Entre a Liberdade e o Sofrimento: o testemunho de Primo Levi

May 27, 2017 | Autor: G. Anpuh Rs | Categoria: History and Memory, Theory of History, Holocaust Studies, Primo Levi
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ENTRE A LIBERDADE E O SOFRIMENTO: O TESTEMUNHO DE PRIMO LEVI BETWEEN FREEDOM AND SUFFERING: THE TESTIMONY OF PRIMO LEVI João Camilo Portal Graduando em História/Universidade Federal do Rio Grande do Sul e em Comunicação Social: Jornalismo/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul [email protected] RESUMO: O objeto do artigo centra-se nas memórias de Primo Levi, sobrevivente do Holocausto. Tendo em vista o processo de extermínio por parte dos nazistas, valores humanos confundiam-se dentro dos prisioneiros. Nesse sentido, Auschwitz possuía um “regime de historicidade” próprio, na medida em que o futuro era, grosso modo, aniquilado. Portanto, os prisioneiros possuíam o sofrimento como cotidiano, fossem eles “muçulmanos” ou não. Os corpos e as almas ali presentes conviviam com a certeza do extermínio. Suas identidades individuais perdiam-se em meio a tantos exemplares humanos. Eram uma massa anômala, submetida a um processo industrial, a uma existência fabricada. Logo, como confrontar essa visão de mundo, essencialmente encarcerada, com a posterior liberdade? Assim, por parte dos sobreviventes, uma das tentativas de preencher tal trauma fez-se através do testemunho. No caso de Primo Levi, a literatura de testemunho representou a busca por sua identidade perdida e opaca. Percebe-se, portanto, um problema historiográfico, quiçá ontológico: como explicar tamanho sofrimento, o qual, dentro da lógica nazista, era completamente certo, através de uma narrativa inteligível no tempo presente? Então, o objetivo desse artigo é perceber a relação entre trauma, memória e identidade através da literatura de Primo Levi, sobretudo através de suas obras É isto um homem?, A trégua, Os afogados e os sobreviventes e A assimetria e a vida: artigos e ensaios (1955-1987).

Palavras-chave: Holocausto. Primo Levi. Literatura de testemunho. Memória. ABSTRACT: This article focuses on the memories of Primo Levi, Holocaust survivor. Given the process of extermination by the Nazis, human values were confused within the prisoners. In this way, Auschwitz had a "regime of historicity" itself, that the future was roughly annihilated. Therefore, the prisoners had suffering as everyday, whether they were "Muslims" or not. The bodies and souls present there lived with the certainty of death. Their individual identities were lost in the midst of so many human specimens. They were an anomalous mass, subjected to an industrial process, a manufactured existence. So, how to confront such a worldview, essentially imprisoned with subsequent freedom? Thus, by the survivors, one attempt to fill such trauma was made through the act of witness. In the case of Primo Levi, the testimony of literature represented the search for his lost and opaque identity. So, there is a historiographical problem: how to explain such suffering, which, within the Nazi logic, was quite sure, through an intelligible narrative in the present? Then, the objective of this article is to understand the relationship between trauma, memory and identity through Primo Levi literature, especially through his works If this is a man?, The Truce, The Drowned and the saved and Asymmetry and Life: Articles and testing (1955-1987).

Keywords: Holocaust. Primo Levi. Witness literature. Memory.

A temporalidade em Auschwitz1

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Evidentemente que minha pretensão aqui não é de escrever uma teoria geral para a temporalidade em Auschwitz, mas, antes, discorrer acerca da percepção de Primo Levi em relação à sua (in)transitividade, seja ela coletiva ou singular.

“Agora o futuro estava à nossa frente cinzento e informe como uma barreira intransponível. Para nós, a história tinha parado”. Assim escreveu Primo Levi (1988, pg. 173) em É isto um homem?, obra cujo início se deu em dezembro de 1945, portanto, no mesmo ano em que abandonou Auschwitz. É evidente que o tempo não é uma categoria absoluta. Há diferentes articulações entre passado, presente e futuro (BRAUDEL, 1992), que são criadas e percebidas a partir de contextos e situações específicas e, a partir disso, constituem lógica própria. Ou seja: as ações humanas delimitam determinadas experiências de tempo, cada qual com um ordenamento distinto; assim, atuam na construção de cada indivíduo acerca da realidade2, o que, no que tange às memórias de Levi, denota a incessante reprodução dele próprio, numa mescla traumática de passado-presente. No caso de Auschwitz, tal regime temporal era imposto (SARTRE, 1968, pg. 260) – para alguns, totalmente; para outros, em menor grau, tendo em vista pequenas resistências mentais de alguns prisioneiros –, na medida em que os campos de extermínio nazistas constituíam um fenômeno totalizante, um inferno à parte do mundo, mesmo estando a ele circunscrito. O passado, do ponto de vista do ter-sido, era essencialmente um fardo, diante do qual as lembranças de Levi costumavam refugiar-se. Esse fato se evidencia, por exemplo, quando o autor nos narra acerca dos recém-chegados no Campo: “é o momento mais interessante do dia” (LEVI, 1988, pg. 69). Eles, ou, como os alemães os chamavam, as “peças novas”, estavam muito mais próximos temporalmente da liberdade e do cotidiano urbano, pois conservavam os resquícios da humanidade que se encontravam fora do Lager3, a tal ponto de Levi afirmar explicitamente em Os afogados e os sobreviventes sua inveja em relação a eles (LEVI, 2016a, pg. 29). Inclusive os próprios prisioneiros percebiam o recém-chegado como “um alvo sobre o qual desafogar a humilhação” (LEVI, 2016a, pg. 30), ou seja, a humilhação da própria condição a qual estavam submetidos. O momento presente, portanto, comportava-se como uma prisão: por um lado, o passado estava morto – e o passado recente dos recémchegados era logo estrangulado, tanto por si mesmos quanto pelos demais prisioneiros. Quaisquer tentativas de recomposição não seriam nada senão pueris e longínquas memórias. Por um lado, o cotidiano circunscrito ao passado estava morto e trazia apenas saudade; por outro, o futuro carregava junto de si a morte, a desumanização e o sofrimento do Lager. O horizonte futuro, que norteia as possibilidades e escolhas da mente humana4, apresentava-se,

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Para tanto, consultar HARTOG (2014). Campo de concentração. 4 Essa não é uma afirmação absoluta. 3

para Levi, como iminente, mas, também, como já fabricado pelos alemães. A ipseidade, enquanto definidora de uma autenticidade do indivíduo, confundia-se, assim como a história. Não foi sem razão que, quando Levi teve de ir ao Ka-Be, enfermaria do Lager, suas memórias vieram à tona de maneira expressiva. Ele definiu-o como um lugar “livre do sofrimento físico”, onde poderia recuperar os “germes de consciência” que ainda lhe restavam (LEVI, 1988, pg. 76). Percebe-se, portanto, o papel central que a materialidade, ou seja, o trabalho, ocupava na consciência dos prisioneiros. “Aqui (...) podemos retornar dentro de nós mesmos e refletir, e torna-se claro, então, que voltaremos” (LEVI, 1988, pg. 77). Tal perspectiva otimista do tempo futuro, que, nesse momento, trazia o testemunho como uma prerrogativa, tornou-se evidente quando do refúgio de Levi justamente no Ka-Be, lugar “cheio de lembranças”, onde “o tempo era nosso”. Nesse sentido, a enfermaria, enquanto propiciadora de liberdade física, fazia Levi adquirir, em certa medida, sua própria autoridade acerca do tempo. Há, logo, uma inversão da lógica nazista – exposta nos portões do Lager como Arbeit Macht Frei, “o trabalho liberta” – que evidencia a resistência da mentalidade de Levi. Pois a liberdade não advinha do trabalho, mas, sim, quando da recuperação acerca de uma temporalidade própria. Portanto, esse aspecto representa uma ruptura com o regime de historicidade circunscrito ao Lager; elucida uma descontinuidade, um ponto de inflexão temporal, fazendo com que Levi conservasse seu lado humano. Assim, a memória foi uma das formas que Levi instrumentalizou para conservar algo que, posteriormente, daria margem para seu testemunho: a literatura. Como, por exemplo, quando tentou ensinar italiano a Jean – seu companheiro do Kommando Químico, alguém que travava uma “secreta luta individual contra o Campo e a morte” (LEVI, 1988, pg. 160) – através da Divina Comédia, de Dante. “Cuidado, Pikolo, abre os ouvidos e a mente, eu preciso que compreendas: Relembrai vossa origem, vossa essência:/ vós não fostes criados para bichos/, e sim para o valor e para a experiência”. E, logo em seguida, acrescenta: “por um momento, esqueci quem sou e onde estou” (LEVI, 1988, pg. 167). Fato também expressado quando de sua fala acerca do mar, “quando o horizonte”, ou seja, o futuro, “se fecha sobre si mesmo, livre, reto, puro, quando só há cheiro de mar”. Trata-se, portanto, da contingência humana. Mas logo a realidade vem à tona: “lembranças suaves, cruelmente longínquas” (LEVI, 1988, pg. 166). Os versos da Divina Comédia lhe parecem individualmente dirigidos: “refere-se a todos os homens que sofrem e, especialmente, a nós: a nós dois, nós que ousamos discutir essas coisas” (LEVI, 1988, pg. 168), tais como os discursos de Cesário de Aires durante a Alta Idade Média (BROWN, 1999, pg. 17), na medida em que sua lembrança se tornou um instrumento sobre o

qual ancorou e preservou sua própria humanidade. Não foi à toa que ele continuou refletindo acerca de seu lugar no mundo – esse que, nas lembranças, lhe parecia tão perto, mas que, na realidade do Campo, lhe parecia tão longe: “e algo mais, algo grandioso que acabo de ver, agora mesmo, na intuição de um instante, talvez o porquê do nosso destino, do nosso estar aqui, hoje...” (LEVI, 1988, pp. 169-170). Ou seja: a memória era onde poderia refugiar-se, mesmo que, no final do capítulo, quando ele e Jean voltam de sua caminhada para pegar uma panela de sopa, ele lembre dos versos finais do canto XXVI de Dante, aos quais “ele renunciaria à sua ração de sopa para lembrar”. Assim, “no meio daquela multidão sórdida”, o sofrimento do tempo presente aniquilou seu delírio de saudade: “até que o mar fechou-se sobre nós” (LEVI, 1988, pg. 170). Percebe-se, portanto, que a lembrança representa uma microfissura, uma fuga do tempo presente, mas que, muito embora traga uma sensação de reconforto, está fadada à efemeridade, tal como uma pulsão do inconsciente que é barrada pelo meio externo. A ordem de tempo do Campo, logo, influiu na descrição de Levi acerca dos prisioneiros, “um infinito rebanho de escravos” (LEVI, 1988, pg. 173). O “infinito” representa algo inalcançável, mas, também, uma utopia dos homens em liberdade, ou, nesse caso, um sofrimento sem fim; enquanto que o “rebanho de escravos” denota uma condição ontológica. Tais fatos inserem-se, grosso modo, numa lógica presentista5, pois a mudança do futuro era inatingível, e o passado causava-lhe angústia. Quando das perguntas “para que atormentar-se tentando prever o futuro, se nenhuma ação, nenhuma palavra nossa, poderia alterá-lo em nada?”, ou, ainda, quando Levi nos fala acerca da sabedoria dos velhos prisioneiros, baseada em “não tentar compreender, não imaginar o futuro” (LEVI, 1988, pg. 171), percebe-se a fabricação de um tempo mas, também, de uma identidade (FERRAZ, 2009, pg. 31). “Ao mudar, muda-se para pior” (LEVI, 1988, pg. 171). É expressa uma prisão sistemática da própria existência do indivíduo como tal: da esperança, da tentativa de compreensão, do tempo, do ato de pensar – “um mal que conserva viva uma sensibilidade que é fonte de dor” (LEVI, 1988, pg. 252). No entanto, como confrontar tal visão de mundo, que se impunha como a única possível, com a liberdade pós-Auschwitz? Quais implicações essa mudança teve na mentalidade de Levi?

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Ou seja: há uma preponderância do tempo presente (HARTOG, 2014, pp. 140-149). Tenho noção do possível anacronismo falho em inserir a categoria de Hartog no presente contexto. A respeito disso, Levi nos fala: “Esquecêramos não só nosso país e nossa cultura, mas a família, o passado, o futuro que nos havíamos proposto, porque, como os animais, estávamos restritos ao momento presente” (LEVI, 2016a, pg. 59). Ou ainda: “Todos os dias se parecem um com o outro, e não é fácil contá-los” (LEVI, 1988, pg. 57).

Como tentar compreender uma realidade que, para ser suportável, deveria tão somente não tentar ser compreendida? A liberdade O corpo de Levi saiu do Lager no início de 1945. Escrevo corpo porque sua mente permaneceu lá, mesmo que talvez não integralmente. Logo se deparou com um futuro que, antes, parecia impossível. Assim, “os sinais da ofensa permaneceriam em nós para sempre” (LEVI, 2010, pg. 10), como um passado que não passa. Ele precisava, assim como os outros sobreviventes, se reinventar, criar seu próprio self, que estava renegado à escravidão e à inutilidade nazis. Possuía uma existência frágil e subjugada, cuja percepção da realidade não se assentava em bases sólidas. Seus sofrimentos, passados e presentes, se fundiriam numa única e vazia substância, da qual o futuro era apenas refém, e o testemunho, seu significado. Cito aqui um episódio de A trégua, obra na qual Levi discorre sobre o caminho até sua casa, tendo em vista que chegou a Turim apenas em 19 de outubro de 1945. Uma das localidades pela qual passou foi Stárye Doróghi, na URSS, local onde havia uma floresta que lhe causava “uma atração profunda. Talvez porque oferecesse, a quem procurasse (...)”, ou seja, ele procurava, sendo, portanto, dono de sua própria resiliência, “(...) o dom inestimável da solidão: havia quanto tempo éramos dela privados!” (LEVI, 2010, pg. 145)6. Estava em busca de sua identidade. No entanto, ele se perdeu na floresta. Ao meu ver, tal fato ilustra, ao menos em certo grau, seu estado de consciência, na medida em que a liberdade, ou seja, o tempo presente da floresta, se fechava nela mesma, pois continuava a sofrer as ranhuras do passado, ao mesmo tempo putrefato e contínuo. A respeito disso, Levi termina o livro A trégua com sua chegada em casa, em Turim. Esse futuro, diante do qual muitas vezes se debruçou, e que no tempo do Lager parecia-lhe distante, deveria, em tese, representar a tônica de sua existência. No entanto, era um sonho que abalava completamente sua lógica, a ponto de não saber bem reconhecer a si mesmo. “Estou só no centro de um nada turvo e cinzento (...) estou de novo no Lager, e nada era verdadeiro fora do Lager(...). Agora esse sonho interno, o sonho de paz, terminou, e no sonho externo, que prossegue gélido, ouço ressoar uma voz, bastante conhecida; uma única palavra,

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Tal estado de consciência já havia sido explicitado por Fiódor Dostoiévski em Recordações da Casa dos Mortos, quando nos fala acerca do trabalho inútil a qual estavam submetidos. Dessa forma, a essência humana é reduzida à mediocridade. A importância da falta de estar só consigo mesmo também lhe causou uma “perda de si”. “Logo compreendi que o trabalho forçado, a privação da liberdade são coisas horríveis, mas o pior de tudo é ser obrigado a ficar o tempo inteiro com os outros. A vida em comunidade é um ato de escolha, voluntário, ao passo que na prisão é imposta, não estabelece laços, e eu creio que cada prisioneiro sente isso, ainda que inconscientemente” (DOSTOIÉVSKI, 2006, pp. 31-32).

não imperiosa, aliás breve e obediente. É o comando do amanhecer em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada: levantem, ‘Wstavach” (LEVI, 2010, pg. 213).

Percebe-se, portanto, que tal passado continuou a ressoar no tempo presente, como uma sombra de sofrimento, constituindo um trauma para sua mentalidade. O futuro, no entanto, não foi absolutamente excluído, pois se preencheu com o testemunho. O testemunho O artista é ao mesmo tempo a mente que concebe a ideia, a mão que a executa e a matéria que sofre. (PAULS, 2007, pg. 329) Dentre as muitas questões que envolvem a compreensão e a criação da literatura de testemunho, creio que a noção de identidade é fundamental – tanto em âmbito individual, no sentido de um significado existencial, quanto em relação aos outros, como um testemunho que perdure. Em suas análises acerca dos próprios prisioneiros observam-se designações massificadoras, tais como “rebanho”, “escravos”, “peças”, “animais”, “porcos”, “vermes”. Eram seres “cruelmente nus e vulneráveis” (LEVI, 1988, pg. 90), submetidos a uma lógica totalizante, na qual era impossível sobreviver sem renunciar parte do (seu) mundo moral e humano. A morte, que sempre foi algo importante nas sociedades humanas, fazia parte do cotidiano de Levi – seja durante o Lager, no sentido de sua iminência, ou após ele, tendo em vista a cicatriz do horror de Auschwitz7. Não à toa observa-se desde há muito uma preocupação com os mortos, ou mesmo uma forte presença da morte no funcionamento da antiga sociedade egípcia (NEGRAES, 1994). Cito por exemplo casos de sepultamento de indivíduos com objetos em seus túmulos durante o Paleolítico Superior, bem como o desenvolvimento da religião e rituais que interferissem no mundo natural (MITHEN, 2002, pp. 279-282). Para Mithen, um dos aspectos que possibilitou a reformulação da estrutura mental humana entre o Paleolítico Médio e o Paleolítico Superior foi a emergência de uma inteligência fluída, que interligava as cognições técnica, social e naturalista. Uma das consequências foi o desenvolvimento da religião e de uma arte cuja uma das motivações era tentar entender algo “não-presente” no mundo natural, que, segundo alguns autores, foi o que nos tornou humanos (MITHEN, 2002,

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No décimo aniversário da morte de Levi, o Rabino de Roma disse ter recebido um telefonema do autor dez minutos antes de seu suicídio, dizendo “Não posso continuar com esta vida. A minha mãe tem cancro e cada vez que olho para ela recordo os rostos de aqueles homens deitados nos barracões de Auschwitz” (ANISSIMOV, 2001, pg. 534). Ressalto o caráter traumático da existência da morte, ou, nesse caso, das doenças em Auschwitz. A repugnância acerca das enfermidades fazia-se presente através da simbologia construída anteriormente no Lager.

284). Mesmo as teses de Jean Clottes e Leroi-Gourhan acerca das artes rupestres e de xamãs representam essa relação com a morte (EIROA, 2000, pp. 226-229). No entanto, um dos intuitos dos nazistas foi justamente quebrar essa simbologia da morte, que há muito acompanhou o desenvolvimento da humanidade, pois, segundo a lógica do Lager, a morte era tão inútil quanto a existência dos prisioneiros. “A inútil crueldade (...) condicionava a existência de todos os Lager” (LEVI, 2016a, pg. 91). A humilhação moral, as condições físicas e mentais às quais estavam submetidos transformavam tal espaço numa câmara de desumanização, reduzindo-os “integralmente à vida nua” (AGAMBEN, 2002, pg. 177). Nesses momentos, onde o tempo adquiria um tom opaco de sofrimento, havia, grosso modo, duas maneiras de conservar um quê de substância humana: por um lado, as memórias, às quais, mesmo que quase instantaneamente estranguladas, eram o refúgio de Levi; por outro, a projeção de um futuro, mesmo que volátil: o testemunho8. Acerca disso, Levi recorda as palavras dos SS nas páginas de Gli assassini sono tra noi: “Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho. Nós é que ditaremos a história dos Lager (LEVI, 2016a, pg. 7). Portanto, foi justamente nessa brecha, nesse pequeno entremeio que Levi resistiu e não se tornou um muçulmano9 (AGAMBEN, 2008). “Até num lugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento” (LEVI, 1988, pg. 55). Ressalto dois aspectos no que tange ao testemunho: um no sentido histórico, ou seja, de uma prova; outro, uma crença subjetiva, uma base sólida sobre a qual Levi se debruçou para readquirir sua própria identidade. No que diz respeito ao cotidiano do Lager, os próprios judeus (que compunham grande parte do Esquadrão Especial) que deveriam pôr os prisioneiros nas câmaras de gás, matá-los, posteriormente cortar-lhes os cabelos, tirar-lhes os dentes de ouro, transportar os cadáveres, limpar as cinzas10 (LEVI, 2016a, pg. 38). Tal fato evidencia uma tentativa dos SS de delegar às próprias vítimas sua autodestruição, matar não apenas seus corpos, mas sobretudo suas almas. A identidade dos indivíduos, algo que há muito estrutura as civilizações e os grupos sociais,

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Muito embora a matéria do testemunho seja o passado, em absoluto, o futuro surge enquanto possibilidade de existência através do presente, e, portanto, como horizonte futuro. Grosso modo, o testemunho era consubstancial tanto ao passado quanto ao futuro. Agradeço o apontamento do professor Fernando Nicolazzi. Se o passado é seu conteúdo, o presente é a forma pela qual seu sentido é preenchido. 9 Aqueles desprovidos de qualquer humanidade, que haviam “abandonado qualquer esperança” (AMÉRY, 1987, pg. 39), que haviam tocado o fundo de suas consciências morais no Lager. 10 Muito embora deva-se lembrar que foi justamente o Esquadrão Especial que organizou a única tentativa organizada de revolta em Auschwitz (LEVI, 2016a, pg 45.)

estava submetida a uma pirâmide imoral e irracional de poder. O presente, enquanto definidor de uma certa consciência histórica – “estar vivo” – angustiava-se nele próprio (BARENGHI, 2005, pg. 177). Nesse sentido, o testemunho de Levi se insere, no âmbito individual, como um meio de adquirir seu self renegado, seu eu. Do “meu nome é 174.517”, “eu sou fome”, buscar-se Primo Levi. Ir de si em direção a si mesmo. Seu intuito não foi o de modificar o passado, mas, antes, dotá-lo de um novo sentido, ressignificá-lo. Há, portanto, um deslocamento entre duas essências, que, na realidade, são consubstanciais: a de Levi prisioneiro e a de Levi sobrevivente. Seu relato é fundado justamente pelo trauma, numa tentativa de “reconciliação com seu objeto interiorizado” (RICOUER, 2007, pg. 91). Portanto, consiste numa “(re)construção de um espaço simbólico de vida” (PIRALIAN, 2000, pg. 21). Ele tenta preenchê-lo sob uma nova ótica, dotá-lo de compreensibilidade, mesmo que de forma não integral11. O testemunho carrega, evidentemente, além de uma compulsão, um trabalho de renovação. Levi mesmo, no prefácio de É isto um homem?, nos diz que os capítulos não foram “escritos em sucessão lógica, mas por ordem de urgência” (LEVI, 1988, pg. 8). Ou, como bem escreveu à versão dramatúrgica do mesmo livro, em 1966: “escrevia com pressa, sem hesitações e sem ordem”, tendo-se transformado num “narrador incansável, irrefreável, maníaco”. A literatura, que é ao mesmo passo um desafio, mas, com efeito, a própria base do testemunho (SELIGMANNSILVA, 2008, pg. 73), insere-se em sua vida como um entremeio existencial: “não a de viver e contar, mas a de viver para contar” (LEVI, 2016b, pg. 40). Escrever marcou profundamente seu eu, deu-lhe uma “razão para viver” (LEVI, 2016b, pg. 19). Evidentemente que o “outro” também é parte essencial da literatura de testemunho. Tal fato torna-se evidente quando da visão pessimista de Levi até cerca de 1958, ano em que É isto um homem? é enfim publicado pela grande editora italiana Einaudi. Um dos principais intuitos era provocar nos “outros” um exame de consciência (LEVI, 2016b, pg. 17), uma reflexão acerca do caráter humano que fundou Auschwitz. Podemos até nos questionar quem é, de fato, esse “outro”. O fato clarifica-se quando da tradução de É isto um homem? para o alemão. A respeito disso, Levi nomeia “seus destinatários verdadeiros, aqueles contra os quais o livro se voltava como uma arma12” (LEVI, 2016a, pg. 138). Nesse sentido, o autor mostrou-se demasiadamente

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Há, aqui, uma dificuldade de simbolização acerca do trauma, e, portanto, de sua compreensibilidade existencial/narrativa (MARTINS, 2014, pg. 20). 12 Ressalto aqui que não se tratava de vingança, mas de uma tentativa de compreensão do povo alemão.

preocupado com conteúdo traduzido13, corporificando-o como forma de resistência interna e externa. Aquém, a literatura de testemunho não pretende apenas “registrar” palavras mortas, mas, sim, fazer os leitores refletirem sobre seus próprios lugares no mundo, passados e presentes (MEDEIROS, 2009, pg. 63): “a necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes” (LEVI, 1988, pg. 8). Acerca da relação de Levi com os outros, é relevante notar um modelo de sonho do autor durante o Lager, que, segundo nos conta, era um sonho recorrente em muitos dos prisioneiros: o episódio em que chegavam em casa, momento de “uma felicidade interna, inefável”, e, ao contar o ocorrido em Auschwitz, seus familiares faziam-se indiferentes. Então, eles levantavam e iam embora em silêncio, “como se eu não estivesse” (LEVI, 1988, pg. 85), fazendo com que a história de Levi fosse esquecida. Eis a tradução do sofrimento em delírios do inconsciente: “um fardo solitário”, que posteriormente acompanharia Primo Levi em seus escritos (FELMAN, 2000, pg. 15). Testemunhar é, de certo modo, delimitar a própria história de Auschwitz. Afinal, “se calarmos, quem falará”? (LEVI, 2016b, pg. 4). No entanto, em Deportados. Aniversário, artigo publicado em 1955 na revista Torino, enquanto seu primeiro livro ainda não havia sido publicado pela editora Einaudi e não havia um “interesse” da população europeia acerca da memória do Holocausto – talvez pela falta de amadurecimento do passado – Levi nos diz: “Que na Alemanha não se fale do assunto, que os fascistas se calem, é coisa natural que no fundo não nos desagrada [a nós, sobreviventes]. Suas palavras não servem para nada” (LEVI, 2016b, pg. 4). Talvez por pessimismo em relação à mudança da mentalidade dos nazistas. Por outro lado, seu testemunho torna-se um apelo para que os leitores percebam seus pequenos massacres cotidianos. Assim nos adverte, na poesia que abre seu primeiro livro: “Pensem que isto aconteceu: eu lhes mando estas palavras. Gravem-nas em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar; repitam-nas a seus filhos14” (LEVI, 1988, pp. 9-10).

No prefácio à edição escolar de A trégua, ele diz que o ato de escrever dava-lhe “satisfação e alívio profundos”, e tinha a impressão de que as linhas se escreviam por si sós, com “medo que suas lembranças pudessem ser esquecidas” (LEVI, 2016b, pg. 24). Ademais,

“Eu não confiava no editor alemão. Escrevi-lhe uma carta quase insolente: intimava-o a não cortar ou trocar uma só palavra do texto (...); queria controlar sua fidelidade, não só lexical[,] mas interna” (LEVI, 2016a, pg. 139). 14 Grifo meu. 13

no prefácio à edição escolar de É isto um homem?, ele faz certo apelo para que seus leitores percebam os silenciosos massacres da atualidade. A literatura vem, então, para que vissem seu próprio sofrimento; torna-se um espelho que reflete a imagem de Auschwitz, mas, sobretudo, a de seus próprios leitores no tempo presente: “Exatamente por isso [pela existência de diferentes manifestações fascistas nos dias de hoje] e por não acreditar que o respeito devido aos jovens inclua o silêncio sobre os erros de nossa geração, aceitei com prazer organizar uma edição escolar de É isto um homem?. Ficarei feliz se souber que um único dos novos leitores terá entendido como é arriscado o caminho que parte do fanatismo nacionalista e da renúncia à razão” (LEVI, 2016b, pg. 51). 15

O testemunho, portanto, nasce a partir de uma tentativa de preencher uma memória traumática, que continua num plano inconsciente e patológico. A ruína mental e a vergonha de Auschwitz acompanharam Levi durante toda sua vida16, caracterizando uma cicatriz, “uma repetição constante da lembrança de determinada experiência severa paralisada como eterno presente” (OLIVEIRA, 2013, pg. 90). A linguagem torna-se incapaz para simbolizar a total narrativa do trauma, que, ao mesmo tempo, impõe-se como um dever em relação à humanidade. Porém, mesmo que escrever sobre Auschwitz seja escrever sobre sua incompreensibilidade, suas silenciosas e viscerais lacunas, sua ordem humana de brutalidade, se deve escrever. Pois, de certo modo, e talvez esta afirmação possua um caráter infeliz, todos somos nazistas em potencial, na medida em que o nazismo e demais ideologias semelhantes foram um produto humano, tão humano quanto qualquer um de nós, hoje. É perante estas bases que a história deve encontrar seu lugar no mundo: como um método retrospectivo do presente para o passado, e, logo, do passado para o presente (BLOCH, 2002). Poupando os formalismos vulgares que, infelizmente, muitas vezes constituem muitos dos trabalhos acadêmicos, estudar as memórias de Primo Levi é um convite à reflexão dos muitos massacres irracionais que existem no presente, e que, muitas vezes, permanecem invisíveis aos olhos do Ocidente. Mas, enfim, “não tínhamos tentado nos livrar disso, alegando que eram ‘coisas de outros tempos” (LEVI, 2016a, pg. 16)?

Referências AGEMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008.

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Grifos meus. E provavelmente foi a causa de sua morte. Muitos dos sobreviventes cometeram suicídio. A respeito da relação entre a depressão e o “suicídio” de Levi, ver GRAMARY, 2006. Inclusive podemos nos questionar: foi possível Levi superar seu trauma a partir do testemunho? 16

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