uma avaliação de talento musical é um julgamento estético. Um julgamento estético de uma performance musical é uma afirmação avaliativa de uma pessoa ou pessoas. (ibidem, P.75, tradução minha)

A definição do talento de uma pessoa seria, então, antes relacionada a relações de poder e autoridade de caráter social que a atributos herdados e inerentes a tal indivíduo A relativização do tratamento do talento, da genialidade – tomada aqui como um caso excepcional de manifestação do primeiro –, do dom ou de qualquer atributo de semelhante natureza como algo inerente aos indivíduos é contestada, não somente por Kingsburry, mas também em parte significativa da literatura sobre o tema (BECKER, 1982; KINGSBURRY, 1998; ELIAS, 1995; BLACKING, 2000; SCHROEDER, 2004; PENNA, 2012). Tais estudos, os discursos neles produzidos e por eles desencadeados não estão fora da disputa pela verdade no campo do fazer musical. Não representam, porém, a força dominante dentre as narrativas reproduzidas sobre e pelos envolvidos com a prática em questão, como argumenta Schroeder (2004). Isto justifica, inclusive o empenho de todxs xs referidos estudiosxs na desconstrução da compreensão majoritária e comum acerca do tema. X artista talentosx ou genial corresponde a um dos ideais simbólicos com o qual a musicista e o músico necessitam dialogar e se reportarem ao se vincular à prática musical. Sobre x profissional da música, seu/sua quase antagônicx, discorrerei a seguir.

3. X PROFIOSSNAL DA MÚSICA CONTEMPORÂNEX
Leandro Konder, ao falar sobre a atuação da ideologia sobre a produção artística, também adverte para os perigosos da concessão de total autonomia a tal produção:
Se disséssemos que a arte elimina a distorção ideológica, estaríamos fetichizando a criação artística, transformando-a em conhecimento perfeito, cancelando seu enraizamento histórico. Estaríamos apagando nela as marcas do tempo e do lugar onde ela se realiza. As obras de arte, que vivem da força que lhes é conferida pela expressão singular de experiências subjetivas, estariam, então, nos proporcionando um conhecimento puro (e puramente objetivo) que, ao eliminar a subjetividade como tal – para eliminar todas as distorções ideológicas –, deixaria, paradoxalmente, de ser conhecimento artístico. Ora, essa concepção é insustentável: a arte não é imune às distorções ideológicas. (p.219)

Uma das formas de compreender as artes, e entre elas a música, de maneira contextual e situada historicamente é perceber os contornos de trabalho individualista que sua produção toma gradualmente no mundo moderno ocidental. A produção destinada a uma patronesse ou um patrono é substituída por outra cuja destinação corresponde a uma mercado em expansão. Transformações na forma de distribuição da produção musical favoreceram a transformação da música em mercadoria nos dois últimos séculos. A escrita e impressão musical alavancaram tal transição, favorecendo a conversão da música em um produto com compradorxs fiéis, em sua maioria representantes da sociedade letrada. (LEME, 2006, p.5)
Ao mesmo tempo em que a musicista e o músico se libertavam gradualmente da aristocracia empregadora, estabeleciam relações comerciais e profissionais nem sempre muito amistosas com novxs atorxs, a exemplo dxs editorxs. Um painel da relação estabelecida entre musicistas, músicos e editorxs europeus ainda no século XVIII é minuciosamente traçado por Henry Raynor em seu livro intitulado História social da música: da Idade Média a Beethoven (1986, p.386). O autor relata que as mudanças nas relações de trabalho experimentadas por musicistas e músicos no período, apesar de determinarem certas mudanças na dinâmica de poder entre o produtor(a) e seu público, permitia a criação de novas formas de exploração do trabalho daquelxs, condizentes com as formas de produção que expandiam-se e afirmavam-se no período. Para agravar a situação, ainda não estavam estabelecidas no período quaisquer regulamentações e garantias sobre o direito de execução ou sobre o direito autoral, o que deixava a musicista e o músico ainda mais vulneráveis em relação à apropriação de sua produção por terceirxs. (RAYNOR, p.388)
Além de se relacionar com xs editorxs, xs novxs profissionais da música tinham agora que se relacionar também com um público mais amplo, mais heterogêneo em seus gostos e, em muitos casos, mais exigentes quanto às inovações. Tudo isso ajudava a conduzir a produção musical dxs compositorxs e intérpretes, demonstrando as limitações do tratamento de tal produção enquanto fruto exclusivo de uma genialidade inerente aos/às sujeitxs por ela responsáveis. Tanto Mozart quanto Beethoven e outrxs tantxs musicistas e músicos que os sucederam, deveriam ajustar a suas habilidades, inerentes ou não, à capacidade de aceitação de sua produção musical por um público composto por especialistas e leigxs, em uma negociação que desnuda a natureza social, cultural e histórica da produção musical.
A negociação determinante para a o resultado do trabalho dx profissional da música não ocorre, porém, exclusivamente com o público. Howard Becker (1982) demonstra o quanto a produção artística ocorre em diálogo com mundos dos quais ela constantemente procura se diferenciar. Dx editor(a) ao público, dxs patrocínios privadxs ao Estado, diversas forças atuam sobre o processo e, consequentemente, ajudam a estabelecer a resultante do trabalho dessxs profissionais. Ao utilizar o conceito de mundos da arte, Becker traz à discussão as diversas atividades que atuam em constante diálogo com a produção artística.
Com o surgimento e expansão das técnicas de gravação e reprodução do som, o mercado da música se amplia de maneira vertiginosa. O disco representava uma incrível possibilidade de distanciamento entre a escuta e x intérprete, permitindo às/aos proprietárixs das grandes gravadoras novas formas de exploração do trabalho das musicistas e dos músicos.
Como consequência, as formas artesanais de produção se convertem em processos marginais, ao mesmo tempo em que sua sobrevivência fica reduzida aos poucos espaços não preenchidos pelo mecanismo industrial de produção. [...] Um outro aspecto fundamental a ser apontado como característico da conversão da música em produto industrial, dá conta da alienação do músico, isto é, no processo industrial de produção, o músico está definitivamente separado do produto final. O músico perde o controle do processo de produção do qual participa e passa a ser um mero fornecedor de matéria prima e força de trabalho para o processo de produção industrial-musical. (JARDIM, 1988, p.16)

A possibilidade de reprodução ilimitada do trabalho artístico revolucionou a cadeia produtiva a ele relacionada. Enquanto o disco distanciava x ouvinte dx intérprete, ele aproximava a interpretação registrada do público consumidor, facilitando a assimilação da música pela indústria massificada do entretenimento e, posteriormente, por indivíduos isolados em posse de recursos eletrônicos.
X profissional da música, como profissionais de outras áreas na contemporaneidade, transforma seu trabalho em mercadoria. Muito distante da produção artística desinteressada, elx assume o direcionamento de sua produção a um mercado consumidor. Ao se profissionalizarem em acordo com os valores profissionais da sociedade burguesa, musicistas e músicos se expõem a explorações, violências simbólicas e relações de poder às quais estão também vinculadxs trabalhadores de outras áreas no mundo moderno. A mística em torno de sua figura, manifestada discursivamente na sociedade ocidental contemporânea, não a afasta de uma realidade laboral perversa e desigual podendo, frequentemente, reforçá-la.

4. O HIATO ENTRE X ARTISTA MISTIFICADX E A APROPRIAÇÃO DA SIGNIFICAÇÃO PROFISSIONAL DE SEU TRABALHO
Dois ideais identitários que, não raro, se mostram antagônicos, apresentam-se no horizonte da musicista e do músico contemporâneo. Ambas referências se consolidam no período moderno, mas posiciona xs que a elas se associam em um terreno de ambiguidades em que o discurso aparece como uma de suas principais afirmações.
A musicista ou músico artista associadx a um fazer autônomo, produz arte para contemplação. Se vincula também, valorativa e discursivamente, à ideia de uma produção desinteressada, cuja preocupação estética se configuraria como referência primária. Sua produção se direciona a um público especializado e restrito e colabora para construir e renovar uma distinção de caráter elitista (BOURDIEU et al, 2007). As obras que produzem ou executam se organizam antes por seu valor estilístico que por seu valor utilitário. A produção auto expressiva e auto reguladora das práticas simbólicas é um fator distintivo da modernidade. (CANCLINI, 2013)
O profissional da música, por sua vez, eleva as necessidades materiais ao plano do discurso. Por depender da música a sua sobrevivência, dialoga intimamente com uma produção musical de caráter utilitário. Se adapta facilmente às exigências externas em relação à sua produção, aproximando desta o status de produto. Vincula-se a uma estética pragmática e funcionalista imposta por necessidades econômicas de diferentes procedências. Se aproxima da indústria cultural e vale-se dela para obter ganhos materiais relevantes.
Entre ambas identidades transita a musicista e o músico moderno, se identificando alternada ou concomitantemente com discursos e valores majoritariamente vinculados a cada uma delas. Tais vinculações são comumente tênues e passageiras, mas suficientes para expor as contradições desta dupla identidade. Interessa particularmente à presente pesquisa a maneira como tais contradições se manifestam discursivamente e o modo como são utilizadas, conscientemente ou não, em favorecimento da perpetuação situações de desigualdade nas relações profissionais de músicos e musicistas, através de violências de natureza simbólica.
Luciana Requião (2010) demonstra como as sucessivas transformações nas condições de trabalho dxs musicistas e músicos não foram capazes de emancipá-lxs da condição de exploração a qual se submeteram em diferentes momentos da história. A autora argumenta, a partir de estudo realizado com músicos da Lapa, que gradualmente "vem se constituindo uma grande demanda pela força de trabalho do músico, ao mesmo tempo em que se desenvolvem formas capitalistas de se apropriar de maneira eficiente dessa força de trabalho". (p. 224) O músico contemporâneo vê-se diante de um mercado cuja concentração de recursos é um reflexo da própria estrutura de produção, através da qual dificilmente tais recursos escoam em favorecimento dxs profissionais da arte.
Nos resta a pergunta: o que faz um(a) profissional cuja valorização simbólica se apresenta de maneira tão singular e positiva em nossa sociedade, confrontar uma desvalorização econômica concreta tão evidente? Sendo a indústria do entretenimento uma que movimenta um dos maiores montantes de recursos no mundo ocidental atualmente (REQUIÃO e RODRIGUES, 2011), por que motivo estes não se distribuem de modo a favorecer democraticamente xs profissionais da arte que se encontram, juntamente com outrxs atorxs, na ponta de sua cadeia produtiva? Qual o papel do discurso na reprodução de relações de poder e desigualdade?
Discursivamente, a subjetivação e mistificação da prática musical reproduz um hiato já existente entre o modo como musicistas e músicos são projetados na sociedade moderna e a apropriação da significação profissional de seu trabalho. A hipótese de que tal projeção reforce as condições de trabalho precárias com a qual x profissional da música é disposto a dialogar, mostra-se, portanto, plausível.
A prática musical, como outras práticas artísticas, é simbolicamente incluída mas tal não pressupõe uma inclusão econômica equivalente de suas/seus atorxs em nossa sociedade. Valorizam-se os objetos de determinadas manifestações e, no limite, mistificam-se alguns de seus representantes e sua forma de atuação, mas, concomitantemente, esconde-se através desta valorização uma exclusão de natureza econômica destes indivíduos. Fenômeno com características semelhantes, ainda que com outras muitas especificidades, ocorre atualmente também em relação à cultura negra (PINHEIRO, 2015), com algumas religiões não cristãs no mundo ocidental (OLIVEIRA et al, 2012), e com as mulheres e o feminino (SILVA, 2012).
O distanciamento que se estabelece entre x artista e x trabalhador(a) comum é reproduzido discursivamente no meio musical e também fora dele, como nos mostra a já referida análise realizada por Schroeder (2004). A consideração dos méritos da musicista e do músico como frutos de habilidades inatas, vinculada à compreensão dx artista na modernidade, acompanhada da recusa pela consideração do caráter acumulativo e laboral de seus êxitos promove um recorte, uma espécie de fotografia através da qual todo um passado de construção de conhecimentos e habilidades é esquecido ou deixado em segundo plano por quem a ele se refere.
Para x musicista ou músico, a associação de sua figura a de um indivíduo dotado de atributos naturais, inatos ou místicos, é comumente percebida de maneira agradável. Isto porque, como bem observa José Alberto Salgado,
o que se projeta de expectativa sobre ele/ela contém elementos contraditórios, cujo ordenamento vai variar de acordo com a ênfase dada em cada situação – e em termos simbólicos, essa variação resulta ora com vantagem, ora com prejuízo para o agente. (SALGADO, 2005, p.226)

O caráter ambíguo associado à situação dxs musicistas e músicos profissionais, cuja profissão "constitui-se de fazeres especializados, quase herméticos, assim como inclui aquelas representações de naturalidade (do dom inato, do talento)" (ibidem, p.226) ajuda a provocar muitas das reações favoráveis relacionadas às últimas. Além do conservatório de música descrito por Kingsburry, a vida dxs musicistas e músicos contemporâneos constantemente gira em torno do talento. Muitas vezes, portanto, para x próprix profissional torna-se mais interessante construir-se discursivamente e engajar-se em práticas que xs posicionem como seres dotados de habilidades inatas que como indivíduos que muito trabalharam para adquiri-las. O discurso, portanto, é uma referência privilegiada através da qual tais comportamentos são percebidos e afirmados.
Se por um lado a associação de musicistas e músicos à posse de dotes e habilidades inerentes conduz a uma idealização dx artista e à elevação do grupo a um distinto patamar de reconhecimento simbólico, por outro ela frequentemente se presta à justificativa de um não reconhecimento profissional de tais indivíduos. São atribuídas às artes, como justificativa, características que não são exclusivas ou distintivas do trabalho artístico, a exemplo do amor à profissão. Sobre a ambiguidade da posição ocupada por musicistas e músicos e os problemas profissionais por ela desencadeados Luciana Requião argumenta:
A associação ao lazer e ao ócio vem reforçar não só a dissociação que se faz da atividade musical com um trabalho, assim como a idéia de dom e talento artístico, que seriam as características que distinguem os artistas dos demais seres humanos "não artistas". Na verdade o que percebo é a noção de dom e talento como características que ocultam o processo de trabalho realizado pelos músicos desde seu aprendizado musical até o momento em que seu trabalho é consumido pelo público. Nesse sentido, o momento da apresentação musical, por exemplo, tende a ser visto não como o resultado de um processo de trabalho, mas como o trabalho em si, como se para a sua execução não fosse necessário nenhum esforço laboral anterior.
Essa ideia também contribui para a fetichização do artista, como um ser com capacidades extraordinárias, visão que elimina do artista suas necessidades humanas. (REQUIÃO, 2010, p.154)

Entre narrativas diversas e frequentemente antagônicas se posiciona x musicista e o músico na sociedade ocidental contemporânea. Através de observação participante conduzida entre profissionais da música que se vinculam à prática de repertórios de características distintas – popular e erudito – busco alcançar os objetivos propostos para o presente trabalho e relacionados a seguir.

5. OBJETIVOS
Tratando-se o presente de um trabalho cuja a temática é abrangente e multifacetada, injusto seria a hierarquização de objetivos de modo excessivamente restritivo. Através da análise do discurso relacionados à prática profissional e artística de musicistas e músicos com os quais terei contato em campo, vários são os pontos de interesse da presente pesquisa. Como objetivo geral, destaco:

a análise do modo como as contradições advindas da identificação com a figura dx artista e dx profissional da música são percebidas, vivenciadas e reproduzidas discursivamente por musicistas e músicos de diferentes áreas de atuação e por pessoas com xs quais convivem em ambientes de trabalho, bem como as relações de poder e violência engendradas pelo discurso diante de tais contradições.

No intuito de traçar os objetivos específicos que nortearão o desenvolvimento do projeto, optei por uma exposição em tópicos cuja hierarquização seria um contrassenso devido à equivalente contribuição de cada um deles ao tema:

a compreensão da maneira como xs envolvidos com a pesquisa se relacionam com os discursos e valorações que xs aproximam ora dx artista ora da prática profissional em música e de que modo as contradições de tal filiação dupla toma forma em seus cotidianos;
a percepção do modo através do qual tais discursos e valorações interferem no fazer artístico e profissional dxs atorxs;
a reflexão sobre como e em que intensidade os discursos se prestam à justificativa de uma não assimilação da condição profissional pelxs musicistas e músicos envolvidxs, bem como as relações de poder e a violência simbólica neles perpetuadas;
a análise das formas através das quais relações de poder e violência que geram e são reproduzidas em discursos sobre a prática musical se relacionam com outras vinculadas à violências de gênero, raça, religião e classe social;
a reflexão acerca de como o discurso pode atuar de modo a favorecer a apropriação da significação de trabalho no fazer musical.

6. JUSTIFICATIVA
O trabalho musical e as relações por ele engendradas é um tema caro às/aos profissionais da área. De um modo geral, confrontadxs com situações precárias para exercício da profissão (REQUIÃO, 2010), tais profissionais são colocadxs ainda sob tutela de um discurso romantizado acerca de suas práticas, distanciando-se, assim, de uma apropriação da significação profissional de seu ofício.
De tamanha relevância por suas consequências práticas na realidade de tais agentes, escassas são as produções cujxs autorxs se debruçam sobre o tema. Em levantamento realizado para o presente projeto, poucas pesquisas que versam sobre as relações entre música e trabalho foram encontradas e não pude localizar qualquer outra que aludisse à maneira como discursos e realidade interagem em torno de uma questão central para x profissional da música na atualidade: o próprio trabalho musical. José Alberto Salgado (2005) chega a circundar o tema, com uma preocupação mais voltada, entretanto, para a compreensão de relações entre contextos educacionais e profissionais de música. Luciana Requião (2010) aborda os processos e relações de trabalho experimentadas por musicistas e músicos profissionais nas casas de show da tradicional região do Rio de Janeiro conhecida como Lapa. Sua atenção se direciona, porém, à análise histórica, econômica e institucional, apenas tangenciando questões relacionadas ao discurso e sua relevância como produto e reprodutor de tais relações trabalhistas. O presente projeto visa contribuir para as reflexões acerca das condições de trabalho da musicista e do músico profissional, valendo-se de enfoque diferenciado, cuja ênfase no discurso e na observação participante busca contornar alguns dos vícios e limitações existentes em análises que se resumem ao tratamento do objeto por um viés exclusivamente de classe.
O protagonismo é foco de interesse em diversas produções acadêmicas que possuem como valor a superação de desigualdades. O meu envolvimento com a prática musical, enquanto profissional da área, me permite um olhar crítico privilegiado sobre os discursos e as realidades sobre as quais pretendo me debruçar. Em tal posição, porém, faz-se necessário um cuidado epistemológico especial para que as paixões não comprometam o rigor científico do pretendido projeto, a transparência da pesquisa e tampouco a sobriedade durante a pesquisa de campo, as entrevistas propostas e o processo de análise e interpretação. Sendo as subjetividades inevitáveis, que elas sejam também potencializadas em favor do enriquecimento da pesquisa em questão.
Um trabalho como o presente, ao buscar desvelar como relações entre discurso e poder afetam o cotidiano de profissionais da música, mostra uma importante e essencial vinculação com a área de pesquisa em música. Os discurso que se mostram aqui relevantes situam-se no intermédio entre música e cultura, dado que possuem desdobramentos nas práticas musicais e no cotidiano dxs com elas envolvidos e são também social e culturalmente situados. A Etnomusicologia apresenta-se, portanto, como área afim, capaz de despertar as mais pertinentes discussões para o desenvolvimento do projeto e estabelecer um campo propício para o seu êxito.

7. PROCESSOS E PRÁTICAS
Ao direcionar as atenções ao discurso, a pesquisa adquire um contorno subjetivo. Não quero aqui porém afirmar que não é possível retirar traços objetivos de universos simbólicos e de suas subjetividades. A hipótese trabalhada é a de que formulações discursivas diversas sobre a prática de artistas e profissionais da música reforçariam a sua identificação simbólica com universos de características distintas, quando não antagônicas, que frequentemente contribuiriam para o aprofundamento de relações de exploração confrontadas e reproduzidas por musicistas e músicos em suas práticas cotidianas.
A análise do discurso a que me proponho através do presente trabalho valeria-se, portanto, de um processo de observação participante conduzida entre grupos de interesse que, posteriormente, resultaria em escrita etnográfica, base da pesquisa em questão. A observação será conduzida em uma casa de show na cidade de Salvador e entre um grupo de performance dedicado à apresentações em casamentos na mesma localidade. Pretendo perceber como a ponte entre x profissional e x artista é ensaiada e erigida por esses instrumentistas, bem como os reflexos desta construção em suas formulações discursivas.
Com preocupações especialmente voltadas à maneira como o discurso é influenciado e atua de modo a influenciar a condição de trabalho dx profissional da música, optei por conduzir o trabalho através do contato com musicistas e músicos não sujeitxs a grande exposição midiática e tampouco com rendimentos financeiros desviantes. Especialmente interessado na questão do trabalho de musicistas e músicos em geral, pouco sentido faria focar minha pesquisa participante em grupos que representam exceções ao padrão de trabalho e remuneração no campo da música.
Buscando um diálogo com a semiótica e a hermenêutica, Clifford Geertz (2008, p.4), em consonância com os escritos de Max Weber, defende ser o homem "um animal amarrado a uma teia de significados que ele mesmo teceu", sendo a cultura "essas teias e sua análise". Contrariando a busca por leis e padrões experimentais, baseados em dados brutos que falariam por si, Geertz advoga em torno de uma Antropologia interpretativa, na qual a busca por significados constituiria a principal tarefa dx pesquisador(a) e, por consequência, o objetivo último do fazer etnográfico. Sobre tal prática, ele acrescenta:
[…] a etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato —a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados — é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. […]. Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de "construir uma leitura de") um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado. (GEERTZ, 2008, p.7)
Partindo das reflexões expostas acima e dos inevitáveis diálogos entre a Antropologia e a Etnomusicologia, o que buscarei realizar no trabalho proposto será uma descrição densa, interpretativa, dos discursos e valorações compartilhadas por profissionais da música e por outros atores envolvidos com suas atividades.

8. CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO DO PROJETO































REFERÊNCIAS

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Todas as identidades foram aqui preservadas pois identificações em nada interfeririam na finalidade da utilização dos diálogos expostos.
Busco, através da escrita, fugir dos sexismos que de modo tão acentuado marcam nossas regras gramaticais. Para contemplar a pluralidade de gêneros, além da reestruturação de frases para uma contemplação mais abrangente, frequentemente utilizarei a letra "x" substituindo outras que marcam indiscriminadamente uma associação com um gênero específico.
Muitas das reflexões a que pretendo me dedicar durante a presente pesquisa podem se estender a outras áreas do fazer artístico. Também podem se estender a outras áreas nas quais a ideia de "vocação", "dom" e "amor" são frequentemente associadas ao ofício, tais como as relacionadas às atividades esportivas e de docência. Por propor uma etnografia entre músicos e por não buscar como trabalho – que é qualitativo – generalizações de qualquer natureza, reduzo o meu escopo de reflexão à atuação do músico nos contextos observados.
Sobre violência simbólica e a abordagem do fenômeno da violência além de sua manifestação estritamente física, ver BOURDIEU e PASSERON (1975) e MICHAUD (1989).
Michel Foucault (1996) argumenta que, em qualquer sociedade, os discursos e sua produção são selecionados e distribuídos através de procedimentos que possuem a função de exorcizar-lhe os poderes e também os perigos. Ele aponta a vontade de verdade como um dos principais sistemas de exclusão que atingem o discurso. Dada a necessidade de transformações nas condições de trabalho experimentadas pelo músico profissional, uma outra vontade de verdade deve ser exposta e disputada no âmbito do discurso no que tange a diversos aspectos associados a tal, dentre eles, possivelmente, a vinculação do fazer artístico à ideia de genialidade e talento inerente aos músicos. Discorrerei sobre a questão de maneira mais detalhada durante o desenvolvimento do texto.
Me atenho às transformações em relação ao fazer musical ocorridas no mundo ocidental, não por qualquer crença etnocêntrica e tampouco por desconsiderar a relevância de histórias outras que não a que nos é prioritariamente reproduzida, mas devido ao recorte do presente trabalho, que busca problematizar as relações entre discurso e prática nas relações de trabalho de músicos contextualmente inseridos.
Colóquio Internacional Marx e o Marxismo 2015: Insurreições, passado e presente, promovido pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e Marxismo (NIEP – MARX) da Universidade Federal Fluminense entre os dias 24 e 28 de agosto de 2015.
Theodor W. Adorno demonstra que, apesar de muitas vezes as relações de produção atuarem no sentido de acorrentar o desenvolvimento das forças produtivas, em alguns momentos aquelas também assumem o papel de fortalecer as forças de produção emergentes. Segundo o autor: "As forças musicais produtivas e as relações de produção não se contrapõem de modo simplesmente antagônico umas em relação às outras, mas são recíproca e variadamente mediadas. As próprias forças produtivas podem alterar as relações de produção na esfera socialmente particular da música, e, até certo ponto, inclusive criá-las. (...) Vez ou outra, (…) as relações de produção também intensificaram as forças produtivas. Sem a ascensão da grande burguesia alemã e sua influência sobre as instituições e sobre o gosto, Richard Strauss seria inimaginável." (ADORNO, p.400-402)
Para informações sobre a mudança de condição das relações de trabalho com música durante o período de transição para a sociedade ocidental moderna, ver ELIAS (1995)
Nobert Elias (1995) atenta para uma enorme disparidade regional no interior do continente europeu no período. Esta favorecia a atuação de musicistas e músicos autônomxs em determinadas localidades e a inibiam em outros.
Acerca da relação entre a arte de artista e sua vinculação à ideia de talento, Nobert Elias é esclarecedor ao definir aquela: "arte criada para um mercado de compradores anônimos, mediados por agências tais como negociantes de arte, editores de música, empresários etc. Mudança na relação de poder em favor dos produtores de arte, significando que eles podem induzir o consenso público quanto a seu talento. Maior independência dos artistas a respeito do gosto artístico da sociedade, paridade social entre o artista e o comprador de arte (democratização)". P.135
A análise de grupos sociais como constituídos por atorxs exercendo papéis específicos foi sugerida por Erving Goffman em A representação do eu na vida cotidiana (2004). Outrxs autorxs compartilharam de tal paradigma e ajudaram a constituir uma corrente da Sociologia e da Psicologia Social que posteriormente ficou conhecida como Interacionismo Simbólico
"Conservatory life is about talent. Musical talent is at once the most pervasive phenomenon and the biggest issue in conservatory life".
Como exemplo, Kingsburry conta a história de Johanna, uma cantora e ex-aluna do conservatório com a qual tinha costume de conversar. Ela procurou o autor após falhar em audição final com xs professorxs de canto. Em um local onde tudo gira em torno do talento, falhar em um exame de tal natureza poderia significar uma possível ausência de tal "atributo" e, consequentemente, colocar o futuro da estudante no conservatório em sério risco. Xs professorxs, apesar de atestarem que Johanna possuía uma voz maravilhosa para o canto, alegaram ser a estudante "pouco musical", sugerindo-a que buscasse refletir sobre a possibilidade de investir seus estudos em outra área que não a música. Contra o atestado de "não-musicalidade" pouco poderia fazer a estudante, já que a tal atributo não se apresenta como algo possível de ser trabalhado. O mais curioso é que no mesmo exame em ano anterior, a estudante foi classificada por alguns dos mesmos professores como "musical", em uma demonstração de cômica ambiguidade relacionada a tal julgamento.
"[...] relation between reality and the way we know reality".
"The validity of a given person's musical talent is a direct function of the relative esteem of the persons who have attributed the talent to the person in question".
"Not only is musical 'talent' relational, but the social relations characterized by an attribution of talent link the steem of the persons involved. (...) An assessment of musicality or talent is not something that is ever proved or disproved. Rather, it is validated with reference to the same social process in which it first arose. An assessment of musical talent is an esthetic judgment. An esthetic judgment of musical performance is a statement that is evaluative of a person or persons".
Segundo Elizabeth Travassos (1999) o conceito de músico profissional compreende "não só aquele que exerce atividades remuneradas, mas também aquele cuja prática, independentemente da geração de renda, se desenrola num determinado enquadramento de relações sociais que a distingue da prática de estudo (na qual o músico é aluno), de ensaio (que é preparatória da performance propriamente dita), ou de passatempo (que dispensa público e uma situação de performance formalizada)". (p.123-124, itálico da autora). Como as preocupações do presente projeto são voltadas para os fatores ligados ao discurso e vinculados à apropriação da significação profissional do trabalho da musicista e do músico, considero aqui como profissional da música o sujeito que se insere em relações de produção e remuneração vinculadas à atividades que dialoguem diretamente com a prática musical. Em outras palavras, o profissional da música seria aquele que troca o seu trabalho vinculado à prática musical por dinheiro.

Theodor W. Adorno, apesar de reconhecer a influência das relações de produção sobre as forças produtivas no campo do trabalho artístico, defende a idéia de que "Mozart escreveu algumas obras à sua própria maneira e como bem desejava" (2011, p.401), Ao relatar a preocupação de Mozart com a aceitação de suas obras em determinados círculos, Nobert Elias, por outro lado, demonstra como a opinião do público determinou de maneira incisiva as composições do músico: "Mesmo em Salzburgo, suas melhores peças foram as que escreveu para pessoas a quem queria agradar, quando podia soltar as rédeas da imaginação. Acreditava que teria esta possibilidade em Viena. Mas ali também foi obrigado a fazer concessões. Tomemos por exemplo alguns concertos para piano que compôs em meados da década de 1780. Para ele, era uma necessidade vital que tais obras satisfizessem o gosto do público, já que dependia da renda de suas "academias". (1995, p.42)
A palavra mundo para expressar um campo de conhecimento e especialização é vastamente utilizada por Becker no livro em questão.
Sobre as transformações relacionadas à produção artística em conexão com as técnicas de reprodução a ela associadas, ver Walter Benjamin (1983). Para outras informações relacionadas às transformações nas formas de distribuição e circulação da música em associação com as transformações nos processos de gravação ver Thomas Turino (2008)
Para Pierre Bourdieu as elites neste caso não são, necessariamente, compostas por detentores de capital econômico, sendo o que ele denomina capital cultural de extrema relevância para a sua apreensão como tal. A burguesia afirma seus valores no campo da arte legitimada e restringe seu acesso, buscando naturalizar seus privilégios através de distinções que transcendem sua acumulação econômica.
Luciana Requião refere-se aqui à musicista e ao músico comuns, deixando de lado, para análise, a condição de pequenos grupos de profissionais que obtiveram grande êxito financeiro. Após a constatação estatística de que estes representavam a exceção à regra, Luciana direciona sua atenção à questão da democratização dos recursos.
A Lapa é uma área localizada em uma região tomada convencionalmente como Centro da cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, a Lapa é associada à sua intensa atividade comercial, principalmente a relacionada ao entretenimento e ao lazer. Reduto da boemia carioca, "a ocupação dessa área de forma mais organizada teve início no século XVIII, tendo sido frequentada com maior intensidade desde o final do século XIX por intelectuais, artistas e políticos, além dos malandros e das prostitutas. (REQUIÃO, 2010, p.183)
Autores (REQUIÃO e RODRIGUES, 2011) destacam o papel da Indústria Criativa como um dos mercados mais prósperos no Brasil e no Mundo em tempos modernos. Questionam, porém, a parcela de tal prosperidade que seria destinada a favorecer a ponta desse mercado, ou seja, os profissionais da arte. Tal questionamento nos leva a crer que muitos dos problemas encontrados por tais trabalhadores em suas atividades profissionais cotidianas são antes relacionados à distribuição de recursos que à sua escassez.
Sobre os processos e procedimentos a serem adotados durante a pesquisa, discorrerei mais detalhadamente na seção 7, "Processos e práticas".
Tais termos são controversos e desencadearam grandes debates na área. Infelizmente, o aprofundamento no tema me faria desviar excessivamente dos objetivos do presente projeto de pesquisa. Para maiores informações sobre as limitações e complexidades vinculadas à utilização dos termos popular e erudito ver NEDER (2010), CANCLINI (2013) e FONSECA (2014)
Tal distinção é meramente didática, pois acredito na relação dialógica e indissociável entre discurso e realidade.
Ver, por exemplo, TINHORÃO (1975, 2010)

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