Entre a medicina e a psicanálise: o saber antropológico e automodelagem na narrativa profissional de Arthur Ramos

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Entre a medicina e a psicanálise: o saber antropológico e automodelagem na narrativa profissional de Arthur Ramos1

Marcelo Henrique Nogueira Diana, UFRRJ/RJ2

Resumo Este trabalho busca situar o saber antropológico na trajetória do médico alagoano, posteriormente catedrático de Antropologia e Etnologia da Universidade do Brasil, Arthur Ramos. Recém egresso da Faculdade de Medicina da Bahia, Ramos atuou durante as décadas de 1930 e 1940 no esforço de profissionalizar a trajetória acadêmica do antropólogo no Brasil. Fundador, em 1942, da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, sua formação médica, menos do que se tornar um entrave, foi reorganizada para a sua imersão no campo da antropologia. Tendo defendido sua tese de doutorado em 1926, acerca das reciprocidades simbólicas entre o louco e o primitivo na teoria do inconsciente, ofereceu ênfase para as possibilidades interpretativas que o instrumental da teoria de Freud disponibilizava para a análise social. Ainda que essa abordagem não seja exclusiva de Ramos (haja em vista a leitura que Lévi-Strauss realiza da psicanálise), trata-se aqui, em paralelo, de um resgate à historicidade da sua formação e da alteridade do contexto disciplinar do antropólogo no Brasil, com destaque para a sua respectiva narrativa profissional. Na confecção dessa narrativa, problematizamos tanto a coerência epistemológica da antropologia como discurso de saber específico, quanto submetemos a uma perspectiva histórica a exposição de Ramos como antropólogo acadêmico. Palavras-chave: história da antropologia; psicanálise; Arthur Ramos

Introdução A um só tempo cientista, professor e referência intelectual para as ciências sociais brasileiras nas décadas de 1930 e 1940, Arthur Ramos apresenta uma narrativa profissional sinuosa. Formado em psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1926, Ramos atuou no começo da sua vida profissional como médico legal e professor de perícia clínica no Instituto Nina Rodrigues, em Salvador. Em 1933, foi convidado                                                                                                                 1

Trabalho apresentado na 29a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2 Esta pesquisa é realizada com o apoio da CAPES, através do programa de pós-doutorado, PNPDinstitucional, a qual agradeço o financiamento através de uma bolsa de pesquisa.    

 

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por Anísio Teixeira a integrar a campanha de educação da Escola Nova, desempenhando o papel de diretor da Seção Técnica de Ortofrenia e Higiene Mental no Rio de Janeiro, capital federal (SIRCILLI, 2005). Ramos participou ativamente na fundação, em 1942, da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia ligada à Universidade do Brasil, e recebeu o apoio de importantes intelectuais neste ato de criação institucional, como Roger Bastide, Mário de Andrade, Idelfonso Perenda Valdés e Donald Pearson. Ainda, ao longo da década de 1940, viajou para os EUA ministrando cursos de antropologia do negro e das populações afro-brasileiras em universidades americanas e, em 1949, foi nomeado diretor-chefe do recém criado Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, em sua sede em Paris (MAIO, 1999). Morreu três meses após assumir esse cargo. 3 Embora de uma experiência intelectual múltipla, ainda persiste sobre o nome de Arthur Ramos uma certa ambiguidade e esquecimento na história das ciências sociais. Aceitando a ambiguidade e o esquecimento como problemas para análise, tentaremos remontar um aspecto da narrativa profissional do médico e, a partir de 1930 e 1940, antropólogo consagrado, Arthur Ramos, a partir da sua mobilização da teoria psicanalítica para a invenção do seu campo de pesquisa científica em antropologia. Essa narrativa pode ser costurada na sua interação com uma diversidade de interlocutores, sobretudo, de antropólogos e etnólogos de reconhecido mérito na disciplina na primeira metade do século XX, como Melville Herskovits, Donald Pearson, Richard Pattee, Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide, Gilberto Freyre, Alfred Métraux, alguns deles interessados particularmente na antropologia e na etnografia das populações afrobrasileiras. A montagem dessa extensa rede de objetos e de sujeitos,4 articulada através da narrativa profissional de Ramos, permite colocar em perspectiva historiográfica as origens epistemológicas e institucionais da antropologia como disciplina acadêmica, entre os anos 1930 e 1940, no Brasil.                                                                                                                 3

Para situar o nome de Arthur Ramos na história da psicanálise, transcrevemos a breve nota biográfica sobre o autor no Dicionário de Psicanálise organizado por Elizabeth Roudinesco e Michel Plon. “Nascido em Alagoas, Arthur Ramos estudou na Faculdade de Medicina de Salvador, Bahia, e orientouse para a psiquiatria e a criminologia, antes de se interessar pela antropologia, pelas medicinas tradicionais afro-brasileiras e enfim pela doutrina freudiana. Em 1926 publicou uma tese sobre a loucura, na qual citava os principais representantes da psiquiatria dinâmica moderna e criticava o pansexualismo de Sigmund Freud. Isso não o impediu de trocar com este algumas cartas, entre 1927 e 1932, e de ser um dos pioneiros da introdução da psicanálise em seu país, sobretudo na Bahia, como fizera antes dele Juliano Moreira” (ROUDINESCO, PLON, 1998, p. 641). 4 Cf. a formação de grupos e a circulação de ideias como objetos, configurando a noção social e antropológica de uma rede interpessoal de sujeitos, o texto clássico de Simmel “Analogies between perception an group-formation” [1922] (1969).

 

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Tomaremos como princípio da análise as contradições da respectiva narrativa profissional de Arthur Ramos, que se firmava a partir ou através dos saberes, das instituições por ele freqüentadas, dos livros, dos bilhetes e dos cartões, da sua cuidadosa e paciente atenção com os seus mais diversos destinatários, para pensar o processo da sua inserção acadêmica na antropologia a partir da década de 1930. Mas não apenas. Ramos também se esforçou na divulgação e na aceitação das ideias psicanalíticas para a construção de “hipóteses de trabalho” nas ciências sociais. Com essa perspectiva, ele se diferenciava de outros antropólogos e etnólogos brasileiros, ao assumir a cultura e não a raça como problema fundamental ao qual se deveria orientar a nova agenda de pesquisa em antropologia. O meu trabalho sobre a narrativa profissional de Arthur Ramos ainda está em sua fase inicial, porém, por ora, é possível visualizar a extensa rede de autores cujas correspondências foram trocadas com o autor. Além disso, foi possível também mapear algumas críticas e oposições que Ramos recebeu acerca do seu método antropológico psicanalítico. Acervo ainda por ganhar novos pesquisadores, as correspondências do Arquivo Arthur Ramos, depositadas na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, oferecem-nos, no campo da história das ciências, em particular, da história da antropologia, um desenho das relações institucionais, intelectuais, pessoais e profissionais entre os cientistas sociais brasileiros e estrangeiros, em particular, dos debates entre os antropólogos, etnólogos e sociólogos, com outros grupos sociais durante as décadas de 1930 e 1940. Raça e cultura A psicanálise como arcabouço teórico foi mobilizada por Ramos, sobretudo, para investigar as culturas africanas e negras no Brasil. Este contexto de ideias a respeito da cultura e da presença das populações afro-brasileiras na história e sociedade brasileiras tem despertado, quanto ao seu tema, o interesse atual de antropólogos, historiadores e outros cientistas sociais para os diferentes aspectos articulados em torno da noção de raça, bem como para a respectiva historicidade dos discursos sobre ela produzidos. Permitindo aqui um certo recuo histórico, segundo Brad Lange, a partir dos anos 1930 as conclusões pessimistas sobre a contribuição negra para a cultura e sociedade brasileiras foram deslocadas por uma nova geração de antropólogos, tanto brasileiros quanto estrangeiros, na tentativa de reconsiderar positivamente a contribuição afro-brasileira para o desenvolvimento nacional (LANGE, 2008, p. 12).  

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Segundo o autor, coube a Arthur Ramos um importante papel nesse deslocamento de perspectivas sobre a antropologia do negro e das populações afro-brasileiras, ao resgatar em desvio a tradição antropológica inaugurada pelo psiquiatra Raimundo Nina Rodrigues, localizada na virada do século XX. Interpretação também sustentada pela antropóloga Mariza Côrrea, o movimento de continuidade e de desvio alegado pelos antropólogos que se diziam herdeiros de Nina Rodrigues, na medida em que identificavam neste último um “guia espiritual de suas iniciativas políticas mais gerais vão demolindo sua obra no particular, ponto por ponto, negando a validade de suas interpretações ao longo de sua própria produção intelectual” (CÔRREA 1998, p. 14). Emblemático desse procedimento foi o caso de Arthur Ramos. Retomando os estudos de Nina Rodrigues sobre as populações afro-brasileiras e negras no Brasil, Ramos deslocou o conceito de raça, daquele autor, invertendo-o pela noção de cultura. Esse deslocamento parece ter sido fundamental para a invenção, naquele momento, de um novo campo acadêmico e de uma agenda de pesquisa interdisciplinar, no Brasil, que se dedicaria principalmente à antropologia e à etnologia dos negros. Sua preocupação com o tema já havia sido manifesta em uma conferência pronunciada em 25 de novembro de 1933, no Centro Oswald Spengler da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, em que chamava a atenção para “as várias faces do problema da raça negra do Brasil, a exigir especialistas em ramos científicos diversos” (RAMOS, 1940, p. 25). Para o autor, e fundamental para essa invenção, a linguagem social da psicanálise (DUARTE, 2002) – cujo nascimento a medicina científica é, ainda que sob distância, cúmplice – permitia construir uma noção de pessoa desvinculada, em certo sentido, de determinismos estritamente biológicos e raciais, ao aceitar o argumento psiquista e simbólico como um fundamento universal da natureza humana. Vale a nota de que, na segunda edição da sua obra O negro Brasileiro – etnologia religiosa, livro publicado originalmente em 1934 com segunda edição em 1940, o autor buscaria validar o seu argumento sobre as contribuições da psicanálise e da psicologia social para a formulação de uma nova agenda de pesquisas em antropologia. Luiz Fernando Duarte observa, nesse sentido, que o “interesse de Arthur Ramos pela psicanálise sublinha justamente a dimensão universalista do pensamento freudiano, sua suposta capacidade de desvendar os mistérios do ‘inconsciente’” (DUARTE, 1999, p. 21). Destaca ainda Duarte que essa dimensão universalista incluía uma dimensão política mais objetiva, por parte de Ramos, sintetizada pela formulação e pela respectiva pesquisa de um projeto de educação para o país. Vale lembrar que durante o período em  

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que Ramos dirigiu o Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental, sua atenção neste órgão estava vinculada à pesquisa de casos clínicos sobre o desajustamento pré-escolar na infância, os quais ele indicava pelo conceito de “criança problema” (RAMOS, 1939). Para Ramos, o conceito de “criança problema” vinha “em substituição ao termo pejorativo e estreito de criança normal, para indicar todos os casos de desajustamento caracterológico e de conduto da criança, ao seu lar, à escola e ao currículo escolar (RAMOS, 1939, p. XXI). A psicanálise permitia ao autor analisar as crianças que “haviam sido ‘anormalizadas’ por seu meio, a partir do ponto de vista do adulto, sem que estes compreendessem o seu papel na identificação de comportamentos deficitários e viciados, bem como a orientação e a correção desses comportamentos” (OLIVEIRA, 2007, p. 19). A associação entre psicanálise e civilização, configurada por meio de um projeto político de educação, aparece já desde cedo na obra de Ramos. De acordo com Luiz Fernando Duarte, embora não se po[ssa] menosprezar [...] o peso da herança da Bildung romântica em todos os investimentos na educação ocidental [...], inclusive através dessa versão tão peculiar embutida na prática psicanalítica, [e]la foi, porém, subordinada em Arthur Ramos ao projeto iluminista, transformando-se num recurso de promoção da individualidade ‘quantitativa, mais que ‘qualitativa’ (para usar das úteis categorias de Simmel). Isso não deixa de fazer sistema com outros aspectos importantes da vida de Arthur Ramos, como sua militância política pró-democrática, sua permanente disposição construtiva institucional ou sua agenda de pesquisa comparativa abrangente (que iria deixar impressa, como é notório, em sua rápida passagem pela UNESCO) (DUARTE, 1999, p. 21).

Destacamos ainda como fundamento na “agenda de pesquisa comparativa abrangente” de Ramos o deslocamento semântico da raça para a cultura como uma tentativa, simultânea, de criar ‘antepassados intelectuais’, a partir de Nina Rodrigues, e ressaltar a originalidade da produção antropológica contemporânea ao autor no Brasil, na década de 1930. Como registra Lilia Schwarcz, o conceito de “raça, nesse contexto, aparece quase como um ‘slogan de época’, uma noção em desuso que deveria ser rapidamente extirpada do vocabulário local” (SCHWARCZ, 1995, passim). De acordo com Schwarcz, “esse foi o espírito que norteou Artur Ramos no prefácio ao livro de Nina Rodrigues, As coletividades anormais”. Em excerto anotado pela autora, Ramos afirmava, por exemplo, que a noção de “degenerescência da mestiçagem como causa precípua de desajustamentos sociais” são ideias inaceitáveis para os nossos dias. O pretenso mal da mestiçagem é um mal de condições higiênicas deficitárias em geral. Mais social do que orgânico. Se, nos trabalhos de Nina Rodrigues, substituirmos os termos raça por cultura, e

 

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mestiçagem por aculturação, por exemplo, as suas concepções adquirem completa e perfeita atualidade (RAMOS 1935, p. 12-13 apud SCHWARCZ 1995, s/p).

Diferentemente de Gilberto Freyre, cuja noção de cultura parecia alinhar-se à tradição da antropologia norte-americana de Franz Boas (BENZAQUEN, 1994), Arthur Ramos permanece ainda a embaralhar a sistematicidade da coerência epistemológica da antropologia, inserindo a medicina e a psicanálise junto à modelagem do seu objeto de estudo na disciplina. Ainda que o seu conceito de cultura sugira uma continuidade temática da antropologia acerca da produção simbólica das diferentes sociedades, essa sincronia é sobretudo aparente quando se atenta para a sua invenção sob a sua singular perspectiva. Em realidade, Ramos parecia buscar alguma sistematicidade, de maneira construída, por meio da interação com antropólogos, etnólogos e, em menor escala, médicos e psiquiatras reconhecidos na área, demonstrando uma certa expectativa intelectual em torno da demonstração de novos conceitos e métodos que poderiam ser empregados na pesquisa em antropologia. Em 1937, por exemplo, Ramos enviou um cartão elegante a Franz Boas, remetendo e solicitando a opinião do antropólogo a respeito dos seus livros O negro brasileiro e O folclore negro no Brasil (RAMOS, 1937). Também nesse mesmo período foi intensa a sua correspondência com o antropólogo alemão Rüdiger Bilden, em opiniões trocadas sobre a pesquisa da estudante norte-americana de antropologia, interessada em fazer etnografia sobre o candomblé na Bahia, Ruth Landes. Em uma dessas cartas, Ramos reconheceu a oportunidade e enviou para Bilden exemplares da obra de Nina Rodrigues (Coletividades anormais) e de João Dornas Filho (A escravidão no Brasil), postulando com a remessa uma possível origem dos estudos em antropologia do negro no Brasil (RAMOS, 1938; 1939). Nina Rodrigues, Rüdiger Bilden e Franz Boas aparecem coerentemente na percepção, de Ramos, sobre a configuração do campo de estudo da antropologia naquele novo momento enfrentado pelo autor, não obstante pareça ser inegável a incompatibilidade teórica entre esses três autores. A sua coerência, nesse caso, não se fazia apenas epistemologicamente, mas também socialmente, por meio de uma rede de cartas pessoais. Na montagem que tento fazer dessa intrincada narrativa profissional, observo que parece se deslocar o pensamento médico do psiquiatra Arthur Ramos como ponto de origem da psicanálise, indo em direção ao pensamento simbólico e cultural da antropologia na confecção de uma nova agenda de pesquisa para as ciências sociais.  

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Agenda que enfatizaria o inconsciente e o mental como uma categoria universal, portanto, interessante para a pesquisa das condutas e dos comportamentos sociais, das diferentes personalidade e grupos sociais. Construções e ziguezagues profissionais Embora de grande interesse, não poderei recuperar neste artigo a passagem de Arthur Ramos pela medicina, entre os anos 1928 e 1933, quando atuou como médico legista no Serviço Médico Legal, órgão da Secretaria de Polícia e Segurança Pública da Bahia, também conhecido como Instituto Nina Rodrigues em Salvador. Também não será meu objeto me deter exaustivamente, neste trabalho, sobre o período em que Ramos desempenhou o papel de chefe da Secção Técnica de Ortofrenia e Higiene Mental do Departamento de Educação do Distrito Federal, entre 1934 e 1939 – ano no qual Ramos foi procurado pelo Governo Federal e intimado a devolver os proventos recebidos como chefe da Seção de Ortofrenia e Higiene Mental, enquanto permanecesse comissionado no cargo de professor catedrático em Psicologia Social da Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil. Meu interesse neste artigo consiste, mais cuidadosamente, em remontar o contexto intelectual no qual o repertorio teórico psicanalítico mobilizado por Ramos permitia ao autor a sua inserção junto ao campo de pesquisas acadêmicas da antropologia e da etnologia. Em especial, tomarei a análise do “Apêndice” da segunda edição do seu livro, O negro Brasileiro, situando as respostas que o antropólogo devolveu aos críticos da sua época que o desafiavam sobre a validade do uso da teoria psicanalítica na agenda de pesquisa em antropologia. Resultado dos seus estudos desde 1931, o livro O negro brasileiro é composto por uma etnografia religiosa e uma “hipótese de trabalho”, como o autor designava, que destaca a importância do campo escolhido para a investigação antropológica, isto é, a religião. Para ele, o estudo do sentimento religioso é o melhor caminho para se penetrar na psicologia de um povo. Leva diretamente a esses estratos profundos do inconsciente coletivo, desvendando-nos essa base emocional comum, que é o verdadeiro dínamo das realizações sociais (RAMOS, 1940, p. 27).

O inconsciente torna-se objeto de pesquisa em antropologia. Durante o período em que revisou a primeira edição, Arthur Ramos ainda se aprofundou no estudo da psicologia social. Vale aqui recordar que ele ocupou, entre os anos de 1936 e 1939, a cadeira de Psicologia Social da Universidade do Distrito Federal. É possível perceber  

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que durante a década de 1930 a pesquisa sobre a antropologia do negro, a literatura sobre psicanálise e psicologia social vão se combinar. Em carta de 28 de fevereiro de 1935, Ramos dirigia-se ao antropólogo norte-americano Melville Herskovits solicitando indicações de bibliografia para utilizar no curso de Psicologia Social, principalmente, indicações bibliográficas sobre as religiões negras no Haiti. Nesta carta informa, também, a Herkovists o seu interesse em se aprofundar quanto ao tema da psicologia, a fim de preparar suas aulas na Universidade do Distrito Federal e os apontamentos observados pelo norte-americano em torno dos gegê. Confessa em seu pedido para o norte-americano que “[n]ós, os cientistas no Brasil, lutamos com dificuldades de toda ordem para a realização de qualquer trabalho científico”, razão pela qual agradecia o recebimento de “qualquer estímulo de autoridades e amigos como o prof. Herskovits (RAMOS, 1935). Agindo contra essa precariedade, todavia, Ramos ensaiava uma reversão por meio da indicação do nome de Nina Rodrigues como precursor dos estudos antropológicos brasileiros sobre o negro. Para ele, não haveria impedimentos em aceitar os estudos de Nina Rodrigues sobre o negro no Brasil, desde que se pudesse, na atenção do pesquisador atual, “defrontar-se com duas tarefas de importância: a) continuar a colher materiais diretos de observação, nos vários Estados do Brasil, cotejando-os com os primitivos; b) reinterpretar esses materiais, com os métodos científicos do seu tempo” (RAMOS, 1940, p. 27). Essa simultaneidade de interesses colocava-o, Ramos, em lugar de reconhecimento, mas também de crítica, diante dos seus leitores. Na segunda edição de O negro brasileiro, essa então publicada no ano de 1940, o autor dedicava-se a examinar em um “Apêndice” a metodologia empregada no seu livro. Iniciava esta nova seção, incluída na segunda edição, ressaltando aos seus intérpretes a divisão do livro em uma primeira parte etnográfica e uma segunda parte que seria de análise etnológica. Na primeira parte do livro, nas palavras do autor, “se cogitou apenas do registro dos fatos dentro dos rígidos critérios etnográficos; e a segunda parte, destinada à interpretação etnológica daquele material” (RAMOS, 1940, p. 413). Essa divisão, uma empírica e outra teórica, permite assinalar a percepção particular do autor sobre a antropologia naquele momento: embora a segunda parte, de interpretação etnológica, pudesse ser modificada de acordo com novas teorias, a primeira parte etnográfica garantiria a sua veracidade pela rigidez e segurança dos seus critérios. Arthur Ramos dizia nesse sentido, por exemplo, ser de conhecimento geral o “quanto são vacilantes os métodos e interpretações culturais” (RAMOS, 1940, p. 413).  

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Para ele, seria preciso “evitar o mais possível atermo-nos à letra dessas interpretações, simples ‘hipóteses de trabalho’, que podem ser abandonadas por novas ‘hipóteses’ amanhã” (idem). Sua reposta, em realidade, partia do suposto “da precariedade dos métodos erguidos pelas várias escolas, para resolverem o problema da cultura”. Argumento que ele endossava, ademais, com a prova de que a história da metodologia etnológica é bem rica neste particular. Os critérios de interpretação da cultura ainda não chegaram a uma conciliação dos seus respectivos pontos de vista. Evolucionistas e antievolucionistas; historicistas e a-historicistas; organicistas e funcionalistas; difusionistas e antidifusionistas... todos eles procuram se fixar em seus postulados de escola (idem).

Um dos pontos principais assinalados pela crítica ao seu livro consistia na oposição, difundida entre alguns dos seus leitores, que se colocavam “contra o método psicanalítico para a interpretação da cultura, empregado pelo Autor como ‘hipótese de trabalho’” (RAMOS, 1940, p. 414). Ramos seleciona e aceita, em parte, as críticas dirigidas a sua ‘hipótese de trabalho’ fundamentada na teoria psicanalítica, mas não a assimila completamente. Resistia, de maneira argumentativa e bem elaborada, a essas críticas ressaltando a pertinência da psicanálise para a produção de “hipóteses de trabalho” para a antropologia. Neste contexto, não apenas médicos se opunham à psicanálise, como outros profissionais também recusavam os pressupostas daquela teoria (RUSSO, 2002). Esse era o caso da crítica do argentino José Imbelloni. Antropólogo filiado ao grupo dos histórico-culturalistas, era bem clara a sua oposição ao método empregado pelo brasileiro. Alegava Imbelloni: nos permitimos observar que el psicoanálisis, con las conocidas ideas de Freud sobre el complejo de Édipo, el tabú y el totem, y las categorias ou estados lógicos sucessivos de Lévy-Bruhl, muy aparentados con las escaleritas del evolucionismo clásico, no logran penetrar en lo íntimo de las estructuras religiosas, ni en las varias formas del mundo (apud RAMOS, 1940, p. 415).

Para o argentino, essas ideias nada permitiam “explicar la pecularidad y determinismo de la visión mágica en el ciclo funerário o de momificación de cabezas y cuerpos en el ciclo funerário de los agricultores inferiores, ni tener en cuenta la independencia de las ‘culturas’ como entidades autônomas, perfectos en su estructura íntima...” (idem). Ramos aceitaria, todavia, e em parte, as observações de Imbelloni sobre a validade da ‘hipótese de trabalho’ da psicanálise para a antropologia. Afirmava, inclusive, que “os culturalistas vêm demonstrar que, em vez da promiscuidade inicial, é  

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a união monogâmica que se encontra em algumas tribos, mesmo as mais primitivas; em vez do totemismo, encontra-se um legítimo monoteísmo inicial [...]” (RAMOS, 1940, p. 416), confirmando que “esses argumentos são bem conhecidos e na realidade originaram uma fecunda renovação nos métodos etnológicos” (idem). Contudo, pondera: No que se refere à posição da psicanálise, aceito algumas restrições, como as que lhe trouxe, por exemplo, Malinowski, sem sair da sua posição metodológica (vide, p. Ex., B. Malinowski, La sexualité et la repression dans les societés primtives, trad. franc., 1932, passim). Para Malinowski, o complexo varia em função da sociedade. Por isso, não podemos considerar o complexo de Édipo, por exemplo, a fons et origo da cultura, quando, pelo contrário, ele é um produto da cultura, uma formação secundária. Por isso, as instituições totêmicas não estariam na origem da sociedade, mas seriam estágios secundários, decorrentes de formações reacionais, dentro de determinados ciclos de cultura (RAMOS, 1940, p. 416).

Ao que ele assertivamente concluia: “sendo assim, a interpretação psicanalítica continua legítima mesmo dentro da relatividade da evolução” (idem). Para Ramos, “em determinados ciclos de cultura, podemos nos socorrer legitimamente da interpretação psicanalítica, na indagação do porque da personalidade cultural” (RAMOS, 1940, p. 417). Nessa resposta, o autor brasileiro reposicionava a seu favor a crítica de Imbelloni contra o método psicanalítico, sugerindo em realidade “uma conciliação metodológica necessária, mesmo porque, como as modernas correntes etnológicas o provam, o método histórico-cultural tentou resolver o como, mas não o por que das culturas” (idem). Isto é, o trabalho etnológico, por isso mesmo é a ‘compreensão fenomenológica da personalidade cultural’ (Thurnwald). E para essa análise, nós podemos e devemos legitimamente nos socorrer da psicanálise, como de qualquer outro método de compreensão fenomenológica da personalidade cultural (RAMOS, 1940, p. 419, grifos no original).

A devolução crítica do brasileiro, apoiado no funcionalismo de Thurnwald, parecia apontar, em sua perspectiva, para um problema de esvaziamento da análise da cultura pelos histórico-culturalistas, ou, ainda, de um excesso de psicologismo e interpretativismo pelos quais, no Brasil, os principais médicos e psiquiatras criticavam a psicanálise (RUSSO, 2002). Para Ramos, isto se devia, em parte, porque os culturalistas, procurando delimitar, ciclos culturais, se puseram a comparar elementos da cultura, como quem classifica os objetos de um museu. A imagem é de Thurnwald. Esqueceram o elemento humano. Omitiram a ‘análise’ das forças culturais. Não investigaram de que maneira e por que se formaram as culturas (RAMOS, 1940, P. 418).

 

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Recuperando agora aquelas “tarefas atuais” da antropologia, alegadas por Arthur Ramos, das quais se defrontariam os pesquisadores, valerá notar que a retomada dos estudos de Nina Rodrigues – bastante sintonizados com a teoria da degenerescência e do atavismo racial da antropologia criminal de Lombroso – pareciam se deslocar, por meio de uma revisão da literatura sobre as “mentalidades primitivas”, dos pressupostos psiquiátricos organicistas das condutas mentais. Ramos adotava a perspectiva simbólica e subjetiva da psicanálise como um método válido para investigação dos campos da cultura e da personalidade, do ponto de vista da ciência social. Estes campos eram retomados, por ele, não apenas por meio das teorias do inconsciente psíquico, como também pela produção etnográfica então contemporânea. Nesse registro, se a tarefa de coleta de material etnográfico, como Ramos sugeria inicialmente, tomava como rumo o acúmulo de documentos, ele também apontava, para a antropologia, uma “segunda tarefa, de não menos importância, [que] é a da nova exegese documentária, com os métodos científicos contemporâneos”, nas quais “[m]uitas ideias do mestre baiano [Nina Rodrigues] já não resistirão à crítica científica de nossos dias” (RAMOS, 1940, p. 28). A revisão dessas ideias vinha, justamente, dos novos autores em torno da antropologia cultural. Nesta revisão, Arthur Ramos reposicionava o nome de Nina Rodrigues, nos estudos sobre a antropologia do negro, com “a tese da inferioridade antropológica de certos grupos étnicos, da degenerescência da mestiçagem... que estão a sofrer radical revisão ao sopro dos Boas, e da moderna antropologia cultural” (idem). Essas teses estavam na década de 1930, segundo leitura de Ramos – já destacada por Lilia Schwarz (1995) – “em franco desacordo com a ciência atual”. Teses que deveriam ser, por isso, atualizadas pelo saber recente da ciência social, vinculada então aos trabalhos da antropologia cultural e da psicanálise. Por um movimento sutil, Arthur Ramos apontava para a necessidade de superar as premissas de Nina Rodrigues, sem apagar o nome do autor, através da requisição de novos postulados da ciência: A teoria animista da escola antropológica inglesa, com Tylor à frente, e tanto das preferências do sábio baiano, já não tem significado para o nosso tempo. Lévy-Bruhl imprimiu novos rumos e trouxe novas e surpreendentes interpretações ao conhecimento da psique primitiva, principalmente das suas manifestações religiosas, com a teoria do pensamento pré-lógico e da lei de participação. De outro lado, a psicanálise introduziu uma fecunda orientação metodológica ao assunto, continuando e completando às luminosas vistas da escola de Lévy-Bruhl. O ritual e os processos de magia, os fenômenos de possessão fetichista, o sincretismo religioso, os mitos negros etc. tem (sic)

 

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que ser reinterpretados com esses novos métodos de pesquisa científica (RAMOS, 1940, p. 29).

Ramos procurava modelar, de maneira a tentar conciliar os ‘antepassados intelectuais’ da antropologia brasileira (Nina Rodrigues), com os novos métodos da antropologia cultural (Lévy-Bruhl, Franz Boas), sem “alimentar a ilusão que esses novos métodos sejam definitivos, e infalíveis essas teorias. Eles nada são do que novas ‘hipóteses de trabalho’ (para empregar uma expressão consagrada), reflexos do espírito científico da época, a nos impulsionarem para novas pesquisas” (idem). Nesta perspectiva montada, introduzindo uma certa diacronia na história da antropologia brasileira, a busca por novos métodos sobre os antigos ou primitivos (como Ramos se referia), não deveria levar a uma preocupação “com o ‘verdadeiro’ de uma hipótese, mas com a ‘fecundidade’ de seus resultados” (idem). Ou seja, “[s]e a ciência de nossos dias informa a exatidão de certos postulados da época em que trabalhou Nina Rodrigues, nem por isso podemos deixar de reconhecer quão fecundos foram e continuam a ser os resultados de suas investigações” (idem). Por fim, o seu livro O negro brasileiro dedicava atenção diretamente aos candomblés da Bahia, às macumbas do Rio de Janeiro e aos catimbós de alguns estados do Nordeste, “as (sic) formas elementares do sentimento religioso de origem negra, no Brasil” (idem). Ao que me parece até aqui, a importância de Nina Rodrigues, neste tema, era assinalada de uma maneira transversal e indireta, de modo que não inviabilizasse a atualidade das pesquisas praticadas por Ramos. A presença do médico baiano seria eclipsada, justamente, pelos desdobramentos de “hipóteses de trabalho”, assinalado por Ramos, em atenção a um novo método analítico. Essa hipóteses eram elaboradas a partir de uma certa noção de ‘trabalho de campo’, no qual a profissão era também condição. Em suas palavras, [f]oi em virtude da minha profissão de médico legista e clínico que me pus em contato, na Bahia, com as classes negra e mestiça da sua população, indo surpreender a muito custo e após tenaz e paciente esforço, todos os mistérios das religiões negras e as formas de todo esse cerimonial mágico-religioso de origem africana (RAMOS, 1940, p. 29-30).

Esse recuo, do médico para o etnógrafo, porém, seria novamente colocado à prova, ao abordar as populações afro-brasileiras em matéria de educação e higiene mental. Nesse novo deslocamento, Ramos situa a sua abordagem junto à experiência

 

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profissional, como médico e psiquiatra, na Serviço Mental nas Escolas do Distrito Federal. Entre outros afazeres deste Serviço, pus-me a estudar a população dos morros do Rio de Janeiro e por aí, progressivamente, penetrei no reconcilio das macumbas e dos centros de feitiçaria. Deste modo, o presente trabalho [O negro brasileiro], não deixa de ter um largo alcance higiênico e educacional. Evidentemente nada teremos realizado em matéria de educação se, preliminarmente, não procurarmos conhecer a estrutura dinâmicoemocional da nossa vida coletiva. E todo o trabalho resultará improfícuo se não desenredarmos todas as tramas inconscientes do logro e da superstição, impedindo que uma resistência surda e insidiosa vá desmanchar posteriormente todo o árduo trabalho dos educadores e higienistas (RAMOS, 1940, p. 30).

Como ‘trabalho de campo’, a atuação no órgão público permitiu a Ramos recolher dados para uma abordagem científica – baseada na antropologia cultural e na psicanálise – sobre as populações negras do Rio de Janeiro. Suas ideias acerca da psicanálise como método de educação das populações pobres, sobretudo, dos negros, desenredando-os da sua cortina inconsciente, recolocava-o, entretanto, em uma posição ambígua diante da antropologia: ao mesmo tempo em que buscava na psicanálise uma “hipótese de trabalho”, também tendia a encontrar na sua teoria uma terapêutica, isto é, uma chave para o tratamento clínico de higiene mental sobre a população etnografada. Mais cuidadoso, talvez, do que essa minha simples conclusão, Ramos dizia que as “representações coletivas” das classes atrasadas brasileira (sic), no setor religioso, não endossa absolutamente, como várias vezes tenho repetido, os postulados de inferioridade do negro e da sua capacidade de civilização. Essas representações coletivas existem em qualquer tipo social atrasado em cultura. É uma conseqüência do pensamento mágico e pré-lógico, independentes da questão antropológico-racial, porque podem surgir em outras condições e em qualquer grupo étnico – nas aglomerações atrasadas em cultura, classes pobres das sociedades, crianças, adultos nevrosados, no sonho, na arte, em determinadas condições de regressão psíquica... Esses conceitos de “primitivo”, de “arcaico”, são puramente psicológicos e nada tem que ver com a questão da inferioridade racial (RAMOS, 1940, p. 30-31).

Sua “hipótese de trabalho”, também, desempenharia o papel de uma aposta aplicada da psicanálise como proposta terapêutica, isto é, de um método de civilização das populações atrasadas (FACCHINETTI, 2012). Caberia nos perguntar se a pesquisa em antropologia era entendida pelo autor, ao mesmo tempo, como ciência social e política pública, na medida em que era preciso conhecer essas modalidades do pensamento “primitivo”, para corrigi-lo, elevando a etapas mais adiantadas, o que só será conseguido por uma revolução educacional que aja em profundidade, uma revolução

 

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“vertical” e “intersticial” que desça aos degraus remotos do inconsciente coletivo e solte as amarras pré-lógicas a que se acha acorrentado (RAMOS, 1940, p. 31).

Considerações finais As correspondências de Arthur Ramos, bem como uma análise pontual da sua obra, permitem colocar em perspectiva a constituição da ciência social brasileira, nas décadas de 1930 e 1940, em seus debates e relações com uma comunidade de intérpretes situados em outras áreas de saber. Formado em psiquiatra e adotando, em diversos momentos, a psicanálise como campo teórico, Arthur Ramos parecia modelar, por meio das suas leituras e dos seus leitores, uma certa narrativa profissional que, em fins da década de 1940, foi reconhecida como pioneira e exemplar na antropologia. Em carta de primeiro de julho de 1947, por exemplo, Roger Bastide dirigia-se à Arthur Ramos comunicando ao brasileiro a boa recepção que as suas obras sobre o negro e a cultura afro-brasileira recebiam na comunidade intelectual francesa, em particular, entre os interessados pela antropologia das populações afro-brasileiras na Europa (BASTIDE, 1947). Bastide listava, inclusive, o nome de algumas sociedades acadêmicas francesas que gostariam de ter publicações de Ramos, como o L’Institut Français D’Afrique Noire (IFAN) e o famoso Museé de L’Homme, em Paris, na sua seção de africanistas e americanistas. Seria preciso ainda averiguar, entretanto, em que medida Arthur Ramos se inseria, não apenas, entre os debates a respeito da antropologia, como também cancelava a sua inscrição teórica nos métodos evolucionistas da medicina e da psiquiatria brasileira dos anos 1930 e 1940. Quero dizer, embora afirmando-se atento e atualizado no que dizia respeito aos métodos da antropologia cultural, Ramos situava, em contrapartida, a psicanálise simultaneamente como uma “hipótese de trabalho”, mas também como um método terapêutico para educar e civilizar as populações consideradas atrasadas, colocadas de um ponto de vista do pensamento primitivo e pré-lógico. Tentarei pensar essa relativa ambiguidade demonstrada pelo autor como uma tentativa de automodelagem da sua formação profissional vinculada à psiquiatra, porém, que se dirigia interessada para a antropologia. Não seria o momento de indicar conclusões acerca dessa chave analítica exposta sobre a narrativa profissional de Ramos aqui. A minha observação cabe, sobretudo, como um esboço para tentar compreender o modo como intelectuais, de maneira geral, parecem se deslocar de campos profissionais distintos, imprimindo

 

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nesses campos não apenas os seus saberes transportados, como também modelando os seus saberes às expectativas de novos campos. Essa reflexão não é originalmente minha, e pode ser encontrada no trabalho de Stephen Greenblat (1980) acerca da carreira do estadista inglês Thomas More (14781533)5. Analisando a vida e a obra de More, Greenblat propõe uma análise da sua carreira como a construção de uma identidade realizada entre dois princípios: a automodelagem (self-fashioning) e o autocancelamento (self-cancellation). Para Greenblat, automodelagem refere-se à capacidade da personalidade em se moldar de acordo com as necessidades do seu tempo. Segundo sua leitura, More teria feito uso da automodelagem não apenas na literatura, mas também em sua própria vida pública e privada. Já o autocancelamento, como argumenta Greenblat, baseando-se nas convicções religiosas de More, seria o desejo de pôr fim ao improviso, em vários selves encenados, no escape do artifício, na evasão da narrativa, conferindo um caráter de composição à própria existência modelada. Para Greenblat, “ações sociais são sempre em si mesmas incorporações [embeddedness] em sistemas de significação pública, sempre compreendidas, mesmo pelos seus produtores [makers], por atos de interpretação”, de modo que, a “linguagem, como outros sistemas de signos, é uma construção coletiva” (GREENBLAT, 1980, p. 5, tradução livre minha). A antropologia, a medicina e psicanálise na vida e obra de Arthur Ramos poderiam ser situadas, no sentido apontado acima, como um tipo particular de linguagem social, assim como o é também a coerência narrativa de uma profissão. Como concorda Marcelo Timotheo da Costa, tratando não de More mas da biografia do brasileiro Alceu Amoroso Lima, “engajamento e separação, modelagem e cancelamento, não ocupariam momentos separados e sucessivos na carreira de More, estando intensamente fundidos, no que seria uma tentativa de resposta pessoal em uma época de redefinições, como foi a Renascença” (COSTA, 2006, p. 320-321). Em que pese as devidas e necessárias diferenças de época e dos autores, acredito ser possível situar a obra e a vida do médico e antropólogo Arthur Ramos na perspectiva apontada por Greenblat, também adotada por Marcelo da Costa, para construir a sua narrativa profissional. Em uma perspectiva mais ampla, Ramos modelava a sua personalidade profissional por meio da rede de correspondências trocadas com bastante freqüência                                                                                                                 5

Greenblat foi, também, mobilizado por outros autores dedicados a entender as trajetórias intelectuais de pensadores brasileiros, como Ricardo Benzaquen de Araujo (1994) e Marcelo Timotheo da Costa (2006), que me chamaram a atenção para o seu texto.

 

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entre um grupo diversificado de pessoas. A existência dessa rede, construindo a sua coerência profissional, onde as reciprocidades entre os seus intérpretes era viabilizada, deixava, então, mais ou menos exposto ao público o seu trabalho e a sua dedicação para os diferentes campos profissionais para os quais ele se movia. A freqüência com que ele remetia os seus trabalhos e se correspondia com diversas personalidades do mundo da ciência e das artes – além de pessoas do mundo popular – faz com que coloquemos em perspectiva o aspecto socialmente construído da sua vocação. Nota-se, com isso, que não aponto aqui o aspecto dessa narrativa como fato em si, isto é, de que Ramos valiase, simplesmente, das suas cartas para obter reconhecimento e modelar a sua profissão de acordo com o contexto (ou o cortejo) da sua época. Compreendo, ao contrário, a sua profissão como uma linguagem e noção que só pode ser socialmente entendida. Os seus destinatários, ademais, se não garantiam ao autor a convicção sobre os seus trabalhos, permitia, todavia, que ele se vinculasse a novos campos sociais, afastando-o, quando preciso, de outros em que o seu trabalho poderia ser ignorado e mal recebido, ou mesmo, incompreendido. O conjunto de cartas do seu arquivo possibilita, por exemplo, identificar que entre os destinatários prioritários de Ramos, encontravamse, sobretudo, nomes ligados à antropologia: Melville Herkovits, Lévy-Bruhl, Donald Pearson, Richard Pattee, Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide, Alfred Métraux, entre outros. A partir das trocas entre esses autores, a automodelagem das suas interpretações sobre o negro brasileiro incluía, igualmente, uma transformação e adequação das suas “hipóteses de trabalho” à literatura e aos intérpretes da sua época. Por outro lado, o cancelamento mas não o apagamento de determinadas origens da antropologia brasileira – como é o caso dos diversos evolucionismos da medicina da sua época e das teorias da degenerescência e de inferioridade étnicas associadas, sobretudo, ao nome do psiquiatra Nina Rodrigues – não implicava, ou pelo menos, não inteiramente, em distância intelectual – exclusividade e originalidade de si – mas em desvio para a invenção de um novo campo acadêmico da antropologia, em novo contexto, com outros intérpretes. Sem pretende ser pioneiro, Ramos conseguia se movimentar entre novos campos modelando, então, novas “hipóteses de trabalho”. Ou como, enfim, assinala Olívia Cunha: a “narrativa profissional [é uma] invenção [que] resulta de um intenso diálogo envolvendo imaginação e autoridade intelectual” (CUNHA, 2004, p. 296, grifo no original).

 

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Referências bibliográficas ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz. Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 1930. São Paulo: Editora 34, 1994. BASTIDE, Roger. Carta a Arthur Ramos, 01/07/1947. Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, Arquivo Arthur Ramos, I-35, 22, 634. CORREA, Mariza. As Ilusões da Liberdade. Bragança Paulista: EDUSF, 1998. COSTA, Marcelo Timotheo da. Um itinerário no século: mudança, disciplina e ação em Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2006. CUNHA, Olivia Maria Gomes da. Tempo imperfeito: uma etnografia do arquivo. Mana. vol. 10, n. 2, out, 2004. DUARTE, Luiz Fernando Dias. Arthur Ramos, antropologia e psicanálise. Seminário “Diários do Campo” Arthur Ramos, os antropólogos e as antropologias. Anais da Biblioteca Nacional, vol. 119, 1999, pp. 11-28. ________. A psicanálise como linguagem social: o caso argentino. Mana, vol. 8, n. 2, p. 182-194, 2002, FACCHINETTI, Cristiana. Psicanálise para brasileiros: história de sua circulação e apropriação no entre-guerras. Culturas psi, vol. 0, 2012, pp. 45-62. GREENBLAT, Stephen. Renaissance self-fashioning. From More to Shakespeare. Chicago, London: The University of Chicago Press, 1980. LANGE, Brad. Importing Freud and Lamarck to the Tropics: Arthur Ramos and the transformation of Brazilian racial thought, 1926-1939. The Americas, vol. 65, n. 1, 2008, pp. 9-34. MAIO, Marco Chor. O projeto UNESCO e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 1940 e 1950. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 14, n. 41, 1999, pp. 141-158. OLIVEIRA, Camilla Tomasello de. Higiene e Educação: Arthur Ramos e a “Creança Problema”. (Trabalho de Conclusão de Curso – Pedagogia). Campinas: Faculdade de Educação da UNICAMP, 2007. RAMOS, Arthur. A creança problema: a hygiene mental na escola primária. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1939. ________. O negro brasileiro – etnologia religiosa. Vol. 1. 2a edição aumentada (sic). São Paulo, Rio, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1940.  

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