Entre a diversidade e a discriminação: a ambivalência da representação de minorias em revistas de nicho

July 17, 2017 | Autor: Filipe Ferreira | Categoria: Discourse Analysis, Social Representations, Stereotypes and Prejudice, Minorities
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Entre a diversidade e a discriminação: a ambivalência da representação de minorias em revistas de nicho1 Filipe Mantovani Ferreira [email protected]

Resumo: A revista Junior ganhou, ao longo dos últimos anos, notoriedade como publicação voltada ao público homossexual. Este trabalho observa, em três reportagens por ela publicadas, como as representações dos membros da minoria a que a revista se dirige são construídas discursivamente. Com base nas análises, constatou-se que a revista procura construir, por meio de procedimentos linguísticos e discursivos, uma imagem positiva dos homossexuais, mas acaba assumindo postura ambivalente, tendo em vista que reforça preconceitos com relação a características desprestigiadas normalmente atribuídas a este grupo. Foram utilizadas, para fins de análise, as noções de semiotização do mundo, narrativas (CHARAUDEAU, 2010), minoria (TAJFEL, 1981), além da abordagem triangular do discurso (VAN DIJK, 2006). Palavras-chave: revistas de nicho, minorias, estereótipos, narrativas, discurso.

1. Introdução A recente resolução do Conselho Nacional de Justiça de que casais homossexuais podem converter uniões estáveis em casamento, os debates sobre a possibilidade de adoção por parte de casais homossexuais, o fato de o Brasil sediar a maior parada do orgulho LGBT2, as discussões a respeito do projeto de lei que criminaliza a homofobia (PL122)3 e o surgimento de casais homossexuais em novelas transmitidas na televisão aberta são alguns dos eventos que sugerem um ganho de visibilidade de homossexuais nos últimos anos no Brasil. Além disso, como sintoma do ganho de visibilidade, empresas passaram a ver, nos homossexuais, um nicho de mercado a ser explorado, fato que teve como consequência o surgimento não só de uma publicidade que objetiva conquistar esse público, mas também o 1

Este artigo foi publicado originalmente em Aquino et al., (2015). A sigla LGBT refere-se a lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Ela pode ser considerada sucessora da sigla GLS (gays, lésbicas e simpatizantes), a qual não contemplava travestis e transexuais. O evento comumente conhecido como “parada gay” é promovido pela Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo (APOGLBT), entidade civil ligada a lutas sociais afirmativas visando à melhoria das condições de vida da população LGBT. Conforme estimativa da APOLGBT, a parada de São Paulo atraiu 3,5 milhões de pessoas em 2010, cifra que a coloca no topo da lista das maiores paradas LGBT do mundo (cf. http://paradasp.wordpress.com/parada/ - acesso em 22/07/2014). 3 Apesar de ter se tornado conhecido como uma proposta de criminalização da homofobia, o PL122 tem escopo mais amplo, visto que visa à proteção de quaisquer pessoas que sejam discriminadas por motivos de orientação sexual, gênero, deficiência física ou condição de idoso. 2

desenvolvimento de produtos específicos para atender às demandas dele, tais como canais e programas de televisão, pousadas, cruzeiros, viagens, sites, entre diversos outros. A título de ilustração, observe-se, a seguir, um exemplo de peça publicitária do sorvete Magnum, veiculada por meio do Facebook em julho de 2014, em que é evidente o apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e o repúdio à discriminação por orientação sexual4. O anúncio, que parece ter como objetivo o ganho de simpatia junto à comunidade LGBT, mostra dois picolés idênticos adornados por grinaldas, fazendo alusão a uma união lésbica e, assim, associando a marca Magnum a uma postura favorável ao reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo e contrária à discriminação por orientação sexual.

Também as empresas do ramo de revistas encontraram nos homossexuais uma possibilidade de expansão de mercado, sobretudo a partir dos anos 1990, quando surgiram as primeiras revistas comerciais voltadas a esse grupo5. O aumento da visibilidade, no entanto, não implica a resolução do problema da homofobia, que ainda faz vítimas, conforme se observa nas manchetes transcritas a seguir: - Jovens de classe média agridem 4 na Paulista; polícia investiga homofobia (Estado de São Paulo, 15/11/2010) 4

A peça publicitária em questão pode ser encontrada no endereço a seguir: http://wp.clicrbs.com.br/ plural/files/2014/07/magnum_plural.png. Acesso em 19/02/2015. 5 Anteriormente, a criação de publicações voltadas a homossexuais correspondia muito mais a um esforço de protagonizar mudanças políticas e sociais que a um desejo de conquista de mercados e obtenção de lucros. Em outras palavras, ocorreu, neste período, a substituição de publicações alternativas por outras idealizadas segundo uma lógica de mercado (cf. KUCISNKI, 1991).

- Homofobia contra atleta faz Vôlei Futuro acionar Justiça Desportiva (R7, 05/04/2011) - Anistia Internacional alerta para o aumento da homofobia (Estado de S. Paulo, 17/05/2014) - Homossexual é atingido por micro-ônibus ao fugir de ataque em SP (G1, 12/07/2014)

Evidencia-se, assim, a realidade ambivalente que vivem os homossexuais, ora sendo incluídos na sociedade, ora excluídos dela. De acordo com van Dijk (1984), o preconceito é tanto um fenômeno cognitivo quanto social. Sua base não se constitui unicamente por um conjunto de crenças individuais ou emoções relacionadas a grupos sociais, mas por uma forma partilhada de representação de membros do grupo adquirida durante o processo de socialização e ativada na comunicação social e na interação. Dessa forma, à ambivalência observada com relação ao tratamento dado a homossexuais em nossa sociedade, deve corresponder uma ambivalência nas representações desse grupo, as quais são construídas no e pelo discurso. Este trabalho tem por objetivo analisar o discurso de Junior, revista voltada a homens homossexuais, especificamente no que diz respeito à construção ambivalente da imagem desse grupo (e/ou de membros dele) por meio de três reportagens veiculadas por essa publicação, quais sejam: •

“Mudei de vida por amor” (Junior, nº 12);



“Macho sim senhor” (Junior, nº 13);



“Lá e cá” (Junior, nº 21)6. Para tanto, retomamos as propostas teóricas de Charaudeau (2009), van Dijk (1984,

2006), Tajfel (1981), entre outras.

2. A abordagem triangular do discurso A fim de que se possam analisar as narrativas selecionadas sob o ponto de vista da criação das imagens de minorias e seus membros, estabelecendo relações com a discriminação e o papel das minorias na sociedade, é necessário que se adote uma teoria do preconceito, em que convirjam as instâncias individual, social e discursiva.

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Foram consultadas, para este trabalho, as edições 12, 13 e 21 de Junior. Dentre elas, apenas a última oferece indicações quanto ao ano e mês de publicação, setembro de 2010. Nas outras, as indicações resumem-se a “ano 2” (edição 12) e “ano 3” (edição 13). Tendo em vista que o primeiro número da revista foi publicado em setembro de 2007, presume-se que a edição 12 tenha sido publicada por volta do mês de agosto de 2009 e que a edição 13 tenha sido publicada em setembro do mesmo ano, ainda que não se possa sabê-lo com certeza, em virtude de alguns atrasos e mudanças quanto à periodicidade nas primeiras edições da publicação.

Entendemos, dessa forma, que a relação entre os discursos e a perpetuação ou modificação de crenças de natureza discriminatória só pode ser entendida se forem levados em conta os processos cognitivos e sociais que se imbricam conforme a imagem de um determinado grupo ou indivíduo é forjada. Além disso, sendo certo que ela se constitui por meio do discurso, é indispensável que analisemos também a materialidade linguísticodiscursiva das narrativas. Adotamos, assim, a abordagem triangular de van Dijk (2006), para quem os sentidos de um discurso resultam da interação entre a cognição, a sociedade e o discurso, conforme o seguinte esquema:

(FERREIRA, 2014, p.125)

Nas seções a seguir, tratamos sucintamente de cognição, sociedade e discurso, sem que haja, no entanto, a pretensão de isolar estas dimensões umas das outras, tendo em vista o fato de que a produção de sentido de um discurso depende das relações existentes entre elas.

3. A construção de imagens em sociedade: a estereotipagem Ao propormos a análise da imagem de homossexuais em revistas que se voltam a esse público, é essencial que compreendamos como ela se constitui de um ponto de vista sociocognitivo. A imagem de um indivíduo ou grupo é, em larga medida, decorrente de um processo de estereotipagem. Tajfel (1981, p. 143) define estereótipo como uma imagem mental hipersimplificada de uma determinada categoria (normalmente) de indivíduo, instituição ou acontecimento, compartilhada, em aspectos essenciais, por grande número de pessoas. As categorias podem ser amplas (judeus, gentios, negros brancos etc.) ou restritas 7 (feministas, filhas da Revolução Americana).

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Tradução nossa.

Segundo Amossy (2008), o uso de imagens pré-construídas decorre da impossibilidade de concebermos as imagens reais de grupos ou indivíduos sem que elas se indexem em representações partilhadas. Dessa forma, pode-se dizer que uma representação de um indivíduo ou grupo não é jamais integralmente original, visto que depende sempre do recurso a modelos pré-existentes, mesmo quando se trata da construção de imagens contestatórias. A estereotipagem consiste, portanto, em um processo cognitivo que facilita as interações dos indivíduos com um entorno social complexo (BODENHAUSEN, 1993) por permitir que uma imagem de um determinado indivíduo ou grupo seja construída rapidamente, a despeito do quão breve ou restrito seja o contato com ele. Nesse sentido, é equivocado concebê-la como um processo necessariamente ligado à discriminação, ainda que ela efetivamente seja peça central do processo de formação dos preconceitos. Na verdade, o preconceito decorre não da estereotipagem enquanto processo cognitivo, mas de sua dimensão afetiva, isto é, dos afetos (raiva, admiração, etc.) socialmente atribuídos aos estereótipos. Assim, as dimensões cognitiva e social se influenciam mutuamente: o modo como a imagem do outro é percebida e é cognitivamente processada regula os processos de valoração e, portanto, é determinante quanto aos afetos que a ela serão relacionados; inversamente, os afetos atribuídos a uma determinada imagem têm papel preponderante no modo como esta será apreendida cognitivamente. A articulação entre os estudos dos afetos e dos estereótipos corresponde a uma importante inovação, a saber, a possibilidade de enxergar os processos cognitivos de estereotipagem como fenômenos socialmente situados, uma vez que valor afetivo de algo é culturalmente atribuído. Nesse sentido, van Dijk (1984, p. 13) explica que o preconceito é tanto um fenômeno cognitivo quanto social. Não se trata meramente de um conjunto de crenças individuais ou emoções relacionadas a grupos sociais, mas de uma forma partilhada de representação de membros do grupo adquirida durante o processo de socialização e 8 transformada e ativada na comunicação social e na interação.

Ao destacar o papel da comunicação informal entre membros de grupos majoritários para o estabelecimento de preconceitos, van Dijk (idem, p. 10) reconhece que os meios de comunicação “contribuem para o espalhamento e a aceitação de atitudes preconceituosas e

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Tradução nossa.

de possíveis consequências de tais crenças em interação discriminatória com membros de minorias”9. Dessa forma, uma vez que a consolidação de preconceitos é uma consequência da comunicação e da interação (ou seja, da circulação do discurso), é necessário que a vontade de modificar um estereótipo preconceituoso corresponda, necessariamente, à criação de contradiscursos que se oponham aos padrões vigentes e se articulem de modo a propiciar a revisão de modelos culturais arraigados.

4. Minorias A associação de afetos a grupos é essencial para que se conceba, por meio do processo de estereotipagem, uma minoria, conceito que deve ser compreendido em termos qualitativos (TAJFEL, 1981), a despeito do viés quantitativo sugerido pela terminologia. Wagley e Harris (1958) definem minorias como segmentos subordinados de sociedades complexas que possuem características físicas ou culturais que são desprestigiadas por seus segmentos dominantes. São, ademais, grupos que possuem ciência do fato de formarem um grupo que se diferencia de outros por conta de características distintivas específicas. Liebkind (1984, p. 16) esclarece que “grupos minoritários e majoritários diferem (ou se pressupõe que difiram) com relação a características raciais, étnicas, religiosas, sociais, linguísticas ou culturais, as quais podem sobrepor-se ou decorrer umas das outras”10. A relevância desses traços diferenciais pode ser detectada em nossa sociedade quando se observa que sua existência é suficiente para que tiremos conclusões acerca dos indivíduos que os possuem. Conforme argumentamos em Ferreira (2012, p. 79), a cor de pele negra, por exemplo, consiste em um traço distintivo relevante socialmente, uma vez que a classificação de um indivíduo como negro permite que, através do recurso a um estereótipo, outras inferências e previsões acerca de sua classe social, local de residência, caráter, gostos, aparência, habilidades, personalidade e outros aspectos, além da associação de emoções positivas ou negativas, possam ser feitas com facilidade.

Liebkind explica ainda que os traços diferenciais, aliados a tipificações, estereótipos e sistemas de valores, podem interferir nos padrões de relação sociais. Com efeito, a associação de afetos negativos, implicada pela pertença a minorias, acarreta consequências negativas, tais como a discriminação, a ridicularização, a desconfiança, a desaprovação, dentre diversas outras possíveis.

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Tradução nossa. Tradução nossa.

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5. A semiotização do mundo e as narrativas Concebido por Tajfel (1981) como uma imagem hipersimplificada que é partilhada pelos membros de um dado grupo social, o estereótipo só pode ser compreendido conforme o tomemos como fenômeno a um só tempo individual e social. Para dar conta de sua dimensão social, é essencial que se compreenda o fenômeno de formação da opinião pública, que, para Charaudeau (2010), é tributária do processo de semiotização do mundo, empreendido, ao menos em parte, no mundo em que vivemos, pela mídia. Conforme entendida por Charaudeau, a semiotização do mundo corresponde à passagem de um “mundo a comentar” a um “mundo comentado”, a qual ocorre por meio da ação linguageira do homem. Trata-se do processo de transformação. O mundo a comentar, conforme concebido por Charaudeau, consiste no “efeito de uma fenomenalidade que se impõe ao sujeito, em estado bruto, antes de sua captura perceptiva e interpretativa” (p. 95), enquanto o mundo comentado resulta da integração do mundo a comentar em um sistema de pensamento, tornando-o inteligível. Dessa forma, a conversão do mundo a comentar pode ser entendida como a adoção do ponto de vista de alguém, que se impõe sobre uma realidade heteróclita, que será interpretada conforme seja criada e recriada discursivamente. Decorre dessa concepção de produção discursiva a noção de que a realidade nunca é acessada em toda a sua complexidade, mas apenas de modo fragmentado. Segundo Charaudeau (2010, p. 41), [o processo de transformação] abrange categorias que identificam os seres do mundo nomeando-os que aplicam a esses seres propriedades qualificando-os, que descreve as ações nas quais esses seres estão engajados narrando, que fornecem os motivos dessas ações argumentando, que avaliam esses seres, essas propriedades, essas ações e esses motivos 11 modalizando-os.

O autor esclarece que o processo de transformação de um mundo a comentar em um mundo comentado está sempre submetido a um processo de transação, o qual é definido como o movimento de atribuição de significação psicossocial à discretização do mundo. Dessa forma, a transação atribui objetivo aos atos de linguagem, fenômeno que ocorre em função de parâmetros como hipóteses sobre o outro (sua idade, seus saberes, posição social, estado psicológico, aptidões, interesses etc.), o efeito que se pretende instaurar e o tipo de regulação que se prevê com relação aos parâmetros precedentes. É, pois, por meio da postulação da existência do processo de transação que Charaudeau integra a dimensão ideológica do

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O uso de itálico foi mantido com relação à obra consultada.

discurso a seu quadro teórico e, deste modo, ratifica a inexistência de neutralidade em quaisquer discursos. Decorre dessa constatação o fato de que as narrativas dos fatos vividos por membros das minorias publicadas pela revista Junior, como quaisquer discursos, têm uma dimensão ideológica, ainda que, por vezes, esta pareça estar oculta, tendo em vista sua natureza pretensa e ilusoriamente factual. Assim, “ao ressurgir no presente, o passado se mostra como sendo irremediavelmente perdido enquanto passado, mas também transformado por este seu ressurgir” (GAGNEBIN, 1992, p. 47).

6. Análises Ao tratar da mídia voltada a negros, Bastide (1973, p. 130) esclarece que esta raramente é uma imprensa de informação: (...) Esses jornais procuram primeiramente agrupar os homens de cor, dar-lhes o senso da solidariedade, encaminhá-los, educá-los a lutar contra o complexo de inferioridade, superestimando valores negros, fazendo a apologia dos grandes atletas, músicos, estrelas de cinema de cor. É, pois, um órgão de educação.

É pressuposto deste trabalho que a mídia voltada a homossexuais, analogamente à mídia negra, procure cunhar representações favoráveis de membros da minoria a que se dirige, visando à criação e à perpetuação de uma autoestima minoritária. Tal tendência é reforçada conforme analisamos as narrativas extraídas de Junior que compõem o corpus deste trabalho. Observe-se, a título de exemplo, o excerto a seguir, extraído da narrativa intitulada “Macho sim senhor”, publicada na edição de número 13 de Junior, em que se relata a eleição de Thiago Silvestre Mister Gay Brasil 2009.

(JUNIOR, n. 13, p.36-37)

Thiago é, no excerto, caracterizado ora com base nas características que tem, ora nas que não tem. Se por um lado lhe são atribuídas características como ter voz grave (“falar grosso”), ter aparência viril (“pinta de machão”, “másculo”), por outro, a publicação procura deixar claro que Thiago não “dá pinta”, isto é, não é efeminado ou tem trejeitos comumente associados a homossexuais. A descrição feita com base em características que Thiago não tem contrasta com a descrição mais comum, baseada nas características que podem ser observadas. Se esta procura dar relevo à suposta virilidade de Thiago, aquela assume tom de ressalva, de advertência ao leitor de que Thiago, apesar de assumidamente homossexual, não deve ser visto como um indivíduo efeminado. A publicação antecipa, desta forma, uma conclusão que seu público poderia tirar a respeito de Thiago para então contradizê-la, evidenciando, assim, a preocupação de que o público não associe a feminilidade ao membro da minoria representado. Observe-se, além disso, que a imagem de Thiago é construída em termos das profissões que já teve: empregado em uma loja de material de construção e em uma oficina mecânica, ambientes associados à virilidade e à necessidade de grande força física em nossa cultura. Some-se a isto o fato de se ressaltar que Thiago foi criado no “interior do interior”, isto é, em um local afastado, onde a liberdade sexual e afetiva característica da vida nas grandes cidades é supostamente mais limitada que nos grandes centros urbanos. A seleção das informações a respeito da origem de Thiago e de seu percurso profissional colabora para que se conceba Thiago como alguém que destoa da imagem de homossexual efeminado e delicado, características centrais da concepção estereotípica de membros dessa minoria. A coocorrência dos processos de nomeação (“másculo”), qualificação (“tem pinta de machão”, “quase não dá pinta”, “fala grosso”) e narração (“foi criado no interior do interior”, “trabalhou em oficinas mecânicas e loja de material de construção”), concebidos por Charaudeau (2010), evidencia a insistência da publicação quanto à construção de uma imagem viril para Thiago, a qual é, do ponto de vista da publicação e de Thiago, uma imagem positiva e desejável, conforme se observa no trecho “ele reconhece que sua macheza o fez ganhar destaque entre seus concorrentes”12. Além disso, observa-se, neste excerto a opção pelo uso do verbo reconhecer, utilizado em detrimento de outros declarativos como afirmar ou dizer. Reconhecer, tomado no sentido 12

Não consideramos nomeação, qualificação, narração, argumentação e modalização processos de semiotização estanques, mas procedimentos que coocorrem, imbricando-se e colaborando para a produção de sentido. Para uma breve discussão a respeito da dificuldade diferenciá-los, cf. Ferreira, 2012, seção 2.2.

de “admitir como verdadeiro”, é uma forma verbal normalmente utilizada quando uma ideia pré-existente é referendada. Assim, quando lemos a notícia intitulada “Juiz reconhece que havia tortura de presos políticos” (Estado de S. Paulo, 31/07/2014), que narra a admissão da existência de tortura de presos políticos do regime militar brasileiro por parte do juiz Nelson Guimarães, observa-se a ratificação da noção imensamente recorrente de que havia tortura para presos políticos no Brasil. Coube à notícia apenas referendar essa ideia. De forma análoga, o fato de Thiago reconhecer que sua virilidade foi o diferencial definidor de sua vitória no concurso sugere a ideia pré-existente de que a virilidade é uma característica positiva, digna de valorização e condição (“credencial”) para premiação. Ao selecionar o verbo reconhecer para proceder à narração da trajetória de Thiago, o narrador ― a “voz da revista” ― procede ao questionamento do estereótipo de homossexual vigente, visto que subjaz ao seu discurso a afirmação de que o grupo dos homens homossexuais não é homogeneamente formado por indivíduos efeminados, mas diversificado. À imagem hipersimplificada do grupo homossexual, a publicação procura adicionar contornos, para que se torne mais nítida e menos generalizante. Ocorre, no entanto, que a atribuição de uma acentuação valorativa positiva13 à virilidade tem por consequência a desvalorização de comportamentos efeminados, os quais são reconhecidos socialmente como característicos de uma parte da minoria homossexual. Portanto, ao mesmo tempo em que procura chama a atenção para a diversidade inerente ao grupo minoritário homossexual, a revista assume postura discriminatória, excludente com relação aos membros da minoria que não são viris. Tal encaminhamento revela uma tendência da revista a valorizar, nos homossexuais, a presença de características prestigiadas que a eles não são comumente associadas e desvalorizar características desprestigiadas que a eles são comumente vinculadas. Assim, torna-se evidente uma tendência a valorizar características reconhecidas como extrínsecas ao grupo minoritário, o que resulta em uma postura ambivalente por parte da revista: ao mesmo tempo em que, como forma de valorizar o grupo dos homossexuais, chama atenção para o fato de que ele não corresponde propriamente à imagem negativa que comumente se faz dele, desvaloriza uma parcela do grupo, por reconhecer nela uma característica condenável, a saber, a falta de virilidade. Dessa forma, ser homossexual não é demérito do ponto de vista da revista; ser efeminado, entretanto, o é. A ambivalência pode ser detectada também nas reportagens “Mudei de vida por amor” e “Lá e cá”, cujas introduções são reproduzidas a seguir:

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Termo utilizado na acepção de Volochínov/Bakhtin (1992).

(JUNIOR, n. 21, p. 44)

(JUNIOR, n.12, p.72)

Pela leitura da introdução de “Mudei de vida por amor”, observa-se que o universo homossexual é concebido, do ponto de vista da revista, como um domínio em que o sexo sem compromisso (“pegação”) é uma prática comum, que não só se opõe ao amor como também elimina a possibilidade de que ele exista. A noção de que sexo casual e amor são elementos inconciliáveis e opostos é sugerida pelo uso do conectivo mas no trecho a seguir: Falar de amor já virou piada em algumas rodas gays. Mas não para algumas pessoas que [...] decidiram arriscar mundos e fundos em uma relação quase impossível.

Além disso, a narrativa, ao utilizar a palavra piada para qualificar o ato de falar de amor entre os homossexuais, sugere que a maior parte dos membros da minoria entende o amor como algo a um só tempo irreal e risível, características salientes do gênero textual piada. O uso de já, no excerto, sugere que o status atual do amor é diferente daquele que outrora teve: se atualmente falar de amor é uma piada, esta noção é resultado da modificação do papel do amor ocorrida ao longo do tempo, constatação que assume tom de lamento na narrativa. Nesse sentido, a transição a que procede a conjunção mas sugere que a publicação tem preferência por uma visão “séria” do amor, essencialmente monogâmica, supostamente vigente em época anterior e em decadência atualmente. Pela leitura de ambos os excertos, constata-se que o tema da superação de dificuldades com o objetivo de viver um relacionamento amoroso estável é recorrente. Enquanto em “Mudei de vida por amor” as dificuldades enunciadas (e superadas) são a distância, o HIV/AIDS e a orientação sexual, “Lá e cá” trata especificamente de relacionamentos que sobreviveram e prosperaram, malgrado a distância entre os envolvidos.

Observe-se o quadro sinótico a seguir: Título da reportagem

Mudei de vida por amor

Nomes14 dos sujeitos retratados nas narrativas

Dificuldades enfrentadas

Igor Sonoda e Juan Gomez

Distância geográfica – Igor morava em Manaus e Juan, na Costa Rica.

Relacionamento descrito como casado”.

Vitor e Lindo

Sorodiscordância – Vitor, portador de HIV, encontrou dificuldades para construir uma relação até conhecer Lindo, que aceitou sua condição de saúde.

Relacionamento estável, dentro do qual Vitor afirma estar “construindo a nossa [dele e de Lindo] felicidade”.

Dificuldade, por parte de Rodrigo, de aceitar viver uma relação homoafetiva.

Relacionamento estável de um ano, sem brigas e com direito a viagens a “lugares lindos”.

Toni Reis e David Harrad

Dificuldades de comunicação devido à falta de uma língua comum, além de diferenças culturais e problemas na obtenção de um visto brasileiro permanente para David.

Relacionamento estável de 20 anos.

Renato Alexandre dos Santos e Darko Kirini

Distância geográfica (Renato morava em Londres, e Alexandre, em Zagreb); impossibilidade de conseguir para Renato um visto croata permanente; residência na Croácia, onde direitos de casais homossexuais não são reconhecidos e a homossexualidade é bastante repudiada.

Relacionamento estável.

Gean Queiroz e Håkan Bergström

Diferenças culturais e dúvidas, por parte de Håkan, quanto à natureza de uma relação homossexual.

Relacionamento estável de sete anos

Rogério Rodrigo

Lá e cá

e

Sucesso atingido

estável “vida de

As seis narrativas esquematizadas têm em comum o fato de serem construídas em torno das dificuldades por que passaram os casais cujo percurso até o estabelecimento de relações monogâmicas estáveis é narrado. Tais relações, como argumentamos anteriormente, são vistas como uma alternativa preferível com relação ao sexo casual, prática supostamente preponderante atualmente no universo homossexual. Narrada como um percurso dificultoso, cheio de vicissitudes que podem (ou devem) ser superadas, a construção dessas relações é representada discursivamente como uma conquista, isto é, como a obtenção de uma posição social e afetiva desejável. Se considerarmos a estrutura tradicional das narrativas, caracterizada pela perturbação de uma situação estável desejável e a posterior retomada dela (Bruner, 2002), a constituição das relações estáveis corresponde à resolução de conflitos, à retomada da estabilidade posterior ao clímax. Dito de outra forma, a monogamia é celebrada por Junior como o final feliz das narrativas em questão.

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A revista Junior usou, em alguns casos, apenas os primeiros nomes ou mesmo pseudônimos dos indivíduos representados que não quisessem ser identificados, a fim de preservar suas identidades.

Dessa forma, ter um relacionamento estável e duradouro é visto como um ideal de felicidade do qual se distanciam aqueles que apresentam comportamentos afetivo-sexuais dele diversos, notadamente a “pegação” e o “sexo fácil” a que a reportagem “Mudei de vida por amor” se refere. As práticas não monogâmicas, as quais suplantam, do ponto de vista da publicação, o amor, são retratadas como algo a ser evitado, e o mundo caracterizado por elas, como um lugar rebaixado, ao qual a felicidade nunca é associada. Levando-se em conta que a promiscuidade é uma característica negativamente avaliada bastante frequentemente associada à imagem estereotípica dos homossexuais, pode-se inferir que a revista novamente procede à desvalorização de algo que é considerado inerente ao universo homossexual e à afirmação de uma diversidade inerente à minoria: se por um lado a promiscuidade caracteriza a minoria, por outro há homossexuais com comportamentos monogâmicos, que não se encaixam na lógica do sexo sem compromisso. Dessa forma, o a narrativa propicia a melhora da imagem da minoria homossexual por meio de uma tentativa de apagar a conexão normalmente feita entre homossexuais e a promiscuidade. Tal procedimento embute em si, no entanto, a condenação a práticas afetivosexuais de outros membros da minoria que não se conformam aos padrões de monogamia, o que resulta, novamente, numa postura discriminatória.

6. Conclusão O discurso da revista Junior contradiz os discursos discriminatórios que circulam em nossa sociedade, uma vez que relativiza a ideia estereotípica de que homossexuais são efeminados e promíscuos. Por meio de narrativas que têm função de questionar as generalizações características do estereótipo, a revista mostra que este é insuficiente e/ou contraditório com relação à diversidade que caracteriza o grupo dos homossexuais. Dessa forma, ao mostrar que os homens homossexuais podem escapar ao estereótipo de efeminados ou promíscuos, a revista busca empreender uma valorização da minoria. Observou-se, no entanto, que tal esforço de valorização implica a adoção de uma postura excludente, visto que a valorização de comportamentos másculos e monogâmicos acarreta necessariamente a desvalorização da efeminação e de práticas afetivo-sexuais não monogâmicas. Conclui-se, portanto, que Junior apresenta postura ideológica ambivalente com relação aos homossexuais: por um lado, procura valorizá-los por meio de uma série de procedimentos linguístico-discursivos, deslegitimando assim comportamentos discriminatórios e colaborando para a construção de uma autoestima minoritária; por outro, ratifica comportamentos

preconceituosos e exclui de seu projeto de valorização a parcela da minoria que é considerada efeminada e/ou promíscua. Evidencia-se, assim, a tendência da publicação a não questionar os valores de virilidade e monogamia, os quais são base para o preconceito, mas a ratificá-los, posicionamento que colabora para a perpetuação de comportamentos discriminatórios.

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Abstract: Junior has become an increasingly popular magazine aimed at homosexuals over the last years. This paper aims at analyzing the discursive construction of representations of homosexuals in three articles published by Junior. The analysis made it possible to observe that the linguistic and discursive procedures the magazine makes use of are responsible for both the construction of a favorable image of homosexuals and the reinforcement of prejudice against negatively-evaluated characteristics that are usually associated with them. The ideological orientation of the magazine results thus ambivalent. The analysis has as its basis the concepts of world semiotization, narratives (CHARAUDEAU, 2010), minority (TAJFEL, 1981), as well as van Dijk’s triangular approach to discourse (VAN DIJK, 2006). Keywords: niche publications, minorities, stereotypes, narratives, discourse.

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