Entre a opy e a sala de música: arranjos entre crianças guarani Mbya e crianças não indígenas

July 4, 2017 | Autor: Daisy Fragoso | Categoria: Educação, Educação Musical, Etnomusicologia
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

DAISY ALVES FRAGOSO

ENTRE A OPY E A SALA DE MÚSICA ARRANJOS ENTRE CRIANÇAS GUARANI MBYA E CRIANÇAS NÃO INDÍGENAS

Orientador: Prof. Dr. Pedro Paulo Salles

SÃO PAULO 2015

DAISY ALVES FRAGOSO

ENTRE A OPY E A SALA DE MÚSICA ARRANJOS ENTRE CRIANÇAS GUARANI MBYA E CRIANÇAS NÃO INDÍGENAS

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação

em

Música

da

Escola

de

Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Musicologia, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Salles.

SÃO PAULO 2015

FOLHA DE APROVAÇÃO Candidata: Daisy Alves Fragoso Orientador: Prof. Dr. Pedro Paulo Salles

Banca examinadora ___________________________________________ ___________________________________________ ___________________________________________ São Paulo, ____/____/____.

Desenho do João Pedro

Ao pequeno Guarani, Renan, que acabou de chegar neste mundo. Às minhas crianças. Às crianças.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Nhanderu por ter me presenteado com este projeto, o qual transformou meu mundo, minha vida. Agradeço às crianças do Tico-tico Coral Infantil, Ana Luisa, Catharina, Fernanda, Gabriela, Giovana D., Giovanna B., Giovanna P, Giovanna T., Giullia, Heloisa, João Pedro, Julia, Pedro A., Pedro S., Rafael, Sabrina, Sarah, Sofia e Thais porque foram meus fieis companheiros nessa caminhada e em muitas outras; porque sem eles não teria chegado aqui, e porque me mostraram o que tudo aqui escrevi. Agradeço também aos pais dessas crianças, porque confiaram a mim seus ticos e porque sempre me apoiaram e confiaram em mim e em meu trabalho. Agradeço ao Elias Vera e à Iara por terem aberto à mim as portas de sua casa, de suas terras, e por terem me permitido conhecer suas crianças e brincar e cantar com elas. Agradeço a seus filhos (e noras) Gilmara, Cleonice, Clarice, Ueliton, Sueli, Jeferson, Tiago, Patricia, Grazieli, Elaine, Alessandra e Laudiceia e às suas crianças Gilson, Anderson, Gilmar, Lucineide, Lucimara, Alex, Alison, Rafael, Jully, Railidia, Jade, Marcela, Kauã, Wilison, Pedro Henrique, Liana, Kaiã, Tadeu, Fabiola, Graciane e Eliara, por terem me recebido com tanto carinho e por terem me ensinado tantas coisas, algumas neste trabalho, outras dentro de mim. Ha’evete! Agradeço à Carob House e à Eloisa Helena Orlandi de Oliveira pelo patrocínio, sem o qual meu álbum de fotos estaria vazio. Agradeço ao LEM – Laboratório de Educação Musical do Departamento de Música da ECA/USP pelo apoio financeiro quando precisamos e pelo suporte na realização do evento Japoraei – Nós cantamos. Agradeço à Teca e à Valéria pela leitura atenciosa que fizeram do meu trabalho e pelos conselhos e sugestões que o completaram.

Agradeço ao Nicolás Salaberry por tão gentilmente nos ter cedido seu tempo ao conduzir a oficina de língua e cultura guarani com o Tico-tico Coral Infantil, pela tradução da canção Torore Mbyky e pela ajuda com a tradução da canção Apykaxu xiĩ’i oveve. Agradeço ao meu orientador, prô Pedro Paulo, que me conduziu até aqui, que conduziu alguns momentos (e uma oficina) com meus ticos, e que se envolveu de corpo e alma neste trabalho; e que tanto tem me ensinado durante minha jornada acadêmica e profissional. Agradeço a meus pais e ao meu irmão que se envolveram neste trabalho tanto ouvindo sobre ele quanto indo até a aldeia comigo. Agradeço à Denise, minha irmã, companheira de todas as viagens à aldeia e de todas as experiências que lá vivi, registrando-as, inclusive. Obrigada por torcer por mim, Dê. Agradeço ao Fê, sem cuja motivação não teria nem começado isso tudo. Obrigada por acreditar em mim, por poder dividir este trabalho com você, por me acompanhar sempre. Esse trabalho é um tanto de mim e um bocado de você também, Fê!

Desenhos da Sarah e Sofia “Crianças [guarani] e Tico-tico”

Que Nhanderu faça ecoar as vozes de nossas crianças até que seja alcançado o mais rude coração.

RESUMO

Movido pela proposta de que experimentaria outra cultura através da música, um grupo de crianças não indígenas foi, por diversas vezes, até a aldeia Tenondé Porã, onde as crianças guarani Mbya moravam, para que cantassem e brincassem juntas. Neste trabalho, são discutidas as implicações destes encontros, cujo mote era a música guarani, e é traduzido, pelo olhar do pesquisador, o que as crianças não indígenas e guarani nos mostram quanto à maneira como construíram e como, moduladas pela convivência lúdica e musical, arranjaram as relações sociais entre si. Relações essas que se formaram a partir das diferenças, mas que se firmaram na igualdade à que a infância remete. Ainda que o conceito de infância e a maneira como acontece a infância sejam diferentes entre diferentes sociedades e culturas, neste trabalho, a infância era o que as crianças de ambos os grupos tinham em comum. Este aspecto comum é posto à luz através dos encontros, das vivências, das experiências e das músicas compartilhadas entre elas, e aponta aos educadores caminhos alternativos no que se refere ao trabalho com músicas de culturas diversas em sala de aula.

Palavras-chave: Cultura guarani. Música guarani. Arranjos transculturais. Educação musical.

ABSTRACT

Motivated by the proposal that they would experience other culture through the music, a group of non-indigenous children have gone several times to Tenondé Porã Indigenous Community where guarani Mbya children lived, so that they could sing and play together. This research discuss the results of these meetings in which the guarani music was the motto, and it translates, by the researcher view, what non-indigenous and guarani children show us about how they have built and arranged the social and musical relationship among them, modulated by living together ludic and musically, and also by their talking. This relationship was shaped from the differences, but it was signed on equality to that childhood refers. Though the concept of childhood and the way in which childhood occurs are different among different societies and cultures, this work reveals that childhood was the common feature of these children. This point is unearthed through the meetings, through the experiences and through the music shared between these children, and it indicates alternative ways to teachers who intends to include songs from different cultures in your classes.

Key-words: Guarani culture. Guarani music. Cross-cultural arrangements. Music education.

ÍNDICE

01 Introdução 07 Capítulo I – Músicas de diferentes povos e culturas na educação musical 09 1. A inclusão de músicas de diferentes povos e culturas nas aulas de música 21 2. Música indígena na sala de aula

22 2.1. O saber hegemônico e os outros saberes 25 2.2. Interlocuções entre a Etnomusicologia e a Educação Musical 35 2.3. Articulações entre identidade e alteridade por meio da música

42 Capítulo II – Pequena coletânea de canções guarani Mbya 75

Capítulo III – A criança indígena guarani Mbya e a criança não indígena:

encontros musicais transculturais

76 1. Metodologia: o trabalho com crianças, crianças indígenas e indígenas 99 2. Transculturalidade em educação musical 105 3.A opy na sala de música, a sala de música na opy 108 3.1. Os encontros, as oficinas, as discussões 123 3.2. O dia dez 145

3.3. “Assim, vocês poderão se lembrar sempre da gente”: primeiros

vínculos

157 3.4. O dia das bexigas

166 3.5. O dia da “não-oficina” de música: o aprendizado entre as crianças guarani Mbya

178 3.6. O trabalho em sala de aula: oporaei, japoraei

185 Capítulo IV – Coletânea de pequenas histórias: resultados 194 Considerações finais: A previsão do xeramoĩ 197 Referências Bibliográficas 206 Discografia 207 Anexos – Arranjos de canções guarani Mbya 207 Anexo A – Arranjo de Oreru Nhamandu Tupã para coro infantil a 3 vozes e piano

212 Anexo B – Arranjo de Jaguata Tape Rupi para coro infantil a 2 vozes e piano (com jogo de mão)

ÁLBUM DE FOTOS (lista de figuras)

Fig. 1: Tar, instrumento musical do Irã e Azerbaijão, e Sheng, instrumento musical chinês .......... 11 Fig. 2: Kamanchec, instrumento musical persa ............................................................................... 12 Fig. 3: Iridinam, instrumento musical dos índios Gavião Ikolen ..................................................... 12 Fig. 4: Nozani-ná como arranjado por Villa-Lobos ......................................................................... 30 Fig. 5: Versão de Nozani-ná como recolhida por Roquete Pinto ..................................................... 31 Fig. 6: Notas sobre a canção folclórica portuguesa Olaré ............................................................... 33 Fig. 7: Sugestão de arranjo da canção Koi Txangaré ....................................................................... 34 Fig. 8: Guia de pronúncia da canção Koi Txangaré elaborado por Almeida e Pucci ...................... 34 Fig. 9: Imagem de uma das canções do Ayvu Peteĩ ......................................................................... 45 Fig. 10: Esquema da dança dos meninos em Jaguata tape rupi ...................................................... 59 Fig. 11: Crianças guarani e não indígenas cantando e dançando Jaguata tape rupi em encontro com os corais na USP ............................................................................................................................... 59 Fig. 12: Árvore genealógica da família do Elias .............................................................................. 78 Fig. 13: Uma das casas onde mora a família do Elias ...................................................................... 80 Fig. 14: Elias e eu em uma de nossas muitas conversas .................................................................. 81 Fig. 15: Clarice Jaxuka, Alison Gabriel Jeguaka e Neilson Karai me ensinando a canção Kyrĩgue’i peju jajerojy ...................................................................................................................................... 86 Fig. 16: Elias conferindo uma das canções que eu havia aprendido ............................................... 87 FIg. 17: Canção Apykaxu xiĩ’i oveve com letra ditada pelas crianças guarani, com lista de instrumentos que utilizados na opy na seção inferior ....................................................................... 88 Fig. 18: Crianças e eu tocando Apykaxu xiĩ’i oveve ......................................................................... 88 Fig. 19: Desenhos da música Apykaxu xiĩ’i oveve e de Nhamandu ................................................. 89 Fig. 20: Jade apresenta o “Bicho mede-palmo” ............................................................................... 89 Fig. 21: Jade “se distraindo” com os papéis, com o tablet e com as tintas ...................................... 90 Fig. 22: Jade pintando as unhas da Heloisa, e Liana pinta a si mesma ............................................ 90 Fig. 23: Railidia e Jade pintando o braço da Denise e da Heloisa ................................................... 90 Fig. 24: Jade pintando o braço da Heloisa; Giovane fazendo os registros sobre a cabeça de Alessandra e Railidia; e Giovane pintando meu braço ..................................................................... 91 Fig. 25: Mandi'o nhemondoro, a “brincadeira da mandioca” .......................................................... 94 Fig. 26: Jogo Akuxi ojere ................................................................................................................. 95 Fig. 27: As quatro Giovan(n)as do Tico-tico cantando enquanto eu escrevo este trabalho. Desenho da Giovana D. ................................................................................................................................... 96

Fig. 28: Elias e Iara acompanhando o trabalho feito com o Tico-tico usando as canções que nos ensinaram .......................................................................................................................................... 99 Fig. 29: Esquema demonstrando o movimento entre culturas. Transculturalidade ....................... 101 Fig. 30: Diagrama da “Prática significativa”.................................................................................. 107 Fig. 31: Impressões e dúvidas sobre os Guarani e sobre a visita à aldeia Tenondé Porã .............. 109 Fig. 32: Impressões e dúvidas sobre os Guarani e sobre a visita à aldeia Tenondé Porã .............. 109 Fig. 33: Impressões e dúvidas sobre os Guarani e sobre a visita à aldeia Tenondé Porã ............... 110 Fig. 34: Impressões e dúvidas sobre os Guarani e sobre a visita à aldeia Tenondé Porã .............. 110 Fig. 35: Desenhos do João sobre suas impressões quanto à visita ainda não feita à aldeia .......... 111 Fig. 36: Um dos exemplos de diários de campo usados com as crianças: “Anotações de Luis Saia, amigo e companheiro de Mário de Andrade, durante as ‘Missões de Recolhimento de Material Folclórico’” ..................................................................................................................................... 112 Fig. 37: Capas dos diários de campo de Thaís e João Henrique .................................................... 112 Fig. 38: Capa do diário de campo do Rafael .................................................................................. 113 Fig. 39: Exemplo de registro feito no diário de campo da Sabrina a partir de uma foto feita por ela: “A pequena Giselda Rete’i na opy” ................................................................................................ 113 Fig. 40: Oficina de língua Guarani com Nicolas Salaberry e anotações das crianças ................... 114 Fig. 41: Diário de campo da Giovanna B. Descrição da aula de língua guarani ........................... 114 Fig. 42: Diário de campo do Rafael. Descrição da aula de língua guarani .....................................115 Fig. 43: Diário de campo da Giullia. Descrição da aula de língua guarani .................................... 115 Fig. 44: Painel contendo todas as línguas indígenas faladas no Brasil .......................................... 118 Fig. 45: Oficina de instrumentos indígenas com Pedro Paulo Salles ............................................. 119 Fig. 46: Oficina de instrumentos indígenas com Pedro Paulo Salles ............................................. 119 Fig. 47: Diário de campo da Giovanna B. e do João Pedro ........................................................... 120 Fig. 48: Sofia apresentando os desenhos que fez sobre a oficina de instrumentos indígenas ........ 121 Fig. 49: Diário de campo da Giovanna P. Registro sobre a oficina de instrumentos indígenas .... 121 Fig. 50: No caminho para a aldeia. Desenho da Giovana D. ......................................................... 124 Fig. 51: No caminho para a aldeia. Desenho do João Pedro .......................................................... 124 Fig. 52: Camila Yva, Catharina, Daisy e Giovane ......................................................................... 130 Fig. 53: Uma das crianças guarani carregando um pacote de doação ............................................ 130 Fig. 54: Distribuição das doações .................................................................................................. 131 Fig. 55: Os dois grupos cantando juntos Kyrĩgue’i peju jajerojy na opy ....................................... 134 Fig. 56: Diário de campo da Giovana D. sobre o encontro na opy ................................................ 134 Fig. 57: Sabrina registrando as crianças subindo na árvore ........................................................... 136

Fig. 58: Marilia Rete, Maisa Ara e Giselda Rete’i ......................................................................... 136 Fig. 59: Criança guarani bebendo água no arroio e João na árvore ............................................... 137 Fig. 60: Crianças indígenas e não indígenas fazendo a trilha ........................................................ 137 Fig. 61: Heloisa e Giselda; e crianças guarani e não indígenas brincando na árvore .................... 138 Fig. 62: Giovanna T. e Ana na árvore ............................................................................................ 138 Fig. 63: O grupo todo posa para foto após a trilha ......................................................................... 139 Fig. 64: Railidia entrega a folha de palmeira para que Giovanna T. faça seu voo ........................ 140 Fig. 65: Railidia e Catharina .......................................................................................................... 140 Fig. 66: Resultado do último voo de Catharina .............................................................................. 141 Fig. 67: Jade com a gaita e o petỹgua, e Alessandra fumando o petỹgua na opy .......................... 142 Fig. 68: Painel coletivo sobre a primeira visita à aldeia ................................................................ 143 Fig. 69: Painel coletivo sobre a primeira visita à aldeia ................................................................ 143 Fig. 70: Detalhes do painel coletivo sobre a primeira visita à aldeia ............................................. 144 Fig. 71: Detalhes do painel coletivo sobre a primeira visita à aldeia ............................................. 144 Fig. 72: Detalhes do painel coletivo sobre a primeira visita à aldeia ............................................. 145 Fig. 73: Texto assinado por Anderson: “nós somos Guarani”, e texto escrito por Alison Gabriel Jeguaka – ore ma mbya kuery ......................................................................................................... 151 Fig. 74: Painel coletivo feito pelas crianças indígenas sobre o encontro do dia 10 ....................... 151 Fig. 75: Painel de fotos com os dois grupos infantis montado pela Alessandra ............................ 152 Fig. 76: Elaboração do painel indígena coletivo sobre o dia 10 .................................................... 153 Fig. 77: Anderson e Catharina participando da elaboração do painel indígena ............................. 153 Fig. 78: Elaboração do painel indígena coletivo indígena sobre o dia 10 ...................................... 154 Fig. 79: Crianças pintando umas às outras ..................................................................................... 155 Fig. 80: Painel indígena .................................................................................................................. 155 Fig. 81: Elaine pintando meu rosto, e Railidia sendo pintada por mim ......................................... 155 Fig. 82: Railidia e Sabrina .............................................................................................................. 156 Fig. 83: Crianças conferem suas fotos no tablet, e Alessandra pinta meu braço ........................... 156 Fig. 84: Railidia pintando o rosto de Catharina ............................................................................. 156 Fig. 85: Fotos da Sabrina ............................................................................................................... 157 Fig. 86: Painel de registro elaborado pelos dois grupos ................................................................. 160 Fig. 87: Detalhe do painel feito por Alessandra; e Anderson e Sarah .......................................... 161 Fig. 88: Catharina e Alessandra em disputa; crianças empurrando a mim em direção à mangueira; Denise sendo atacada por Railidia; e Jade em ataque .................................................................... 161 Fig. 89: Detalhes do painel. Desenhos feitos pela Catharina e Denise .......................................... 162

Fig. 90: Detalhe do painel. Desenho feito por Elaine .................................................................... 162 Fig. 91: Desenhos feitos por mim e pela Railidia; e Railidia mostrando suas “armas de guerra” . 163 Fig. 92: Grupos se organizam para a brincadeira, e Elaine pega Sabrina desprevinida ................ 163 Fig. 93: Denise, Alessandra, Jade e Catharina posam para foto; e Gilmar Karai e João dividem a mangueira ....................................................................................................................................... 164 Fig. 94: Alessandra e Catharina, e Jade, Railidia e eu ................................................................... 164 Fig. 95: Jade Jaxuka faz tranças em Catharina, e Alessandra Yva brinca com Sarah ................... 164 Fig. 96: Liana e Catharina em troca de segredos, e Alessandra e Sabrina ..................................... 165 Fig. 97: Denise e Elaine, e registro da selfie de Alessandra e Sabrina .......................................... 165 Fig. 98: Selfie de Railidia e Catharina ............................................................................................ 165 Fig. 99: Aula de Educação Física na aldeia Krukutu ..................................................................... 170 Fig. 100: Garota guarani se dirigindo à beira do campo com os bambolês ................................... 170 Fig. 101: Garoto guarani brinca com bambolê e cachorro durante a aula de Educação Física ..... 170 Fig. 102: Grande ato de “Resistência Guarani” na Avenida Paulista em 02/10/2013 ................... 172 Fig. 103: Canto guarani abrindo a “Campanha de Resistência Guarani” em 17/09/2014 ............. 173 Fig. 104: Tadeu, três anos, filho de Tiago ...................................................................................... 174 Fig. 105: Meninos guarani aguardando o início da apresentação .................................................. 177 Fig. 106: Motivos criados na improvisação feita a partir da música “Apykaxu xiĩ’i oveve” .......... 182 Fig. 107. Neilson filmando os grupos cantando juntos no dia 10 ................................................. 187 Fig. 108: Encontro dos coros guarani e não indígena na USP ....................................................... 188 Fig. 109: Liana e Giovana D. em passeio pela aldeia, e desenho feito pela Giovanna D. em que estão ela, Liana e eu ........................................................................................................................ 190 Fig. 110: Giovana D. e Liana brincando de mandi'o nhemondoro. Foto e desenho ...................... 191 Fig. 111: Movimentação das crianças não indígenas nas redes sociais em relação a questões indígenas em geral .......................................................................................................................... 192 Fig. 112: Heloisa carregando criança guarani ................................................................................ 193

PEQUENA COLETÂNEA DE CANÇÕES GUARANI MBYA (lista de partituras)

Toke na mitã (I) (partitura 1) ............................................................................................... 46 Toke na mitã (II) (partitura 2) ............................................................................................. 49 Ero tori (partitura 3) ............................................................................................................ 53 Akuxi ojere (partitura 4) ...................................................................................................... 54 Akuxi ojere – em português (partitura 5) ............................................................................. 55 Oreru Nhamandu Tupã (partitura 6) ................................................................................... 56 Jaguata tape rupi (partitura 7) ............................................................................................ 58 Ore nhe’ẽ amba pygua (partitura 8) .................................................................................... 61 Kyrĩgue’i peju jajerojy (partitura 9) .................................................................................... 63 Pembopi (partitura 10) ........................................................................................................ 65 Pira’i (partitura 11) ............................................................................................................. 67 Aiko porãete (partitura 12) .................................................................................................. 69 Tadeu, Tadeu (I) (partitura 13) ............................................................................................ 73 Tadeu, Tadeu (II) (partitura 14) .......................................................................................... 74 A pombinha branca: composição coletiva a partir de Apykaxu xiĩ’i oveve (partitura 15) . 180 Arranjo de Oreru Nhamandu Tupã para coro infantil a 3 vozes e piano (anexo A) ......... 207 Arranjo de Jaguata tape rupi arranjo para coro infantil a 2 vozes e piano (com jogo de mão) (anexo B) .................................................................................................................. 212

QUADROS DE CANÇÕES

Quadro 1. Letra, tradução e guia de pronúncia de Toke na mitã (I) .................................. 47 Quadro 2. Letra, tradução e guia de pronúncia de Toke na mitã (II) ................................. 49 Quadro 3. Letra, tradução e guia de pronúncia de Ero Tori .............................................. 53 Quadro 4. Letra, tradução e guia de pronúncia de Akuxi ojere .......................................... 55 Quadro 5. Letra, tradução e guia de pronúncia de Oreru Nhamandu Tupã ...................... 57 Quadro 6. Letra, tradução e guia de pronúncia de Jaguata tape rupi ................................ 58 Quadro 7. Letra, tradução e guia de pronúncia de Ore nhe’ẽ amba pygua ....................... 62 Quadro 8. Letra, tradução e guia de pronúncia de Kirĩgue’i peju jajerojy ........................ 64 Quadro 9. Letra, tradução e guia de pronúncia de Kirĩgue’i peju jajerojy ........................ 64 Quadro 10. Letra, tradução e guia de pronúncia de Pembopi ............................................ 65 Quadro 11. Letra, tradução e guia de pronúncia de Pira’i ............................................... 67 Quadro 12. Letra, tradução e guia de pronúncia de Aiko porãete ...................................... 70 Quadro 13. Letra, tradução e guia de pronúncia de Tadeu, Tadeu .................................... 74

“Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio”. Deleuze e Guattari

INTRODUÇÃO

Nos trabalhos desenvolvidos na área de etnomusicologia, pouco se tem dedicado à música que as crianças indígenas fazem. Paralela e consequentemente, pouco se dedica também à criança indígena nos trabalhos antropológicos já realizados (Nunes, 2002). Em artigo escrito por Nunes (op. cit), a autora faz um levantamento bibliográfico sobre o lugar da criança indígena nos textos sobre sociedades indígenas brasileiras, chegando à conclusão de que não foi criado ainda, dentro da Etnologia Indígena Brasileira, “um espaço efetivo de discussão e reflexão sobre a criança” (idem, p. 275) e de que tal ausência pode provocar a perpetuação de opiniões equivocadas sobre a infância nestes grupos.

Por outro lado, Seeger (1980, p. 83) escreve sobre um aparente descaso com a música indígena, e a justificativa que o autor encontra para tal baseia-se no fato de esta música ainda ser considerada pelos pesquisadores como primitiva. Ainda que esta seja uma observação feita há mais de 30 anos, e ainda que, possivelmente, esta não seja mais a opinião da maioria dos antropólogos e etnomusicólogos, tal concepção parece ainda fazer parte do imaginário popular brasileiro (e provavelmente de outros países) – no qual boa parte dos educadores e educadores musicais se inclui – haja vista observações feitas a mim por pessoas das mais diversas formações sobre a pesquisa que me propus a realizar, bem como a pouca produção de material para uso escolar que contemple este repertório.

Além disso (e, provavelmente, por causa disso), pouco espaço se tem dedicado às canções indígenas em sala de aula (e não nos referimos àquelas estereotipadas cantadas na ocasião do Dia do Índio), trazendo consequências que podem influenciar tanto a formação musical da criança (na medida em que a inclusão de tais canções pode ampliar as ideias de música porque propõem novas sonoridades), quanto a formação integral do indivíduo no que se refere às competências humanas, tais como tolerância, alteridade, respeito etc., porque limita a exposição das crianças a novos arranjos culturais e sociais, que poderiam mover transformações importantes em cada uma delas.

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Do que foi dito acima, a principal questão desse trabalho é verificar de que maneira a exposição a outra cultura através da música afeta as relações e a formação infantis, baseando-se numa experiência musical, social e antropológica junto aos Guarani Mbya1. Dessa questão, chegamos, inevitavelmente, a outras mais, tais como: 1) Como são as relações infantis entre grupos culturais diferentes? 2) Quem são as crianças guarani Mbya da aldeia Tenondé Porã e como são suas músicas? 3) Quais são os (pré)conceitos em relação à música indígena e por que eles (ainda) existem? 4) Como abordar essas canções (e questões) em sala de aula? 5) Quais as conseqüências da inclusão de canções indígenas e de outras culturas em sala de aula e qual é o papel da educação musical neste sentido?

As respostas a estas perguntas são o motor deste trabalho. Sendo assim, foi proposto que dois grupos corais infantis, um guarani da aldeia Tenondé Porã conduzido pelo xeramoĩ

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Elias Vera e outro não indígena pertencente a um centro comunitário (ambos localizados na zona sul da cidade de São Paulo) compartilhassem experiências culturais, sociais e musicais através de encontros nos quais tais grupos não eram somente espectadores um do outro, mas interagiam entre si através da música, rearranjando-a e arranjando, inclusive, novas relações socioculturais.

Esses encontros eram o caminho para que fossem obtidas as respostas às cinco perguntas expostas acima. Para as perguntas de caráter etnográfico e etnomusicológico, o pesquisador não foi o único responsável pela recolha de dados e análises, mas as crianças (indígenas e não-indígenas) participantes da pesquisa se juntaram a ele nesta tarefa, trabalhando, neste caso, como co-pesquisadores. Esta proposta toma como base o reconhecimento da criança como sujeito social ativo (Cohn, 2009, p. 42), como “sujeito capaz de representar e significar suas experiências” (Begnami, 2010, p. 6); e considera a cultura como espaço dinâmico e dialético através do qual se estabelecem relações de trocas de significados

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Há, entre os Guarani que vivem no Brasil, uma divisão em Guarani Mbya, Guarani Ñandeva e Guarani Kaiowá e diferem entre si quanto à língua, quanto à religião, quanto à música etc. Neste trabalho, tratamos dos Guarani Mbya. Assim, quando houver referência aos Guarani, deve-se subentender “Guarani Mbya”. 2 Tradução literal: “meu avô”. No entanto, xeramoĩ é usado mais para designar os xamãs (Macedo, 2013, p. 190), sendo que o próprio Elias Vera traduzia o termo como “pajé”.

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geradas pelo movimento entre os grupos, bem como compreende as crianças mais como produtores de cultura do que reprodutores desta (Cohn, op. cit).

Quem melhor diria o que pensa uma criança do que ela mesma? Se é entendido que a crianças têm papel ativo na sociedade e que nela interferem, afetando-a através das relações que estabelecem com os adultos e com seus pares (Corsaro, 2011, p. 57), então, um trabalho cujo foco são as relações da criança com outra cultura – e mesmo com a sua – deverá, igualmente, compreender a criança como participante ativo do trabalho e não como objeto pesquisado. Neste sentido, acredita-se aqui que, a partir do que for dito pela criança sobre o que ela viu, compreendeu e vivenciou ao se relacionar com o outro, diferente de si, é que se poderão sugerir aos educadores novas possibilidades de trabalho em educação (não somente educação musical) mais próximas às crianças (e, por isso, mais significativas), porque elas terão sido ouvidas.

Deste modo, o foco deste trabalho é trilhar por caminhos no campo da Educação Musical cuja paisagem, porém, apresenta-nos a Etnomusicologia e Etnologia guarani Mbya e, inevitavelmente, faz-nos esbarrar em algumas questões antropológicas e sociológicas nas quais não nos aprofundaremos, mas que trarão à luz questões que podem contribuir para a escolha de abordagens de canções de outros povos e culturas em sala de aula.

Quanto à metodologia, ainda que esta seja discutida mais detalhadamente durante o trabalho, vale assinalar que esta pesquisa é de caráter etnográfico com observação participativa em razão do trabalho de campo realizado durante todo o período do trabalho, seja com as crianças e adultos indígenas, seja com as crianças não indígenas. As visitas à aldeia foram realizadas tanto pelo pesquisador adulto quanto pelas crianças não indígenas participantes da pesquisa a cada vinte dias, aproximadamente. As crianças eram divididas em pequenos grupos para estas visitas, algumas delas eram realizadas com o grupo todo (sempre com a presença do pesquisador adulto). As ferramentas das quais nos valemos são a observação participativa, entrevistas abertas e semi-estruturadas e a art-based research, isto é, a “pesquisa baseada na arte”. Este último foi um dos principais instrumentos deste trabalho e consistia em explorar os acontecimentos servindo-se de recursos artísticos tais 3

como painéis, vídeos, fotos, desenhos, músicas etc. Estes materiais, que serão apresentados durante o trabalho, eram ricas fontes de informação e análise para o pesquisador adulto e meios facilitadores do trabalho com as crianças.

Enfim, pretendeu-se investigar, principalmente, de que maneira as experiências compartilhadas entre dois grupos infantis de culturas diferentes poderiam contribuir para uma formação musical e social orientada pela consciência da alteridade. Assim, experimentar outra cultura a partir e através da música possibilitaria que se verificasse a hipótese de que tais relações poderiam contribuir positivamente para a formação da criança de maneira global. Desse modo, apresenta-se aqui a maneira como o trabalho com as crianças não indígenas foi construído, da maneira mais fiel possível a fim de que seja analisado o caminho percorrido e discutidas estas, outras e novas possibilidades de trabalho com outros grupos.

Dito isso, apresentamos o trabalho dividido em quatro capítulos, de modo que no primeiro são levantadas as razões pelas quais se defende a inclusão de músicas de diferentes povos e culturas na educação musical, passando pelas questões referentes não somente à formação musical da criança, mas também social e cultural no que diz respeito a valores como tolerância, respeito e alteridade. Já na parte seguinte do mesmo capítulo, busca-se apontar apontamos as dificuldades em incluir músicas indígenas no repertório escolar e os motivos (aparentes) porque tais músicas parecem ser desconsideradas pela sociedade e pelas comunidades escolares. O segundo capítulo, intitulado “Pequena coletânea de canções guarani Mbya”, reúne as canções recolhidas durante o trabalho de campo feito em 2013 e 2014, cujas transcrições buscam favorecer e facilitar o trabalho deste repertório em sala de aula. Neste sentido, disponibilizamos não somente a partitura dessas canções, mas incluímos a tradução, pequenas notas contextualizando a canção e um guia de pronúncia. Vale mencionar que foram as crianças guarani desta aldeia meus principais informantes e que o grupo de crianças não indígenas recolheu algumas dessas canções junto comigo.

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Já no capítulo seguinte, são descritos, narrados, os encontros musicais e não musicais entre os grupos infantis não indígena e indígena, as experiências que essas crianças compartilharam, as relações feitas e os laços estabelecidos. Todos estes aspectos são simultaneamente analisados na medida em que são descritos, e são igualmente apresentados como sugestão de abordagem para com outros grupos escolares ou não escolares. Desse modo, percorremos um caminho que parte da exposição da metodologia de trabalho, que discute brevemente as relações entre educação musical e transculturalidade, que apresenta os trabalhos de sensibilização desenvolvidos com as crianças não indígenas por meio de oficinas e discussões e, em seguida, do trabalho de campo com estas crianças; e que se encerra com algumas propostas de trabalho em educação musical (incluindo dois arranjos de canções guarani para coro infantil, disponíveis no Anexo da dissertação). O último capítulo – “Coletânea de pequenas histórias: resultados” – consiste nos resultados e nas análises finais de todo o trabalho, ilustrados com pequenos fatos ocorridos durante a pesquisa, os quais, por sua vez, revelam pela voz das próprias crianças a possibilidade de convivência entre muitos Eus e muitos Outros que, em contato uns com os outros, se transformam em outros Outros e em outros Eus.

Ainda que aqui seja o espaço dedicado à introdução do trabalho, cabe, acredito, adiantar que, provavelmente, será visto nas linhas seguintes mais de mim do que aquilo a que me propus estudar. Enquanto esperava poder revelar quem eram as crianças guarani, quem eram as crianças do coro que conduzia e como estes grupos se relacionariam, acabei por me revelar a mim mesma (e será agora revelado a outros). Em outras palavras, parafraseando Blacking (1977, prefácio), não importa o quanto eu tenha buscado por objetividade, ou o quanto eu tenha tentado analisar somente o ponto de vista daqueles a quem pesquisava, esta pesquisa revelou mais sobre mim, sobre a sociedade em que vivo e sobre meu mundo do que a sociedade que pretendia investigar. Espero não ter desapontado o leitor contando o final da história na introdução, e sim despertado a vontade de verificar como tudo aconteceu, mesmo porque as crianças são hábeis surpreendedoras.

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Notas sobre a grafia da língua Guarani, sobre as crianças não indígenas participantes da pesquisa e sobre os direitos autorais das canções:

O dicionário Mbya-Português de Robert Dooley (1998) é a referência gráfica usada neste trabalho para as palavras em guarani. Com exceção dos nomes próprios e de lugares, estas estão grafadas em itálico. Quando convir, os nomes próprios serão apresentados em português seguidos do respectivo nome guarani, de modo que o leitor possa distinguir as crianças não indígenas das crianças Guarani.

Quanto às crianças não indígenas, é relevante considerar que esta pesquisa foi desenvolvida durante dois anos e meio. Assim, cada criança começou o trabalho com determinada idade e terminou dois anos mais velha. Isto também é válido para as crianças guarani, tendo uma delas se casado e dado à luz um filho neste período. Desse modo, divulgo neste espaço a idade de cada criança não indígena no início da pesquisa para que sejam feitas as associações em relação às falas e produções de cada uma delas considerando este detalhe, lembrando que pode haver uma variação de dois anos para cima em função do tempo do trabalho em campo: Ana Luisa, 10; Catharina, 10; Fernanda, 11; Gabriela, 11; Giovana D., 5; Giovanna B., 9; Giovanna P, 11; Giovanna T., 10; Giullia, 11; Heloisa, 15; João Pedro, 8; Julia, 10; Pedro A., 11; Pedro S., 12; Rafael, 11; Sabrina, 11; Sarah, 9; Sofia, 9; e Thais, 11.

Já as canções guarani aqui registradas têm todos os direitos autorais reservados aos Guarani da aldeia Tenondé Porã (SP), representados pela sua liderança, não sendo, portanto, autorizadas a reprodução e gravação deste repertório para fins comerciais sem a autorização expressa deste grupo.

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I

Músicas de diferentes povos e culturas na educação musical

O filho – É sempre a mesma história. Quando não podemos dizer que a vizinhança com os árabes é má, porque eles são sujos, porque eles cheiram mal, porque fazem muito barulho, porque há sempre muita gente nas casas deles, mesmo quando não podem dizer tudo isso, inventam outra coisa, encontram sempre algo... A filha – Então nós também podemos dizer outro tanto deles. No fundo, eu acho, estou mesmo certa de que eles são mais sujos do que nós. Passada a maquiagem... [...]. [...] O filho – O que eles chamam de barulho, todos os companheiros dizem, não é propriamente barulho, decibéis, mas é a canção árabe de que eles não gostam, que eles não compreendem, que os incomoda. [...] É isso que causa barulho. Na realidade, se formos comparar, todas as canções de “rock” são muito mais barulhentas que as canções árabes. A filha – É a mesma coisa com os odores também. Eu li no jornal, quando houve... aquele caso [...] dos odores e salsichas apimentadas. O jornal disse: “os franceses gostam muito de comer cuscuz e salsicha apimentada. Mas quando não é para eles, o odor da cozinha árabe é insuportável!” (Bourdieu, 2012, p. 40 e 41).

Na entrevista feita com uma família árabe residente na França e vizinha de uma senhora francesa citada acima, é possível perceber como posturas de intolerância entre diferentes culturas são capazes de desestabilizar as relações humanas e como a busca pela afirmação de seu povo, através do simples ato de viver como se acredita, pode gerar desconforto aos que não pertencem a este mesmo grupo.

Qual é, então, o papel da educação no sentido de preservar e garantir diferentes modos de viver e de perceber o mundo? E a educação musical? Os Parâmetros Curriculares Nacionais respondem ao defender o respeito às diferenças como postura a ser ensinada (1997, p. 30) e o acesso aos recursos culturais como meio de promover o exercício da cidadania através do respeito e tolerância à diversidade cultural de nosso país e de outros (idem, p. 8). Paralelamente, “a música na escola tem a obrigação de contemplar o Brasil, 7

essa variedade. Temos que aproveitar esse momento3 para levar o Brasil para dentro da escola” (Silva apud Jordão, et. al, 2012, p. 159). Contudo, preocupa-nos o fato de a escola, enquanto sistema de ensino, reproduzir um saber hegemônico que desfavorece as culturas das minorias e que, consequentemente, contribui para uma dominação cultural e social. Paralelamente, também predomina na maioria dos currículos de educação musical um único tipo de saber musical, dificultando ou anulando outras e múltiplas possibilidades musicais sejam estas nacionais ou de outros povos. A música, entendida como produto e produtora da cultura de um povo, traz consigo diversos e diferentes elementos que são em si recursos que poderão enriquecer tanto as aulas de música quanto o próprio repertório individual em construção do aluno, justamente porque tratam de um saber pouco difundido, estimulado e valorizado (às vezes porque é desconhecido, às vezes porque tem-se a intenção de que permaneça desconhecido).

Acreditamos que um dos saberes menos difundidos é aquele relacionado às culturas indígenas e toda a bagagem de questões que elas trazem. Desse modo, nesta parte do trabalho, percorreremos um caminho que se inicia na razão pela qual acreditamos na importância da inclusão de músicas de outros povos e culturas nas aulas de música e depois encerramos com questões sobre a música indígena, especificamente, em sala de aula.

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O momento ao qual a educadora se refere trata da Lei nº 11.769, de 18 de Agosto de 2008, que diz que a música deverá ser conteúdo obrigatório no currículo escolar.

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I.1. A inclusão de músicas de diferentes povos e culturas nas aulas de música “Em primeiro lugar, a preocupação da educação é com o homem na integralidade de sua condição histórica. [...] Em segundo lugar, e em consequência disso, seu conteúdo é a própria cultura humana em sua inteireza.” Vitor Paro4

Considerando experiências em sala de aula, pode-se afirmar que as crianças costumam ter muito prazer em cantar canções em outra língua, tocar músicas de outros povos e participar de jogos de outras culturas. Sabe-se que essa prática pode enriquecer e ampliar o repertório musical da criança e promove contato com outra cultura. Além disso, a possibilidade da criança se tornar um ouvinte adulto sem preconceitos é tanto maior quanto mais cedo for criado o hábito de ouvir músicas de gêneros diferentes (Almeida, 2009, p. 122). A fim de aprofundarmos a questão, é necessário que entendamos porquê.

O primeiro ponto desta discussão consiste na premissa de que a concepção de educação musical por parte do educador está totalmente relacionada à visão de música que ele tem. A música, para o educador musical, é sua ferramenta e objeto de trabalho e, dessa maneira, será escolhida a partir do uso que se fará dela. Se o professor de música, de instrumento ou regente coral compreende como música um determinado tipo ou uma forma específica de música, provavelmente, suas aulas se valerão desta música. Se, por exemplo, o educador entende que é preciso que as músicas caminhem para um centro tonal, é bastante provável que suas ferramentas operem neste sentido, isto é, é possível que as atividades de interpretação, de composição ou até mesmo de improvisação, sejam baseadas em um repertório tonal. Porém, o inverso também é válido: se o educador musical entende, por exemplo, que é possível fazer música usando diversos tipos de fonte sonora como matéria prima, é quase certo que o repertório usado em aula incorporará esta visão. Por outro lado, precisamos deixar claro, a maneira como o professor aborda tais questões tem poder tanto

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Paro, 2010, p. 26.

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de afastar o aluno da proposta, seja esta qual for, quanto o contrário, isto é, fazer com que a criança se envolva de tal modo que ela sinta prazer por fazer parte do trabalho.

É importante deixar esta questão bem clara porque, para que se incluam músicas de outras culturas nas atividades com as crianças (ou mesmo com alunos de outras faixas etárias), deve-se ter em mente que grande parte deste repertório poderá fugir dos padrões ocidentais e tonais (veremos a razão disso mais adiante) e, por isso, o educador tem que estar aberto a novas sonoridades e disposto a pesquisar e experimentar novas e diferentes fontes sonoras, sonoridades e músicas.

Este é um ponto delicado porque há ainda grande resistência por parte de professores de música, de escolas de música e mesmo de escolas regulares de incluir em seu currículo novas concepções de música – que já não são mais tão novas assim. Valoriza-se, ainda, um ou dois tipos de música que (pre)dominam sobre as demais, tomando-as como modelo e, consequentemente, como referência para novas composições.

A inclusão de canções de outras culturas em um repertório de aula provavelmente desestabilizará esta visão, rearranjando posições antes cristalizadas, por conta do confronto entre as músicas que são moldadas pelo ambiente e que fazem parte da memória musical – que, neste caso, é, normalmente, tonal – e as músicas que as crianças não estão acostumadas a ouvir – as músicas insólitas de Salles (2002, p. 101):

Essa audição interfere no imaginário e no corpo; como que retira a música dos estados já codificados para outros mais livres. O confronto da ordem com a aparente desordem sonora dispara reações ativas e criativas, na medida em que promove um rompimento de estrutura (1996, p. 54, grifo do autor).

Este rearranjo, causado pela desestabilização e confronto citados, possivelmente fará com que as crianças percebam que o conceito de música é muito mais amplo do que se pensa (e há, nas culturas não ocidentais, diversas provas disso). Uma pesquisa sobre determinado instrumento musical utilizado em determinada cultura já seria, por exemplo, um caminho neste sentido, pois pode permitir que o aluno compare e perceba diferentes fontes sonoras e 10

diferentes tipos de som e de música, possibilitando, inclusive, que sejam levantadas questões que permitam a reflexão sobre as diversas funções e usos da música pelo mundo. Para exemplificar, no Irã e no Azerbaijão é comum o uso de um instrumento musical chamado Tar (fig. 1), espécie de alaúde comprido feito de madeira e coberto com pele de cordeiro, usado, em princípio, para acalmar a mente e curar doenças; na China, encontramos o órgão de boca chinês – o Sheng (fig. 1) – datado do século XIV a.C., feito a partir de, pelo menos, dezessete tubos de metal ou madeira, usado tanto na música erudita quanto popular chinesa; e, como último exemplo5 (de uma lista enorme e, possivelmente, infinita), o Kamanchec (fig. 2), que é um misto de violino e rabeca pequeno, de “pescoço comprido”, corpo redondo feito de madeira e coberto por pele animal, com referências que datam do início do século XII a.C. e muito usado no mugham – um tipo de música improvisada islâmica. Já no Brasil, por exemplo, um dos instrumentos usados pelos índios Gavião Ikolen de Rondônia é o arco de boca Iridinam (fig. 3) – instrumento de namoro, tocado exclusivamente pelas mulheres para expressar seus sentimentos amorosos. O Iridinam é formado por dois arcos, sendo que, enquanto um se apóia na abertura da boca para amplificação, o outro serve para friccionar a corda do primeiro e acionar a vibração; os dedos indicador e anular da mão esquerda encostam-se à corda quando se quer mudar as notas e articular a melodia.

Fig. 1. Tar6, instrumento musical do Irã e Azerbaijão, à esquerda. Sheng7, instrumento musical chinês, à direita.

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Estes 3 exemplos aqui citados foram extraídos do site do The Silkroad Project: http://www.silkroadproject.org, acessado em 24/07/2013. 6 Imagem disponibilizada em http://www.toddgreen.com/strings-todd-green-music.asp, acessado em 06/10/2014.

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Fig. 2. Kamanchec8, instrumento musical persa.

Figura 3. Iridinam9, instrumento musical dos índios Gavião Ikolen.

Provavelmente, há alguém se questionando quanto à viabilidade de encontrar algum destes instrumentos para uso em aula e, realmente, não é fácil. Porém, há quase sempre a possibilidade de ouvir estes instrumentos se houver algum esforço de pesquisa. Além disso, na multiplicidade de tradições musicais incidentes no Brasil, é possível encontrar muitos instrumentos que viabilizam uma prática mais diversificada, musical e culturalmente falando. Há, por exemplo, dentre os instrumentos de origem africana, uma quantidade

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Imagem disponibilizada em http://www.photographersdirect.com/buyers/stockphoto.asp?imageid=2765843, aceesado em 06/10/2014. 8 Imagem disponibilizada em http://www.texaspcc.org/Instruments.htm, acessado em 06/10/2014. 9 Imagem extraída do vídeo “O arco e a lira”, produzido pelo LISA – Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP. Vídeo disponível em http://vimeo.com/60457692, acessado em 06/10/2014.

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quase incontável destes, e se acrescentarmos a esta lista os instrumentos indígenas, imaginamos que, então, este quadro ficaria bastante rico. Cabe ao professor, enquanto eterno aprendiz, fazer busca deles e, por meio de pesquisa, mostrá-los às crianças (por meio de gravações, de vídeos ou, quem sabe, do próprio instrumento) e, a partir disso, promover práticas e diálogos.

A presença de todos esses instrumentos em aula amplia não somente o quadro de instrumentos musicais conhecidos pelas crianças, mas pode conduzi-las a novas construções sonoras e novas visões de música. Através da audição de músicas que fazem uso desses instrumentos, a criança pode perceber que há novas e diferentes possibilidades musicais, desfazendo-se a visão de que a única “música de verdade” é aquela de sua própria cultura ou de uma cultura considerada dominante – como, neste caso, a ocidental.

Todo repertório inserido na aula dialoga com o repertório que a criança traz consigo, e este último é todo elaborado culturalmente, ou seja, é construído a partir das experiências que o grupo cultural no qual ela está inserida compartilha. Assim, o nível de estranhamento a novas sonoridades é proporcional à idade da criança, isto é, quanto menor a idade da criança, menor será o estranhamento, exatamente porque elas foram menos expostas às experiências musicais dominantes. Mas isto não quer dizer que não seja mais possível fazer uso de outras possibilidades musicais nas aulas quando os alunos já são mais velhos. Pelo contrário, esta pode, ainda assim, ser uma atividade bastante proveitosa para o aluno (musical e culturalmente falando) dependendo da abordagem do assunto. Mais uma vez, o professor deverá ser o elo entre o conteúdo e o aluno, no sentido de que o educador precisa estar preparado quanto às questões referentes a este novo repertório e novas sonoridades, isto é, ele deve estar preparado tecnicamente, mas deve também estar preparado quanto às habilidades didáticas para abordagem do conteúdo, de modo que sejam despertos a reflexão, o interesse e a simpatia da criança em relação a este assunto.

Enfim, como já dito acima, quanto mais cedo a criança for exposta a músicas de outras culturas, menor é a chance dela se tornar um ouvinte preconceituoso (Almeida, 2009, p. 122), sim. No entanto, é possível dar um passo a mais ao sugerir que, independentemente 13

da idade, quanto mais as crianças forem expostas (considerando não somente o caráter quantitativo da exposição, mas, principalmente, o qualitativo) a músicas cujas culturas diferem da sua, também haverá maior probabilidade de se tornarem mais tolerantes a essas sonoridades ou, ainda, de as compreender e apreciar.

Para exemplificar o que foi exposto neste último parágrafo, segue abaixo uma conversa na qual acadêmicos expõem sua opinião sobre o trabalho de Nettl com música indígena americana: “Studying American Indian music!” says one amazed person. “I didn’t know the Indians even had music.” I try patiently explain. “Oh yes, I knew they had chants, but is that really music?” From an elderly gentleman: “I spent a year in Africa, heard a lot of singing and drumming but that isn’t music, is it? After all, they don’t write it down, maybe they make it up as they go along, they don’t really know what they are doing.” More explanation. A lady joins in the conversation: “A few days ago, I heard some ancient music from the Middle East which didn’t at all unpleasant. The commentator said it sounded good because, after all, it is from the cradle of our own civilization.” A young man has added himself. ‘but these sounds that the Chinese make with their instruments and voices, or the Indians chantes, how can you call them music? To me, they don’t sound like music. For example, they don’t have harmony.”And the old gentleman: “My teenage boys play the records all day, but hardly any of them sound like music to me10” (Nettl, 1983, p. 15).

Quanto ao trecho citado, temos algumas considerações que serão feitas após o relato seguinte: Robert Morey, em uma de suas pesquisas, investigava, em linhas gerais, a reação dos liberianos a partir da audição de músicas ocidentais no sentido de avaliar se essa música lhes causava algum tipo de emoção, como causava àqueles que pertenciam à

“Estudando música indígena americana!”, diz espantada uma pessoa. “Eu não sabia que os índios sequer tinham música”. Eu tento explicar pacientemente. “Oh, sim, eu sabia que eles tinham cantos, mas isso é realmente música?” De um senhor idoso: “Eu passei um ano na África, ouvi muitas canções e batuques, mas isso não é música, é? Além disso, eles não a escrevem, talvez o façam enquanto tocam, [mas] eles realmente não sabem o que estão fazendo”. Mais explicação. Uma senhora entra na conversa: “Há poucos dias, ouvi uma música antiga do Oriente Médio que até não era desagradável. O comentarista disse que soava bem, afinal, esta música vinha do berço da nossa civilização”. Um jovem acrescentou: “Mas esses sons que os chineses fazem com seus instrumentos e vozes, ou os cantos indígenas, como você pode chamá-los de música? Para mim, eles não soam como música. Por exemplo, eles não têm harmonia”. E o velho: “Meus filhos adolescentes tocam flauta-doce o dia todo, mas, dificilmente, isso soará como música para mim" (tradução nossa). 10

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sociedade ocidental da qual essa música era fruto. O resultado obtido foi que a “música ocidental não é reconhecida pelo grupo pesquisado como expressão das emoções” (Morey, 1940, apud Merriam, 1964, p. 11), já que tal música não poderia expressar emoções em ouvintes cujo treinamento musical e social diferia daquele do compositor da música utilizada.

A partir desta pesquisa, não nos parece estranho que aqueles com quem Nettl conversava não reconhecessem certos tipos de música como tal, da mesma forma que os liberianos da pesquisa de Morey não se manifestaram como se manifestariam aqueles que pertencem ao mesmo contexto onde a música utilizada na pesquisa foi produzida. É totalmente compreensível que as visões de música sejam diferentes entre si, afinal, são grupos que pertencem a contextos socioculturais igualmente diferentes. Durante a vida, por exemplo, por estarmos inseridos em um meio de falantes de uma língua específica, aprendemos a pronunciar as palavras desta língua usando certas combinações de sons, as quais, em alguns momentos, não chegam nem a ser percebidas por falantes de outra cultura/língua ou tampouco são reconhecidas como um som possível para uma palavra (Boas, 2004, p. 98100). Com os sons musicais acontece o mesmo. Assim como algumas variações sonoras de músicas de certas culturas não são percebidas por ouvintes de outra, algumas combinações sonoras só serão reconhecidas como música se tivermos sido expostos a esta cultura durante algum tempo.

Neste sentido, os sons, assim como as palavras, possuem significados que são elaborados culturalmente, formando um conjunto maior que, no caso das palavras, é a linguagem e, no caso dos sons, é a música. Assim, é totalmente aceitável que diferentes sociedades e grupos tenham mesmo visões diferentes do que é música e até que grupos de uma mesma sociedade, mas de tempos diferentes, também não compartilhem das mesmas ideias de música. Brito (2007), no primeiro capítulo de sua tese “Por uma educação musical do pensamento: novas estratégias de comunicação”, cartografa algumas ideias de música transcorrentes no tempo e aponta para uma diversidade em relação a essas ideias, concluindo que

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[...] “a música contém muitas músicas”, próprias a tempos e espaços diversos e singulares. Modos de pensar o sonoro, agenciando acontecimentos, variam de uma pessoa para outra, de cultura para cultura, de uma época a outra, de forma que o dinamismo dos processos de ação/cognição provoca também transformações contínuas no que se refere à interação dos seres humanos com sons e músicas. Coexistem possibilidades de produções/reflexões musicais, próprias a cada pessoa (mudando ao longo da vida) e a cada ambiente, o que confere singularidade ao sistema musical

(p. 33). A noção de que coexistem muitas ideias de música já bastaria como argumento defensor da existência das diversas possibilidades de música; no entanto, vale ressaltar aqui que, mais do que isso, o que irá atrair a atenção do homem para determinada música tem mais a ver com o que ela significa para ele como membro de um grupo cultural ou social em particular, do que com a qualidade desta em si (Blacking, 2000, p. 33); ou seja, as ideias de música, aquilo que se entende como música, estão mais relacionadas ao que aquele conjunto de sons significa para o ouvinte que a uma suposta qualidade, que também é elaborada culturalmente.

What is considered to be music or non-music sound determines the nature of music in any given society. If one group accepts the sound of the wind in the trees as music and another does not, or if one group accepts the croaking of frogs and the other denies it as music, it is evident that the concepts of what music is or is not must differ widely and must distinctively shape music sound11 (Merriam, 1964, p. 63).

Em outras palavras, a visão do que é música em determinada sociedade moldará o som musical de sua própria cultura e influenciará as possibilidades sonoras deste contexto. Portanto, se as culturas diferem entre si, sua música, assim como outros aspectos culturais, será também diferente. Se há diferentes culturas, haverá, logo, diferentes músicas, pois “diferentes comunidades terão diferentes ideias de como distinguir entre diversas formas de sons humanamente organizados [...]. A música de uma pessoa pode ser o ruído de outra” (Seeger, 2008, p. 239).

“O que é considerado música ou não-música determina a natureza da música de certa sociedade. Se um grupo aceita o som do vento nas árvores como música e o outro não, ou se um grupo aceita o coaxar dos sapos e o outro nega isso como música, é evidente que os conceitos do que é música ou do que não é diferem amplamente e devem distintamente moldar o som musical” (tradução nossa). 11

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Entretanto, ainda que haja diferentes concepções de música entre diferentes comunidades, a sala de aula, o ambiente escolar, são espaços que podem – e devem – tratar dessas diferenças, transformando posturas preconceituosas em possibilidades. Na conversa narrada acima por Nettl, podemos notar a postura etnocêntrica de seus participantes em relação àquilo que é diferente do que eles estão acostumados a ouvir. Na verdade, parece-nos que a questão não é tanto o que é costume ou não ouvir, mas, sim, a comparação feita entre música ocidental e música indígena americana tomando como referência de música a primeira e excluindo as outras desse quadro. Quando um deles diz “eles [os africanos] não a escrevem [sua música] [...], eles realmente não sabem o que estão fazendo”, fica evidente que, neste caso, as pessoas consideravam os seus costumes musicais – como o de escrever o que é tocado – como padrão do que é correto e musicalmente aceitável. É o que acontecia com a família árabe cuja entrevista foi descrita por Bourdieu (2012, p. 40 e 41) e citada no início deste capítulo: o que os franceses chamavam de barulho era a música árabe e não o volume em si, assim como o odor da salsicha não incomodaria os franceses desde que não fosse a salsicha da cozinha árabe; ou seja, a música árabe só era considerada como barulho pelos vizinhos franceses porque não era a música que estes ouviam; a salsicha só possuía cheiro desagradável porque não era a salsicha que os próprios franceses preparavam; enfim, considerava-se que os índios americanos não sabiam o que estavam fazendo porque não faziam sua música como nós fazemos, implicando os meios de produção musical a uma idealização do que deveria ser considerado música ou não, o que valida o discurso de Cantoni: [...] cada vez vemos com mais nitidez posturas culturais fechadas que tudo fazem para negar a validade de modo de viver de outros povos, ou mais discretamente pela afirmação demasiado enfática de seus próprios valores, ou mais agressivamente pela acusação de atraso e inaceitabilidade dos valores alheios (1972, apud Morais, 1989, p. 22).

Por outro lado, como se viu no exemplo sobre os liberianos, o etnocentrismo é característica de todo ser humano. Martuccelli (2010, p. 19), por exemplo, chama a atenção para o fato de que “toda sociedade fabrica estereótipos negativos das outras sociedades, ao mesmo tempo em que se autodesigna por um conjunto de imagens que valorizam a ela mesma” (o que aponta para uma relação bastante próxima – e dialética – entre o etnocentrismo e a formação de estereótipos) e continua dizendo que 17

En casi todos lados y tiempos, los prejuicios establecen en efecto uma división entre el endo-grupo valorizado y el exo-grupo rechazado. Desde milenios se trata incluso de una característica transhistórica de la experiencia humana – a saber, el rechazo cuasi universal del outro. Extraño principio de nuestra común humanidad12 (ibidem).

Lévi-Strauss (2000, p. 18) também tece alguns comentários sobre isso, argumentando que boa parte das populações chamadas primitivas se autodesignava por termos como “Os Homens”, “Os Bons”, “Os perfeitos” e se referiam a outros grupos como “maus”, “perversos” ou com designações pejorativas. Ainda para o mesmo autor (2012, p. 90), isso acontece porque é impresso no espírito humano, através do círculo familiar e social, desde nosso nascimento, um sistema complexo de referências, de impressões que nos formam culturalmente e, por esta razão, rejeitamos tudo o que se afasta deste sistema. “Cada cultura”, escreve ele, “[...] é por essência impotente para fazer um julgamento verdadeiro sobre outra cultura, já que uma cultura não pode se evadir de si mesma” (ibidem).

Porém, é vital ao ser humano buscar a superação dessa impotência, e um dos caminhos para que se compreenda a diversidade entre as sociedades e culturas humanas, no plural, é a disposição a ouvir o Outro e a se relacionar com ele. Esta atitude pode fazer com que posturas etnocêntricas (e que normalmente trazem consigo o preconceito, a intolerância, a pretensão, a arrogância e até a exclusão) – as quais julgam os diversos modos de ver o mundo e de estar e ser nele como inferiores e “não evoluídos” culturalmente simplesmente porque estes diferem dos seus próprios – sejam enfraquecidas.

Além disso, o exercício de perceber outra cultura permitirá que percebamos a nossa própria de um outro ponto de vista. Pode ser que nunca tenhamos reparado que, ao nos despedirmos de alguém, acenamos com a palma da mão aberta. Porém, na Grécia, é totalmente ofensivo fazer qualquer sinal que deixe as palmas das mãos à mostra. Saber que, em outro lugar, acena-se de outra maneira nos faz tomar consciência da maneira como “Em quase todos os lados e tempos, os preconceitos estabelecem, com efeito, uma divisão entre o endogrupo e o exogrupo rechaçado. Desde milênios, trata-se ainda de uma característica trans-histórica da experiência humana – a saber, o rechaço quase universal do outro. Estranho princípio de nossa humanidade comum” (tradução nossa). 12

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fazemos em nossa cultura e aguça nossa curiosidade em compreender porque usamos tal ou tal gesto, qual seu significado primeiro. Através do Outro, diferente de si, enxerga-se o Eu, isto é, o Eu é revelado através do Outro (Laplantine, 1996, p. 21); em contato com o Outro, damo-nos conta de nós mesmos, pois é o conhecimento de outros tipos de comportamento humano que nos dará uma visão mais livre de nossas próprias vidas (Boas, 1940, prefácio, p. v), ou, ainda, são “as lacunas entre mim e os que pensam diferente de mim – o que equivale a dizer todos os outros, e não apenas os segregados por diferenças de gerações, sexo, nacionalidade, seita e até raça – [que] definem as verdadeiras fronteiras do self” (Danto apud Geertz, 2001, p. 76); “[...] e é por isso que vale a pena estudar outros povos, porque toda compreensão de uma outra cultura é um experimento com nossa própria cultura” (Wagner, 2012, p. 61).

O mesmo acontece com o contato com músicas de outros povos. Parafraseando a citação acima, compreender outras ideias de música é um experimento com a nossa própria. Em contato com outra música, damos conta da nossa própria, como testemunha Blacking: Since my initial stay in the Sibasa disctrict, [...] and as a result of subsequent fieldwork in other parts of Africa, I have come to understand my own society more clearly and I have learned to appreciate my own music better13 (Blacking, 2000, p. 35).

Além disso, a música também é uma ferramenta importante de análise da cultura e da sociedade à qual pertence, porque revela seus valores básicos (Merriam, 1964, p. 15), ou seja, construída com sons culturalmente selecionados e organizados pelo homem, a música reflete (e refrata) a maneira como a sociedade se organiza: os valores da sociedade são impressos em sua música e expressos através dela. Isso significa que quando um aluno é exposto à música de outra cultura, ele é também exposto àquela cultura e aos valores que esta carrega consigo. Desse modo, manter uma postura de tolerância em relação a outras músicas pode levar o indivíduo a uma postura mais tolerante também a outras culturas. Isto é, tornar-se tolerante e respeitoso às diferenças musicais pode significar, ao final, tornar-se respeitoso às diferenças culturais e, portanto, humanas; além disso, o respeito e a tolerância “Desde o início de minha estada no distrito de Sibasa, [...], e como resultado do trabalho de campo subsequente em outros lugares da África, eu pude compreender mais claramente minha própria sociedade e eu aprendi a apreciar melhor minha própria música” (tradução nossa). 13

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implicam em alteridade, e esta, por sua vez, é o ponto chave para o desenvolvimento de um indivíduo capaz de conhecer, valorizar e admirar o singular de cada cultura e, em consequência, respeitar a pluralidade de todas elas. Oliveira Pinto, por exemplo, assegura que [...] ouvir e aprender a ouvir a sonoridade dos outros significa entendê-los melhor, da mesma forma que entender as sonoridades alheias vai fazer com que entendamos melhor o nosso meio ambiente sonoro também, reconhecendo e respeitando as alteridas (2001, p. 275).

Esta citação apresenta duas consequências da exposição a outras sonoridades: melhor compreensão do Outro por meio de sua música e melhor compreensão do próprio ambiente sonoro por meio do entendimento da sonoridade do Outro, como já demonstrado por Blacking anteriormente (2000, p. 35). No entanto, Oliveira Pinto acrescenta uma terceira conseqüência: “reconhecer e respeitar as alteridas”, o que pode ser entendido como “reconhecer e respeitar a diferença”, e que nos conduz ao objetivo maior da educação musical: o humano (Koellreutter, 1998, apud Brito, 2001, p. 42). Neste sentido, um trabalho que envolve outras ideias de música assim como músicas de outras culturas, no limite, permitirá à criança que reconheça e respeite as diferenças. Ainda que os educadores musicais trabalhem sempre considerando as possibilidades de contribuir positivamente para a formação musical e social da criança (e como é proposto aqui, inclusive), é válido lembrar que, quando concordamos que o humano, neste caso, a criança, é o objetivo da educação musical, alteramos o significado da palavra “formação”, no sentido de que o foco não deveria estar somente no que a criança se tornará quando adulta (se mais tolerante, se mais respeitosa etc.); isto é, o foco não deveria ser somente preparar a criança para seu futuro quando adulto, mas deveria ser principalmente a própria criança, o próprio humano; deveria considerar, antes de outra coisa, “suas contribuições para o presente” (Corsaro, 2011. p. 48), como indivíduo que afeta a sociedade, que a (re)elabora e a (re)constrói. Compreender que o objetivo da educação musical é o humano, não significa preocupar-se somente com o adulto que a criança será, como quem trabalha em função de algo ainda que está por vir, ou resumir o objetivo da educação à uma formação para o futuro; mas significa trabalhar para o presente, com a criança do presente e sua atuação numa sociedade do presente, de modo a alterar as relações com seus pares, com a sociedade, com a cultura e com a música. Desse modo, se o trabalho com canções de outros povos pode contribuir para o exercício da tolerância, que seja para ser exercida no 20

presente, com seus pares; e que o exercício futuro desta seja consequência – e não o foco – do que já se viveu. Tomando a educação como “meio mais eficaz de prevenir a intolerância” (Declaração dos Princípios sobre a Tolerância – Unesco, 1995, artigo 4, 4.1) e que, quando usada para este fim, “deve ser considerada como imperativo prioritário” (ibidem, artigo 4, 4.2), depreendese que a educação musical também pode – e deve – co-operar neste sentido. Assim, a meta de um trabalho que inclui canções de outros povos e culturas com as crianças é promover meios para que sejam capazes de reconhecer e respeitar outras ideias de música tanto quanto outras ideias de cultura e de indivíduo.

I.2. Música indígena na sala de aula Dentre as muitas músicas das muitas culturas pelo mundo e pelo país, escolhemos a música indígena, mais especificamente a música guarani, para abordar neste trabalho. Como um dos saberes que integram as músicas do Brasil e porque neles todos os outros se fazem dialeticamente, a música guarani tem papel relevante na continuidade, divulgação e transformação de sua cultura. Além disso, pode-se aliar o trabalho com repertórios indígenas a práticas em educação e educação musical que buscam inserir em seu currículo os saberes das minorias, desconstruindo a hegemonia daqueles (pre)dominantes.

Neste sentido, a etnomusicologia pode contribuir com a educação musical por meio da recolha de canções que compõem o repertório guarani, oferecendo aos professores material que possa ser usado em sala de aula com as crianças.

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I.2.1. O saber hegemônico e os outros saberes Às dificuldades próprias do diálogo entre grupos sociais culturalmente diversos para a apreensão plena dos sentidos atribuídos pelo Outro ao mundo [...], acresce-se a ‘certeza’ do saber hegemônico, tantas vezes autoritário, fruto do desconhecimento ou da desconsideração da multiplicidade e da riqueza de saberes e verdades que a diversidade contém e produz (Silva, 2001, p. 119, grifos meus).

A citação acima é o guia desta seção, pois provoca reflexões que elucidam alguns pontos quanto à (não) inclusão de músicas indígenas em sala de aula. A primeira delas se refere ao “saber hegemônico”. A palavra “certeza” colocada entre aspas representa que há um consenso por parte da sociedade quanto a um conhecimento universal e oficial, mas que, para Silva, não é verdadeiro, e, neste trabalho, esta “certeza” é também considerada equivocada. Equivocada porque o entendimento de um saber hegemônico desconsidera, ou melhor, invalida todos os outros saberes que compõem as diversas culturas. Assim como não há uma única cultura, também não há um único saber. Os saberes são também diferentes e têm valores diferentes para cada grupo cultural, já que são construídos a partir das e nas diferentes culturas, às quais estes saberes e grupos pertencem. Deste modo, não há saberes homogêneos. Há, sim, saberes heterogêneos e igualmente válidos, a depender de seu contexto. Mas, infelizmente, a “certeza” do saber hegemônico é um fato, um fato autoritário, diga-se. O adjetivo “autoritário” foi levantado aqui por algumas razões. A primeira consiste no fato de parecer haver, em relação a essa hegemonia, uma postura de dominação de determinado grupo cultural – que carrega consigo seus próprios valores – sobre aqueles grupos que não compartilham e valorizam os mesmos saberes. Essa postura pode ser consciente ou inconsciente. Se inconsciente, damos como possível causa o etnocentrismo arraigado no ser humano. Se consciente, esta postura se parece mais com uma tentativa conveniente de perpetuação de poder de uma classe dominante; ou seja, de acordo com a tradição marxista, haveria, para Bourdieu (2010, p. 10-15) uma contribuição da cultura dominante para a integração real da classe dominante e uma integração fictícia da sociedade no seu conjunto cuja consequência seria a desmobilização das classes dominadas. 22

Sobre isso, é relevante que se faça uma consideração. Bourdieu (ibidem, p. 8) define a arte, a religião e a língua como sistemas simbólicos que, enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento, cumprem a função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação de uma classe sobre outra, contribuindo para uma “domesticação dos dominados14”, dominação esta feita por meio de uma violência simbólica. Em razão de a escola ser o espaço de apropriação das culturas (Paro, 2010, p. 23) – e estas nada mais são que os próprios sistemas simbólicos referidos por Bourdieu –, é que ela também é a principal instituição através da qual essas relações de força são mais facilmente legitimadas e perpetuadas – ou questionadas e descontruídas.

Embora sejam fatores distintos, ambas as posturas (conscientes ou não), pode-se dizer, têm a capacidade de desempoderar15 as minorias (minorias em todos os sentidos) e tal desempoderamento, além de ser a causa de alguma dominação, é, também, motor para esta, criando um círculo do qual as minorias não conseguem sair, como se tivessem mesmo sido domesticadas.

Mas há ainda outros círculos. Tanto a consciência quanto a inconsciência de dominação e de desempoderamento das minorias levam à desconsideração – também consciente ou não – de outros saberes cuja causa é, de acordo com Silva (op. cit), a própria hegemonia do saber. A outra causa, ainda para a autora, é o desconhecimento. Mas o desconhecimento pode ser também tanto o resultado quanto a razão da desconsideração mencionada acima. Temos, então, aqui, outro círculo. Além disso, é de se questionar como é possível que o desconhecimento tenha lugar nesta discussão se a escola é o espaço dedicado (ou deveria ser) à promoção de/dos outros saberes e de apropriação da cultura, não somente aqueles considerados superiores e únicos. Os Parâmetros Curriculares Nacionais afirmam, por exemplo, que

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Termo usado por Weber (Bourdieu, 2010, p. 11). O termo “desempoderar” é tratado aqui como antônimo de “empoderar”, entendendo este último como “um processo através do qual, grupos que têm sido excluídos e marginalizados por causas econômicas, sociais, políticas, de gênero etc., buscam mudar essa situação e se incorporar na determinação do rumo que suas localidades, países, regiões e o mundo devem tomar. Por isso, as estratégias de empoderamento são caminhos para sociedades locais ou nacionais mais democráticas, via pela qual grupos, atores e setores mais excluídos entram nos processos onde se decide o rumo daquelas” (Villacorta e Rodriguez, 2002, p.48). 15

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[...] o grande desafio da escola é investir na superação da discriminação e dar a conhecer a riqueza representada pela diversidade etnocultural que compõe o patrimônio sociocultural brasileiro [...]. Neste sentido, a escola deve [deveria] ser o local de diálogo, de aprender a conviver, vivenciando a própria cultura e respeitando as diferentes formas de expressão cultural (1997, p. 27, grifo meu).

O resumo disso tudo é que “desconsideração” e “desconhecimento” de outros saberes perpetuam o saber hegemônico que, por sua vez, perpetua o desempoderamento das minorias. E o contrário também é verdade, chegando, assim, ao último círculo do qual não é possível sair: o desempoderamento das minorias faz com que sejam perpetuados os saberes hegemônicos e estes, por sua vez, alimentam a desconsideração e desconhecimento dos outros saberes.

Entre os saberes humanos está também o saber musical, e, de igual forma, é diverso porque também compõe o quadro das expressões culturais que, mais uma vez, são também diversas. Porém, assim como ocorre com outros saberes, pode-se verificar uma tendência por parte de escolas de música, conservatórios e escolas regulares, a propor e promover um saber musical hegemônico, desconsiderando e desvalorizando os outros. O resultado disso só pode ser o desconhecimento destes outros e o inevitável preconceito em relação a eles.

A alternativa encontrada para o rompimento deste ciclo tem a ver, acreditamos, com os conceitos de educação maior e educação menor propostos por Gallo16 (2003, apud Brito, 2007, p. 6-7), em que a educação maior seria aquela que é instituída pela maioria, construindo e privilegiando padrões, enquanto a educação menor se daria em oposição e como resistência a esta última, isto é, uma educação “comprometida com a singularização” (ibidem). Assim, nesta linha de raciocínio, pode-se relacionar o “saber hegemônico” referido na citação de Silva (acima) à educação maior sugerida por Gallo, porque 1) é instituído pelas maiorias; 2) desconsidera e invalida outros saberes, os saberes das minorias, os saberes menores; e 3) tende, de alguma forma, a perpetuar estes saberes, o que implica, portanto na exclusão de determinados saberes e, em consequência disso, na exclusão das culturas nas quais tais saberes foram construídos. 16

Gallo, de acordo com Brito (2007: 6-7), sugere estes conceitos baseado no conceito de literatura menor criado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari.

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Se é proposto, então, que sejam promovidos outros saberes, neste caso musicais, a educação musical pode favorecer esta medida dando espaço em seu currículo para os saberes musicais menores, para as músicas dos povos indígenas, não somente por serem parte de nossa cultura, mas porque evocam a heterogeneidade e pluralidade, dadas a dinamicidade e mutabilidade implicadas no fluxo das culturas.

I.2.2. Interlocuções entre a Etnomusicologia e a Educação Musical O descaso com a música indígena por parte de pesquisadores é assunto abordado por Seeger em “Os índios e nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras” (1980). O motivo para tal descaso, de acordo com o autor, consistiria no fato de que alguns estudiosos evolucionistas relacionariam à música indígena uma ideia de primitivismo, e, por essa razão, estariam descartando-a de suas pesquisas. Disso decorre a breve produção de materiais didáticos dedicados à música indígena, pois, para que sejam disponibilizadas e divulgadas as canções indígenas para uso escolar é preciso, primeiramente, que seja feito um trabalho de recolhimento dessas canções. Sem este trabalho, não há como ter acesso a esse material por parte dos educadores musicais e outros educadores. Sendo assim, se há descaso para com o trabalho etnomusicológico nesta área, mais difícil será o acesso a essas canções. Desse modo, o que resta são as produções musicais sobre os índios, isto é, canções que falam de índios e não as suas próprias (as que são feitas por eles) e aquelas estereotipadas que fazem referência ao índio norteamericano ou as que não fazem referência a coisa alguma, que são meros simulacros estilizados, clichês genéricos.

Há ainda algumas dificuldades mais neste sentido. Uma delas se refere à quantidade de línguas indígenas no Brasil. Em 2002, Junqueira (2002, p. 65) registrou cerca de 170 línguas indígenas faladas no Brasil, e, dez anos depois, em 2012, dados oficiais17 declararam haver 274. Já o Instituto Socioambiental – ISA e a Unesco (através do atlas de línguas ameaçadas) reconhecem 15018 e 19019 línguas e dialetos indígenas falados hoje no 17

http://www.brasil.gov.br/governo/2012/08/brasil-tem-quase-900-mil-indios-de-305-etnias-e-274-idiomas, acessado em 08/04/2014. 18 http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/linguas/troncos-e-familias, acessado em 29/12/2014. 19 http://www.unesco.org/culture/languages-atlas/index.php, acessado em 29/12/2014.

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Brasil, respectivamente. Um dos critérios de classificação dos povos indígenas é o linguístico. Sendo assim, dentre 305 etnias (valendo-se dos dados fornecidos pelo governo), há, dentre estas, pelo menos, 150 que falam diferentes línguas, que podem ter diferentes crenças, diferentes costumes e, logo, diferentes músicas. Portanto, recolher canções indígenas que possam ou não ser usadas em aula com as crianças não significa simplesmente levar um gravador a uma aldeia indígena e fazer uma partitura disso. É preciso fazer um estudo prévio a fim de saber que língua é falada ali, qual é a relação dos membros daquela aldeia em particular com a música e com as canções, quais são as crenças e rituais envolvidos com determinado repertório, enfim, é necessário que se realize um trabalho etnomusicológico que não exclua as questões culturais de sua pesquisa e que permita o diálogo com a educação musical.

Além disso, em uma mesma etnia, as canções podem variar de aldeia para aldeia, ou mesmo entre os subgrupos étnicos ou clânicos. Para ilustrar, há, na cidade de São Paulo, de acordo com o site20 da Comissão Pró-Índio de São Paulo, 4 aldeias indígenas guarani Mbya: Tekoa Pyau e Tekoa Itu, na terra indígena do Jaraguá; e a Krukutu e Barragem na terra indígena Tenondé Porã (nesta última terra é que este trabalho foi realizado). Em todas essas, a língua predominante é o guarani Mbya. Mas, enquanto trabalhava recolhendo algumas canções da aldeia da Tenondé Porã (nome pelo qual a aldeia da Barragem é mais conhecida), pedi ao guarani Olivio Jekupe, morador da aldeia Krukutu, que me ajudasse com a letra de uma das canções. A resposta dele foi que não conhecia aquela música porque esta não era da sua aldeia e que as aldeias tinham, em seus repertórios, algumas canções diferentes. Isso acontece porque as canções, de acordo com a cultura guarani Mbya, são reveladas através de sonhos a diferentes pessoas, a depender do seu cumprimento às exigências feitas por Nhanderu, tais como restrições alimentares, abstinência sexual, e mesmo exigências de comportamento. Sendo assim, não há um compositor para determinada canção, mas há aquele a quem esta lhe foi revelada, e cabe àquele que a recebe apenas escutar a música como se ela já existisse em outro lugar (Montardo, 2009). A conversa abaixo com crianças da aldeia guarani Tenondé Porã ilustra bem:

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http://www.cpisp.org.br/indios/html/uf.aspx?ID=SP, acessado em 14/06/2015.

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– Quem é que inventa as músicas que vocês cantam? – pergunto. – Ninguém inventa – uma das crianças guarani responde. – Não? E como é que as músicas existem? – Eu não sei explicar... – É Nhanderu que... Outra criança me interrompe: – É Nhanderu que diz. – Como ele diz? No sonho? – É no sonho. Mas também às vezes é assim (a criança fecha o olho com a mão para ilustrar): Nhanderu fala a música para você e daí você sabe a música. Outra criança exemplifica: – O Tiago Vera Tataendy21 já fez assim. Ele ouvia a música que Nhanderu falava e ia assim, escrevendo... E eu vi. Tive outra conversa parecida com a anterior com Ueliton Tupã Mirĩ Ju, um dos filhos mais velhos do Elias Vera, xeramoῖ e cacique da aldeia: – Você já compôs alguma música? – pergunto a Ueliton, ao que ele me responde: – Não é a gente quem compõe. Nhanderu nos mostra nos sonhos. – Nhanderu já te mostrou alguma música? – Já, mas eu nunca lembro. – Nhanderu revela suas músicas a todo mundo? Às mulheres também ou só aos homens? – Às mulheres também. Depende da fé. – Eu posso sonhar com alguma música? – questiono. – Não sei. Não sei da sua fé. – E às crianças? Nhanderu mostra canções a elas? – Sim. Mas elas ainda não percebem.

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Tiago Vera Tataendy é um dos filhos adultos da família a qual essas crianças pertencem. Cabe também ressaltar que os Guarani recebem dois nomes: um em português e outro em guarani. O primeiro nome é dado pelos pais na ocasião do nascimento de seu filho; já o segundo é dado pelo pajé da aldeia em ritual específico – o nhemongarai.

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Para o professor, conhecer estas informações certamente interferirá positivamente na qualidade de suas aulas no sentido de enriquecer o conteúdo e contribuir para uma compreensão maior da cultura indígena através de suas canções. Por exemplo, com esta última explanação sobre o processo de composição das canções, desfaz-se a ideia de um índio genérico, com uma única língua, com um único modo de viver e com uma mesma música.

Desta maneira, ainda que haja algumas canções já recolhidas e transcritas em trabalhos acadêmicos (cito, por exemplo, o de Montardo [2009], que trata da música e cosmologia guarani), pode haver certa dificuldade por parte do professor no uso deste material em sala, justamente porque o foco não é o uso escolar. Para tanto, seria interessante que o educador tivesse acesso a gravações selecionadas e contextualizadas e também a trabalhos bibliográficos (preferencialmente acompanhados de CD e/ou partituras) de cunho escolar ou didático. Mesmo para uso exclusivamente musical, dirigido à performance (sem ser de âmbito educacional), tais informações seriam um importante implemento.

Dentre os trabalhos feitos nesta área e que podem ser usados em sala (ainda que o repertório de alguns não seja necessariamente dirigido às crianças) citamos alguns poucos, como os trabalhos bibliográficos de Almeida e Pucci (2003; 2014) e de Pietro e Pucci (2008); os discográficos de Marlui Miranda22 e de Milton Nascimento (álbum Txai, de 1991) e dos grupos Ponto de Partida & Meninos de Araçuai23, Manuí24, Mawaca25 e, inclusive, de grupos indígenas26. Porém, para este fim, seria necessário que o professor também tivesse acesso não somente à partitura e/ou à gravação da canção, mas a informações que contribuíssem para uma abordagem mais sensível e densa dessas canções,

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Fala de bicho, fala de gente (CD, 2014), 2ihu Kewere: Rezar (CD, 1997); Ihu, todos os sons (CD, 1995); Babel (com Grupo Pau Brasil, CD, 1996); Paitér Merewá (LP, 1994); Olho d'água (LP, 1979). 23 Coleção Presente de Vó. 4 volumes, 2013. 24 CD Nhemonguatá, 2012. 25 Rupestres Sonoros (2009), Pra todo canto (2004), Astrolábio.tucupira.com.brasil (2000). Discografia completa disponível em http://www.mawaca.com.br/albums/, acessado em 07/03/2014. 26 CDs Ñande Reko Arandu (2005), Nande Arangu Pygua – partes 1 e 2 (2004), todos da série “Memória Viva Guarani” e gravados por coros infantis guarani de diversas aldeias. Além disso, é possível encontrar outros trabalhos de diferentes etnias em http://casadasculturasindigenas.com/cd/html (acessado em 09/03/2014) e em http://www.iande.art.br/musica/musica1.htm (acessado em 02/06/2014).

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tais como um guia de pronúncia, tradução, informações quanto à língua e a etnia à qual a música pertence e ainda um texto contextualizando a canção.

Para fins de análise, tomaremos como exemplo a abordagem didática de algumas canções, sendo a primeira, uma das primeiras canções indígenas voltadas para uso escolar. Em um total de 96 canções distribuídas em dois volumes desta da coletânea que compunha o programa de música nas escolas brasileiras durante a Era Vargas – o Canto Orfeônico, elaborado por Villa-Lobos (1940, p. 69) – há, no primeiro volume, uma única canção indígena, dos índios pareci27 – Nozani-ná (fig. 4) – recolhida por Roquette Pinto e publicada em seu livro Rondônia (1938, p. 331) (fig. 5). Para que a canção pudesse ser usada em sala, Villa-Lobos faz algumas alterações, dentre as quais a primeira é a tonalidade. Enquanto a nota mais grave no registro de Roquette Pinto é o Dó3, no arranjo de Villa-Lobos é o Mib3, fazendo com que a região compreendida na nova tonalidade favorecesse a extensão das vozes infantis (que vai do Ré3, mais ou menos, até o Sol4).

Outra diferença consiste no deslocamento dos tempos (Roquette Pinto inicia a frase melódica no 2º tempo, enquanto Villa-Lobos o faz no 4º tempo), alterando, consequentemente, a acentuação das palavras. Além disso, tem-se a impressão (a julgar pela sinalização colocada em números romanos sobre a partitura) de que o compositor também propõe um cânone, em que a segunda voz entraria no último tempo do terceiro compasso e, no penúltimo compasso da música, as vozes se encontrariam de modo que a última palavra fosse cantada em uma única voz (vale ressaltar que a existência do cânone é somente uma hipótese, já que este em particular resulta em combinações harmônicas bem pouco usuais, soando como uma regulação forçada, cujo resultado musical dá margem a dúvidas). Porém, apesar de todas as alterações feitas, não há na partitura de Villa-Lobos informações adicionais quanto à tradução, pronúncia, nem texto explicando qual é o A designação correta desta etnia deve ser acrescida de “haliti” (designação original, que significa “gente”, “povo”; dessa maneira, ficaria pareci-haliti). O fato é que, além disso, até hoje não foi estabelecia e oficializada uma ortografia da língua pareci. Por essa razão, é comum encontrarmos discrepâncias até mesmo na designação da etnia. Conforme informação pessoal do pesquisador Pedro Paulo Salles, os linguistas nativos dessa etnia, em comum acordo com pesquisadores que lá estiveram realizando pesquisas linguísticas, têm adotado a escrita “paresí” (com “s”). Roquette Pinto, em seu livro Rondônia (1938), adota a escrita com “c” e com acento na última sílaba, enquanto que, nas partituras de Villa-Lobos, embora se adote o “c”, o acento ora aparece ora não. Diante disso, afim de não complicar e confundir o leitor, adotamos a escrita “pareci” (com “c” e sem acento), tendo em mente estas considerações. 27

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contexto da canção e assim por diante, prejudicando o uso da canção com as crianças e desfavorecendo práticas que visam ao trabalho contextualizado28.

Fig. 4. Nozani-ná conforme a escrita de Villa-Lobos no primeiro volume do Canto Orfeônico (1940).

28

Recentemente, o pesquisador Pedro Paulo Salles, meu orientador, esteve em trabalho de campo em aldeias pareci, visando justamente suprir esta lacuna. Aguardemos sua publicação.

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Fig. 5. Versão de Nozani-ná conforme recolhida por Roquete Pinto em 1912 e transcrita por Astolpho Tavares (Roquette-Pinto, 1938).

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Recorrendo ao livro Rondônia (Roquette Pinto, 1938), onde tal canção recolhida por Roquette foi registrada, não encontramos informações que a contextualizem, o que aponta para a dificuldade (mas não a impossibilidade) em utilizar, sem qualquer tipo de análise, repertórios publicados em trabalhos acadêmicos. Obviamente, escolher material para ser usado com crianças a partir destes trabalhos não é impossível, mas requer do professor habilidade e sensibilidade para arranjar a canção, se necessário; requer tempo e recursos disponíveis (tais como bibliotecas ou arquivos públicos digitais que contemplem, por exemplo, este tipo de material ao qual o educador possa ter acesso) para tal levantamento ou para complementar as informações.

No sentido de oferecer uma partitura/arranjo/versão de canções de outras culturas, apresentamos abaixo dois exemplos de abordagem, as quais julgamos adequadas. A primeira se refere àquela que a série Henry Leck29 Creating Artistry propõe para todas as canções de outras culturas e em outras línguas (e que seguimos no Capítulo II.3 – Pequena coletânea de canções guarani Mbya). A abordagem contém tradução, guia de pronúncia e um texto explicativo. O exemplo abaixo (fig. 6) é de um arranjo de uma canção portuguesa (Fragoso, 2013). Como o alvo principal da publicação americana são coros infantis americanos, o guia de pronúncia é dirigido a este público, vale observar. Outras publicações, por exemplo, quando pertinente, incluem descrição de danças ou movimentos correspondentes à canção.

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Henry Leck é professor associado e diretor das atividades corais na Butler University em Indianápolis, Indiana, EUA. É fundador e diretor artístico do Indianápolis Children’s Choir, especialista em técnicas para coro infantil e responsável pelas publicações da série Henry Leck Creating Artistry da Hal Leonard Corporation. Informações disponíveis em http://www.icchoir.org/site/PageServer?pagename=StaffBioHenryLeck, acessado em 10/03/2014.

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Fig. 6. Notas sobre a canção folclórica portuguesa Olaré (Fragoso, 2013).

Outro exemplo positivo que vale destacar consiste na proposta de abordagem da canção Koi Txangaré (fig. 7) feita por Almeida e Pucci em “Outras terras, outros sons” (2003). Para esta canção recolhida entre os índios Suruí, as autoras sugerem um arranjo vocal a três vozes e indicam algumas maneiras de trabalhá-lo, seja retirando uma das vozes, seja acrescentando instrumentos etc.; também, ao exporem a tradução da canção, discorrem sobre a necessidade de se realizar uma abordagem cuidadosa com as crianças por conta do texto se referir a um ritual antropofágico; por último, é apresentado um guia de pronúncia da canção (fig. 8).

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Fig. 7. Sugestão de arranjo da canção Koi Txangaré (Almeida e Pucci, 2003, p. 115)

Fig. 8. Guia de pronúncia da canção Koi Txangaré elaborado por Almeida e Pucci (2003, p. 121).

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A necessidade de produção de materiais adequados para uso escolar no que diz respeito ao trabalho com canções de outra cultura, tal como foi apontado acima, não destitui o professor do trabalho de pesquisa sobre qualquer que seja o conteúdo. No entanto, é preciso considerar o seguinte: 1) que, talvez – e, provavelmente –, a formação tanto acadêmica quanto escolar do educador não tenha incluído conteúdos e discussões sobre culturas indígenas; 2) a dificuldade de acesso a materiais que tratem de músicas e culturas indígenas nas diferentes regiões brasileiras; 3) pouca produção bibliográfica e fonográfica a esse respeito voltada ao uso didático. Enfim, são muitos os apontamentos, e estes são igualmente variáveis, a depender das experiências acadêmicas (e mesmo de experiências de vida) de cada professor, e, por isso, defende-se aqui que a formação do educador deveria contemplar tais questões e que as fontes de pesquisa deveriam ser de fácil acesso para todos os educadores, independente de sua formação e do lugar em que atuam.

I.2.3. Articulações entre identidade e alteridade por meio da música Em seu trabalho “¿Existen indivíduos en el Sur?30”, Martuccelli (2010) trata de uma “expulsão simbólica do outro” (p. 19), em que a América Latina, em vez de descoberta, foi, na verdade, inventada (Gorman, 1958, apud Martuccelli, 2010, p. 20). Neste sentido, podese dizer que o Brasil foi inventado por seus colonos. De acordo com Cunha (2009, p. 181), no início do século XVI, o Brasil passou despercebido aos olhares portugueses e, neste período, os índios eram vistos como gente selvagem, como “gente bestial e de pouco saber” (Caminha, [1500] 1968, p. 21). Porém, em 1549, quando se inicia o processo de colonização do país, entendeu-se que para tal era necessário que os índios fossem convertidos ao catolicismo e passassem por um processo de “civilização”, trazendo-os ao convívio “humano” (português) para que se tornassem “plenamente humanos”, pois só seriam capazes de formar sociedades pela via do Estado, reforçando, assim, a ideia de missão civilizadora por parte daqueles que já tinham alcançado este suposto estágio de desenvolvimento da civilização ocidental.

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“Existem indivíduos no Sul?”

35

Este período da história do Brasil pode ser correspondido à primeira grande fase do metarrelato do Outro proposto por Martuccelli (2010, p. 20-21), em que a inteligência europeia é quem fabrica os estereótipos através de um monopólio da palavra, estabelecendo, assim, os “conteúdos de alteridade” e se autodeclarando capaz, inclusive, de classificar o Outro de maneira radicalmente diferente, no sentido de que tal diferença está mais relacionada à subordinação do que à própria diferença, reconhecendo, portanto, os índios como “eles” e os europeus como “nós”. Tal atitude, ainda para o autor, converteu-se em fator decisivo da cultura ocidental (p. 21) e, ainda hoje, se faz visível em parte da sociedade. No âmbito musical, o “monopólio da palavra” à que se referiu Martuccelli é evidente quando as músicas indígenas são postas à margem do que se compreende como música: “música é o que ‘nós’ fazemos e não o que ‘eles, os índios’ fazem”. Como visto, a falta de interesse de alguns pesquisadores em relação à música indígena, tem como causa, indica Seeger (1980, p. 82), o fato de a música indígena ainda ser considerada primitiva por estes estudiosos. Infelizmente, a ideia de primitivismo em relação às questões indígenas (sejam estas políticas, sociais ou culturais) é bastante acentuada em alguns discursos até os dias de hoje. Na verdade, há, quase sempre, um dualismo que polariza os conceitos de “primitivo” e de “civilizado” em suas falas, isto é, tais adjetivos são, normalmente, considerados antônimos entre si, operados por uma escala de valores.

Em busca de uma definição para estes adjetivos, encontramos na rede virtual o seguinte: 1) Civilização: “estado de adiantamento cultural e social31”, “resultado dos progressos da humanidade em sua evolução social e intelectual, tornar civil, cortês, polido”32; 2) “Primitivo”: “que é o primeiro a existir; que precede; que tem a simplicidade33” e “que não sofreu evolução; que serve de base para a formação de outros; que não usa as convenções sociais de boa educação34”. Ainda que estas definições falem por si, vale reiterar a oposição entre as duas palavras encontrada já nas definições. Ambas tratam o termo “civilizado” com

31

http://www.dicio.com.br/civilizacao/, acessado em 09/01/2014. http://www.priberam.pt/dlpo/civiliza%C3%A7%C3%A3o, acessado em 09/01/2014. 33 http://www.dicio.com.br/primitivo/, acessado em 09/01/2014. 34 http://www.priberam.pt/dlpo/primitivos, acessado em 09/01/2014 32

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palavras como “adiantamento”, “progresso”, “evolução” e até “educado”. Já para “primitivo”, as palavras usadas são “simplicidade”, “não sofreu evolução” e “não usa [...] de boa educação” do que se apreende, trocando em miúdos, “rudimentar”, “estagnado” e “mal-educado”. Resumindo e simplificando, civilizado é o que não é primitivo, e primitivo é o que não é civilizado. E pior, civilizadas são somente aquelas sociedades que seguem o “evoluído” e “cortês” – para fazer uso das definições encontradas – modelo ocidental. Se este modelo não é seguido, só lhe resta o adjetivo “primitivo” ou “não-evoluído” ou até mesmo “mal-educado”. Ainda sem entrar no mérito de cada um desses dois conceitos, instala-se desde já uma escala de valor. Quanto ao termo “primitivo”, Lévi-Strauss (1981, p. 29) entende que seu uso é equivocado e prefere, no lugar deste, a expressão “povos sem escrita”, porque para ele, na época em que escreveu, este era o fator que distinguia estes povos dos povos do ocidente. No entanto, é evidente que muitos dos considerados “primitivos”, atualmente, já não são também mais povos sem escrita, como classificou Lévi-Strauss. Talvez, hoje, o fator de distinção seja a tradição oral, mas com escrita. Parece contraditório, mas entende-se que, na maioria dos casos, ainda que possuam sistema de escrita de alguma forma definido, estes povos ainda conservam o modo oral de aquisição de conhecimentos, isto é, aqueles que são transmitidos pelos mais velhos aos mais novos por meio da experiência. Este é o caso dos índios Guarani. Ainda que haja algum espaço de ensino sistematizado de conhecimentos externos (aqueles pertencentes ao mundo do branco), ou seja, as escolas indígenas, preserva-se (e tem-se a intenção disso) um formato informal/oral de aprendizagem e de educação obtido por meio das experiências vividas, do contato com os mais velhos e pela admiração que os mais novos têm por eles em razão da sabedoria que carregam e transmitem através das histórias que contam e que foram recebidas pelas divindades e antepassados: “Eu não sei. Pergunte ao meu pai. Ele é pajé. Ele sabe muitas histórias” (Alessandra Yva, criança guarani participante deste trabalho, falando sobre o lugar onde estavam os fantasmas da aldeia).

Contei a um amigo sobre a visita que meus alunos e eu fizemos a uma aldeia guarani em determinado dia. Ele ficou surpreso porque fomos e voltamos no mesmo dia, afinal, 37

argumentou, deveríamos ter levado dias, semanas até, já que, para ele, iríamos “ao Amazonas”. Diante disso, contei-lhe que havíamos ido a uma aldeia na cidade de São Paulo mesmo (cidade em que o grupo de alunos e eu moramos). Mais surpreso ainda, quando soube que havia uma aldeia indígena em São Paulo, indagou: “Mas os índios daqui [de São Paulo] são índios mesmo como os do Norte [como se índios de verdade fossem somente os do Norte] ou são mais civilizados como a gente?”. Perguntei-lhe o que era civilizado e a resposta veio em forma de pergunta, explicando a primeira: “Eles usam roupa assim como nós usamos? Têm casa?”.

Para este amigo, ser civilizado significava fazer o que nós, ocidentais, fazemos, usar o que usamos, falar como falamos. Os que não fazem isso, ou quando fazem de outra forma, são considerados primitivos, como os que precedem o homem, o “pré-homem”. Deste modo, todos os seus costumes e valores são também alocados no quadro dos “prés”: pré-história, pré-cultura, pré-música, pré-gente. Há ainda os que trocam o prefixo “pré” pelo prefixo “sem” como se fossem equivalentes: sem-história, sem-cultura, sem-fé, sem-lei, semmúsica, sem-alma. Outros logo decidem pelo uso do “não”: não-homem.

Norbert Elias, em seu livro O processo civilizador, sobre isso comenta: O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às idéias religiosas e aos costumes. Pode-se referir ao tipo de habitações ou à maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário ou ao modo como são preparados os alimentos. Rigorosamente falando, nada há que não possa ser feito de forma “civilizada” ou “incivilizada”. Daí ser sempre difícil sumariar em algumas palavras tudo a que se pode descrever como civilização. Mas se examinamos o que realmente constitui a função geral do conceito de civilização, e que qualidade comum leva todas essas várias atitudes e atividades humanas a serem descritas como civilizadas, partimos de uma descoberta muito simples: este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas “mais primitivas”. Com essa palavra, a sociedade ocidental procura descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o

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desenvolvimento de sua cultura científica ou visão do mundo, e muito mais. (Elias, 1994, p. 23, grifos do autor).

Pelo que Elias escreve acima, é possível perceber que o termo “civilizado” carrega carga razoavelmente etnocêntrica, pois trata o outro a partir de si (dado que, em sua origem, é um conceito ocidental usado para referir-se ao não ocidental), isto é, coloca o outro em um nível de onde ele possa ser olhado de cima e reflete a visão que o ocidental tem do outro que não é como ele. Ainda assim, a oposição entre “civilização” e “primitivismo” não é verdadeira, do mesmo modo como não é verdadeira a dedução de que “o civilizado não é primitivo e o primitivo não é civilizado”, pois, se primitivo é o que precede, houve precedentes para todas as culturas de hoje, não somente para o ocidental, civilizada. Por outro lado, se considerarmos a idade que tem este planeta e que as culturas não são estáticas e estão em constante transformação, todas as culturas de todos os povos de hoje possuem culturas que precederam a sua atual, sendo assim, primitivo é o que deu origem a cada cultura e cultura alguma é hoje como já foi outrora.

O que existe, enfim, é a dedução etnocêntrica de que há o civilizado/ocidental e há o não civilizado/ocidental. Infelizmente, tal dualismo (civilizado X primitivo) ainda sugere haver uma escala evolutiva em que o primitivismo é considerado ponto de partida e a civilização – ocidental – seria o ponto de chegada exatamente porque o conceito de “civilização” é um adjetivo ocidental criado para falar de si mesmo em relação ao outro. Os índios Guarani também possuem um termo para se referirem aos brancos, aos não indígenas: jurua35. Porém, ainda que ambos os termos sejam usados para afirmar as diferenças entre si, o uso da palavra “civilizado” estabelece uma posição de superioridade de cunho evolucionista (e por isso, é normalmente, contraposta a “primitivo” considerado inferior) em que os diferentes não são reconhecidos como iguais porque são considerados incompletos material, cultural e humanamente falando. Já o termo “jurua” aponta, sim, para as diferenças – afinal, elas existem e ainda bem que existem, uns dirão –, mas aponta para um outro “Eu”, diferente de si, mas que, ainda sim, é um “Eu”, isto é, é um igual ainda que 35

No Guarani paraguaio, a palavra juru’a significa “bigode” e também é usada para se referir ao branco.

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diferente. Disto temos que a diferença entre o civilizado e o índio guarani está na importância que o primeiro dá ao fazer e que o segundo dá ao ser.

Enfim, se as sociedades não evoluem em direção à civilização, sua cultura, igualmente, não evolui no sentido de alcançar a cultura do civilizado; e se as culturas não evoluem, tampouco evoluirá sua música. A música ocidental feita no século XVIII não será (e de fato não é) a mesma três séculos depois. Ela não será a mesma por se referirem a contextos histórico-sociais diferentes e não por conta de uma evolução musical (Blacking, 2000, p. 56). O que acontece, na verdade, é um (re)fazer musical construído ao mesmo tempo em que a cultura à qual esta música pertence se refaz. Esta é, assim, uma relação dialética na qual e através da qual cultura e música se fazem mútua e simultaneamente; isto é, enquanto produto de uma cultura (porque assimila seus valores e os expressa), a música também produz cultura na medida em que os indivíduos modificam sua própria cultura enquanto elaboram suas músicas. Enfim, os padrões musicais escolhidos são elaborados na cultura, através dela e para ela.

Porém, há ainda mais na citação de Seeger (1980) usada anteriormente. A razão, ainda, porque algumas pessoas veem a música indígena como primitiva, para o autor, dá-se em função de não compreenderem o que ouvem e, pelo fato de haver nas canções indígenas “sons que nem sempre são ‘fáceis’ de ouvir”. Para ele, [...] não é surpreendente que os músicos tenham preferido trabalhar com a música de musicistas de outras partes do mundo, nem que os antropólogos se tenham sentido mal equipados, que só tenham dedicado ao assunto observações marginais sobre letras de música e declarado com frequência que “a música é muito importante para os membros dessa sociedade”. Mas, por pouco surpreendente que seja, o descaso resultante é lamentável porque a música é, de fato, muito importante (ibidem, p. 83).

Como visto no capítulo anterior, a proposta de educação musical que inclui em seu programa canções de outros povos e culturas proporciona um espaço no qual a criança terá acesso a esses “sons que nem sempre são ‘fáceis’ de ouvir”, rearranjando o repertório sonoro interno mediante a exposição a estes novos sons, e num passo em que não causarão mais estranheza ao pequeno ouvinte. 40

Travassos escreve que “[...] a etnomusicologia nos ensina a desconfiar da universalidade daquilo que o senso comum ocidental chama de música há algum tempo” (2003, p. 79). Pensando, então, numa forma de trabalho que reúna etnomusicologia e a educação musical, não seria equivocado nem presunçoso incluir esta última na citação de Travassos, de modo que teríamos: a educação musical nos ensina (ou, ao menos, deveria nos ensinar) a desconfiar daquilo que o senso comum chama de música. E, ainda, continuando a paráfrase, as crianças poderiam exercitar continuamente a relativização dos hábitos de escuta e dos critérios de valoração em nome da necessidade de compreender outras escalas de valor, dessubstancializando a ideia de música.

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II

Pequena coletânea de canções guarani Mbya “When I asked for explanations, I was often told, ‘I don’t know. Why worry? It’s [only] a song!’” John Blacking36

Para que fosse desenvolvido um trabalho que incluísse canções indígenas no repertório do coro infantil não indígena que participou desta pesquisa, optou-se por recolher estas canções com as próprias crianças deste grupo e na própria aldeia (a aldeia guarani Tenondé Porã, na cidade de São Paulo). Algumas foram recolhidas por elas junto comigo, outras só por mim; algumas foram apresentadas a nós pelo coro guarani com quem estávamos trabalhando, outras foram apresentadas pelas crianças em situações diversas e menos formais, como em momentos de brincadeiras, conversas, passeios etc.

Quanto ao coro de crianças guarani, este não era somente composto por crianças, pelo menos não como costumamos definir “criança”. Seus componentes eram todos filhos (com seus cônjuges) e netos do xeramoĩ Elias Vera. Ouvi da Clarice Cohn, em certa palestra, que a infância para os Xikrin compreende uma faixa etária que não é fechada em extremos. De acordo com o que foi dito pela antropóloga na ocasião, as crianças Xikrin têm a idade que os adultos acham que elas têm, no sentido de que o que nós consideramos como um jovem adulto de 22 anos pode ser considerado uma criança para os Xikrin (a depender das habilidades que possui e dos rituais pelos quais já passou). O mesmo parecia acontecer com os filhos do Elias. Quando pedi a ele que chamasse a uma criança para me ensinar a primeira canção, ele chamou sua filha, Clarice Jaxuka, de 28 anos para fazê-lo. Assim, todos os filhos, genros, noras e netos que moram com ele fazem parte do coro pelo qual ele é responsável (mas do qual não participa). Isso acontecia também porque, ao que parece, o repertório feito pelos adultos (como entendemos e classificamos “adulto”) não era exclusivo deles, ainda que houvesse canções infantis (mas também não exclusivas das crianças). Isto é, pelo que pude observar, não havia repertório musical específico para adultos, sendo este compartilhado por todos, independentemente da idade. Blacking, 1995, p. 30. “Quando pedia explicações [sobre o significado de algumas canções], respondiamme com frequência ‘Eu não sei. Por que está preocupado com isso? São só canções!” (tradução nossa). 36

42

Na sequência do texto a seguir, apresentam-se as canções guarani Mbya recolhidas por mim e pelas crianças (guarani e não indígenas) na aldeia durante a pesquisa. A recolha destas tinha diversas finalidades: algumas eram coletadas para que fizessem parte do repertório do coro infantil participante da pesquisa e que fossem apresentadas em concertos do grupo37; outras faziam parte de alguma proposta didática cujos trabalhos e abordagens seriam expostos aqui38; e outras não seriam trabalhadas com as crianças participantes da pesquisa, mas integrariam esta seção a fim de enriquecer o repertório de canções para uso em sala de aula. Porém, vale lembrar que, em razão de o foco do registro dessas canções ser a possibilidade de usá-las em aula, o método de transcrição se baseou nesse eixo, no sentido de que se tentou deixar o mais acessível possível aos educadores que desejassem fazer uso deste repertório com seus alunos. Nesse sentido, vale ressaltar que a transcrição de qualquer canção de determinado grupo faz parte de um processo que, como decorre Mello (2005), também é cultural, e, por isso, o material transcrito está sempre permeado pela cultura musical de quem a transcreve, afinal “o ouvido musical é muito mais cultural do que biológico” (idem, p. 1425). Através da transcrição (ou seja, a partir de nossa cultura, a partir da cultura de quem a descreve/transcreve/escreve), (re)inventamos a música recolhida e mesmo sua cultura musical: O estudo ou representação de uma outra cultura não consiste numa mera “descrição” do objeto, do mesmo modo que uma pintura não meramente “descreve” aquilo que figura. Em ambos os casos há uma simbolização que está conectada com a intenção inicial do antropólogo ou do artista de representar o seu objeto. [...] O que o pesquisador de campo inventa, portanto, é seu próprio entendimento: as analogias que ele cria são extensões das suas próprias noções e daquelas de sua cultura, transformadas por suas experiências da situação de campo (Wagner, 2012, p. 58-59).

E mais, se é pretendido que estas canções estejam transcritas de modo que possam ser usadas em sala de aula, tendo como público alvo os educadores e educadores musicais, isto é, se a representação escrita das canções recolhidas na aldeia tem os educadores como 37

Anexos A e B. Trabalho exposto no Capítulo III – A criança indígena guarani Mbya e a criança não indígena: encontros musicais transculturais. 38

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interlocutores, o que se pretende comunicar aqui, através de tais transcrições, estará influenciado por este propósito, além de estar carregado das minhas experiências musicais e formadoras: Um antropólogo [ou um “etnomusicólogo, pode-se dizer] experiencia, de um modo ou de outro, seu objeto de estudo; ele o faz através do universo de seus próprios significados, e então se vale dessa experiência carregada de significados para comunicar uma compreensão aos membros de sua própria cultura. Ele só consegue comunicar essa compreensão se o seu relato fizer sentido nos termos de sua cultura (ibidem, p. 41, grifos do autor).

Dito isto, seguem abaixo onze canções guarani recolhidas durante o trabalho de campo feito na aldeia Tenondé Porã entre 2013 e 2015. Tentaremos, na medida do possível, contextualizar cada canção, disponibilizar a letra, a tradução e um guia de pronúncia, e a partitura de voz. Adiantamos abaixo algumas questões que serão úteis para a pronúncia da língua Guarani Mbya: 1. A maioria das palavras em guarani possui acento tônico na última sílaba, isto é, a sílaba da tônica é, em geral, a última. Quando não for a última, a sílaba tônica, normalmente, receberá acento agudo. No entanto, usaremos como modelo o guia de pronúncia da série Henry Leck Creating Artistry da Hal Leonard Corporation, em que a sílaba tônica é indicada por letras maiúsculas. Por exemplo, a pronúncia de “pyávy ara py” seria indicada como “py-Á-vy a-Rá PY”. Em alguns momentos, quando convir, serão indicadas as sílabas tônicas das frases e não necessariamente todas as sílabas tônicas de todas as palavras; 2. Em geral, a letra “E” tem som aberto, isto é, soa “É” em vez dez de “Ê”; 3. A letra “H” tem som de “R” como em “rato”, ou seja, é aspirada; 4. A letra “Ĩ” é bastante nasalada, quase como na última sílaba da palavra “mirim”; 5. A letra “J” tem som de “Dj” como na palavra “jazz”, do inglês. 6. A combinação “MB”, considerada consoante, pronuncia-se com o “M” mudo e o “B” soando, ou seja, articulando o primeiro e falando o segundo. 7. Todas as letras “R” têm som “rolado”, como na palavra “arara”, por exemplo; 8. A letra “V”, no dialeto Mbya da língua Guarani, é pronunciada bem de leve, soando como um intermediário entre o V e o U ditongo; 9. A letra “Y” (considerada vogal na língua guarani) tem um som cuja pronúncia não tem equivalente em português. Para execução, sugere-se que a boca esteja “em formato de “I” e seja feito som de “U”. E, a título de curiosidade, para contar às crianças, a letra “Y” é

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considerada como vogal, assim, as vogais na língua guarani são “A, E, I, O, U, Y”. Além disso, quando sozinha, a letra “Y” também é uma palavra cuja tradução é “água”; 10. A letra “X” tem som de “tch”, de modo que “xa, xe, xi, xo, xu” seriam “tcha, tché, tchi, tcho, tchu”.

Toke na mitã (Dorme, nenê – canção de ninar) As crianças guarani me mostraram essa canção por causa de um dos livros que o Anderson Tupã Mirĩ Ju39, um dos netos do Elias Vera, havia dado a mim. Este livro, “Ayvu Peteĩ” (“Primeiras Palavras”), publicado pela Funai (2011), é (ou era, não descobri) utilizado para a alfabetização na língua Guarani Mbya das crianças na escola da aldeia Tenondé Porã. Enquanto folheavam as páginas do material, as crianças iam me mostrando o que parecia lhes agradar mais. Dentre essas canções estavam Toke na mitã (uma canção de ninar), Ero tori e Akuxi ojere (um brinquedo cantado).

Fig. 9. Imagem de uma das canções do Ayvu Peteĩ. Tradução do título e subtítulo, respectivamente: “Durma, nenê” e “Mulher canta para seu filho dormir bem”.

Ao cantarem para mim a canção Toke na mitã, as crianças guarani não seguiram exatamente como estava escrito no livro, ou seja, enquanto a canção no livro era composta

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Quando conheci Anderson, seu nome guarani era Karai. No decorrer da pesquisa, ele teve seu nome trocado para Tupã Mirĩ Ju. De acordo com ele, a troca de seu nome deveu-se ao falecimento do pajé que lhe havia dado o primeiro nome guarani, assim, coube ao Elias Vera, seu avô e xeramoĩ, renomeá-lo. A razão da troca do nome se dá no fato de as pessoas serem “fortemente conectadas ao tamõi [avô] que lhes comunicou o nome, de modo que, por ocasião da morte desse tamõi, seu ãgue – princípio agentivo que fica na terra, enquanto o nhe’e porã [alma-palavra belos] volta ao domínio celeste de onde veio – pode fazer-lhes mal, a ponto de precisarem ser rebatizadas” (Macedo, 2012, p. 362).

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por três estrofes (fig. 9), a versão que elas me apresentaram tinha somente a primeira estrofe e os dois últimos versos, assim:

Partitura 1. Toke na mitã (I). Transcrição feita conforme cantada pelas crianças para mim.

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Letra

Tradução livre

Guia de pronúncia

Toke na mitã

Durma, nenê,

To-qué na mi-TÃ

Tove nderu

Que seu pai traga

Tôu-VÉ nde-RU

Vaka ra’y’i togueru

Um filhotinho de vaca

Va-ká ra-y-I to-güe -RU

Nerymbarã’i

Para ser seu animalzinho;

Ne-ry-mba-rã-I

Tapixi nambikue’i togueru Nderuparã’i

Que seu pai traga uma orelhinha de

Ta-pi-TCHI na-mbi-kuê-I

[coelho

[to-güe -RU

Para que de sua pele seja feita uma

Nde-ru-pa-rã-I.

[caminha40 Quadro 1. Letra, tradução e guia de pronúncia de Toke na mitã (I).

Um ponto que destaco na gravação desta canção (e de outra mais que virá depois desta, a canção Ero tori) consiste nas frequentes modulações que as crianças fazem entre um trecho e outro da canção. No caso de Toke na mitã, algumas modulações são feitas: entre o 4º e 5º versos (de Sib Maior para Mi Maior), entre o 6º verso e o retorno ao 1º (de Mi Maior para Ré Maior), e, novamente, entre o 4º e 5º versos (de Ré Maior para Mi Maior), como mostrado na partitura acima (partitura 1). Esta mesma canção foi gravada no CD Ñande Arandu Pygua – Memória viva guarani (2004, CD 2, faixa 14) e apresenta uma versão um pouco diferente daquela mostrada a mim pelas crianças guarani. Há variações quanto ao ritmo, quanto ao andamento, quanto ao texto e grafia das palavras e mesmo quanto à tradução41 (partitura 2). Em todo caso, vale lembrar

40

A tradução desta última palavra (nderuparã’i) foi feita pela Cleonice Kerexu, uma das filhas mais velhas do Elias Vera, e não pude confrontá-la com a tradução do dicionário como normalmente fazia por não constar neste tal palavra, nem semelhante. 41 A tradução da primeira versão apresentada foi feita por mim (com uso de dicionário) e com a ajuda da Cleonice Kerexu e Laudiceia Kerexu, uma das filhas e uma das noras do Elias Vera, respectivamente. Já a seguinte foi extraída do encarte onde contém a canção em questão, e foi feita, de acordo com as informações contidas no trabalho fonográfico, por Marcos dos Santos Tupã.

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que a versão recolhida na aldeia não foi acompanhada por instrumento musical (assim como acontece na gravação contida no CD) e sua performance se deu de modo bem despretensioso. Talvez estas tenham sido as razões para tais diferenças e, possivelmente, para as modulações descritas acima.

Partitura 2. Toke na mitã (II). Transcrição feita a partir da gravação do CD Nande Arandu Pygua (2004).

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Letra

Tradução livre42

Guia de pronúncia

Tokena mitã

Dorme nenê

To-qué na mi-TÃ

Tove nderu

Espere o seu pai

Tôu-VÉ nde-RU

Vacara'y'i togweru

Ele trará bichinho

Va-ká ra-y-i to-güe-RU

Nerymbarã’î

Para você cuidar

Ne-ry-mba-rã-I

Tapixi nambikwe'i togweru

Ele trará orelha de coelhinho

Ta-pi-TCHI na-mbi-kuê-I to-güe[RU

Nderopairã’î

Para você brincar

Nde-ru-pa-rã-Ĩ

Avaxi para'i

Ele trará milho sagrado

Áu-va-tchi pa-rá-I

Deavaxirã'î

Para você plantar.

Déau-va-tchi-rã-Ĩ

Quadro 2. Letra, tradução e guia de pronúncia de Toke na mitã (II).

Ero tori

A canção seguinte, Ero tori, foi recolhida no mesmo dia que Toke na mitã. Tentei traduzila, mas não encontrei tradução equivalente para “ero” nem para “tori”, somente para “takua” que significa, literalmente, “taquara”, “bambu”. Perguntei às crianças e aos adultos sobre o que tratava a canção, mas nenhum deles soube me dizer. Só me disseram que era muito difícil explicar.

No entanto, Martins (2007, p. 107) nos conta em seu trabalho com os Guarani do Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, que, ao ouvir esta mesma canção, perguntou ao seu anfitrião guarani, Leonardo Werá Tupã, sobre seu significado, ao que o interlocutor respondeu: “Traga a felicidade, traga a eternidade”. Deduzindo por isso, então, que “tori” e “takua” significavam, respectivamente, “felicidade” e “eternidade”, Leonardo responde ao

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Tradução contida no Ñande Arandu Pygua (2004).

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pesquisador que tal dedução estava incorreta, explicando-lhe a relação entre a canção e a sua exegese: "Era uma vez um menino que não foi muito bom quando era jovem, mas isso acontecia por causa de sua família. Ele cresceu e virou um homem muito bom, se redimiu. Um dia ele ficou muito doente. As pessoas da aldeia, que gostavam muito dele, rezaram muito, mas mesmo assim ele morreu. E depois que ele morreu as pessoas continuaram rezando. Tupã então desceu do céu para ressuscitá-lo e levá-lo para o paraíso. Quando desenterraram seu corpo, sua carne já tinha começado a apodrecer. Sua perna tinha um osso faltando [...]. Então Tupã fez uma prótese de taquara para o lugar do osso, colocou no lugar e subiu para o céu com o recémressuscitado, para a terra sem mal” (depoimento de Leonardo Werá Tupã apud Martins, idem).

Já no encarte do CD Ñande Arandu Pygua – Memória viva guarani, na época em que o CD foi gravado, consta um depoimento de João da Silva Verá Mirĩ, xeramoĩ da aldeia Sapukai, em Angra dos Reis, Rio de Janeiro, sobre esta canção cuja transcrição completa é pertinente (principalmente porque, infelizmente, não há mais exemplares disponíveis desse trabalho):

Então, meus netinhos... Estas são as palavras transmitidas a nós por Nhanderu Papá, nosso Primeiro Pai. Nhanderu Papá, ao gerar o mundo, já previa tudo o que ia acontecer conosco. E isto vocês não esqueceram. Sinto uma forte emoção em minha alma divina. Eu já tenho muita idade [92 anos na ocasião deste depoimento]. Por isto vou explicar e quero que vocês me escutem. Este canto que cantamos ilumina nossos primeiros passos na vida. O significado desses cantos vocês não sabem ainda, meus netinhos. Nhanderu Papá, quando chegou à Terra, desejou que o canto ilumine a nossa vida. Nosso Pai criou a Terra e nela vocês podem brincar e cantar. É o que Ele deseja. Muitas coisas já foram esquecidas. Mas é assim, meus netinhos, o que vocês transmitem me faz lembrar muito. Por isso eu vou falar agora. Deus ensinou as crianças a brincar. Nossos avôs e avós, com sua sabedoria, ensinaram a brincadeira a todos os seus filhos. Todas as crianças, de todas as idades e tamanhos, brincavam em nossa Terra Sagrada. Brincavam inspirados pela sabedoria divina. Cresciam inspiradas na sabedoria divina. Cresciam bonitas, fortalecidas e iluminadas pela Verdade e alcançavam o Ser Sagrado. Hoje vivemos uma vida diferente do passado. Vou ensinar para vocês os cantos que todos cantavam antigamente quando brincavam. Todas as aldeias vão agora ouvir estes cantos. Todos vão saber como era o nosso canto. Vão se perguntar: isto era a verdade ou não era? Todos vão saber que esta é a nossa verdade. Vou transmitir para todos vocês para todas as

50

aldeias, nossos parentes no centro da Terra, no Paraguai, todos os que vivem na Terra vão escutar. É para isto que estamos registrando esses cantos. Nossos parentes que estão além do oceano também vão escutar. Ao ouvir estes cantos, cada um se lembrará de nossas tradições e ensinará seus filhos a brincar novamente. Deus ensinou a fazer as brincadeiras infantis. E as crianças se colocavam uma ao lado da outra, sentadas, para receber os ensinamentos. Andando de um lado para o outro, em frente às crianças, um velho sábio ensinava as crianças a cantar e a brincar. Ele cantava assim: Mandavy kyvy kyvy'i Mandavy kyvy kyvy'i Mandavy kyvy kyvy'i Mandavy é um bichinho, um besourinho que costuma fazer um buraquinho na parede, próximo ao chão. As meninas cantavam e dançavam em volta do lugar onde os bichinhos ficam. Em seguida, as meninas sopravam dentro do buraquinho até o bichinho sair. Pegavam o bichinho e deixavam que ele mordesse o bico do seio. E assim elas se fortaleciam. Depois, o bichinho era deixado novamente em sua casa. Isto era feito para que elas tivessem muito leite quando os seus filhos nascessem. Elas faziam isto com muito respeito e acreditando nas palavras ensinadas por Nhanderu. Elas então ficavam alegres e cantavam assim para reverenciar Nhanderu: Ero tori, ero tori tori Ero tori, ero tori tori Ero tori, ero tori Ero takua, ero takua takua Ero takua, ero takua takua Ero takua, ero takua Assim nossos avós ensinavam a cantar. Para que se dizia “Ero Takua”? Para nossas meninas se lembrarem de Nhanderu quando crescerem e se lembrarem de tocar o bastão takuapu na Casa da Reza. Estas coisas vocês não sabem mais, meus netinhos. Antigamente nossos avós praticavam estes cantos e alcançavam a Terra Sem Mal impulsionados pelo vento sagrado. Hoje nós estamos aqui procurando lembrar. Isto eu sinto em meu coração. Eu vivo sentindo isto em meu coração. Vocês cantam e se lembram de Nhanderu e da trajetória de Nhamandu, nosso Deus Sol. Quando Ele chega, toda nossa Nação se levanta. Assim nós recebemos a divindade, meus netinhos (depoimento disponibilizado por Fernando Szegeri em seu blog “Só dói quando eu rio”43).

43

Data da postagem: 19/04/2007. Disponível em http://sodoiquandoeurio.blogspot.com.br/2007/04/mandavykyvy-kyvyi_19.html, acessado em 10/03/2015.

51

A versão que as crianças gravaram para mim apresenta algumas alterações a cada repetição da canção. A primeira delas trata das modulações: de Sib Maior para Réb Maior e desta última para Ré Maior. Já a segunda tem a ver com o aumento da intensidade que acompanha tais modulações, ou seja, a cada vez que é repetida, a canção é alterada por uma modulação para um tom mais agudo e por um crescendo na intensidade. Macedo (2012), sobre os cantos na opy, escreve que os coros feminino e masculino devem atingir, enquanto cantam, zonas agudas da voz

[...] num crescente de exaltação por meio de frases melódicas compostas por vocalizações como “hehehe, heche heha!”. Pelo volume da voz, seu timbre e o esforço despendido no canto, os mborai [cantos] na opy são também chamados tarova, que pode ser traduzido como “falar mais alto” (p. 365).

O mesmo acontece com a dança, acrescenta a autora, que vai-se acelerando na medida em que os cantos ganham força e preenchem a opy (ibidem), de modo que tanto na dança quanto no canto, “os vetores se dirigem para o alto” (p. 366).

Ainda que no caso desta canção e da anterior (Toke na mitã) as crianças não estivessem cantando na opy, nem estivessem executando as vocalizações mencionadas pela autora, tenho a impressão de que as modulações, enquanto crescentes em relação à altura, podem, de alguma forma, fazer alusão ao crescente de intensidade mencionado, visivelmente marcado pela euforia das crianças. Isto é, na medida em que a euforia vai tomando conta das crianças (mesmo durante as gravações), as modulações em direção a tonalidades mais agudas e o aumento da intensidade vão sugerindo também uma movimentação para o alto.

52

Partitura 3. Ero tori

Letra

Guia de pronúncia

Ero tori, ero tori tori

É-ro to-RI, é-ro to-RI, to-RI

Ero takua, ero takua takua

É-ro ta-QUÁ, é-ro ta-QUÁ ta-QUÁ

Quadro 3. Letra, tradução e guia de pronúncia de Ero Tori.

Akuxi ojere (Corre cutia) Esta canção é um brinquedo cantado semelhante à conhecida brincadeira “Corre Cutia”, e também estava no livro que ganhei de Anderson Tupã Mirĩ Ju (Funai, 2011). Para brincar, as crianças dão-se às mãos em forma de roda, girando enquanto falam ritmicamente as palavras do brinquedo, até que na última sílaba da última palavra (sílaba “pa” de “hoapa”) todas se agacham. Na transcrição feita, tentou-se preservar a entonação de cada sílaba, que variava em geral em quatro alturas da fala, compreendendo aproximadamente a região que vai do Sol2 ao Fá#3, de modo que as sílabas mais graves estão abaixo da primeira linha do 53

pentagrama; as sílabas que se aproximam à região da fala das crianças estão no primeiro espaço (em torno do Sol#2); as de altura média estão no segundo espaço (aproximadamente o Ré3); e as mais agudas no terceiro espaço (em torno do Sol3). Porém, a aproximação da fala das crianças em relação às notas aqui descritas serve somente para registro. Assim, a execução deste brinquedo com crianças não indígenas deve preservar a naturalidade da fala, considerando a entonação da língua Guarani. Por essa razão é que a transcrição não foi feita seguindo as alturas absolutas em torno das quais a fala estava, mas, diferentemente, foram alocadas no pentagrama de maneira que a entonação pudesse ser visualizada e sentida, em vez de racionalizada. Vale lembrar ainda que, neste brinquedo cantado, não há perdedores nem vencedores, pois o prazer do jogo está no próprio brincar, no jogo pelo jogo44.

Partitura 4. Akuxi ojere.

44

Mais à frente, na página 95, essa ideia de jogo será analisada considerando o jogo ideal de Deleuze (1974, p. 61)

54

Letra

Tradução livre

Guia de pronúncia

Akuxi ojere

A cutia dá voltas

A-cu-TCHI o-dje-RÊ

Pyávy ara py

De noite, de dia

Py-ÁU-vy a-RÁ PY

Uru ojapukai rã

O galo cantou

U-ru o-dja-pu-KÁI rã

Oo hoapa!

A casa caiu!

Ô ro-a-PÁ!

Quadro 4. Letra, tradução e guia de pronúncia de Akuxi ojere.

As crianças guarani também me mostraram uma versão em português deste brinquedo, em que é feita a tradução da canção guarani e, ao início do texto, acrescenta-se uma melodia formada basicamente por terças menores. Ao final, retorna-se à fala, como na versão guarani original (mas em português), porém preservando a mesma entonação da versão em guarani. Brinca-se da mesma maneira que o jogo anterior. Por não ter um nome em português, as crianças o chamam de “Akuxi ojere em português”.

Partitura 5. Versão em português de Akuxi ojere.

55

Oreru Nhamandu Tupã (Nossos pais, Nhamandu e Tupã) Esta canção foi ensinada às crianças não indígenas no primeiro encontro com as crianças guarani na aldeia. Nesta ocasião, estávamos todos na opy, e quando pedi ao grupo indígena que nos ensinasse alguma canção, Tiago Vera Tataendy sugeriu essa, porque, de acordo com ele, era mais fácil para aprendermos por ter poucas palavras em guarani. Esta canção foi, mais tarde, arranjada por mim45 e apresentada em algumas ocasiões pelo coral não indígena46 e pelos dois coros juntos em evento realizado na USP47. Fez parte também, à escolha das crianças deste grupo, de um jogo de improvisação no qual reuniram trechos de todas as canções guarani que sabiam48.

Partitura 6. Oreru Nhamandu Tupã.

45

Cf. Anexo A. Pode-se assistir a uma dessas apresentações em https://www.youtube.com/watch?v=zDttHVbeQ78. 47 Evento “Japoraei – Nós Cantamos” em 17/11/2014. Parte do encontro com os dois corais pode ser assistido em https://www.youtube.com/watch?v=xhHeAlr8J-U. Neste link está também o encontro com os coros na aldeia, no dia 10/11/2013. 48 Atividade descrita no capítulo III.3.6. – O trabalho em sala de aula – Oporaei, japoraei. 46

56

Letra

Tradução livre

Guia de pronúncia

Oreru Nhamandu Tupã oreru

Nossos pais, Nhamandu, Tupã,

Ó-ré-RU Nha-man-DU Tum-

[nossos pais Oreru Nhamandu Tupã oreru

Nossos pais, Nhamandu, Tupã,

[PÃ ó-ré-RU Ó-ré-RU Nha-man-DU Tun-

[nossos pais Nhamandu Tupã oreru

Nhamandu, Tupã, nossos pais

[PÃ ó-ré-RU Nha-man-DU Tun-PÃ ó-ré-RU

Quadro 5. Letra, tradução e guia de pronúncia de Oreru Nhamandu Tupã.

Para uso em sala, é relevante mencionar que Nhamandu é o Sol, considerado como ser sobrenatural, e Tupã é a divindade que rege o relâmpago e o trovão. Quanto à tradução, pode-se entender que a canção é dirigida a Nhamandu e Tupã, considerados aí como pais espirituais dos Guarani, assim: “Nossos pais, Nhamandu, Tupã. Outra tradução possível seria a referência aos pais Nhamandu e Tupã: “Nossos pais são Nhamandu e Tupã” em que o verbo “ser” e a conjunção “e” são subentendidos numa construção gramatical como esta. Na tradução acima, decidiu-se pela primeira opção.

Jaguata tape rupi (Nós andamos pelo caminho) Jaguata tape rupi, ensinada a mim pelo Ueliton Tupã Mirĩ Ju junto com as crianças guarani, também foi uma das canções que os dois grupos corais apresentaram em conjunto na USP. Em relação às outras canções, esta é marcada pela diferença na performance. Durante a introdução da canção, os meninos, em ordem de tamanho (do maior para o menor), conduzem uma roda seguida por uma fila de meninas (também em ordem de tamanho) até que seja feita uma roda, ou melhor, um círculo. Este círculo, porém, não se forma pelo “dar-se as mãos”, mas em fila (com os participantes uns atrás dos outros), seguindo em roda. Enquanto seguem, os meninos dançam marcando o pulso junto com o mbaraka mirĩ ao firmar no chão os calcanhares direito e esquerdo, alternadamente (fig. 10).

57

Já a dança feita pelas meninas consiste em levantar leve e alternadamente os pés enquanto caminham pela roda, seguindo o andamento da canção.

Partitura 7. Jaguata tape rupi

Letra

Tradução livre

Guia de pronúncia

Jaguata

Nós andamos

Dja-gua-TA

Tape rupi

Pelo caminho

Ta-pe ru-PI

Mboraei reve

Acompanhados de canções

Bó-ra-Í réu-VÉ

Javy’a aguã

Para que sejamos felizes

Djau-vy-A au-Ã

Quadro 6. Letra, tradução e guia de pronúncia de Jaguata tape rupi.

58

Fig. 10. Esquema da dança dos meninos em Jaguata tape rupi. Os círculos pretos indicam o tempo em que o mbaraka mirĩ toca, enquanto os círculos preenchidos com “X” representam os tempos em que este instrumento não toca. As figuras têm, no entanto, valores de tempo iguais.

Dentre as canções recolhidas, o termo javy’a aguã aparece em duas delas: nesta e em Apykaxu xiĩ’i oveve49. Pissolato (2007, apud Macedo, 2013, p. 186) destaca que o termo “alegria” (-vy’a) é frequentemente “enunciado pelos Guarani Mbya como justificativa para estar e continuar em um lugar e/ou em um coletivo. Do mesmo modo, a ausência de alegria, ndov’yai, é motivo para partir dali ou separar-se do grupo”. Assim, as canções que acompanhariam a jornada guiada por Nhanderu rumo à outra yvy (terra), a yvy marã e’y (Terra sem Mal), teriam a função de alegrá-los, justificando o caminhar.

Fig. 11. Crianças guarani e não indígenas cantando e dançando Jaguata tape rupi em encontro com os corais na USP. Imagem extraída de vídeo.

49

Canção descrita na página 71.

59

Ore nhe’ẽ amba pygua (Nossa alma pertence ao/habita o céu) “Nossa alma pertence ao/habita o céu” é a tradução do título dessa canção. Macedo, em seu artigo “De encontros nos corpos guarani” (2013), faz uso de duas traduções para “nhe’ẽ”, “alma-palavra” (Cadogan, 1959, apud Macedo, 2013, p. 183) e “palavra-habitante” (Clastres, 1993 [1974], apud Macedo, ibidem). Para a autora, “nhe’ẽ” é “o princípio agentivo que confere atributos de sujeito aos que vivem nesta terra, investindo-os de uma linguagem e demais capacidades expressivas e cognitivas” (Macedo, ibidem), efetivandose, acrescenta Macedo, “como signo de continuidade com Nhanderu e Nhandexy kuéry” (em que “Nhanderu” significa “nosso pai”, “Nhandexy” significa “nossa mãe” e “kuéry” é um indicador de coletividade) por conta de sua origem de nível celeste (Clastres, 2003 [1974], apud Macedo, ibidem). Para esta canção, portanto, a compreensão de “nhe’ẽ” como signo que se conecta com Nhanderu e Nhandexy kuéry torna clara a frase “Ore nhe’ẽ amba pygua” ou, traduzindo, “nossa alma pertence ao céu/nossa alma habita o céu”, evidenciando tanto a conexão entre as divindades quanto a origem celeste. Vale, neste contexto, completar que a palavra “amba”, que aqui traduzimos como “céu”, significa, mais precisamente o céu como a habitação dos seres sobrenaturais. Além disso, tal palavra também é usada para designar o “altar”, que é o local, na opy, onde se colocam os objetos rituais (Macedo, 2012, p. 189).

60

Partitura 8. Ore nhe’ẽ amba pygua

61

Letra

Tradução livre

Guia de pronúncia

Ore nhe’ẽ amba

Nossa alma habita o (pertence ao)

Ó-ré nhé-Ẽ am-BA py-

[pygua Ore nhe’ẽ amba

[céu Nossa alma habita o (pertence ao)

[pygua Roguereko mba’epu

[GUA Ó-ré nhé-Ẽ am-BA py-

[céu Nós cuidamos dos instrumentos

[GUA Ro-güé-ré-KÓ bae-PU

[musicais Roguereko mba’epu

Nós cuidamos dos instrumentos

Ro-güé-ré-KÓ bae-PU

[musicais Xondaro’i ojerojy

Os pequenos guerreiros50 marcham

Tchon-da-ro-I o-dje-ro-JY

[em fila/dançam51 Xondaria’i oporaei

As pequenas guerreiras cantam

Tchon-DÁ-ria-I o-po-ra-Í

Ore nhe’ẽ amba

Nossa alma é do céu.

Ó-ré nhé-Ẽ ãm-BA

Ore nhe’ẽ amba

Nossa alma é do céu.

Ó-ré nhé-Ẽ ãm-BA

Quadro 7. Letra, tradução e guia de pronúncia de Ore nhe’ẽ amba pygua.

Kirĩgue’i peju jajerojy (Vamos, crianças, dançar) Esta foi a primeira canção que aprendi na aldeia e me foi ensinada pela Clarice Jaxuka e pelo Alison Gabriel Jeguaka52. Encontrei a mesma canção no trabalho de Macedo (2011, p. 406) e, ao transcrevê-la, percebi uma variação em relação a uma das palavras. As crianças na aldeia cantaram e escreveram para mim, no terceiro verso, a palavra “jajeroky” e Macedo escreve “jajerojy”. A tradução literal da palavra guarani “jerojy” é “marchar em 50

De acordo com Dooley (1998), “xondaro” pode ser traduzido por “soldado”. No entanto, Elias traduz esta palavra como “guardião”. Já Macedo (em entrevista ainda não publicada realizada com Jera, uma das líderes da aldeia Tenondé Porã, em dezembro de 2013) traduz como “guerreiro”. 51 Fazem o jerojy. 52 No capítulo III.1 – Metodologia do trabalho de pesquisa –, descrevo a maneira como me ensinaram esta canção, em especial.

62

fila” (Dooley, 1998) enquanto a palavra “dançar”, em guarani, é traduzida como “jeroky”. Esta não é uma diferença significativa por serem palavras parecidas no sentido, sendo possível supor, inclusive, que haja mesmo versões que usem uma ou outra palavra. Se considerarmos ainda que “marchar em fila” se refere a uma das danças guarani realizadas na opy, o sentido de “dança” permanece. Ainda assim, vale registrar que, quando perguntei a tradução da palavra às crianças, estas me responderam em forma de gesto: as mãos levantadas até a altura do ombro; e quando perguntei às filhas mais velhas do Elias, foi-me dito que jeroky era uma dança que as meninas faziam: aquela em que elas levantam levemente o pé direito, alternando com a batida leve no chão com o pé esquerdo.

Partitura 9. Kyrĩgue’i peju jajerojy. Versão com a palavra “jajeroky”.

63

Letra

Tradução livre

Guia de pronúncia

Kyrĩgue’i peju katu

Venham crianças livremente

Ky-rin-güe-I pe-JU ca-TU

Nhamonhendu mborai

Nós faremos com que

Nha-mo-nhen-DU mbo-RÁI

[ouçam nossas canções

Jajerojy, jajeroky

Vamos marchar em fila,

Dja-dje-ro-JY, dja-dje-ro-KY

[vamos dançar

Nhanderu, Nhandexy ete

Para Nhanderu (nosso pai),

[oexa aguã

Nhan-de-RU, Nhan-de-TCHY

[Nhandexy (nossa mãe)

[é-TÉ Ôi-TCHAU-Ã

[verdadeiros nos ouvirem Jajerojy nhanhembo’e’i

Vamos dançar, vamos rezar.

Dja-dje-ro-DJY nha-nhe[MBÔEI

Quadro 8. Letra, tradução e guia de pronúncia de Kirĩgue’i peju jajerojy.

Transcrição do texto e tradução segundo MACEDO (2011, p. 406):

Letra

Tradução da autora

Kyrĩgue’i peju katu

Venham crianças livremente

Nhamonhendu mborai

Nós faremos com que escutem nossas canções

Jajerojy, jajerojy Nhanderu,

Nós dançaremos e dançaremos tanto que nosso

[Nhandexy ete oexa aguã Jajerojy nhanhembo’e’i

[verdadeiro pai e mãe nos verá.

Vamos dançar, vamos rezar

Quadro 9. Letra, tradução e guia de pronúncia de Kirĩgue’i peju jajerojy.

64

Pembopi (Vou te bater)

Pedi à Railidia Jera que gravasse alguma canção que ela achasse que meus alunos iam gostar de aprender, e “Pembopi” foi a escolhida por ela. Perguntei à Railidia do que se tratava a canção e se esta era algum jogo ou brincadeira, ao passo que a resposta que obtive foi “ela fala de um homem chamado Xava”. Perguntei o mesmo à Iara, esposa do Elias, na expectativa de encontrar pistas que me ajudassem a classificar o que havia sido gravado, mas minha pergunta fez com que ela e as mulheres que a acompanhavam enquanto ela cozinhava, começassem a rir, como a criança que ri ao cometer uma travessura. Finalmente, Iara me respondeu: “Isso é sobre uma senhorinha que quando ficava brava com seu filho dizia isso”. Esta resposta foi o máximo de informação que consegui sobre a canção a qual classifiquei como parlenda, ainda que com muita desconfiança da categoria que escolhi. Conferi com elas a tradução que eu fizera e obtive aprovação.

Partitura 10. Pembopi. Espécie de parlenda.

Letra

Tradução livre

Guia de pronúncia

Pembopi

Vou te bater

Pem-bo-PI

Pero’a

Vou te agarrar/pegar

Pe-ro-Á

Pemboguapy

Vou te fazer sentar,

Pem-bo-gua-PY

Xava!

Xava!

Tchau-VÁ!

Quadro 10. Letra, tradução e guia de pronúncia de Pembopi.

65

Tenho a impressão de que Railidia achou que meus alunos iam gostar da canção porque esta fazia, ao que parece, alusão a alguma traquinagem feita pela criança e que incitava a “senhorinha” mencionada pela Iara a ir atrás dela. Em contrapartida, a risada das mulheres parecia ter a ver com um comportamento não das crianças, mas delas mesmas, como se quem cometesse a travessura fossem elas mesmas, gesto que demonstra que, para as mulheres guarani, agredir fisicamente uma criança, não parece ser uma atitude aprovável. Durante todo o trabalho de campo feito com a família do Elias, nunca vi uma criança ser agredida nem física nem verbalmente. Os adultos, pelo que observei, não têm o costume de recorrer a qualquer tipo de agressão contra as crianças. Schaden (1962, p. 67) identificou, por exemplo, entre os Guarani, “o respeito pela personalidade humana e a noção de que esta se desenvolve livre e independente em cada indivíduo”, explicados, de acordo com Cohn, “pela concepção de alma e reencarnação, que estabelece que o caráter da pessoa é inato, e as crianças seriam muito independentes e respeitadas” (2000, p. 47). Pira’i (Peixinho) Esta canção me foi ensinada por Ueliton Tupã Mirĩ Ju e pelas crianças guarani. Quando perguntei a ele sobre o que era a canção (a fim de obter pistas sobre a tradução), a resposta dada a mim foi “É do peixinho”. Mais tarde, a interpretação de Cleonice Kerexu sobre essa música foi: “Nós ficamos felizes quando vemos o sol. O peixe não fica feliz quando tem água, quando chove? Então, a gente fica feliz quando vemos o sol”.

66

Partitura 11. Pira’i.

Letra

Tradução livre

Guia de pronúncia

Yvate gui ou oky

Do alto vem a chuva

Ýu-va-té güi o-U ó-KY

Oxyry ojapo

Ela escorre/flui/corre/desliza,

Ó-tchy-RY ó-dja-PÓ

Y guaxu.

Formando (ela forma) muita água.

Y güa-TCHU.

Oo mombyry

Ela vai longe...

Ó-Ó mo-mby-RY

Nhande minha

Nós somos como

Nhan-DÊ mi-NHÁ

Kuaray ma ramo

O sol nascendo

Kuá-ra-Y ma ra-MÓ

Jarovy’a

Nós nos alegramos

Dja-rôu-vy-‘Á

Aa rami

Seguindo (indo), assim como

A-Á ra-MI

Pira’i ovy’a

O peixinho que segue/é feliz

PI-ra’-I ôu-vy’-Á

Okaru’i aguã

Quando ele tem o que comer

Ó-ka-RU-‘i au-Ã

Okaru’i aguã

Quando ele tem o que comer

Ó-ka-RU-‘i au-Ã

Quadro 11. Letra, tradução e guia de pronúncia de Pira’i.

67

Aiko porãete (Eu vivo muito bem)

Esta canção foi recolhida em dois momentos: em uma das gravações feitas por Ueliton Tupã Mirĩ Ju para mim e na apresentação do coro guarani na USP. Na primeira gravação, o andamento começa com semínima a 132bpm53 e, ao repetir a canção, a semínima é alterada para 155bpm. Perguntei ao Ueliton a razão do aceleramento no andamento na repetição. A resposta dada foi que “[a música] começa primeiro leve e depois quando... a energia, né? Aí pode soltar a voz, né? Soltar... Tupã... Porque Tupã é... Você tem que soltar mesmo, né? Vai ser mais...", o que aponta, mais uma vez, para o que já havia sido observado nas canções Toke na mitã e Ero Tori gravadas pelas crianças: há uma aceleração no andamento na medida em que o coro, nas palavras de Ueliton, “vai soltando a voz” de modo que o canto e a dança fiquem mais intensos e para que o corpo adquira radiância (hendy), por conta da conversão da matéria (voz, instrumentos, corpo) em movimento (Macedo, 2012, p. 366).

53

O andamento (ou velocidade) das músicas pode ser medido por BPM, ou seja, batidas por minuto. Normalmente, nas partituras tradicionais, esta medida aparece associada, por meio de um sinal de igualdade (=), à figura rítmica que é a unidade métrica base do compasso, neste caso, a semínima.

68

Partitura 12. Aiko porãete.

69

Letra

Tradução livre

Guia de pronúncia

Tupã, oramoĩ

Tupã, nosso antepassado,

Tum-PÃ Ó-ra-MOĨ

Xendapytai rã xe apy

Eu não vou ficar aqui

Tchen-da-py-TAI-rã tche [a- PY

Tupã oramoĩ

Tupã, nosso antepassado,

Tum-PÃ ó ra-MOĨ

Xe’ára Tupã reve yvate

Eu vou para cima junto com

Tche-a-Á-ra Tum-PÃ réu-VÉy-

[Tupã55 Tupã oexa kuaa rire

Tupã vê/conhece o que

[va-TÉ Tum-pãoê-tcha-qua-Á ri-rÊ

[vem depois Xereko aiko porãete54

Eu vivo minha de maneira muito

Tche-re-KÓ ai-KÓ pó-rã-é-TÉ

[bondosa/bela Aiko porãete,

Eu vivo de maneira muito

Ai-KÓ pó-rã-é-TÉ

[bondosa/bela Aiko porãete,

Eu vivo de maneira muito

Ai-KÓ pó-rã-é-TÉ

[bondosa/bela Tupã reve anho.

Somente junto com Tupã.

Tum-PÃ réu-vé á-NHÔ

Xereko Tupã pe anho

Minha vida é somente junto com

Tche-re-KÓ Tum-PÃ pe á-

[Tupã Xereko Tupã pe anho Xe’ára Tupã reve yvate

Minha vida é somente junto com

[NHÔ Tche-re-KÓ Tum-PÃ pe á-´

[Tupã

[NHÔ

Eu vou para cima junto com Tupã

Tche-a-Á-ra Tum-PÃ réu-VÉy[va-TÉ

Xereko Tupã pe anho.

Minha vida é somente junto com

Tche-re-KÓ Tum-PÃ pe á-

[Tupã

[NHÔ

Quadro 12. Letra, tradução e guia de pronúncia de Aiko porãete.

De acordo com Macedo, “porãete” é uma das expressões recorrentes na opy, em que “’porã’ remete a uma qualidade do que é bom e belo e ‘ete’ atua aqui como intensificador, de modo que ‘porãete’ pode ser pensado como potencialização da ‘bondade/beleza’” (2013, p. 191). 55 Tradução desta frase feita por Cleonice Kerexu. 54

70

O caso de Apykaxu xiĩ’i oveve Em um dos momentos com as crianças guarani, mais precisamente quando fazíamos o primeiro painel-registro56, uma delas, sem que eu pedisse (provavelmente porque falava do meu coral), quis me mostrar uma canção guarani: “Apykaxu xiĩ’i oveve”. Esta, dentre todas, é a minha canção preferida e, de alguma forma, provocou em mim enorme fascínio mesmo antes de saber do que se tratava. Talvez pela maneira como a crianças guarani interpretaram a canção, talvez pela melodia, talvez porque tivesse gestos, talvez por ter sido a primeira canção que me ensinaram... Em seguida, perguntei qual era a tradução da canção. “É da pombinha”, responderam-me. Logo pensei na possibilidade de trabalhar esta canção com meus alunos, afinal, a canção era diferente de outras que já tinha ouvido nas apresentações e CDs. Além disso, o tema “pombinha” pareceu-me solo fértil para criação de arranjos e improvisações em função das notas longas aos finais de frase, e porque via nesta canção a possibilidade de instigar nas crianças questões referentes à textura e à intensidade, ambas remetidas pela palavra “pombinha” e pelo verbo “voar”.

Assim que transcrevi e traduzi a canção fui ensiná-la ao coral e, da mesma forma como aconteceu comigo, as crianças se identificaram bastante com a canção. Preparamos um arranjo coletivo e, em seguida, usando elementos e fragmentos do texto e da melodia desta canção, fizemos uma improvisação vocal57, o que me renderia um rico capítulo nesta dissertação, afinal, uma das propostas deste trabalho, pensava, era apresentar aos educadores algumas atividades desenvolvidas com o grupo infantil não indígena que pudessem inspirar outras para uso em sala.

As crianças não indígenas gostaram bastante do que haviam criado com o material, por isso, disse a elas que mostraria o resultado ao Elias. Passados alguns dias, fui à aldeia com duas gravações feitas pelo grupo não indígena. Uma era de um arranjo da canção “Oreru Nhamandu Tupã” que eu escrevi e que ensaiávamos para apresentar em um de nossos concertos; a seguinte era do arranjo que estas crianças haviam feito da canção “Apykaxu Momento descrito no capítulo III.3.3 – “Assim, vocês poderão se lembrar sempre da gente”: primeiros vínculos. 57 Atividades descritas no capítulo III.3.6 – O trabalho em sala de aula: oporaei, japoraei. 56

71

xiĩ’i oveve”. Enquanto a primeira gravação recebera a aprovação do xeramoĩ, a segunda foi repreendida: “Você não pode usar esta canção. Ela é sagrada”. Num primeiro momento, pensei que não poderia ter feito um arranjo da canção, mas, com o passar do tempo, entendi que eu não poderia sequer saber da canção.

Não contei ao Elias que foram as crianças que me ensinaram, mesmo porque, em muitas outras vezes, aconteceu das crianças e adultos cantarem essa canção perto de mim (ou para mim), mesmo depois desse diálogo. Também não disse que numa das gravações que alguns adultos fizeram para mim, ela estava lá. Neste último caso, ao ouvir a gravação desta canção junto com alguns de seus filhos adultos, contei a eles que o Elias havia dito que essa canção não poderia ser ensinada. Em meio a entreolhares, disseram-me: “Então fica só para você. Não ensine para seus alunos. Não ensine a ninguém”. Perguntei por que essa canção era diferente das outras. A razão que me deram veio em forma de história. Foi-me dito que quando um dos filhos de quem me contava, de oito anos de idade, morreu em função de uma doença desconhecida, cantou-se esta canção. E completou: “Esta canção é muito forte para mim”.

Conta-nos Macedo (2013, p. 205), que em um encontro sobre Medicina Tradicional em uma das aldeias guarani em que trabalhava, foram feitas muitas ressalvas quanto à filmagem e publicações que contivessem os saberes dos mais velhos, pois, escreve a autora, “a circulação de tais saberes não deveria ser irrestrita entre os jurua e mesmo entre os Guarani, já que não se trata de um conhecimento que possa ser dessubjetivado, sob pena de perder sua eficácia”, pois o saber, que é proveniente de Nhanderu não pode ser ensinado, é um dom.

Receber as canções reveladas por Nhanderu, para os Guarani, também é considerado um dom. Neste sentido, não são todas as canções que poderiam ser compartilhadas comigo, que sou jurua. O mesmo xeramoĩ envolvido na história de Macedo questionou, inclusive, a comercialização de CDs que contivessem os cantos guarani, com medo de que a iniciativa “pudesse enfraquecê-los, já que os cantos implicavam uma conexão com Nhanderu e Nhandexy kuéry, que não poderia ser compartilhada pelos jurua” (idem). 72

A música do Tadeu: “Tadeu, Tadeu...” Estávamos indo, Laudiceia Kerexu Mirĩ, seu filho Tadeu Vera Mirĩ, Liana Jaxuka, Jade Jaxuka e eu, até o campo onde os rapazes da aldeia estavam jogando futebol contra um time de jurua. Caminhamos durante 20 minutos até o campo. Chegando lá, não encontramos mais ninguém. Na volta (que levaria mais vinte minutos e que nos renderia um banho de chuva), as crianças começaram a cantar “Tadeu, Tadeu, no me xe xevy...”. Esta última canção que aprendi antes do depósito dessa dissertação, contrariou – e clareou – algumas questões as quais já estavam aparentemente resolvidas para mim. Eu pensei que as crianças guarani não compusessem músicas com texto. Não por falta de capacidade, mas porque elas haviam me dito que as canções eram todas reveladas por Nhanderu. Tanto é que quando ouvi as palavras “Tadeu, Tadeu...” na canção, perguntei: “Ué! Que canção é essa que leva o nome do Tadeu?”. A Laudiceia me explicou: Tadeu, quando ainda mais novo58, não deixava ninguém pegar duas coisas suas: uma cobrinha e uma camisa do Santos. “As crianças não podiam nem chegar perto disso porque ele não deixava”, conta Laudiceia. Por isso, as crianças compuseram essa música para ele:

Partitura 13. Tadeu, Tadeu (I)

58

Nesta ocasião, Tadeu estava com três anos de idade.

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Letra

Tradução livre

Guia de pronúncia

Tadeu, Tadeu

Tadeu, Tadeu

Tadeu, Tadeu

No me xe xevy

Eu peguei/tirei pra mim

Nô me tchê tchêu-vy

Mboia gui

A cobrinha de onde estava

Mbo-Í-a güi

Santos

E [a camisa do] Santos

Santos

No me xe xevy

Eu peguei/tirei pra mim,

Nô me tchê tchêu-vy

Tadeu’i

Tadeuzinho

Tadeu-I.

Quadro 13. Letra, tradução e guia de pronúncia de Tadeu, Tadeu.

Mais tarde, as crianças me contaram que esta canção era, na verdade, uma paródia do refrão de uma canção sertaneja de que gostam, o que permitiu a mim, transcrever a melodia com precisão. Desse modo, a primeira transcrição da melodia (partitura 13) contém somente as alturas aproximadas da canção em função da maneira “meio-falada, meio-cantada” executada pelas crianças. Já a transcrição seguinte se refere à melodia da canção sertaneja na qual as crianças basearam sua paródia (partitura 14).

Partitura 14. Tadeu, Tadeu (II).

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III

A criança indígena guarani Mbya e a criança não indígena: encontros musicais transculturais

“O que se aprende é armazenado no coração. [...] O coração é [...] o lugar do saber”. Índios Xikrin59

O trabalho que contempla canções de outros povos e culturas é forte elemento provocador de movimentos interculturais, de processos que envolvem diferentes culturas, os quais são capazes de “descristalizar posições” e de rearranjar impressões. Já o educador musical é o mediador e facilitador destes movimentos, lançando à mesa outras possibilidades sonoras, outras músicas, outras ideias de música (para fazer uso do termo utilizado por Brito [2007]), articulando-as com as ideias de música trazidas pelos alunos e interferindo no fluxo dessas ideias, como se fossem linhas, linhas sonoras que se esbarram e se emaranham. Cada movimento gerado por estas linhas sonoras que se emaranham resulta sempre num arranjo inesperado e único, e este só vai tomando forma com o tecer que nunca é feito de modo solitário, mas coletivamente. Pelo menos foi o que me mostraram as crianças guarani e as crianças não indígenas participantes desta pesquisa. Como sujeitos que atuam no mundo e transformam a sociedade, as crianças não indígenas e indígenas expõem agora, através de minhas palavras o emaranhado musical e social que construímos durante esta pesquisa; um emaranhado gerado das e nas relações infantis mediadas pela música.

59

Para os Xikrin, de acordo com Cohn (2002b, p. 143), é o coração que armazena o que é aprendido.

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III.1. Metodologia do trabalho de pesquisa “O homem cresce sobre si mesmo, é um novelo de experiências. E cada nova experiência é uma experiência que nasce sobre o fundo das anteriores e a reinterpreta”. Reale e Antiseri60

Nesta parte do capítulo, narro a maneira como se foi construindo a metodologia desta pesquisa. Não a descrevo como um “passo-a-passo” ou como um modelo que deve ser seguido em outras pesquisas, mas narro-a porque ela foi sendo elaborada na medida em que o trabalho se desenvolvia. Obviamente, havia uma primeira metodologia traçada, mas na medida em que se estabeleciam as relações e se moldava o trabalho, novas estratégias se criavam, tornando-se necessárias, e o trabalho foi tomando novas formas, inclusive levando-me para lugares e por caminhos inesperados, metodologicamente falando, exatamente porque não sabia que eram uma possibilidade. E estes, de fato, não o seriam se as relações não tivessem se dado da maneira como se deram. Bourdieu talvez elucide a questão: Eu não gostaria de me prolongar aqui de maneira muito insistente em reflexões sobre teoria ou método destinados somente aos pesquisadores. ‘Nós só fazemos nos glosar uns aos outros’, dizia Montaigne. E mesmo se não fosse por isso, mas por qualquer outra razão, eu gostaria de evitar as dissertações escolásticas sobre hermenêutica ou sobre ‘a situação ideal de comunicação’; na verdade, eu creio que não há maneira mais real e mais realista de explorar a relação de comunicação na sua generalidade que a de se ater aos problemas inseparavelmente práticos e teóricos, o que decorre do caso particular de interação entre o pesquisador e aquele ou aquela que ele interroga (2012, p. 693).

Esta pesquisa envolveu três grupos de trabalho que ora conversavam entre si e se relacionavam, ora eram trabalhados separadamente. Um dos grupos era formado por 16 crianças não indígenas (este é o coro infantil do qual sou regente – o Tico-tico61); o outro

60

Reale & Antiseri, 1991, p. 628. A quantidade de crianças deste coro foi reduzida de 2013 para 2014 por conta do fechamento da escola a qual a maioria delas frequentava. Esta escola ficava ao lado do condomínio onde realizávamos nossos encontros e, com o encerramento das atividades deste colégio, as crianças foram para escolas distantes do condomínio, dependendo, então, de um adulto para que as levassem e buscassem no local de ensaio. Isso fez com que quatro crianças deixassem o coral porque não havia alguém para acompanhá-las no trajeto. 61

76

grupo era um dos coros infantis guarani da aldeia Tenondé Porã, com cerca de 15 crianças62 sob responsabilidade de Elias, de quem as crianças que compõem este coro são todas parentes diretas e indiretas (filhos, noras, genros e netos – fig. 12). O último grupo são os próprios adultos guarani com quem me relacionei durante o trabalho e todos pertenciam à família do mesmo Elias. Cada um destes grupos exigiu ferramentas metodológicas específicas quando trabalhados separadamente e quando trabalhados em conjunto. Assim, a pesquisa, como um todo, é de caráter etnográfico, mas se valeu de diversas abordagens, tais como entrevista aberta, entrevista semiestruturada, grupos focais, art-based research e observação participativa, a depender do grupo, da situação e do pesquisador (já que as crianças do primeiro grupo trabalharam aqui como co-pesquisadoras, levantando e analisando dados).

O trabalho com os indígenas adultos

As comunidades indígenas brasileiras têm sofrido, ao longo dos séculos, com o descaso e a desvalorização de sua cultura pela maior parte da população deste país. Visando a um suposto desenvolvimento desenfreado e inconsequente, terras indígenas são tomadas pelos jurua (como são chamados os não indígenas63) e sua população é, muitas vezes, abandonada em situações de risco e vulnerabilidade social e cultural.

De acordo com Macedo (2012, p. 357), uma das estratégias criadas pelos Guarani para combater a “invisibilidade cultural” diante dos jurua foi promover a circulação, nas cidades, do repertório musical das aldeias através dos coros infantis a partir de meados de 1990.

62

O número é aproximado porque nas apresentações não é sempre o mesmo número de crianças que participam e também porque não há uma formação oficial como costuma haver nos coros não indígenas. 63 Vide nota de rodapé da página 39.

77

Fig. 12. Árvore genealógica da família do Elias.

78

Os corais e outras iniciativas trazem à cena a enunciação de singularidades guarani, contrastando com a “invisibilidade cultural” predominante até então entre essas populações. Se outrora a diferença era fonte potencial de humilhações, conflitos e adversidades, dada a proximidade das aldeias com jurua tetã (as cidades e lugares dos jurua), agora a enunciação dessa diferença pode constituir um meio de impor respeito, nhemboete (idem, 2013, p. 203).

Neste sentido, as apresentações públicas dos coros e até gravações comerciais de CDs são, para os Guarani, importantes meios pelos quais é possível “resgatar elementos da própria cultura” e mostrar “aos brancos que ela se mantém ‘preservada’” (Coelho, 2004, p. 154), e por esta razão e por ser a formação coral o ponto comum entre meus alunos e as crianças guarani, decidi que a pesquisa seria, então, guiada pelo trabalho coral desenvolvido pelo Elias e aquele desenvolvido por mim com meus alunos, o que implicava, como foi dito, um trabalho com 3 grupos distintos, mas ao mesmo tempo com algumas condições comuns: ora a idade, ora a cultura, ora a música, ora o coral.

O principal cuidado tomado neste trabalho com os Guarani foi a transparência. Na primeira visita que fiz ao Elias, apresentei-me como estudante da USP e como professora de música. Disse a ele que gostaria de conhecer seu coral porque pretendia desenvolver um trabalho com música guarani com meus alunos. Nesse dia, levaram-me para um passeio pela aldeia, e o coral guarani se apresentou. Na visita seguinte, expus-lhe o trabalho que gostaria de fazer ali. Disse-lhe que gostaria de levar minhas crianças à aldeia em que ele morava; que eu gostaria de ensinar às minhas crianças algumas canções guarani que as crianças dele cantavam e escrever sobre isso; disse que eu me preocupava com o fato de a música e a cultura indígena serem pouco trabalhadas nas escolas. Antes que eu sugerisse que os dois grupos cantassem juntos, ele mesmo o fez. Senti que ele ficou bastante entusiasmado com a ideia: As crianças poderiam cantar juntas! Você ensina uma música para os seus alunos e cantamos juntos. A gente pode até fazer uma apresentação e, quem sabe, gravar um CD. Eu só ia pedir que nos ajudasse com os custos... Se você ensina para um aluno seu, esse aluno vai ensinar para outros e vai ajudar a divulgar nossa cultura, nosso povo. É um trabalho importante. Vai diminuir o preconceito, né? (Elias Vera, trecho extraído de uma de nossas conversas).

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Enfim, conversamos por quase duas horas e, entre histórias de como ele se tornou xeramoĩ e de como ele cuidava dos seus, elaboramos juntos um “contrato” verbal que implicava em uma contrapartida. O acordo exigia de mim, principalmente, que não os esquecesse. Para o Elias, a partir do momento em que se estabelecesse uma relação com seus familiares (depois é que descobri que o coral era composto por crianças que eram filhos e netos dele), ele não gostaria que eu os esquecesse. Esquecer, para ele, significava nunca mais voltar depois que o trabalho acabasse.

Fig. 13. Uma das casas onde mora a família do Elias. Nesta casa, moram com ele sua esposa Iara e seus netos e filhos que ainda não se casaram. Após o casamento, o casal passa a morar em uma casa só deles, mas próximo (entre cinco e dez passos) à casa de Elias, como aconteceu com Alessandra Yva, por exemplo, quando se casou com Olívio no final de 2014. Foto de Denise Fragoso.

Além disso, concordamos que seria justo que suas crianças recebessem cachês caso houvesse algum tipo de apresentação fora da aldeia. Também sugeri que levasse sempre a eles algo de que estivessem precisando, como roupas, alimento, itens de higiene, fumo, chimarrão e até alambrado. Apertamos as mãos, assim. Ele sabia exatamente o que eu pretendia fazer, e deixei claro que, de forma alguma, tratá-los-ia de forma aproveitadora e que, se em algum momento eu fizesse isso, ele tinha o dever e o direito de me alertar.

Preocupou-me (e ainda preocupa), e parece preocupar também ao Elias, o fato de que alguns pesquisadores chegam à aldeia, colhem as informações de que precisam, aproveitam-se da “boa vontade” dos que se dispõem, e se vão, como se os que vivem ali fossem objetos para estudo no sentido literal da palavra; como se fossem um experimento escolar em que você planta o feijão no algodão, fotografa (e leva as fotos para mostrar aos 80

parentes), registra as transformações sofridas, tece suas conclusões e depois joga fora. Não tratá-los dessa forma era, indiretamente, a principal exigência do Elias. E era justa.

Fig. 14. Elias e eu em uma de nossas conversas. Foto da Giovanna B.

Decidi não recolher dele autorizações e termos de consentimento de participação na pesquisa nos primeiros momentos. Minha intenção era que, antes de formalizar o trabalho (porque a academia me exigia assim), fosse estabelecida entre mim e ele uma relação de confiança. Para mim, assinar um documento poderia nos distanciar, por remeter a uma forma contratual que parece ter origem no princípio de desconfiança que as relações brancas cultivaram, enquanto que o acordo verbal me parecia mais transparente, mais honesto, mais humano. Mais tarde, quando já conhecia inclusive seus filhos (pais de seus netos, com quem trabalhava), senti-me à vontade para pedir que assinassem tudo o que era necessário (para atender às formalidades brancas), porque eu os tinha percebido também mais à vontade e confiantes nos propósitos e andamentos da pesquisa.

Outro cuidado tomado foi com a postura. A maneira de falar, portar-se e até vestir-se, para mim, influenciaria as relações e, consequentemente, o trabalho. Parece haver uma postura que às vezes soa um pouco arrogante por parte do pesquisador, como se os títulos 81

acadêmicos que possui fizessem dele uma pessoa superior aos pesquisados; e estes últimos percebem isso na maneira como o pesquisador fala, veste-se e se porta. Nessa relação, o grau de escolaridade não é relevante – e fico me perguntando em que relação ele o seria, mas não encontro resposta. A questão é que, enquanto observador participante, o pesquisador participará das atividades junto aos pesquisados, e estes precisam se sentir à vontade na presença do pesquisador (e vice-versa), caso contrário, o trabalho será prejudicado no sentido de se perder uma relação genuína de troca.

Haverá, no entanto, sempre uma distância cultural entre pesquisador e pesquisado, mas não me refiro àquela que trata da escolaridade. Refiro-me, sim, àquela existente por pertencerem a contextos diferentes, o que irá influenciar a visão que ambos têm um do outro. Todos têm consigo um repertório de impressões que foram elaboradas em seu próprio contexto social e cultural e, ao observar outra cultura, não há como o pesquisador se distanciar desse “histórico”. Todas as suas opiniões e impressões sobre o outro terão sempre uma carga de viés, cujos valores foram apreendidos em sua cultura, sendo impossível para o pesquisador lançá-los fora, pois foram estes que o formaram como indivíduo; resumindo, a observação e a análise nunca serão isentas das cargas que carregamos conosco, nunca serão isentas de si. Por exemplo, dizer que determinada música pesquisada não é tonal, toma como princípio de comparação o tonalismo, cujo conceito foi elaborado em minha própria cultura. Mas o que querem dizer alguns autores quando escrevem sobre o distanciamento que o pesquisador deve ter de sua cultura quando estão no campo ou mesmo fazendo análises? Entendo que o distanciamento não seja de sua própria cultura (porque, como vimos, é impossível), mas que seja, sim, do juízo de valor que faço da cultura do outro. Dizer que a música ocidental tonal é melhor que a música indígena envolve um juízo de valor e é dele que o pesquisador tem que se abster, “se distanciar”.

Porém, da mesma forma que o pesquisador não é isento da cultura que o formou e que o forma, ao compartilhar experiências com a comunidade pesquisada a partir da observação participativa, esta nova cultura há de provocar nele novas impressões. Assim, o primeiro passo para que as análises sejam isentas de si o máximo possível é o “deslocar-se” de si. Este deslocamento não é o distanciamento discorrido acima, é, na verdade, a capacidade de 82

movimentar-se em direção ao outro, ou seja, é movimento. Considere que não significa colocar-se no lugar do outro, já que as diferenças culturais não permitem isto, ou seja, nunca seremos capazes de compreender a fundo determinada cultura como compreende um nativo; nunca descreveremos uma cultura como faria um nativo (Geertz, 2013, p. 11), mas significa movimentar-se em direção à perspectiva do outro, de modo que sejam compreendidas mais eficazmente as razões de determinados costumes e valores da cultura que nos pomos a observar. Assim, as experiências compartilhadas entre pesquisador e pesquisado farão com que as experiências anteriores de ambos sejam reinterpretadas, como citado no início deste capítulo (Reale & Antiseri, 1991, p. 628), resultando em experiências únicas e exclusivas, que alteram, inclusive e inevitavelmente, os resultados do trabalho:

Ainda que a relação de pesquisa se distinga da maioria das trocas da existência comum, já que tem por fim o mero conhecimento, ela continua, apesar de tudo, uma relação social que exerce efeitos (variáveis segundo os diferentes parâmetros que a podem afetar) sobre os resultados obtidos (Bourdieu, 2012, p. 694).

Nesse sentido, o pesquisador deve estar atento para que suas próprias impressões não se confundam com aquelas recolhidas do pesquisado. Deve haver, de acordo ainda com Bourdieu (ibidem), portanto, um esforço para fazer uso reflexivo dos conhecimentos – refletir reflexivamente, como diz o autor –, a fim de controlar os efeitos da pesquisa, o que, para este sociólogo, significa pensar sobre o próprio pensamento e sobre quem o faz. Assim, uma tentativa de tomar como base a reflexividade proposta acima por Bourdieu seria, por exemplo, que o pesquisador pensasse sobre as novas impressões elaboradas em campo, mas sempre considerando as impressões de mundo que já possui, isto é, sempre considerando quem ele é e porque pensa de determinada maneira.

Para ilustrar: estávamos, crianças indígenas e eu, fazendo desenhos sobre as músicas que elas tinham me ensinado e, não sei por qual razão, elas começaram a falar de fantasmas que habitavam na aldeia. Sem pensar, minha primeira pergunta foi “vocês acreditam em fantasma?”, com tom desacreditado. “É verdade. Aqui na aldeia tem fantasma...”, uma das crianças me respondeu, e só então me dei conta de que minha pergunta estava carregada da minha visão de mundo, e reformulei: “Aqui tem fantasma?”, e me responderam que só 83

havia fantasmas à noite. Mais tarde, em uma conversa com Ueliton Tupã Mirĩ Ju, ele me contou que, ali na aldeia, são feitas as rezas na opy (casa de reza) todas as noites, com exceção das noites de inverno. A razão para tal exceção, explicou-me ele, se dá pelo fato de que o inverno é a estação em que mais surgem os espíritos maus, suspendendo, inclusive, as rezas noturnas neste período. Neste período, denominado ara yma (“tempo velho”), “todos ficam mais recolhidos, inclusive Nhanderu e Nhandexy kuéry, até a chegada do ara pyau, ‘tempo novo’ [que corresponde, mais ou menos, à primavera], quando o mundo se renova e todos se fortalecem com as chuvas de Tupã” (Macedo, 2013, p. 205). Mais tarde, encontrei ainda referência sobre os espíritos maus – os fantasmas a quem Alessandra Yva se referiu – também num artigo de Macedo, mas de forma mais detalhada:

Ouvi na aldeia do Silveira [...], que dependendo da incidência da luz uma pessoa pode ter várias sombras (ã) desdobrando-se de seu corpo, e que elas correspondem aos muitos “anjos” que podem habitá-lo ou atravessá-lo. Nhe’e porã corresponde à sombra mais clara. Já as sombras mais escuras se desprendem quando o sujeito morre sob a forma dos ãgue, que buscam se vingar e agredir os vivos. [...] Eles [os ãgue] se movem na escuridão porque se enfraquecem na presença de Kuaray, o sol (ibidem, p. 192).

Durante o trabalho de campo, as informações surgem desconexas e, com o tempo, é possível ir juntando-as de modo que o todo faça sentido. No entanto, ainda que, em princípio, alguma crença, algum comportamento, não pareça ter sentido, é imprescindível que reflitamos reflexivamente, isto é, pensemos sobre a origem de nosso próprio pensamento acerca de determinado assunto, sobre a razão de pensarmos de determinada maneira. Enfim, os fantasmas das crianças guarani são só um exemplo que aponta para a importância das reflexões reflexivas durante o trabalho no campo e depois dele, quando estamos descrevendo e analisando os dados recolhidos, e atesta a dificuldade de serem colocadas de lado nossas impressões, ainda que nos esforcemos para isso.

84

O trabalho com as crianças indígenas “Fui percebendo que aquele ‘mostrar como se faz’ foi efetivando-se como um fazer”. Valéria Macedo64

Desde o início, a intenção do trabalho era de que os informantes das canções recolhidas fossem, principalmente, as crianças guarani. Eu pretendia que elas me ensinassem as canções e sua pronúncia; pretendia também que escrevessem a letra em Guarani dessas canções e que as traduzissem para mim. Mas não aconteceu exatamente dessa maneira, a começar pela primeira música que aprendi. Eu precisava aprender pelo menos uma música para ensinar aos meus alunos antes que eles fizessem sua primeira visita à aldeia, e eu ainda não tinha me envolvido o suficiente com as crianças para que fosse como eu planejei. Assim, escolhi uma música – Kyrĩgue’i peju jajerojy – do CD Ñande Arandu Pygua – Parte 1 – (2004) e pedi que escrevessem a letra para mim. Os informantes – a filha do Elias e seu neto – foram escolhidos para isso pelo próprio Elias (fig. 15). Depois disso, as primeiras canções foram todas ensinadas a mim pelas crianças (com exceção de Oreru Nhamandu Tupã, que aprendemos na primeira visita do meu coral à aldeia65), até que chegou um ponto em que toda a família do Elias estava envolvida no trabalho de recolha de canções: eu deixava o tablet com as crianças por duas semanas para que gravassem canções para mim, e, quando eu voltava, toda a família havia se reunido para as gravações. Todos estavam participando do trabalho e pareciam animados com esses registros.

No entanto, vale destacar algumas observações quanto à maneira como as crianças me ensinavam as canções. Com exceção de “Kyrĩgue’i peju jajerojy” (cuja letra e tradução foram escritas no mesmo momento em que me ensinaram a canção), todas as canções que aprendi e que registrei aqui foram ensinadas a mim de maneira bem pouco linear, ou melhor, não foram ensinadas na sequência que, para mim, parecia ser mais natural. O que

64

Macedo (2013, p. 206), sobre a proposta feita aos Guarani de realizarem uma oficina a fim de mostrar como se faz o batismo da erva mate (ka’a nhemongarai). Enquanto a oficina acontecia, descreve a autora, o que deveria ser uma representação do ritual para a oficina, transformou-se no próprio ritual. 65 Relato descrito no capítulo III.3.2 – O dia dez.

85

eu pretendia era que, após gravar a canção, as crianças guarani atendessem ao meu pedido de escreverem ou ditarem a letra da canção para mim; mas o que acontecia era que em alguns momentos, elas não atendiam ao que pedia (quanto ao registro); em outros, faziamno de boa vontade, mas cometiam erros de ortografia guarani, dificultando o registro e a tradução. Quando perguntava sobre a tradução, esta nunca era exata, mas, ao contrário, vinha na forma de informações bastante genéricas, como “essa música é da pombinha”. Com estes imprevistos, entendi, num primeiro momento, que as crianças indígenas somente faziam algo se realmente quisessem fazê-lo (a não ser que algum adulto guarani lhes ordenasse fazer) e que, para elas, a sequência que eu havia planejado não parecia ter tanto sentido. Portanto, tendo isso em vista, não as pressionava, nem as apressava. Mais tarde, descobriria que a forma como me ensinavam refletia, na verdade, a maneira como elas aprendiam e como concebiam a aprendizagem (e o ensino).

Fig. 15. Clarice Jaxuka, Alison Gabriel Jeguaka e Neilson Karai me ensinando a canção Kyrĩgue’i peju jajerojy. Imagem extraída do vídeo de Denise Fragoso.

Percebi que elas gostavam bastante que fossem filmadas cantando, então recorri a isso. Ainda que, aparentemente, não tivessem paciência para me ensinar as canções, ficavam bastante entusiasmadas quando eu sabia cantar uma delas. Isso me intrigava, levando-me a me perguntar: “Por que ficam felizes quando sei uma de suas canções, mas não me ensinam?”. A solução encontrada, enfim, foi que, a partir das filmagens, eu tentava aprender as canções gravadas, e quando a letra era muito difícil para mim – mesmo porque elas quase nunca me ensinavam a pronúncia –, eu aprendia a melodia e tocava/mostrava no 86

teclado para elas o que eu havia aprendido. Aí era uma felicidade só: eu tocava e elas cantavam. E diziam: “toca outra”. Mas eu só conhecia aquelas... Então, gravavam mais uma canção, e eu dava um jeito de aprender “sozinha”.

Fig. 16. Elias conferindo uma das canções que eu havia aprendido. Imagem extraída de vídeo feito por Denise Fragoso.

Contudo, eu precisava, para o trabalho, da letra correta e da tradução das canções recolhidas. Então, depois de bastante tempo, quando eu já sabia tocar algumas canções, pedi a elas que desenhassem o que cada música significava, a fim de que eu tivesse algumas pistas: – Alessandra, você está desenhando que música? – pergunto. – Estou desenhando Apykaxu xiĩ’i. – Sobre o que é a música Apykaxu xiĩ’i? – É sobre a pombinha que voa no céu. – Por que ela está voando? – Ela está voando para ver Nhanderu. – Você pode me ajudar a escrever essa música em guarani?

Assim, sabendo do que se tratava a música, em vez de partir das palavras em Guarani para encontrar a tradução em português, fazia o contrário: partia das palavras em português que as crianças mencionavam enquanto faziam os desenhos para, então, chegar às palavras 87

(corretas) em Guarani. Por exemplo, eu não procurava mais no dicionário pela palavra “apykaxuxi” (maneira como a palavra foi ditada a mim), mas por “pomba”, chegando à “apykaxu”. Por fim, levava a canção escrita para os adultos para que corrigissem os erros, e eu os percebia muito animados com o resultado ao qual eu chegava.

Fig. 17. Canção Apykaxu xiĩ’i oveve 66 com letra ditada pelas crianças guarani, com lista de instrumentos utilizados na opy na seção inferior. Foto de Giovane Tupã Mirĩ.

Fig. 18. Crianças e eu tocando Apykaxu xiĩ’i oveve. Fotos de Alessandra Yva e Giovane Tupã Mirĩ, respectivamente.

Os detalhes sobre esta canção estão descritos no Capítulo II – Pequena coletânea de canções guarani Mbya. 66

88

As crianças sempre respondiam bem às atividades que eram propostas, mas me inquietava o fato delas não permanecerem – ou não parecerem – tão focadas quanto eu esperava (ou como estava acostumada a esperar). Depois entendi que não era um problema de foco e que tampouco era um problema, mas que as crianças guarani vivem de tal maneira que a visita inesperada de um “bichinho mede-palmo” durante uma atividade, por exemplo, não significa distração ou falta de foco; significa liberdade e significa infância.

A sequência de fotos abaixo (figuras 19 a 24) retrata uma única atividade que havia sido proposta às crianças indígenas e o que aconteceu durante e a partir de tal proposta.

Fig. 19. À esquerda, desenho da música Apykaxu xiĩ’i oveve feito pela Alessandra Yva e, à direita, Railidia Jera desenha Nhamandu, o Sol, considerado ser sobrenatural, a partir da música Oreru Nhamandu Tupã. Foto de Giovane Tupã Mirĩ e Denise Fragoso, respectivamente.

Fig. 20. Jade Jaxuka apresenta o “Bicho mede-palmo” que nos visitou durante uma das atividades. Foto de Denise Fragoso.

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Fig. 21. Jade Jaxuka “se distraindo” com os papéis, com o tablet e com as tintas em vez de fazer os desenhos que pedi. Fotos de Denise Fragoso.

Fig. 22. Jade Jaxuka pintando as unhas da Heloisa com canetinha, à esquerda. À direita, Liana Jaxuka pinta a si mesma. Fotos de Daisy Fragoso

Fig. 23. À direita, Railidia Jera pintando o braço da Denise e Jade Jaxuka pintando o braço da Heloisa. Fotos de Daisy Fragoso e Denise Fragoso, respectivamente.

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Fig. 24. Da esquerda para a direita: Jade Jaxuka pintando o braço da Heloisa; Giovane Tupã Mirĩ fazendo os registros sobre a cabeça de Alessandra Yva e Railidia Jera; e Giovane Tupã Mirĩ e Railidia pintando meu braço. Foto das laterais de Denise Fragoso e foto central de Daisy Fragoso.

Destas experiências, foi possível perceber que a maneira como as crianças guarani aprendem vem da forma como elas compreendem e vivenciam a aprendizagem. Enquanto o formato de ensino/aprendizagem branco, ou melhor, ocidental, é fortemente baseado na premissa de que, para aprender, é preciso que alguém esteja disposto a ensinar no sentido de que há intenção declarada por parte do aprendiz e por parte de quem ensina (e o nosso modelo de escola atesta claramente estes papéis), para os Guarani (e muitas outras etnias indígenas brasileiras67), o aprendizado acontece pela observação e na vivência. Nessa dinâmica, o mais novo aprende com o mais velho (criança, jovem ou adulto), observando-o e fazendo junto com ele o que ele faz, e não importa se o mais novo ainda não faz direito, se não faz bem; o que importa é que esta é a maneira com que ele irá aprender a fazer o que os mais velhos fazem, a mesma maneira com que estes um dia aprenderam, e este é um processo diário.

Como no mundo indígena de um modo geral, as famílias guarani têm seus filhos e esses filhos sempre ficam com os pais. Não tem creche nem escola como no mundo do jurua, e então tudo se aprende, tudo se sente com a família, na casa, na vivência. As crianças são pessoas que vão copiando as outras pessoas mais adultas do seu lado. Quando fui em uma aldeia do Guarani Mbya lá no Paraguai, vi uma coisa que já não vejo mais aqui na 67

O trabalho de mestrado de Cohn (2000), por exemplo, dedica-se ao estudo da maneira como os Xikrin concebem a infância, o conhecimento e o aprendizado.

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Tenonde e é uma coisa muito especial, muito especial mesmo. As mulheres mais velhas tinham o yrupë'i, que é um tipo de peneira, onde se coloca o milho depois de socado, e então vai mexendo, assopra... As mulheres adultas tinham um pilão grande e as meninas pequenininhas tinham cada qual sua peneira pequenininha, sua madeira pequenininha e seu pilão pequenininho. Elas faziam exatamente o que a mãe fazia. A mãe do lado não falava ‘é assim!’, ou ‘não, não é assim!’. A criança ficava em silêncio, só observando como que desce a madeira, como que mexe o milho na cuia, no pilão pra lá, pra cá. O Guarani aprende vendo, assim... (Entrevista68 feita com Jera Poty Mirĩ, liderança guarani e vice-diretora da escola da aldeia Tenondé Porã)

Na primeira visita que meu grupo coral fez à aldeia, enquanto caminhávamos trilha adentro, as crianças indígenas pararam para fazer uma brincadeira. Como havia pequenos grupos de crianças indígenas e não indígenas dispersos, brincando de coisas diferentes, eu, porque acompanhava a brincadeira de outro grupo (o que subia na árvore), não vi como essa brincadeira começou; mas, assim que começou, uma aluna me chamou para eu que visse a “brincadeira da mandioca”, uma brincadeira tradicional da colheita da mandioca – mandi'o nhemondoro (“arrancar a mandioca”). Assisti ao final dela: uma criança indígena sentada no chão, abraçada à base do tronco de uma árvore, enquanto outra a puxava por trás, tentando, à força, fazer com que se soltasse do tronco. Evidentemente, minha primeira reação foi pedir àquelas crianças que me ensinassem a brincar, mas não houve resposta. Elas se sentaram no chão para brincarem novamente e ficaram esperando que eu me sentasse também. Sentei-me. Eu fazia perguntas como “E agora? O que eu faço? Agarro todo mundo ou só o da frente?”, e elas não me respondiam, mas também não me impediam de brincar, mesmo eu não sabendo como. Algumas das crianças não indígenas, que haviam assistido à brincadeira toda, diziam-me mais ou menos o que fazer, mas as indígenas não me explicavam coisa alguma. A brincadeira começou: as crianças sentadas ao chão, enfileiradas e agarradas umas às outras, por trás (abraçando pelo plexo solar), como um trenzinho, sendo que a primeira da fila se agarra à árvore; Alessandra Yva (a criança mais velha) bate na cabeça de cada um e, de repente, puxa a última – que era eu. Então compreendi que eu tinha que segurar muito forte na criança que estava à minha frente, enquanto esta se segurava na que estava à sua frente e, assim por diante, até a primeira criança, a que se segurava na árvore. A Alessandra ia puxando as crianças uma a uma, até 68

Entrevista ainda não publicada realizada por Alice Haibara, Joana Cabral e Valéria Macedo em 18 de dezembro de 2013.

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que todas fossem arrancadas de onde estavam. Ao final, perguntei quem era o vencedor e não houve resposta. Entendi, então, que não havia vencedores nem perdedores na mandi'o nhemondoro (fig. 25), assim como no jogo ideal de Deleuze; um jogo em que não há regras estabelecidas e não comporta vencedores nem vencidos (1974, p. 61). O jogo ideal é o “jogo em estado puro, que não conta com regras preexistentes [...]; é “o jogo da criança, para quem o jogar, o brincar em si mesmo, é modo de vida que vem e vai, que flui sem vencedores ou perdedores, que é jeito de perceber, de sentir, de viver” (Brito, 2007, p. 44).

Assim como mandi'o nhemondoro, há muitos outros jogos guarani aos quais assisti e dos quais participei que se caracterizam pelo princípio de não haver princípios, regras, perdedores, vencedores. Contudo, não se trata da “ausência de regras” declarada como uma regra, ou seja, não são brincadeiras, jogos em que a regra é não ter regra; tampouco é discutido se haverá perdedores ou vencedores. Os jogos simplesmente acontecem sem que este “princípio de não-princípio” seja enunciado, anunciado ou mesmo percebido; o jogo ideal está no pensamento e é por ele conduzido livremente sem que se tenha pensado sobre isso; é inconsciente.

Pedi às crianças que me ensinassem a brincar de Akuxi ojere (partitura 4), uma versão guarani de Corre Cutia. Pegaram-me pela mão e fizemos uma roda. Ao final da brincadeira, todos deveríamos nos agachar. Feito isso, perguntei a elas o que aconteceria àquele que não se agachasse ou que se agachasse por último, afinal, pensava eu, alguém deveria perder o jogo. As crianças ficaram quietas por um tempo como se minha pergunta não fizesse sentido – e, de fato, não fazia –, até que uma das crianças mais velhas, a Elaine Poty Mirĩ, respondeu-me como se não fosse uma questão importante – e, mais uma vez, não era: “aí, quem ficar por último vai pro meio [da roda]”. Percebi, então, que ela havia acabado de inventar uma regra para um jogo sem regras por conta da minha pergunta; e que, por isso, minha pergunta foi um bocado tola. A brincadeira do Akuxi ojere (fig. 26) era conduzida pelo simples prazer do brincar, e, por isso, não eram necessárias regras que estabelecessem um perdedor.

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Além dos jogos que já existem (como mandi'o nhemondoro, Akuxi ojere), que já foram inventados por alguém, há ainda os jogos momentâneos e espontâneos que as próprias crianças guarani inventam e improvisam. Boa parte desses jogos, pelo que observei, são igualmente ideais: são jogos que se formam enquanto são jogados, sem regras estabelecidas e que podem ser alterados se novos objetos surgirem ou se novos jogadores se juntarem à brincadeira. Girar no ar segurando-se numa folha de palmeira; jogar um saco plástico em cima do telhado e vê-lo cair; correr por trilha adentro o mais rápido que pode; dar piruetas segurando-se nas barras do balanço; enfim, mesmo as brincadeiras criadas a partir das circunstâncias e do momento que envolvem as crianças, seguem, em sua maioria, o estado puro e livre de regras no qual não há lugar previsto para se chegar, ou melhor, não há lugar para chegar, por isso, não há número-limite de jogadores, regras estabelecidas, materiais necessários para o jogo, não há, nas palavras de Deleuze, “nem vencedores, nem vencidos” (op. cit); é o jogo conduzido pelo pensamento livre e que se faz ao jogar; é um jogo que se vai desenhando espontaneamente e que concebe uma árvore de folhas azuis e tronco corde-rosa; é o jogo puro de uma infância ainda livre de interferências regradas.

Neste sentido, é possível perceber que a maneira como são concebidos os jogos infantis guarani pela própria criança reflete a própria infância guarani, e esta é igualmente permeada pelo jogo ideal, por este “jogo em estado puro”, o qual permite a essas crianças viver sem um estado de regras aparente; que consente a dispersão, a distração, a “falta de foco” (que me causou estranheza no início do trabalho de campo); e que concede à criança liberdade para reparar nos “bichos mede-palmo” à sua volta, mas, principalmente, concede liberdade, parafraseando Brito (op. cit.) “para perceber, para sentir e para viver”.

Fig. 25. Mandi'o nhemondoro, a “brincadeira da mandioca”. Fotos de Denise Fragoso.

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Fig. 26. Jogo Akuxi ojere. Foto extraída do vídeo feito pelo Giovane Tupã Mirĩ.

O trabalho com as crianças não indígenas

Em agosto de 2013, iniciaram-se as atividades com o Tico-tico Coral Infantil. Pertencíamos ao Centro Comunitário de um condomínio que ficava ao lado da escola frequentada pelas crianças participantes do grupo e nos reuníamos no salão de festas deste local. A proposta era continuar com as atividades de canto coral que eram desenvolvidas nessa escola onde havia trabalhado, mas, agora, sem ligação com o colégio. Além dos compromissos “regulares” de um coro, tais como apresentações, concertos etc., as crianças do Tico-tico se envolveriam com esta pesquisa atuando como pesquisadoras junto a mim, levantando, recolhendo e analisando dados, e como sujeitos da própria pesquisa – não como objetos de pesquisa –, como indivíduos “capazes de relatar visões e experiências válidas” (Alderson, 2005, p. 423). A compreensão da atuação das crianças como sujeitos implica na percepção de uma criança atuante, ou seja, [...] que tem um papel ativo na constituição das relações sociais em que se engaja, não sendo, portanto, passiva na incorporação de papeis e comportamentos sociais. [...] [E que], onde quer que esteja, ela interage ativamente com os adultos e as outras crianças, com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papeis que assume e de suas relações (Cohn, 2009, p. 28).

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Neste sentido, as crianças me ajudariam a falar de suas próprias experiências com as crianças indígenas, contando-me o que achavam que era pertinente que eu contasse a outros, de modo que este relato fosse formado em grande parte por suas palavras, para que eu e outros educadores pudéssemos refletir sobre nossas práticas e escolhas metodológicas e didáticas no que se refere ao trabalho com canções de outras culturas e com outras culturas.

Já no primeiro encontro, contei às crianças sobre a pesquisa e que elas participariam dela, se quisessem. Fiz questão de sempre deixar bastante claro o que eu pretendia com esse trabalho nas conversas com as crianças, assim, todas sabiam dos meus objetivos na pesquisa; elas sabiam que eu escreveria sobre suas relações com as crianças indígenas, e que elas participariam dessa “escrita”. Por diversas vezes, levava o trabalho escrito para que vissem como estava ficando; mostrava-lhes suas fotos (as que elas mesmas tiravam e as que nelas apareciam), seus textos, depoimentos, desenhos.

Fig. 27. As quatro Giovan(n)as do Tico-tico cantando enquanto eu escrevia este trabalho. Desenho

da Giovana D.

É curioso o fato de que as crianças viviam suas experiências na aldeia como se não fôssemos discutir essas experiências. Ainda que soubessem que contribuiriam com seus relatos e que eu escreveria sobre eles e os registraria aqui, isso não condicionava seu comportamento a uma “possibilidade contributiva”, isto é, o comportamento delas e suas 96

relações com as crianças guarani não eram fingidas, ainda que pudessem ser (já que sabiam o que eu pretendia verificar). Isso me surpreendeu porque, em alguns momentos, esperava mesmo que elas manipulassem seu próprio comportamento em razão de saberem que eu escreveria sobre isso, e isso não aconteceu. Elas simplesmente viviam aqueles momentos sem pensar sobre eles. Era espontâneo. Era real. Elas simplesmente viviam e depois me contavam como viveram.

Numa de nossas idas à aldeia, assistimos a uma partida de futebol entre dois times de adultos: o dos jurua e o do Santos, nome dado ao time guarani pelos próprios Guarani da aldeia. Havia ali dois tipos de torcida, uma para cada time. Sentamo-nos, as crianças não indígenas e eu, junto com os Guarani (adultos e crianças). Enquanto o jogo acontecia, perguntei a Giovana para que time ela estava torcendo. Ela me respondeu: – Estou torcendo para o time dos índios. – Ué – questionei – mas você não é jurua? – Eu estou torcendo para o time dos meus amigos – argumentou.

A intenção do questionamento que fiz a Giovana sobre torcer para um time que não a representava etnicamente falando, era verificar se a razão de sua torcida era autêntica ou se estava relacionada a fatores mais simples como estar rodeada por indígenas, por exemplo, ou até mesmo por imaginar que essa era a resposta que eu gostaria de ouvir. Mas ela me deu uma resposta inesperada e genuína: o seu time era o time de seus amigos. Certifiqueime, então, de que suas relações, assim como a resposta e argumento de Giovana, eram igualmente genuínas.

Acreditar na genuinidade dos atos e palavras das crianças é o primeiro passo para construir uma pesquisa que as envolve, e o interesse do adulto em relação ao que dizem e ao que fazem deve ser igualmente genuíno, pois as crianças percebem quando este acredita nelas, quando ele as empodera. A questão é o que o adulto pesquisador parece estar sempre desconfiado das atitudes das crianças e das informações que trazem, produzem, como se

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elas não fossem capazes de fornecer dados rigorosos sobre o que se pretende pesquisar. Ao contrário disso, o que as crianças nos ensinam é que “[…] if an adult has a genuine interest in their lives which they can comprehend, then they are most enthusiastic in their participation. […] Children do not have the same competence in communicating as adults but this does not mean that information from children is invalid. It rather means that we need to be sensitive to children’s development and find methods which maximize their ability to speak about issues which concern them in a manner which is most comfortable to them69 (Hart, 1992, p. 15).

Deste modo, a relação a ser estabelecida é de confiança, tanto por parte do pesquisador adulto (no que diz respeito a acreditar que as crianças são capazes de fornecer dados confiáveis), quanto por parte das crianças (no sentido dela acreditar que o pesquisador confia nela e que se interessa pelo que ela diz e por quem ela é).

Por fim, é de extremo valor que os envolvidos na pesquisa tenham acesso aos resultados do trabalho. Tanto a família do Elias quanto as crianças não indígenas acompanharam cada etapa da pesquisa da qual participavam e, assim, podiam acrescentar novas informações, retirar outras, fazer sugestões etc., afinal, o trabalho tratava delas.

“Se um adulto tem um interesse genuíno sobre suas vidas [das crianças], o qual as crianças podem compreender, então elas se mostram mais entusiasmadas em sua participação. [...] As crianças não têm a mesma competência em comunicação como têm os adultos, mas isso não significa que a informação da criança seja inválida. Ao contrário, significa que nós precisamos ser sensíveis ao desenvolvimento das crianças e encontrar métodos que potencializem sua habilidade de falar sobre questões que as preocupam da maneira que seja mais confortável para elas” (tradução nossa). 69

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Fig. 28. Elias e Iara acompanhando o trabalho feito com o Tico-tico, usando as canções que nos ensinaram. Fotos de Denise Fragoso.

III.2. Transculturalidade em educação musical Dentre as muitas definições de cultura que a literatura compreende, a que permeia este trabalho não é a elaborada por algum antropólogo, mas é aquela usada pelos próprios Guarani Mbya. Nhandereko é a palavra guarani usada como equivalente de “cultura”. Da maneira como foi traduzida, essa equivalência parece não revelar definição alguma. Porém, o que nos serve como definição é a sua tradução literal, em que nhande é “nosso/nossa” e reko é “vida”, “conjunto de costumes”. A tradução literal de Nhandereko é, portanto, “nossa vida”, “nosso modo de viver” (Macedo, 2012, p. 362). Partindo disso, temos que cultura significa para os Guarani seu modo de viver. Geertz (2013) e Bourdieu (2011) se aproximam dessa concepção de cultura dos Guarani – e vice-versa – e completam a definição quando tratam, respectivamente, da transmissão histórica da forma simbólica desse modo de viver e da invenção dos esquemas culturais:

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[Cultura] denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida (Geertz, op. cit, p. 66). [A cultura] constitui um conjunto de esquemas fundamentais, previamente assimilados, e a partir dos quais se articula, segundo uma “arte da invenção” análoga à da escrita musical, uma infinidade de esquemas particulares diretamente aplicados a situações particulares (Bourdieu, op. cit., p. 20).

A invenção a que se refere Bourdieu é ponto relevante na discussão apresentada neste trabalho. Ainda que cultura seja nhandereko e que este seja herdado, os modos de vida, a cultura, não são simples repetições de padrões comportamentais ao longo da história; são, antes, articulados de forma criativa, inventiva e dinâmica. Isso porque tais esquemas culturais, para Bourdieu,

produzem habitus, sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas pré-dispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador de práticas e representações que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los, e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente (1983, p. 60 e 61, grifos do autor).

A partir de padrões conhecidos, ou melhor, de padrões transmitidos historicamente, de estruturas já estruturadas, elaboram-se e estruturam-se novos esquemas, novos arranjos, novos símbolos e significados, funcionando como estruturas estruturantes, e criando, assim, novos nhandereko.

A compreensão deste movimento é ponto chave para a compreensão de uma cultura dinâmica e que se (re)faz por conta deste fluxo. Neste sentido, não seria coerente desconsiderar o movimento entre culturas, que possibilita a constante transformação de todas elas. Como emaranhado de linhas, as culturas se esbarram umas nas outras, transtecendo-se; e, se cada linha carrega consigo um repertório de símbolos herdados, inventados, compartilhados, cada uma delas não sai ilesa quando esbarra em outra e em 100

muitas outras mais. Contudo, ainda que não saiam ilesas, não deixaram de ser o que eram, no sentido de que não houve substituição de uma linha por outra (tampouco houve um upgrade [Kartomi, 2008, p. 366] – para combatermos ideias evolucionistas), isto é, elas não chegam a se perder já que não houve rompimento com o que já havia sido estruturado, mas, a partir e por causa do contato e do movimento causado entre as linhas envolvidas, estas se alteram, reelaboram-se em novas estruturas.

Cox e Assis-Peterson (2007, p. 35) traduzem o estado de fluxo entre uma cultura e outra como transculturalidade em que o “prefixo trans, dentre seus muitos sentidos, veicula aqueles de ‘movimento através de’, ‘movimento de ir e vir’, [...] ‘trânsito’, ‘circulação’, ‘troca’. Transculturalidade, portanto, é compreendida aqui como o movimento (entre culturas (fig. 29), e não pela troca de uma por outra, completando-se com a concepção de Kartomi (op. cit, p. 367) de que o termo não se refere às consequências desses contatos, mas aos processos de transformação que este movimento proporciona.

Se é proposto às crianças o contato entre culturas, é preciso considerar que estarão todas envolvidas num processo de transformação, de transculturalidade, e que, por isso, tal contato é capaz de alterar a maneira como compreendem sua própria cultura e como compreendem a si mesmas; neste processo, é bem pouco provável que saiam dele ilesas, como descrito no exemplo das linhas.

Fig. 29. Esquema demonstrando o movimento entre culturas, a transculturalidade.

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Pareceu-me, durante o desenvolvimento do trabalho, que são as crianças aqueles que possuem maior facilidade para transitar entre culturas e para quem os processos de transformação são mais intensos, ainda que possam ser despercebidos para elas. Essa intensidade, paradoxalmente, não tem a ver com uma espécie de “choque” entre as culturas, mas ao contrário: tem a ver com a sutileza com que os processos acontecem e como sutilmente se transformam. Por isso são intensos: porque são sutis.

Em diversos momentos desta pesquisa pôde-se verificar este trânsito intenso e sutil. O mais marcante, narro abaixo:

Contando aos meus alunos sobre uma das visitas que fizera, comentei que havia uma garotinha guarani que não pôde ir à represa conosco porque estava com leucemia, e que, então, não poderia correr risco de ficar gripada. Extremamente afetada pela história, Catharina pergunta: – Mas o pajé já pediu a Nhanderu para curar a menina?

Catharina, que não é guarani e que não acredita em Nhanderu, tinha convicção de que se o pajé pedisse ao demiurgo guarani pela cura da menina, este o atenderia. Em outras palavras, Catharina não acredita em Nhanderu, mas acredita que, para os Guarani, Nhanderu é real; logo, para ela, a menina poderia mesmo ser curada desse modo. Este é o paradoxo que envolve os processos transculturais que têm as crianças como protagonistas. Catharina não pensou se acredita, se não; se é verdade, se não é; e isto tampouco se trata de relativismo, como “o que existe para um, não existe para outro”. É mais intenso e mais sutil que isso: enquanto está se movimentando entre as culturas, entre lá e cá, e, somente enquanto se movimenta, ela carrega um pouco de lá para cá e leva um pouco de cá para lá inconscientemente. E porque é inconsciente, é impossível (ou improvável) sair ileso.

Sabrina, que é pouco mais velha que Catharina, quando reunimos os coros guarani e não indígena pela última vez para cantarmos juntos, já estava com 12 anos e já era capaz de perceber os processos de transformação. Perguntada se, quando cantava com as crianças 102

indígenas, cantava como as meninas guarani ou se cantava como cantam os jurua (em se tratando do timbre de cada grupo), disse que tentava fazer como as meninas guarani faziam. Isso revela que há um momento em que passamos a perceber o movimento de trânsito, e, então, os processos são menos sutis e menos intensos porque escolhemos o que carregar e levar de cada lado. Assim, quando o movimento é consciente, pode-se tentar evitar sair ileso dele. Eu, por exemplo, tenho a impressão de que percebia o movimento em mim, assim como Sabrina já percebe. No entanto, há um ano, Sabrina não parecia perceber, assim como Catharina, João, Giovana D., que são mais novos, não parecem se dar conta destes processos de transformação.

Já a relação da Giovana D., a mais nova do grupo, com as crianças guarani é totalmente diferente da relação que os mais velhos desenvolveram. Ela parece sequer perceber que não está entre iguais (etnicamente falando). Nessa mesma ocasião em que cantávamos juntos, ela era a única criança não indígena que não olhava para os pés (seus e das crianças guarani) enquanto dançava os cantos guarani, tentando fazer como as crianças indígenas faziam. Ela simplesmente dançava. Tanto é que, se for pedido a ela que dance, ela não dançará como dançam os Guarani, porque ela não é eles, e se estiver com eles, ela também não dançará como costuma dançar, porque, neste movimento e enquanto estiver nele, ela também não é ela. Alguns dirão: “quem é Giovana, então?”. Giovana, enquanto se movimenta entre as culturas, só se movimenta de lá para cá e de cá para lá sem se preocupar quem é, porque, enquanto se movimenta ela só é.

As relações, para as crianças mais novas, parecem se firmar não pela resistência ao outro, mas justamente na troca que estabelecem, assemelhando-se àquelas sociedades mencionadas por Viveiros de Castro cujo “(in)fundamento é a relação aos outros, não a coincidência consigo mesmas”, em que “nada disso [crer que o ser de uma sociedade é seu perseverar e estimar que, uma vez convertidas as sociedades em outras que si mesmas, perdem sua tradição e não tem mais volta] faça o menor sentido” (Viveiros de Castro, 2011, p. 195).

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Já na educação musical, a relação entre transculturalidade e educação musical, no que se refere ao trabalho com canções de outras culturas, pode ser ilustrada com o depoimento da Giovanna P., quando perguntada sobre sua opinião quanto à participação nesta pesquisa: Eu acho que, na maioria das escolas, [os alunos] não ouvem música indígena assim, porque as crianças também não devem gostar, achar legal, porque eles nunca conheceram os indígenas assim como a gente [conheceu]. Eu acho que eles [os alunos] não escutam música indígena. Eles, tipo, só cantam a música na nossa língua e em inglês, essas coisas, não em línguas tão diferentes como a dos indígenas. Eu acho importante também as crianças ouvirem [música indígena] na escola para conhecerem outras crenças, outros tipos de música, outros ritmos... que são diferentes, [que] a gente não ouve sempre (Giovanna P.).

A música na escola, enquanto expressão de culturas, permite a coexistência de diversas e diferentes músicas em um único ambiente – o escolar. Essa multiplicidade de ideias de música reflete a cultura a que cada aluno pertence e que é levada para dentro da escola. Assim, se há diversas ideias de música coexistindo no ambiente escolar, é possível afirmar que as crianças que fazem parte deste ambiente estejam em constante movimento, transitando de uma música para outra, de uma cultura para outra, até que convirjam para uma ideia de música comum (como só ouvir músicas em inglês, somente um tipo de música). No entanto, essa ideia comum, perdura somente até que outros movimentos mais sejam provocados com “outros tipos de música, outros ritmos diferentes [...] [que] a gente não ouve sempre”.

Quando o professor escolhe o repertório a ser trabalhado com as crianças, ele atua como mediador ou como provocador da transculturalidade, mas com foco nos aspectos musicais, interferindo no fluxo de ideias de música trazidas pelos alunos. Nesse sentido, o professor tem poder de afetar o percurso das linhas musicais emaranhadas, alterando, rearranjando as ideias de música individuais. Na aula de música, portanto, a transculturalidade é reforçada pelo movimento de uma música a outra, e pode alterar as estruturas musicais formando outras que não se formariam sem este contato, e, em consequência, desarranja as estruturas anteriores para que novas se estabeleçam. Esta é a razão porque o repertório musical da criança é ampliado quando exposta a músicas de outra cultura: por conta do contato entre

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emaranhados de linhas musicais causado pelo movimento entre músicas, provocando a alteração de tais linhas.

III.3. A opy na sala de música, a sala de música na opy Visando a uma prática de ensino significativa que contribua para a formação tanto musical quanto social do aluno no que se refere à inclusão de canções indígenas (e de outras culturas), é necessário que o educador planeje o trabalho com estas canções considerando algumas questões: “quanto eu sei sobre isso?”, “onde encontro mais informações sobre este conteúdo?”, “quais são as fontes de pesquisa confiáveis?”, “qual é o contexto cultural em que a canção está inserida?”, “quais questões relativas a essa cultura são relevantes para o trabalho, no sentido de deixá-lo mais completo, denso e coerente?”. Quando Elias Vera diz “se você ensina [a música guarani] para um aluno seu, esse aluno vai ensinar para outros e vai ajudar a divulgar nossa cultura, nosso povo. [...] Vai diminuir o preconceito”

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, explicita-se que, para o xeramoĩ, apresentar às crianças não indígenas

outras possibilidades sonoras (e, portanto, também culturais) soava como oportunidade de redução do preconceito em relação à sua cultura, causado pela formação de estereótipos e pelo desconhecimento. Além disso, evidencia-se em sua fala a impossibilidade de dissociação do par música/cultura, no sentido de que não é coerente falar de música sem falar de cultura. Tanto é que Giovanna percebeu isso quando disse acima “eu acho importante também as crianças ouvirem [música indígena] na escola para conhecerem outras crenças”, ou ainda, no relato de Gabi sobre sua participação no trabalho que envolvia música guarani: “eu achei bem legal, principalmente por conhecer outra cultura e o modo como eles vivem”. A primeira pergunta feita pelas crianças não indígenas quando fomos aprender a canção Oreru Nhamandu Tupã foi sobre o significado do texto da canção (o qual era formado unicamente pelas três palavras do título). A tradução “Nossos pais, Nhamandu e Tupã” levou-os inevitavelmente à pergunta seguinte: “Quem são Nhamandu e Tupã e de quem 70

Trecho citado na página 76.

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eles são pais?”, o que exigiu uma explicação que abordasse alguns aspectos da cosmologia guarani. Se o conteúdo é música guarani, também o será a cultura guarani, isto é, sua cosmologia, língua, vestimenta, alimentação. A música faz parte do nhandereko71 guarani; assim, para estudá-la, deve-se também estudar seu nhandereko, ou seja, o modo de vida desse povo, como concluiu Gabi. A tentativa desta abordagem é justamente combater práticas de trabalho descontextualizadas que pouco – ou nada – significa para o aluno e para as comunidades indígenas. Não é significante para o aluno porque, como vimos, é descontextualizada, não corresponde à realidade indígena. Para as comunidades indígenas, em nada os favorece porque não são desfeitos os estereótipos, ao contrário, reforça-os, causando, em consequência, uma visão equivocada sobre quem de fato são e, inclusive, sobre o que representam para a história do país, para o meio-ambiente e para a sociedade. Para que esse tipo de prática seja revogado, compreende-se aqui a sala de aula como um dos espaços favoráveis à promoção de discussões que tratem das questões indígenas com seriedade, correspondendo à atual – e real – situação de suas comunidades no país para que, afinal, os estereótipos sejam desfeitos, e, em consequência disso, suas culturas sejam, pelo menos, respeitadas. Desse modo, um trabalho que pretende incluir canções indígenas de qualquer etnia, ou mesmo de outras culturas, deve estar precedido de um trabalho de pesquisa aprofundado sobre as culturas às quais tais canções pertencem e sobre os valores que estas trazem consigo de modo que, a partir do (re)conhecimento destes valores, o aluno possa compreender o que determinada canção representa para a sociedade estudada.

Desse modo, práticas significativas de trabalho estarão fundadas numa abordagem que não dissocia contexto de conteúdo, que não dissocia música de cultura e que (re)pensa suas estratégias a partir dessa relação. Ou seja, para que o trabalho seja significativo, alcançando, assim, o objetivo maior que é a formação integral da criança, as estratégias de trabalho serão elaboradas considerando os conteúdos que se desejam abranger; e estes, por sua vez, serão conduzidos sempre de forma contextualizada.

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Página 68.

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Fig. 30. Diagrama: prática significativa.

Por este diagrama, pode-se verificar que se forem excluídos quaisquer desses grupos “contexto”, “conteúdos” ou “estratégias”, a interseção resultante dos conjuntos, que representa a prática significativa (isto é, aquela que contribui positivamente para a formação humana do aluno), deixará de existir. Tratar só dos conteúdos não resulta em uma prática significativa, assim como não resultará se forem desconsiderados o contexto e as estratégias, ou combinações disso.

Nos trechos a seguir, a título de exemplo, será apresentada a maneira como aconteceram os trabalhos que tinham como objetivo incluir canções guarani no repertório de um coro infantil. Já tendo, então, sido discutidos os contextos relativos à canção guarani e o conteúdo que se pretendia trabalhar com as crianças não indígenas (cap. 2), descreveremos quais foram as estratégias, os caminhos escolhidos para este trabalho, fazendo a ressalva de que estes devem ser elaborados de acordo com o grupo com o qual se trabalha. Isto significa que, ainda que o conteúdo seja o mesmo, toda vez que o professor for tratar dele com diferentes grupos de crianças, as estratégias deverão ser repensadas, reelaboradas, reinventadas. Deste modo, o caminho percorrido aqui, mais uma vez, trata de uma escolha feita considerando qual era meu grupo, quem eram as “minhas crianças”.

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III.3.1. Os encontros, as oficinas, as discussões A fim de contextualizar o trabalho que envolvia a música guarani, foram realizados com as crianças diversos encontros, oficinas e discussões que tratavam do nhandereko guarani. No primeiro encontro, contei a eles que cantaríamos algumas canções guarani e que visitaríamos a aldeia onde essas canções eram cantadas. Expliquei que lá recolheríamos informações sobre a música dos Guarani e sobre sua cultura. As curiosidades, eu ia desfazendo aos poucos, ou não as desfazia para que as crianças fossem sozinhas rearranjando suas impressões. Assim, no primeiro momento, discutimos sobre suas expectativas em relação às visitas à aldeia, e, em seguida, pedi a elas que escrevessem sobre elas. Dentre as dúvidas, as que mais apareceram se referiam ao lugar onde os Guarani dormiam, ao que vestiam e ao que comiam. Outras faziam menção aos costumes, ao dia-adia, à maneira como cuidam dos doentes, à aparência, à língua, além das especulações sobre o que os Guarani fariam quando os vissem. Só uma das crianças registrou dúvidas quanto aos instrumentos musicais que usavam. – Mas eles andam pelados? – perguntou uma das crianças sobre os Guarani que visitaríamos. A criança mais nova do grupo responde: – Eu assisti uma apresentação de uns índios e eles usavam um negócio que cobria aqui [mostrando a parte de baixo]72. – E as mulheres? – pergunto à aluna – Usavam alguma coisa? Entendendo a razão de minha pergunta, ela responde desconfiada: – Ah, em cima não tinha nada... Outra pergunta: – Prô, a gente vai ter que ficar pelado? – Você acha que eles andam pelados? – pergunto. Sem resposta à minha pergunta, outra criança se adianta: – Eu não vou ficar pelada... Outra especula:

72

A aluna se referia às apresentações feitas pelos índios do alto Xingu na Toca da Raposa (na cidade de São Paulo), que acontecem entre abril e meados de maio. Mais informações em http://www.tocadaraposa.eco.br/#!ndios-do-xingu-/c1qhs, acessado em 15/01/2015.

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– Será que se a gente não ficar pelado, eles vão atirar uma flecha na gente? Vou levar um escudo! – Eu ficaria pelado – um dos meninos responde. – Ah, é? Você ficaria? Por quê? – pergunto. – Pra eu poder me familiarizar.

Fig. 31. Impressões e dúvidas sobre os Guarani e sobre a visita à aldeia Tenondé Porã: “Aldeia Tenonder. Perguntas: Vocês comem doce? Sim ( ) Não ( ) Mais ou menos ( ). Onde vocês dormem? Onde vocês fazem xixi e coco? Onde vocês fazem comida? Onde vocês tomam banho?”.

Fig. 32. Impressões e dúvidas sobre os Guarani e sobre a visita à aldeia Tenondé Porã: “Aldeia Tenonder. Minhas Perguntas: 1 – Eles ficam pelados? 2 – eles dormem a onde? 3 – eles são gordos ou magros? 4 – Eles fazem cocô a onde? 5 – Vocês tomam banho?”.

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Fig. 33. Impressões e dúvidas sobre os Guarani e sobre a visita à aldeia Tenondé Porã: “1- Que língua eles falam? 2 – Onde eles fazem as necessidades? 3 – As mulheres usam sutiã? 4 – Eles matam animais para comer? 5 – Eles vão mandar nós tirarmos a roupa? 6 – Como eles cozinham a comida? 7 – Eles dormem em redes? 8 – Como eles ganham dinheiro? 9 – Se eles nos vissem eles nos matariam? 10 – Eles tomam remédios quando ficam doentes?”.

Fig. 34. Impressões e dúvidas sobre os Guarani e sobre a visita à aldeia Tenondé Porã: “1 – Eles tem camas? 2 – Como eles se vestem? 3 – Eles andam sem roupa? 4 – Qual o significado das pinturas feitas na pele deles? 5 – Eles conhecem algum tipo de tecnologia? 6 – Eles irão pedir para a gente tirar a roupa? 7 – O que eles fazem quando algum deles fica doente? 8 – O que eles comem? 9 – Qual a atividade econômica eles praticam? 10 – O que eles fariam se nos vissem?”

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Fig. 35. Desenhos do João sobre suas impressões quanto à visita que seria feita à aldeia.

Vale observar que as dúvidas e impressões que as crianças tinham sobre os Guarani e sobre seu nhandereko partiam todas de impressões previamente construídas, influenciadas pelo tipo de informação a que tiveram acesso até então. Nos desenhos do João (fig. 35), por exemplo, os desenhos da parte superior da figura remetem ao estereótipo de índio americano, da maneira como retrata grande parte da mídia, como o índio montado ao cavalo e a tenda onde outro se esconde. Ainda assim, João registra um indígena descansando na rede (canto inferior direito) e confessa o desejo de se fazer amigo de um Guarani (canto inferior esquerdo), apesar do discurso de medo descrito no texto feito acima dos desenhos: “Estou com dúvida do que vão fazer com a gente: ter medo e atirar na gente com flechas ou se vão nos receber educadamente”.

Depois de lançarmos nossas impressões sobre como seriam as visitas, a pesquisa, contei às crianças que teríamos todos um diário de campo, onde escreveríamos sobre o que achássemos relevante para o trabalho. Ali poderia conter informações que fossem úteis a elas e/ou a mim. Apresentei a elas alguns exemplos de diários de campo (fig. 36) e, em seguida, propus que fizéssemos uma capa para o diário (figuras 37 e 38), inspirando-se em 111

alguns elementos artísticos indígenas. Ainda que eu contasse com uma professora de arte me orientando, não consegui mostrar às crianças as especificidades artísticas dos Guarani e de outras etnias, tratando, somente dos aspectos gerais de alguns padrões gráficos.

Fig. 36. Um dos exemplos de diários de campo mostrados às crianças: “Anotações de Luis Saia, amigo e companheiro de Mário de Andrade, durante as ‘Missões de Recolhimento de Material Folclórico’” 73.

Fig. 37. Capa do diário de campo da Thais, à esquerda, e João Henrique fazendo a sua capa, à direita.

73

Disponível em http://brasileiros.com.br/2013/06/meu-poeta-futurista/, acessado em 02/09/2014.

112

Fig. 38. Capa do diário de campo do Rafael.

Fig. 39. Exemplo de registro feito no diário de campo da Sabrina a partir de uma foto feita por ela: “A pequena Giselda Rete’i na opy”. Legenda, foto e desenho feitos pela Sabrina.

Realizamos também uma oficina de língua e cultura Guarani com o músico paraguaio Nicolás Salaberry, convidado pelo professor Pedro Paulo Salles. Neste encontro, Nicolás apresentou às crianças algumas questões sobre língua guarani, tais como as palavras de origem tupi-guarani que encontramos na cidade de São Paulo; tratou da maneira com que os índios que habitavam o Brasil antes de 1500 receberam Pedro Álvares Cabral, passando por questões atuais referentes às terras indígenas; ensinou-nos uma canção em guarani do Paraguai, e, por último, tirou dúvidas das crianças sobre como dizer algumas coisas nesta língua. Suas dúvidas eram bastante práticas e retratavam a expectativa quanto ao encontro: queriam saber como se dizia “oi”, “como é seu nome?”, “como vai”, “quero fazer xixi”, “não quero” etc. Pelas perguntas, percebi que estavam bastante preocupadas com a 113

possibilidade de serem forçadas a fazer algo que não correspondesse à sua cultura, e, nos encontros seguintes, isso foi comprovado. Com o tempo, essas questões deixaram de existir, como se pode ver descrito no capítulo III.3.2 – O dia dez – , mas durante essa oficina de língua e cultura Guarani, as crianças queriam garantir que seriam capazes de comunicar suas vontades e de fazer amigos.

Fig. 40. Oficina de língua Guarani com Nicolás Salaberry. À direita, detalhe das anotações das crianças.

Fig. 41. Diário de campo da Giovanna B. Descrição da aula de língua guarani.

114

Fig. 42. Diário de campo do Rafael. Descrição da aula de língua guarani: “Hoje estamos aprendendo a falar na língua TUPI-GUARANI. Aprendia que VY’A quer dizer alegria e que Ỹ quer dizer água, JUKÝ quer dizer simpático. O professor [contou] a história de como ele aprendeu a falar guarani”.

Fig. 43. Diário de campo da Giullia. Descrição da aula de língua guarani: “Neste dia estamos aprendendo a falar TUPI e com isso já sabemos que eles não desenvolveram a escrita, somente usam a voz para se comunicar”.

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Como não poderia faltar, ao final da oficina, Nicolás ensinou às crianças uma canção paraguaia em guarani – Torore Mbyky (Breve acalanto), da qual disponho abaixo a partitura, a tradução e o guia de pronúncia:

Partitura 12. Torore Mbyky. Tema popular de Villeta – Paraguai, recolhida por José A. Goméz Perasso e usado por Nicolás Salaberry na oficina.

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Guia de pronúncia74

Mita’i churi

Tradução livre (feita por Nicolás Salaberry) Menino pequeno/abandonado

Kasó mboka’i

De calças curtas,

Cas-SÔ mbo-ca-‘Í

Rye andai

Barriga de abóbora

Ry-e an-da-I

Pysa sarambi.

Dedo (do pé) espalhados

Pys-As sa-ram-BI

Torore rore

Acalantar (balançar)

To-ro-RE ro-RE

Chikichiki chi

Chikichiki chi (sons onomatopáicos de um berço)

Chi-ki-chi-ki CHI

Pancho kokuere

O sítio do Pancho (nome próprio, abreviação de Francisco)

PAN-cho ko-kuê-RÊ

Nde py ombochara

Seus pés esparramam (despenteiam o campo arado)

Ndê py om-bo-cha-RA

Mita’i churi

Menino pequeno/abandonado

Mi-ta-‘I chu-RI

Kasó mboka’i

De calças curtas,

Cas-SÔ mbo-ca-‘Í

Rye andai

Barriga de abóbora

Ry-e an-da-I

Chumbe jokoha.

Por um cinto seguradas/sustentadas

Chum-be jo-ko-RRA

Letra

Mi-ta-‘I chu-RI

Quadro 15. Letra, tradução e guia de pronúncia de Torore Mbyky.

74

Por se tratar de Guarani Paraguaio, há algumas diferenças na pronúncia.

117

Em um encontro anterior a essa oficina, conversei com as crianças sobre a existência de diversas línguas indígenas faladas no Brasil. Para que tivessem uma informação consistente sobre a quantidade de línguas indígenas que há no país, preparei um painel com quase todas elas, dividas por famílias linguísticas e etnias (fig. 44). Perguntei às crianças quantas línguas indígenas conheciam, e todos conheciam somente o tupi-guarani. Fui aos poucos desenrolando o painel de pouco mais de dois metros de comprimento, e elas não acreditavam na quantidade de línguas diferentes! Este momento foi essencial para que compreendessem a diversidade não somente linguística e étnica, afinal, cada etnia e cada língua apresentada trazia uma carga musical e cultural também diversa, rompendo, portanto, com a ideia equivocada e estereotipada de um índio genérico.

Fig. 44. Painel apresentado às crianças, contendo todas as línguas indígenas faladas no Brasil.

A oficina de instrumentos indígenas com o professor Pedro Paulo Salles reforçou a noção de diversidade cultural indígena, pois foram apresentados às crianças diversos instrumentos musicais de etnias distintas. Neste momento, as crianças puderam comparar as impressões que tinham sobre instrumentos indígenas (que se resumiam a tambores e chocalhos) com a diversidade instrumental indígena brasileira. Num segundo momento, após a primeira visita à aldeia, quando cantaram junto com as crianças guarani, compararam o que haviam visto 118

na oficina com o que viram ali: “eu achei que eles [os Guarani] tocavam todos aqueles instrumentos que o Pedro Paulo mostrou pra gente, mas daí lembrei que cada etnia era diferente”, observou Pedro A. quando perguntei ao grupo sobre os instrumentos musicais que viram na opy.

Fig. 45. Professor Pedro Paulo Salles conduzindo oficina de instrumentos indígenas. À direita, crianças se escondem do zunidor, instrumento giratório. Fotos de Daisy Fragoso.

Fig. 46. Oficina de instrumentos indígenas com Pedro Paulo Salles. À direita, crianças tocam as flautas de uruá, instrumento musical presente em diversas etnias do Xingu. Fotos de Daisy Fragoso.

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Sobre esta oficina, as crianças registraram: Nesta aula, veio o professor Pedro Paulo e trouxe muitos instrumentos indígenas. Um deles foi uma rabeca que é parente do violino. Ele nos mostrou um instrumento que tem som de trovão chamado zunidor. Conclusão: a aula foi muito legal. O professor foi muito legal e educado, e, no fim, deixou a gente tocar nos instrumentos dele (Rafael, grifo do aluno). Eu gostei dessa aula, pois foi com o Pedro Paulo, um homem que trouxe muitos instrumentos indígenas [e] que no futuro irá doar esses instrumentos a um museu. A cola que grudava os instrumentos era feita de cera de abelha, e as cores mais usadas eram preto, vermelho e branco (Giovanna P.).

Fig. 47. Diário de campo da Giovanna B., à direita, e do João Pedro, à direita. “Aula do Pedro Paulo. Hoje eu estava na aula do Pedro Paulo tocando muitos instrumentos indígenas. Foi muito legal, cada instrumento tinha um som. Instrumento de corda. Instrumento de sopro. Instrumento de mecher. Instrumentos que lembro o nome: flauta, rabeca, zunidor (tem muito mais, só que não lembro o nome)”.

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Fig. 48. Sofia apresentando os desenhos que fez sobre a oficina de instrumentos indígenas. Foto de Daisy Fragoso.

Fig. 49. Diário de campo da Giovanna P. Registro sobre a oficina de instrumentos indígenas: “Zunidor, Rabeca, Pau-de-chuva, Flauta Gigante, Flauta tocada pelo nariz, Flauta de Nárnia”.

Depois das oficinas, mostrei às crianças a música Kyrĩgue’i peju jajeroky, que havia aprendido na aldeia. Levei para elas uma gravação da canção75 e lhes traduzi o que estava sendo cantado. Optei – para esta e para a maioria das canções que aprenderíamos – por não distribuir partituras às crianças, por dois motivos: o primeiro é que eu pretendia que eles visualizassem as palavras por inteiro e não “picotadas” como vêm na partitura; o segundo é que eu gostaria que a canção fosse aprendida oralmente, que é como as crianças guarani também aprendem. Eu cantava uma pequena frase da canção e eles repetiam, e, durante o

75

Ñande Arandu Pygua – Parte 1 – (2004).

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processo, fazia algumas pausas para corrigir alguns erros na pronúncia. Depois que já sabiam um pouco a canção, mostrei-lhes um painel com a letra para que comparassem a sonoridade das palavras à maneira como se escreve a língua guarani. As crianças não indígenas participantes são capazes de fazer uma leitura “funcional” de partitura, isto é, elas não sabem exatamente os valores das notas nem suas alturas, mas conseguem acompanhar a melodia pelo movimento das notas na partitura e de saber os momentos em que as vozes se dividem, e reconhecem as figuras mais longas, os grupos de figuras mais rápidas, os sinais de articulação, dinâmica e repetições. Entretanto, ainda que o grupo e eu estivéssemos acostumados com o uso da partitura durante a aprendizagem de canções, e que este recurso, para nós, agilizasse o trabalho, a escolha de não fazer uso da partitura deixou claro para as crianças que a aprendizagem de canções guarani não envolveria este recurso porque era assim que as crianças aprendiam na aldeia. Assim, todas as canções guarani que aprendemos e que pretendíamos cantar exatamente como se canta na aldeia foram ensinadas e aprendidas, de certo modo, como se faz na aldeia. A aprendizagem das canções entre os Guarani e mesmo a maneira como concebem a própria aprendizagem envolvem muitas outras questões culturais (sobre as quais já tratamos anteriormente e falaremos ainda mais à frente) e, por essa razão, não podem ser resumidas nem comparadas ao que fazíamos nos nossos encontros, e tanto as crianças não indígenas quanto eu estávamos cientes disso. No entanto, o que se pretendia era apresentar às crianças (acostumadas a uma “maneira coral” de aprender canções) que havia outras maneiras de se fazer isso. Tanto é, que a canção Oreru Nhamandu Tupã foi ensinada a elas de dois jeitos: oralmente e com partitura. O primeiro jeito se refere ao modo como aprenderam na aldeia: o coro guarani cantou uma vez e depois nos convidaram para cantarmos junto com eles, e assim também fizemos com esta canção em separado. Já a partitura foi usada quando fomos nos preparar para apresentar um arranjo para coral infantil escrito por mim dessa mesma canção. Assim, na partitura constavam as vozes, o que cada um faria em determinado momento e outras orientações gráficas. Assim, o trabalho com o coral não indígena, baseado nas canções guarani que aprendemos na aldeia, foi desenvolvido de diversas maneiras: as crianças cantaram como se cantava na aldeia, cantaram um arranjo já pronto, compuseram outros, fizeram improvisações a partir 122

das canções guarani que conheciam; enfim, cada abordagem correspondia a um propósito estabelecido, ou seja, se o foco era a criação, a abordagem era uma; se o foco era o aprofundamento na cultura guarani, o caminho escolhido era outro; e assim por diante. O que se pretendia com esse grupo, portanto, era que o trabalho que envolvia as canções guarani recolhidas na aldeia fosse o mais diverso possível, mostrando às crianças que é possível incluir tais canções no repertório coral, na educação musical, na escola, na vida delas.

III.3.2. O dia dez No dia 26 de agosto o Coral Tico-tico foi formado pela professora Daisy. Ela nos disse que iríamos a uma aldeia indígena no dia 10 de novembro chamada Tenondé Porã [...] (Diário de campo de Pedro A.).

Passamos o semestre trabalhando e esperando pelo dia dez – o dia de visitar a aldeia guarani Tenondé Porã. Finalmente o dia chegou. Digo finalmente porque, de acordo com as crianças, parecia que nunca chegaria.

Estávamos todos muito ansiosos: crianças e eu. Nas duas últimas semanas que antecederam à visita, fizemos uma campanha de doações de roupas e alimentos para a aldeia, e as crianças se empenharam bastante nesta tarefa. Foram elaborados e divulgados nas redes sociais vídeos e fotos pedindo às pessoas que ajudassem doando. Quando cheguei logo pela manhã ao nosso ponto de encontro (de onde partiríamos para a aldeia), as crianças vieram me receber carregando muitas sacolas! Era tanta coisa que foi preciso providenciar mais um carro para a comitiva (estávamos em 2 carros e uma van), para que pudéssemos levar tudo conosco. Mas, ainda assim, não coube tudo.

Partimos. No caminho, algumas crianças cantavam, espontaneamente, a canção guarani que haviam aprendido – Kyrĩgue’i peju jajerojy (partitura 9) – alternando esta com outra que conheciam: The Lion sleeps tonight, cuja primeira frase diz “In the jungle/ the mighty

123

jungle/ the lion sleeps tonight76”. A sensação que tinham, pareceu-me, era de que elas iriam explorar, em Parelheiros (bairro da capital paulista), uma selva inteira junto com as crianças indígenas.

Fig. 50. No caminho para a aldeia. Desenho de Giovana D.

Fig. 51. No caminho para a aldeia. Desenho de João Pedro.

No caminho, também foram levantadas questões, e estas remetiam a outras feitas no início do trabalho. Aliás, a trajetória percorrida por essas questões é algo para se ressaltar. Por exemplo: uma das perguntas feitas pelas crianças indagava sobre que língua os indígenas desta aldeia falavam. Conforme foram acontecendo as oficinas e discussões, as crianças aprenderam que, na aldeia guarani que visitaríamos, os indígenas falavam a língua Guarani Mbya. A pergunta, então, passou de “que língua falam?” para “como eu os entenderei?” ou “como eu vou falar com eles?”. Porém, no caminho para aldeia a pergunta feita passou a ser “as crianças também falam português?”, e a razão dessa pergunta se dava pelo fato de que

76

“Na selva, na profunda selva, o leão dorme esta noite”.

124

elas já haviam descoberto que os adultos guarani eram bilíngues, isto é, falavam tanto guarani quanto português.

Antes dessa primeira visita com o grupo, cada ida minha à aldeia (quando eu ia sozinha) era compartilhada com as crianças. Contava a elas tudo o que havia visto, ouvido e aprendido; contava-lhes as histórias do Elias, o xeramoĩ; contava-lhes como as crianças me ensinaram a cantar a música Kyrĩgue’i peju jajerojy; contava-lhes meus anseios e minhas impressões. Parece trivial, mas através destes relatos, as crianças iam se apropriando de informações que a ajudavam na composição de seu quadro de impressões sobre uma nova cultura, rearranjando-as de forma que as anteriores cedessem lugar a outras novas, menos estereotipadas ou fantasiosas.

Outra questão que inquietou bastante o grupo no início tratava da possível nudez indígena, conforme visto acima nos registros de campo de algumas delas. Nos dias que antecederam ao primeiro encontro, quando souberam da visita à aldeia, a principal dúvida era se eles teriam que ficar “pelados” como os índios ficavam. Em nenhum momento, nesta ocasião, eles perguntaram o que os índios vestiam nem se eles se vestiam. Perguntaram – e responderam – “Terei de ficar pelado? Porque eu não vou ficar pelado!”. Questões como essa eu deixava sem resposta. Não respondia para que elas percebessem e concluíssem sozinhas. Assim, durante minhas narrações, eu ia lhes dando pistas sobre estas dúvidas, às vezes despropositalmente, às vezes com esta intenção, para que elas fossem descontruindo estereótipos e (re)formulando impressões sobre este e outros assuntos. Assim, quanto a isso, em vez de lhes responder objetivamente, eu as instigava com o comentário “eu já fui muitas vezes lá na aldeia...”, fazendo com que a expressão deles indicasse estranhamento e indagações internas, deixando-os com macaquinhos no sótão, como se costumava dizer.

O mistério que mantive em minhas respostas enigmáticas (sobre este e outros assuntos) os fez buscarem, naquilo que tinham à sua mão, a resposta para a questão da vestimenta. Passaram a observar atentamente as fotos feitas por mim na aldeia, assim como algumas páginas relacionadas a causas indígenas nas redes sociais. Além disso, se deram conta de que estavam envolvidos em uma campanha de doação de roupas para a aldeia. Tudo isso, 125

pouco a pouco, fez essa inquietação, sobre andarem nus ou vestidos, se dissipar. Fazê-los pensar e chegar à resposta por seus próprios meios (ainda mais sabendo que eles tinham pistas à disposição, caso eles se dispusessem a buscá-las) era o que eu pretendia.

Quanto à arrecadação de roupas para doação, um fato curioso: enquanto eu ia a certos lugares em busca de doações, os adultos em geral me perguntavam “então você quer vestir os índios?” ou “eles são índios, então não precisam de roupas, precisam?” ou ainda “então não são mais índios!”. Com as crianças que participavam do trabalho isso não ocorreu. Eu esperava mesmo que, quando eu dissesse que levaríamos roupas e alimentos à aldeia, perguntas como estas surgissem, mas não surgiram. Não duvidaram em nenhum momento de que um índio vestido não deixa de ser índio.

Se for dado espaço a discussões sobre estas questões em sala de aula, na escola, nas aulas de música, onde quer que seja, não será preciso muito para que as crianças alterem suas impressões iniciais, em geral fruto de estereótipos veiculados por livros didáticos e pela mídia. A diferença e, por isso, a importância de tratar destes assuntos com as crianças, enquanto crianças, é que, sim, elas já possuem impressões sobre muitas coisas, mas suas impressões estão, na maioria das vezes, desprovidas de tantos pré-conceitos, ou melhor, as impressões que as crianças têm sobre diversos assuntos não são, necessariamente preconceituosas, já que elas não formaram ainda opiniões/conceitos fechados sobre isso. Por estarem, normalmente, mais abertas ao novo, a passagem de uma impressão para outra mais contextualizada é mais sutil e espontânea, como testemunha Gabriela: – O que você achou da aldeia, Gabi? Era como você imaginava? – pergunto. – Ah, prô, não sei. Depois que eu vejo, eu esqueço como eu imaginava antes de conhecer77.

Assim aconteceu com o caso sobre a nudez indígena. As crianças não trocaram suas impressões sobre vestimenta por outras novas porque era bonito que assim fosse ou porque

77

Gabriela começou a fazer parte do Tico-tico seis meses depois de termos iniciado nossas atividades. Essa conversa aconteceu após sua primeira visita à aldeia.

126

pensaram que um bom cidadão não pode ser preconceituoso. Elas simplesmente abandonaram as primeiras impressões que tinham, sem se dar conta de que as tinham e sem perceber que agora já não as possuíam mais. – Vocês, no começo, achavam que os Guarani andavam pelados e que vocês teriam que ficar pelados quando fossem à aldeia. Quando chegou o dia de ir à aldeia, vocês ainda achavam que teriam de ficar pelados? – Não, prô. A gente já sabia que eles usavam roupas. – E como é que vocês sabiam disso? – Não sei. A gente já tinha percebido. – Perceberam? Como perceberam? – Sei lá. Pelas coisas que você contava de lá [da aldeia]. – E as doações? Quando organizamos as doações, vocês não estranharam? Por que roupas para os índios? – Não [estranhamos]... A gente imaginou que eles estavam precisando de roupas. – Ué! Mas vocês não achavam que eles andavam sem roupa? – Ah, a gente achava. Mas também achava que eles vestiam roupas. – E quando foi que vocês deixaram de achar que eles andavam sem roupa? – Sei lá. A gente só parou de achar.78

Ficou claro, neste caminho percorrido pelas dúvidas destas crianças quanto à cultura indígena em geral, que elas não têm pré-conceitos cristalizados. Elas têm, na verdade, impressões – às quais Lévi-Strauss chama de referências (2012, p. 85) –, e estas são elaboradas através das experiências que viveram e, por isso, as impressões são tão diferentes umas das outras. O ponto é que, no caso da cultura indígena guarani e de outras etnias, essas impressões são formadas a partir de um estereótipo de índio já enraizado através dos veículos de comunicação, e esse estereótipo é a única experiência nesse sentido que as crianças têm, reduzindo suas impressões, que poderiam ser diversas e mais ricas, a uma só e que é, além de tudo, uma falsa impressão. 78

Conversa com o grupo cinco meses após a primeira visita deles à aldeia.

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É possível que o fato de trabalhar com este grupo há cinco anos tenha exercido influência sobre a forma de pensar destas crianças (ainda que o grupo deste último ano não tenha sido – como os outros – formado por meus alunos de escola regular). Construímos juntos, com o tempo, uma “mentalidade coletiva”, única, e estou ciente disso. No entanto, a proposta neste trabalho é que o professor, partindo dessas reflexões, elabore com seus alunos uma prática mais densa e significativa no trabalho com este tipo de repertório, afinal, não é só o trabalho com o repertório em si, com foco na pronúncia, afinação etc., que importa. É mais do que isso. É um trabalho que permita à criança experimentar uma nova música e toda a bagagem a que esta música remete, isto é, as crenças, valores, ideias de música, ideias de mundo que envolvem esta música, que envolvem outras questões mais. No caso das questões indígenas, um trabalho que as compreende (e a música abre esse caminho),

[...] permite tratar da crítica aos preconceitos, desenvolver a aceitação daqueles que não são iguais a nós, e exercitar o respeito à diferença em geral, seja ela de gênero, de cor, de religião, de constituição física ou, como neste caso, a diferença étnica e cultural (Tassinari, 2004, p. 445).

O que nos conta Tassinari acima pôde ser verificado já no primeiro dia, quando as crianças lançaram à roda suas impressões sobre a visita e os amigos que fariam, e as registraram em seus diários de campo. Um encontro alicerçado numa questão musical trouxe à tona outras questões não musicais, com as quais as crianças se preocuparam mais e com as quais tiveram que encontrar alguma maneira de lidar ao chegarem à aldeia. Estas preocupações repousavam no lidar com as diferenças e no exercício do respeito e tolerância ao Outro. Mesmo assim, a expectativa em relação a este encontro era otimista, como narra João:

Eu gostaria de ver como os índios se alimentam, dormem, e também gostaria de caçar com eles, ver como convivem entre si. Eu também gostaria de saber como fazem e agem com coisas diferentes, novas. Estou com dúvida do que vão fazer com a gente: [se vão] ter medo [e] atirar na gente com flechas ou vão nos receber educadamente. E quero ver os animais dela (João Pedro, 8, especulando sobre a primeira visita que ainda não havia sido feita).

Nesse sentido, é a experiência que faz com que sejam elaboradas novas impressões, e estas, por sua vez, moldam conceitos sobre diversos assuntos. É sobre a qualidade das 128

experiências vividas e como elas são orientadas que recai a responsabilidade da elaboração de novas impressões, da formação de novos conceitos e, assim, da formação do indivíduo.

*** Quando chegamos à aldeia, a primeira observação que uma criança fez foi “Prô, a aldeia tem um cheirinho bom...”. Em uma de nossas conversas (antes da nossa visita), contei às crianças que, certa vez, quando visitava a aldeia, presenciei a visita de outro grupo de crianças não indígenas lá. Ao final da visita destas, foi-lhes aberto um espaço para que fizessem perguntas, e uma das perguntas feitas por uma das crianças foi “Por que este lugar [a casa de reza] tem esse cheiro?”. Contei este fato às crianças para provocar-lhes alguma opinião sobre isso, e a primeira manifestação se deu em uma só palavra: “desnecessário”. Perguntei por quê. Responderam-me com outra pergunta: “Qual foi o tom da pergunta?”. Eu imitei a criança, ao que responderam: “Então foi falta de respeito”. Assim, quando lá chegaram, dizer que a aldeia possuía um cheiro bom, significava dizer, na verdade, que estavam abertos para conhecer esse novo lugar e que não havia preconceito em relação a ele ou às pessoas que ali moravam: “Chegando lá, a primeira impressão que eu tive deles [dos índios] foi ‘Nossa, que demais! Eu estou com um monte de índios! Uhul!’” (Diário de campo do Rafael).

Quando desembarcamos, enquanto alguns iam ao banheiro, outros já trabalhavam: Então, alguns amigos que também foram à aldeia quiseram ir ao banheiro. Lá perto do banheiro havia alguns índios que pareciam estar esperando por nós e, então, eu e minhas amigas Ana e Giovanna T. começamos a conversar com uma índia e descobrimos que o nome dela é Camila. Ela é uma índia muito simpática e muito divertida. Ela me adorou e me considerou como uma irmã. Fomos passear pela aldeia e ela me contou muitas coisas sobre ela e sobre a aldeia. Sim, vou contar, mas têm muitos [muitas coisas para contar]. (Diário de campo da Catharina).

Como descrito acima pela Catharina, algumas crianças, antes mesmo de serem iniciados formalmente nossos trabalhos na aldeia, já estavam conversando com algumas crianças indígenas, fazendo-lhes algumas perguntas, como qual era o seu nome em português, seu nome em Guarani; se era legal morar na aldeia, se preferiam morar na cidade ou na aldeia;

129

onde tinham arrumado tinta para pintar o cabelo (uma das crianças indígenas com que conversavam tinha mechas pintadas no cabelo), entre muitas outras.

Fig. 52. Camila Yva, Catharina, Daisy e Giovane Tupã Mirĩ. Foto de Denise Fragoso.

Descarregamos as doações, e crianças indígenas e não indígenas ajudaram nessa tarefa. Elas transportaram todo o carregamento. Era necessário, inclusive, dividir os pacotes para que todas levassem um pouquinho. As doações, ainda que tenham sido um pedido do Elias, foram fundamentais para aproximar o grupo não indígena da comunidade indígena. Aproximou porque pareciam presentes àqueles que nos recebiam, assim, por esta razão, cada criança do meu grupo fazia questão de carregar um pacote e levá-lo à opy.

Fig. 53. Uma das crianças guarani carregando pacote de doação, com a escola da aldeia ao fundo. Foto de Denise Fragoso.

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Fig. 54. Na primeira imagem, Sarah, Heloisa e Sofia recolhem os pacotes de doações. Na seguinte, a Sarah, ao fundo leva mais um pacote para a casa de reza enquanto os Guarani verificam as doações. Fotos de Denise Fragoso.

Nós pegamos nossas inúmeras doações e levamos tudo com os índios para a casa de reza. Depois que acabamos, nós fomos cantar com as afinadíssimas índias (Diário de campo da Sabrina).

O regente do coro infantil – Tiago Vera Tataendy – nos recebeu e, junto com o coro, apresentou-nos algumas canções guarani. Em seguida, ensinaram-nos uma canção deles, a Oreru Nhamandu Tupã (partitura 6). Ainda que a canção possuísse letra fácil (somente três palavras) e que o grupo estivesse acostumado a cantar canções em diversas línguas e de diferentes povos, as crianças não aprenderam a canção com facilidade, acredito, por duas razões: 1) elas ainda estavam um tanto tímidas diante do grupo indígena; 2) a melodia era diferente dos padrões melódicos aos quais estão acostumadas; 3) a maneira como se dava a performance. Esta última razão parece ter sido a que deixou as crianças mais inseguras e sobre ela é preciso que se dedique algumas linhas. “A cultura humana é fundamentalmente – ‘originalmente’, por assim dizer – performativa”, escreveu Schechner (2013, p. 45). Mas em que sentido é atribuído o adjetivo? De que maneira a cultura humana é performativa? Invertendo esta afirmação, é possível deduzir que a performance é característica da cultura humana. Mas pode-se ir além. Considerando que “não há natureza humana independente da cultura” (Geertz, 2013, p. 35) e somando esta afirmação àquela de Schechner, temos algo mais: que a performance tem parte na responsabilidade do se fazer humano. Ou seja, se a cultura é condição para que a natureza humana se consolide, ou, em outras palavras, se a natureza humana depende da cultura para se realizar, e se a cultura humana é performativa, é razoável concluir que a performance é

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característica do ser, do se fazer humano. Tal raciocínio se evidencia (e se justifica) no que Bourdieu já enunciava em Leçon sur la leçon, de 1982: “o corpo está no mundo social, mas o mundo social está no corpo” (2001, p. 41). Sendo assim, personificamos nosso mundo, isto é, incorporamos e encorporamos (fazendo uso do termo utilizado por Taylor79 [2013, p. 10]) o que está a nossa volta, performatizando-o, mas sempre de forma reinventiva, criativa, vale frisar. Esta performance é, na verdade, o habitus encorporado, é a nossa própria “história encarnada no corpo” (Bourdieu, op. cit.).

Ainda que o conceito de performance tenha formas variadas e pareça, de acordo com Dawsey et. al (2013, p. 18), não estar muito bem resolvido no campo acadêmico, sublinhamos aqui a performance como uma prática a que estamos todos ligados na ação de ser humano, como resposta encorporada do estar no mundo, como resposta à necessidade de nos situarmos nele. Situar o corpo em qualquer espaço, mesmo aqueles compostos de momentos previamente concebidos, ensaiados, exige a apreensão inconsciente80 pelo próprio corpo, da maneira como este deverá se colocar nestes espaços (exige uma encorporação do mundo artístico, inclusive), reinventado-os e inventando a si mesmo:

Todo uso do corpo expressivo é uma atitude em relação ao mundo social. [...] O corpo social é o corpo do indivíduo portador do habitus, como um sistema de disposições duradouras que geram e estruturam práticas reguladas que são incorporadas e inconscientes, por isso regularmente reproduzidas. Por mais que esta expressão corporal tenha uma regulamentação, é sempre uma nova atitude, já que se executa a partir de um estilo, de uma configuração de caráter individual e própria de cada agente em relação a uma nova situação (Medeiros, 2011, p. 284, 285).

Performatizar como as crianças guarani era um habitus do qual as crianças não indígenas não compartilhavam, por isso não o encorporaram, fazendo, talvez, com que se sentissem deslocadas. No entanto, quando nos preparávamos para nosso segundo encontro (que Na verdade, o neologismo “encorporado" foi sugerido pelo tradutor do texto de Taylor para a palavra “embodied”. Outra ressalva válida consiste no fato de o autor utilizar o termo embodied practice (prática encorporada). 80 Empregamos aqui o termo “inconsciente” da mesma maneira como concebe Bourdieu, como um “inconsciente social”, em que o “inconsciente” é fruto da incorporação do social, das experiências sociais. Por exemplo, Bourdieu, neste sentido, faz referência a um “inconsciente escolar”, que, de igual forma, “por ter sido incorporado e, por isso, naturalizado, escapa às tomadas de consciência – principalmente porque leva a perceber como naturais as estruturas das quais é produto” (Bourdieu, 2013, p. 228). 79

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aconteceu um ano depois), discutimos previamente sobre o que havíamos observado neste momento e em outros mais que compartilhamos. As crianças não indígenas repararam que, na hora do canto, as meninas guarani se davam as mãos, com os dedos entrelaçados e que os meninos cantavam, normalmente, com os braços para trás; que as meninas dançavam de um jeito e os meninos de outro; que ao final, o grupo guarani levantava as mãos dizendo, de acordo com Cleonice Kerexu, “Porãete! Aguyjevete!”, expressões que significam, de acordo com Macedo (2009, p. 256), “beleza/bondade verdadeira” e “perfeição verdadeira”, respectivamente, usadas para agradecer aos deuses, aos presentes e ausentes (ibidem, p. 256). Discutimos sobre isso para que incorporássemos (no sentido de acrescentar) essas observações à nossa parte da performance que aconteceria no segundo momento em que cantaríamos juntos. Em outras palavras, queríamos fazer exatamente como as crianças guarani faziam. Entretanto, ainda que tivéssemos ensaiado a dança que acompanhava o canto guarani, isto é, ainda que nossa performance tenha sido ensaiada, ela não compreendia aquela que implica na manifestação do habitus no corpo e dos corpos com quem se compartilha a performance, na encorporação do mundo, neste caso, guarani. Isso porque “ce qui est appris par corps n'est pas quelque chose que l'on a, comme un savoir que l'on peut tenir devant soi, mais quelque chose que l'on ‘est’”81 (Bourdieu, 1980, p. 123). Desse modo, a performance não poderia ser aprendida, porque ela se refere a outro verbo, o verbo ser, e porque envolve gestos que não são incorporados pelo olhar, mas pelo viver; afinal, a performance é o gesto que traduz o habitus, que traduz pelo corpo os mundos social e cultural incorporados. A performance é a encorporação do incorporado.

*** Depois dessa canção, cantamos juntos Kyrĩgue’i peju jajerojy (partitura 9), já conhecida pelas crianças não indígenas. Para esta canção, o Tiago Vera Tataendy – que era quem conduzia o coro indígena – percebeu que seria melhor se cantássemos todos em pé, junto com o grupo dele. As meninas deram as mãos e os meninos se alinharam junto aos meninos

“O que se aprende pelo corpo não é algo que, como um saber, se possa segurar diante de si, mas é algo que ‘se é’” (tradução de Medeiros, 2011, p. 286). 81

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indígenas, e cantamos. Com essa disposição, as crianças pareciam ter ficado mais à vontade, mesmo porque já conheciam a música.

Fig. 55. Os dois grupos cantando juntos Kyrĩgue’i peju jajerojy na opy. Foto de Denise Fragoso.

Fig. 56. Diário de campo da Giovana D. No desenho, estão uma criança indígena e ela cantando juntas na casa de reza.

Ainda que as crianças não indígenas já soubessem a canção, houve desencontros entre os dois grupos no sentido de que o grupo não indígena adiantava a entrada dos versos do canto. Baseamos nossos ensaios na gravação usada no dia em que aprendi esta canção com 134

as crianças guarani82, e, ainda que a gravação correspondesse ao que o coro indígena cantava naquele momento, as crianças não indígenas não esperavam pela quantidade certa de tempos entre cada frase. Acredito que essa antecipação se explica pelo fato de que o mbaraka (violão), que acompanhava a canção, marcava solidamente um compasso binário enquanto a maioria das notas longas do canto tinha três tempos. Por essa razão, todas as entradas foram antecipadas pelas crianças não indígenas em um tempo, pois aquela estrutura que soava binária as levava a não esperar três tempos, mas somente dois. O momento em que mais se desencontravam se localizava na frase que termina com mboraei, cujo tempo de espera são cinco tempos (até que se inicie a palavra seguinte); e ali, mais uma vez as crianças do Tico-tico se adiantavam em um tempo. Pareceu-me que, para elas, o razoável num compasso binário seria esperar por dois ou quatro tempos (e os múltiplos deste), e não por tempos ímpares como três e cinco.

Considerando que esta foi a primeira vez em que cantamos com o grupo indígena, o resultado foi positivo em vários aspectos, possibilitando às crianças diversas considerações musicais e culturais bastante pertinentes, como estas: “Reparei que as índias cantam com a boca fechada, sem articular, sabe, como você diz, prô. E, mesmo assim, o som sai agudo” (Sabrina); “Eu achei que quando a gente fosse cantar, eu ia ver todos aqueles instrumentos que vimos na oficina, mas lembrei que cada etnia é diferente” (Pedro A.); “Eu me emocionei. É muito forte. Ver as crianças cantando juntas foi muito forte” (relato de Heloísa83, ao explicar porque havia chorado enquanto as crianças cantavam).

CD Ñande Arandu Pygua – Parte 1 – (2004). Heloísa foi minha aluna até o 9º ano (na escola em que eu trabalhava, a disciplina Música fazia parte da grade curricular até o último ano do Ensino Fundamental II), e, depois que deixei de trabalhar onde ela estudava, ela seguiu me acompanhando em outras atividades musicais e corais. No Tico-tico, as crianças e eu nomeamo-la monitora, já que ela participa dos ensaios, das oficinas e das atividades ajudando-nos. Ainda que essa seja a posição dela no Tico-tico, vejo-a como aluna e como indivíduo em formação, e, por isso, considerei também suas observações e atitudes durante este trabalho de pesquisa. Aliás, a Heloisa tem me acompanhado em quase todas as idas à aldeia e, mesmo ainda adolescente, tem se envolvido com as lutas indígenas a favor de suas terras. 82 83

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***

No dia 10/11/2013 eu fui para aldeia Tenondé Porã. Quando chegamos demos as doações e fomos na escola para usar o banheiro e depois fomos na casa de reza cantar. Lá dentro cantamos a música que ensaiamos e outra também. Depois fomos na trilha (Diário de campo do João Pedro).

Após cantarmos na casa de reza, as crianças indígenas nos levaram para uma trilha dentro da reserva, e esta foi a oportunidade que as crianças dos dois grupos tiveram para se conhecer. Subiram em árvores juntas, brincaram juntas, conversaram, e quase todos os registros de foto e vídeo foram feitos por elas mesmas (de ambos os grupos).

Fig. 57. Sabrina registrando as crianças subindo na árvore. Foto da Thais.

Fig. 58. Marília Rete e Maisa Ara à esquerda, e Giselda Rete’i, à direita. Fotos da Sarah.

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Fig. 59. Criança guarani, à esquerda, bebendo água no arroio, e João, à direita, depois de ter insistido muitas vezes por uma foto na árvore. Fotos da Thais e da Sarah, respectivamente.

Fig. 60. Crianças guarani e não indígenas fazendo a trilha. Foto da Sofia.

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Fig. 61. À esquerda, Heloisa carregando Giselda e professor Pedro Paulo em segundo plano. À direita, crianças guarani e não indígenas brincando na árvore. Fotos de Thaís e Pedro Paulo Salles, respectivamente.

Fig. 62. “A gente fez trilha e depois eu e a Ana subimos em uma árvore”. Diário de campo da Giovanna T. Foto de Denise Fragoso.

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Fig. 63. O grupo todo posa para foto após a trilha. Foto de Denise Fragoso.

A visita terminou com as crianças brincando juntas em uma palmeira que ficava em frente ao CECI – Centro de Educação e Cultura Indígena, como descreve Sabrina em seu diário:

Nós andamos mais um pouco e chegamos num lugar alto com dois escorregadores e uma palmeira com as folhas bem abertas. Foi quando o Giovane [Tupã Mirĩ] subiu em um dos escorregadores e se balançou segurando na folha da palmeira como um Tarzan. Todo mundo gostou do que ele fez e decidiram fazer igual. Todos subiram no escorregador para se balançar. Foi a Catharina que fez a curvinha certinha na hora de se balançar. Depois foi o Rafael que nunca conseguia fazer a curva e quase batia na árvore. Foram quase todas as pessoas. Algumas só enrolavam como a Gi T. que enrolou, enrolou e enrolou, até que teve uma hora que ela foi, [mas] não chegou perto de dar nenhuma curvinha, mas pelo menos ela foi. A Ana Luiza também foi. Ela fez curvinha direitinho, mas ela tinha que se soltar da folha e não soltou. Ela bateu na árvore. Foi engraçado e ela nem se machucou.

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Fig. 64. Railidia Jera entrega a folha de palmeira para que Giovanna T. faça seu voo. Imagem extraída do vídeo feito pelo Sabrina.

Fig. 65. Railidia Jera e Catharina em voo na palmeira. Fotos de Pedro Paulo Salles.

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Fig. 66. À esquerda, o voo de Catharina visto sob outro ângulo, e, à direita, o resultado de seu último voo. Fotos de Denise Fragoso e Pedro Paulo Salles, respectivamente.

Após a visita deste dia, as crianças – indígenas e não indígenas – registraram, em grupos e dias separados, suas impressões em forma de painel coletivo84. Além disso, o segundo grupo registrou a visita em seu diário de campo e algumas de suas descrições foram transcritas acima.

Quanto aos objetivos para esta visita, não soube ao certo, num primeiro momento, se os havíamos atingido. Antes da visita, eu imaginava que ela seria (ou pelo menos deveria ser) mais musical; que as crianças demonstrariam mais curiosidade sobre os aspectos musicais, e não foi assim. De fato, este não era ainda um objetivo; era, sim, que as crianças não indígenas e indígenas se relacionassem, sendo a música um caminho para isso. E isso aconteceu: as crianças cantaram e brincaram juntas, compartilharam brincadeiras e histórias, de um modo muito diferente das visitas de outros grupos que presenciei, nas quais as crianças guarani serviam como guias turísticos do grupo dos jurua, e nada mais. Em nossa visita, a diferença se fez na maneira como se relacionaram e na qualidade das interações; além disso, as crianças não indígenas estavam por demais eufóricas para se 84

Capítulo III. 3.3 – “Assim, vocês poderão se lembrar sempre da gente”: primeiros vínculos.

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concentrar apenas na música, e o que queriam mesmo era conhecer a aldeia e as suas crianças e brincar com elas. Essa interação musical mais consistente viria com o tempo, e beneficiada por toda essa riqueza humana das interações espontâneas e dos laços construídos pela convivência.

Concluí que, enquanto co-pesquisadores, essas crianças precisavam, antes, de momentos nos quais se configurassem novos repertórios culturais, para só então atentar aos fatores musicais. Por exemplo, quando chegamos à aldeia, a primeira coisa que João, um de meus alunos do Tico-tico, notou e que o impressionou bastante foi o fato de crianças e adolescentes indígenas estarem fumando o petỹgua (cachimbo), e ele falou sobre isso durante semanas. O mbaraka mirĩ (chocalho guarani) não lhe despertou tanta curiosidade quanto a criança de oito anos que fumava o petỹgua. Tanto é que ele foi até o pajé perguntar se não fazia mal às crianças fumar. A resposta foi que não lhes fazia mal porque elas não tragavam. “O que é tragar?”, perguntou João. “Tragar é não engolir”, o xeramoĩ respondeu. Resumindo, o João foi falar com o xeramoĩ sobre o fumo e não sobre música. Outras crianças viram uma pequena cobra antes de entrar na opy para cantar, e elas passaram o dia todo falando do animal. Nos registros das crianças (figuras 68 a 72) há de tudo: cobra, cachimbo, casa de reza, árvore, trilha, Camila Yva, pajé... Era muita informação.

Fig. 67. Jade Jaxuka com sua gaita e o petỹgua (cachimbo), à esquerda. À direita, Alessandra Yva fumando o petỹgua na opy, com as doações ao fundo. Fotos de Pedro Paulo Salles e de Denise Fragoso, respectivamente.

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A questão é que se o pesquisador adulto dedica o primeiro tempo de seu trabalho a uma espécie de sondagem etnográfica antes da pesquisa etnomusicológica, é preciso que as crianças também tenham esse tempo, ainda que inconscientemente. Entretanto, neste caso específico, a música, enquanto um dos sistemas simbólicos (Bourdieu, 2010, p. 10), foi instrumento de integração social nesta experiência e serviu como ponto de partida para a troca de experiência entre os grupos.

Fig. 68. Painel coletivo sobre a primeira visita à aldeia. Fotos de Daisy Fragoso.

Fig. 69. Painel coletivo sobre a primeira visita à aldeia. Ao fundo, Catharina pede para que eu mostre a ela uma foto da Camila Yva para que possa desenhá-la. Foto da Heloisa.

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Fig. 70. Detalhes do painel coletivo sobre a primeira visita à aldeia.

Fig. 71. Detalhes do painel coletivo sobre a primeira visita à aldeia.

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Fig. 72. Detalhes do painel coletivo sobre a primeira visita à aldeia.

III.3.3. “Assim, vocês poderão se lembrar sempre da gente”: primeiros vínculos Depois da visita do dia dez, descrita acima, foi preciso que eu fizesse outras visitas mais à aldeia a fim de que fossem registradas as impressões das crianças guarani sobre aquele primeiro encontro e também para que eu continuasse com meu trabalho de campo ali. Porém, quando algumas crianças do Tico-tico (as não indígenas) souberam que eu iria à aldeia novamente, imediatamente pediram que as levasse junto. Como não era possível levá-las todas de uma só vez85, elas organizaram uma lista de espera, de modo que, a cada visita, fosse um grupo pequeno.

As primeiras a me acompanhar até a aldeia foram Catharina e Sabrina. Elas acompanhariam e registrariam comigo a elaboração do painel coletivo que as crianças guarani fariam. Chegando lá, mostrei às crianças as fotos da visita, e depois lhes apresentei o painel que o grupo não indígena havia feito. Perguntei-lhes se lembravam do que fizemos no dia dez, enquanto analisávamos os desenhos feitos neste painel coletivo, e a reposta foi afirmativa. Em seguida, fomos ao refeitório para fazer o painel (eu pretendia que fizéssemos a atividade no chão, assim como fiz com minhas crianças, mas o Elias disse que seria melhor

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A intenção era que fossem feitas visitas posteriores também com o grupo, mas com o grupo todo. As minhas visitas seriam individuais para que eu desse continuidade ao trabalho de campo.

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se fôssemos ao refeitório porque lá havia uma mesa grande, em torno da qual todos poderíamos nos sentar).

Neste grupo estavam algumas crianças indígenas que haviam participado do encontro e outras que não estavam conosco naquele dia. Não impedi que as crianças que não estavam no dia dez participassem da atividade porque não achei razoável excluí-las, já que as crianças lá na aldeia aparecem quando querem para fazer o que querem. Assim, se tinham decidido que fariam esta atividade é porque queriam de fato fazê-la.

A descrição da atividade é replicada abaixo exatamente como foi registrada em meu diário de campo. Acredito que as impressões registradas ali por mim serão mais fiéis que as que poderia descrever agora.

Data: 08/12/2013

Atividade: Painel coletivo com as crianças indígenas sobre o encontro do dia 10/11.

Neste dia, eu pretendia fazer com as crianças indígenas que participaram do encontro do dia 10/11 um painel coletivo com desenhos sobre o que aconteceu naquele dia assim como fiz com as minhas no dia 18/11. Levei papel craft, tintas guache e pincéis para a atividade e o restante das doações que não couberam nos carros da outra vez. Junto comigo foram duas crianças do Tico-tico [grupo não indígena participante deste trabalho]: a Catha e a Sabrina. Quando elas souberam que eu iria, pediram para ir junto. A Catha pediu para ir porque ela queria ver a Camila Yva e a Sabrina simplesmente porque queria ir. Chegando na aldeia, distribuímos as doações (que ainda eram muitas) e depois sentei com as crianças guarani para anotar os nomes de cada uma. Eu mostrava a elas suas fotos e elas me diziam quem era quem. Elas gostaram muito de se ver nas fotos. Eu levei duas cópias de cada foto de modo que uma cópia ficasse com elas e outra comigo. Elas não sabiam o nome de algumas crianças (das que não eram seus parentes diretos), e, em

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alguns momentos, quando não sabiam, era fácil perceber que inventavam um. Depois que terminamos esta atividade, uma das crianças, Alessandra Yva, sugeriu que eu deixasse expostas na parede86 da “nossa escola87” as fotos que ficaram comigo: “Assim, vocês poderão se lembrar sempre da gente”, disse ela. Em seguida, mostrei a eles o painel que minhas crianças haviam feito sobre o dia 10 e depois lhes expliquei que eles também fariam um painel/desenho sobre o encontro. Neste grupo de crianças indígenas com quem conversava, havia outras crianças que não participaram do encontro no dia 10, mas, ainda assim, deixei que elas participassem. Não achei que seria razoável excluí-las disso. No painel que fizeram, somente uma das crianças registrou algo do dia 10. A Railidia Jera desenhou o escorregador onde as crianças brincaram com a palmeira e a árvore onde eles subiram. Não sei se ela fez estes desenhos influenciada pelo painel que viu anteriormente ou se porque a brincadeira foi significante para ela de fato. Não sei. As outras crianças, independente de terem participado do encontro do dia 10 ou não, fizeram desenhos abstratos valendo-se de elementos artístico-estéticos indígenas guarani. O objetivo principal desta atividade, em princípio, era descobrir quais foram as impressões das crianças indígenas sobre as crianças não indígenas e o fato destas terem feito pouca ou quase nenhuma menção ao grupo não indígena me frustrou. As conclusões às quais cheguei através do painel feito são: 1) a presença das crianças não indígenas no dia 10 não foi tão significante para as crianças indígenas porque elas estão acostumadas a receber diversos grupos na aldeia e, pelo jeito, o Tico-tico foi visto como mais um desses grupos, foram vistos como turistas. Ainda que ambos os grupos tenham interagido através de brincadeiras e do canto (como parece não acontecer com outros grupos), para as crianças indígenas, esta era, em geral, uma atividade comum feita com os que visitam a aldeia. Tanto é que 86

A cada visita que fazia à aldeia, eu dava às crianças algumas fotos tiradas na visita anterior. Depois de outras visitas, Alessandra Yva me contou que eles colocavam todas as fotos na parede, montando um painel. Tive acesso ao painel (fig. 77) sete meses depois deste dia, quando já podia entrar na casa do Elias e de sua esposa, Iara. 87 O termo “nossa escola” está entre aspas porque o Tico-tico não pertence a uma instituição educacional, mas a um centro comunitário, cuja sede fica em um condomínio e cujos ensaios são feitos em seu salão de festa.

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a Catharina, que esperava ansiosamente reencontrar a Camila Yva, ficou desapontada porque esta não fez questão de ir vê-la; e 2) pode ser que as referências artísticas das crianças indígenas sejam outras e, como eu não sou professora de artes visuais e tampouco havia pesquisado anteriormente sobre tais referências (como são as aulas de artes visuais com as crianças indígenas ou mesmo se elas têm aulas de arte etc.), isso me fez imaginar que pedir para desenhar o que aconteceu em determinado momento fosse bastante óbvio – para mim e para aqueles que fazem parte do mesmo contexto “educacional e artístico” ao qual pertenço e que provavelmente é diferente daquele ao qual as crianças indígenas pertencem – e talvez não tenha sido. Mas quanto a isso eu não tenho certeza. Tanto pode como não pode ter sido isso. Eu teria (tenho?) que verificar. Porém, outras coisas aconteceram durante a elaboração do painel que fizeram com que o principal objetivo fosse superado. Durante a atividade deste dia, pudemos, as crianças indígenas, as minhas e eu, nos aproximar de verdade. Por ter sido esta, eu acredito, uma atividade direcionada a elas, em um ambiente (o refeitório) em que estávamos somente nós, foi possível que conversássemos sobre elas e sobre nós. Pela primeira vez, eles perguntaram nossos nomes – e a gente o deles. Também pediram nossos contatos no Facebook. Ao final de tudo, cada um pintou o rosto do outro88, fazendo com que nos aproximássemos ainda mais (o fato de tocar o outro foi fundamental para estabelecer proximidade e confiança entre os grupos). Na hora de irmos embora, disse a eles que eu voltaria lá e eles responderam: “Será que a gente pode ir visitar vocês também?”. É justo. Vou providenciar isso89. No mesmo dia, à noite, estávamos todos devidamente adicionados no Facebook e, desde então (hoje é dia 11/12), temos – crianças brancas, indígenas e eu – conversado todos os dias via rede social. Eu pretendia voltar lá só em janeiro, mas voltarei já no dia 22/12. É preciso que esta relação nova que foi estabelecida não esfrie.

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As crianças pintaram umas os rostos das outras, isto é, fizeram pinturas corporais umas nas outras. Um ano depois do primeiro encontro, as crianças guarani se reuniram com o grupo das crianças não indígenas na USP. 89

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Fiquei mesmo frustrada quando, no início da atividade, vi que as crianças indígenas não estavam “respondendo” ao que havia sido proposto. Eu pensava que, provavelmente, teria que refazer a atividade em algum outro dia ou trocar de estratégia. No entanto, assim como relatado acima, na medida em que a atividade ia se desenvolvendo e caminhando para seu final, esta visita tomou outros rumos cujas características e proporções eu nem havia considerado ainda porque nem seria capaz disso na ocasião. Isto é, através deste encontro pude considerar outras questões sobre as quais eu não havia pensado e nem pensaria exatamente, porque foi este momento que proporcionou estes resultados. O painel, no fim das contas, foi o fator que trouxe estas questões às claras sem que eu soubesse que eram questões e sem que fosse esse o objetivo. Os registros feitos eram desenhos e palavras de autoafirmação, como seus próprios nomes e frases tais quais “Nós somos Guarani” e “Ore ma mbya kuery” (fig. 73) cuja tradução para o português, de acordo com o autor da frase, também é “nós somos Guarani”.

Vale fazer algumas observações sobre o que foi escrito pelo Alison Gabriel Jeguaka. A primeira delas é que ele poderia ter escrito “Nós somos Guarani” em português, afinal, o painel era para mim, que não falo Guarani. Mas ainda assim, ele preferiu escrever a frase em sua língua materna porque, primeiro, é a sua língua materna; depois, porque o fato de usar sua língua (e não o Português) significava muito mais, naquele momento, um gesto de autoafirmação, como em todos os outros desenhos. A segunda observação trata da palavra guarani ore. Na língua guarani existem dois tipos de pronomes indicativos da 1ª pessoa do plural: nhande e ore. Ainda que ambos sejam traduzidos por “nós”, nhande é um pronome inclusivo, isto é, inclui os ouvintes, por exemplo: Nhanderu significa “nosso pai” (“meu e seu pai”). Já “ore” exclui o ouvinte; assim, “oreru”, ainda que seja traduzido para o português também como “nosso pai”, quer dizer, na verdade, “meu pai e pai dele, mas não o seu”. A frase usada por Alison era, sim, de autoafirmação e, além disso, excluía a mim e as crianças não indígenas que lá estavam. Este era o painel deles, não era meu, não era o nosso; este era um painel sobre um “nós” que não se referia a nós, os jurua, por isso não aparecemos nele.

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Fig. 73. À esquerda, texto assinado por Anderson Tupã Mirĩ Ju: “nós somos Guarani”. À direita, texto escrito por Alison Gabriel Jeguaka – ore ma mbya kuery –, cuja tradução feita por ele para o português é “nós somos Guarani”.

Logo na minha primeira conversa com o Elias sobre as intenções de meu trabalho com o coro infantil da aldeia, ele revelou em seu discurso que sua maior preocupação era quanto à possibilidade de sermos mais um grupo como os muitos que já passaram por ali e os esqueceram. De acordo com ele, muitos grupos de pesquisadores e de crianças já haviam passado por ali e nunca mais haviam voltado dando retorno ou satisfação. Em suas palavras:

Eu acho mesmo que este é um trabalho que pode ajudar a diminuir o preconceito em relação a nosso povo e isso é muito bom. Também acho que é importante as crianças brancas conhecerem nossas canções e conhecerem a gente. Mas eu gostaria de te pedir uma coisa. Eu gostaria, assim como a gente está te ajudando agora com seu trabalho, que vocês não se esquecessem que a gente está aqui. Porque as pessoas vêm, fazem o que querem, pesquisam tudo o que querem e depois esquecem a gente. É para vocês virem sempre aqui. Eu não gostaria que, depois que a pesquisa acabar, a gente fosse um desconhecido pra vocês.

No dia dez, nós éramos somente mais um. Ainda que tenhamos brincado e cantado juntos (e isto normalmente não acontece, de acordo com o que já observei de outras visitas de brancos à aldeia), nós éramos apenas mais um. Provavelmente estaríamos na aldeia no dia dez e nunca mais voltaríamos lá, como a maioria dos grupos faz. O dia dez, para as crianças indígenas, aparentemente teve pouco significado porque eles pensam – e sentem – como o Elias. “Assim, vocês poderão se lembrar sempre da gente”, disse-me Alessandra Yva sobre 150

as fotos. Eles não queriam ser esquecidos porque, normalmente, é o que acontece. Eles simplesmente voltariam ao posto de desconhecidos e as crianças não indígenas acrescentariam mais um passeio à sua lista de passeios culturais.

Triste é, enquanto escrevo isso, pensar que provavelmente teria sido assim. No planejamento de pesquisa, eu considerei somente uma visita como essa. As outras possíveis seriam ensaios, se uma apresentação fosse prevista. Se minhas crianças não tivessem pedido a mim que voltássemos à aldeia porque queriam rever, nas palavras delas, “os amigos que a gente fez”, teríamos mesmo sido só “mais um grupo de excursão”, como muitos outros. Eu desconsiderei a relação das crianças. Ainda que eu realmente tenha tomado o discurso do Elias para mim, eu desconsiderei que as crianças – já que também estavam sendo pesquisadores como eu – deveriam também tomar parte nesta relação mencionada pelo nosso xeramoĩ.

Fig. 74. Painel coletivo feito pelas crianças indígenas sobre o encontro do dia dez.

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Felizmente foi em tempo. Em tempo de rever a metodologia do trabalho. No lugar de uma metodologia para as crianças pesquisadoras, a partir desta visita passamos a uma metodologia com as crianças, uma metodologia da qual as crianças, guarani ou não, pudessem fazer parte efetivamente como sujeitos atuantes no trabalho que trata delas mesmas. Além disso, em se tratando de pesquisa etnográfica, isto é, uma pesquisa que implica em um trabalho de campo, tomei os cuidados de estabelecer uma relação de confiança entre mim e os responsáveis pelo coro indígena que pesquisaria antes de iniciar o trabalho de fato; fiz várias visitas antes de começar a pesquisa propriamente dita; conversamos várias vezes sobre diversos assuntos, ou seja, aqueles – adultos – que me permitiriam trabalhar ali passaram a me conhecer e confiar em meus propósitos e viceversa. Porém, era necessário incluir também as crianças dos dois grupos neste processo que antecedia à pesquisa em si. Assim como ocorreu comigo, era primeiramente necessário que elas estabelecessem entre si uma relação de confiança, de proximidade, para que impressões mais fiéis fossem adquiridas. Se, etnograficamente, minha observação tinha caráter participante, a delas também deveria ter. Se era preciso que eu me aproximasse daquela comunidade indígena, era preciso que as crianças também se aproximassem umas das outras

e desenvolvessem uma relação por meio de interações de proximidade

crescente.

Fig. 75. Painel de fotos com os dois grupos infantis montado espontaneamente pela Alessandra Yva em seu quarto. Anderson Tupã Mirĩ Ju, que estava em algumas das fotos, por não gostar de aparecer em fotografias, arrancou da parede aquelas em que ele aparecia. Foto de Denise Fragoso.

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O trabalho com as tintas foi essencial neste sentido. O fato de as crianças terem pintado umas às outras, terem tocado umas às outras facilitou, ou melhor, foi essencial para a formação de vínculo e para o estabelecimento de uma relação de confiança e afetividade.

[...] nós fomos para a escola deles e a prô explicou para eles o que nós iríamos fazer. Todos sentaram e a Daisy distribuiu as tintas e todos começaram a pintar. A professora começou a conversar com eles e eles com ela. Eles falaram que sabiam falar em tupi, em português e inglês e sabiam mesmo. O Anderson Karai90 disse bem assim: “Eu quero yellow”. Foi uma forma de mostrar o que sabia. [...] Os desenhos já estavam quase prontos. Alguns já estavam prontos e eu fui passando para tirar foto só que quando eu fui reparar nos desenhos, vi que eles não tinham desenhado o dia em que o Tico-tico visitou a aldeia, que era o que a professora Daisy pediu, mas tudo bem. Os desenhos estavam ótimos mesmo assim e todos já tinham acabado. Mas a brincadeira ainda não tinha terminado. Todo mundo começou a se pintar [...] (Diário de campo da Sabrina).

Fig. 76. Elaboração do painel indígena coletivo sobre o dia 10. Fotos da Sabrina.

Fig. 77. Anderson Tupã Mirĩ Ju à esquerda e, à direita, Catharina, que também participou da elaboração do painel indígena. Fotos da Sabrina. 90

Quando Sabrina escreveu este relato, o Anderson ainda não havia trocado seu nome guarani.

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Fig. 78. Elaboração do painel indígena coletivo sobre o dia 10. Fotos da Sabrina.

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Fig. 79. Crianças pintando umas às outras. Foto da Sabrina, à esquerda. Foto da Catharina, à direita.

Fig. 80. Painel indígena. Foto da Sabrina.

Fig. 81. Elaine Poty Mirĩ pintando meu rosto à esquerda. À direita, a Railidia Jera sendo pintada por mim. Fotos da Sabrina.

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Fig. 82. Railidia Jera e Sabrina. Fotos da Catharina.

Fig. 83. À esquerda, crianças conferem sua foto no tablet e Alessandra Yva pinta meu braço, à direita. Fotos de Daisy Fragoso e Nilza Santos, respectivamente.

Fig. 84. Railida pintando o rosto de Catharina. Fotos da Jade Jaxuka.

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Fig. 85. Fotos da Sabrina.

III.3.4. O dia das bexigas Assim que chegamos à aldeia, encontramos as crianças guarani, desta vez, nos esperando, e fomos recebidos por elas com abraços. Fomos jogar futebol. Os times eram mistos em vários sentidos: étnicos, de gênero e de idade. Ainda que tenha sido somente um jogo de futebol, vale ressaltar um fato curioso cuja narração segue abaixo:

Catharina, incomodada com o jeito com que seu time (do qual ela e eu éramos as únicas brancas) levava a partida, reclama para mim: – Prô Daisy, eles [as crianças indígenas] não tocam a bola pra mim! – Então, Catha, pede para eles... Talvez eles não estejam te vendo. Catharina seguiu meu conselho. Pediu a eles que passassem a bola para ela também: – Apy! Apy! Apy! Ela conseguiu a bola. Apy91 é uma palavra guarani que significa “aqui” em português. Esta foi uma das palavras que aprendemos na visita em que as crianças guarani elaboraram o painel. Apy era a palavra usada para pedir a tinta: 91

Para a pronúncia da letra “Y”, sugere-se que a boca esteja “em formato de “I” e seja feito som de “U”.

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- Apy! Apy! Põe a tinta aqui! - O que é “apy”? - É “aqui”. Põe a tinta aqui! Apy! Catharina imaginou, provavelmente, que, para pedir – e receber – a bola daqueles que pertenciam a um grupo que não era o dela (ainda que fossem do mesmo time), era preciso que ela também fizesse parte daquele grupo, e a língua foi o caminho encontrado, consciente ou inconscientemente, por ela.

Algo semelhante aconteceu com Corsaro (2011, p. 125-126). O sociólogo estava desenvolvendo um trabalho de pesquisa com crianças italianas em idade pré-escolar, e para que fizesse parte deste grupo, sentiu que deveria se inteirar da cultura local e da língua que estas crianças compartilhavam. Após cerca de um mês trabalhando na escola com as crianças, o pesquisador já era capaz de entender algumas das rotinas diárias e atividades da turma, mas ainda assim sentia que estava “na periferia das coisas”, como um intruso (p. 125), diz ele. Até que, numa das conversas com as crianças, Corsaro, ao ouvir e compreender claramente a frase “Lui è morto” (“Ele está morto”), presumiu que as crianças estavam falando sobre algum acidente de Fórmula 1 e comentou: “Che peccato!” (“É uma pena!”), arrancando elogios das crianças. Outras crianças, respondendo ao chamado das que haviam presenciado a cena, vieram para ouvir a história, aplaudindo o novo integrante do grupo. “Eu havia conseguido. Eu era parte do grupo!”, comemorou o pesquisador.

Em ambos os casos, temos duas situações: a do estrangeiro que encontra na língua um caminho para se integrar ao grupo e o grupo que recebe o estrangeiro quando percebe que este é capaz de compartilhar algum instrumento simbólico do nativo, no caso, a língua. Tanto Catharina quanto Corsaro escolheram a língua como instrumento simbólico e dela se apropriaram para que se tornassem parte de um grupo do qual pensavam não fazer parte; e tanto as crianças guarani quanto as italianas, aceitaram a língua como instrumento integrador, apontando para o fato de que

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Os símbolos [mito, língua, arte, ciência] são os instrumentos por excelência da ‘integração social’: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação [...], eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social [...] (Bourdieu, 2010, p. 10).

Como “sistemas entrelaçados de signos interpretáveis” (Geertz, 2013, p. 10), a cultura exige daqueles que a compartilham que tais signos sejam interpretados à luz de um consenso simbólico, numa fórmula em que senso é igual a consenso (Bourdieu, 2010, p. 8), isto é, em que tal interpretação seja fruto de um acordo consciente e inconsciente firmado entre aqueles que compartilham sistemas e dos símbolos por eles gerados. E foi disso que, consciente e inconscientemente, Catharina e Corsaro se valeram: da apropriação de um acordo de integração social – e que era consenso no outro grupo – através da língua.

Passado um pouco mais de um mês, pedi às crianças indígenas que elaborassem um painel sobre esse dia e, desta vez, as crianças não indígenas foram incluídas nos desenhos. Isso atesta que, no primeiro painel, não foi registrada a primeira visita feita no dia dez (Capítulo III.3.2) porque não havia ainda sido estabelecida, para as crianças indígenas, relações significantes o suficiente entre os grupos. Ainda que as atividades realizadas em conjunto neste dia não tivessem caráter musical, estas – e outras mais que fizemos – foram essenciais para que laços fossem firmados.

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Fig. 86. Painel de registro elaborado pelos dois grupos. Foto de Denise Fragoso.

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Fig. 87. Detalhe do painel, à esquerda, feito por Alessandra Yva: as bexigas com água e a mangueira. À direita, Anderson Tupã Mirĩ Ju e Sarah carregam a mangueira juntos. Foto de Denise Fragoso.

Fig. 88. No sentido horário: Catharina e Alessandra Yva em disputa; crianças empurrando a mim em direção à mangueira; Denise sendo atacada por Railidia Jera; e Jade Jaxuka em ataque. Fotos de Denise Fragoso e Daisy Fragoso.

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Fig. 89. Detalhes do painel. Desenhos feitos pela Catharina e pela Denise, respectivamente.

Fig. 90. Detalhe do painel. Desenho feito por Elaine Poty Mirĩ. Ela nomeou cada bonequinho de acordo com os jogadores de seu time naquele dia. No sentido horário estão: “Daize, Yva, Catha, Denise, João e Elaine”. Este último jogador (que é a própria Elaine) teve seu nome riscado e transferido para a posição de goleiro, na qual ela jogou.

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Fig. 91. Desenho acima e à esquerda feito por mim e pela Railidia Jera. Neste desenho estamos ela e eu com as bexigas. O desenho acima e à direita foi feito pela Sabrina. Abaixo, Railidia mostra-nos suas “armas de guerra”. Foto de Denise Fragoso.

Em outras visitas mais, assim que chegávamos, encontrávamos as crianças indígenas esperando por nós, e durante as atividades eu percebia ambos os grupos totalmente à vontade na companhia um do outro.

Fig. 92. À esquerda, os grupos se organizam para a brincadeira e, à direita, Elaine Poty Mirĩ pega Sabrina desprevenida. Fotos de Denise Fragoso.

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Fig. 93. Denise, Alessandra Yva, Jade Jaxuka e Catharina posam para foto, à esquerda. Gilmar Karai e João dividem a mangueira. Fotos de Daisy Fragoso.

Fig. 94. Alessandra Yva e Catharina, à esquerda. Jade Jaxuka, Railidia Jera e eu, à direita. Fotos de Daisy Fragoso e Denise Fragoso, respectivamente.

Fig. 95. Jade Jaxuka, à esquerda, faz tranças em Catharina e, à direita, Alessandra Yva brinca com Sarah. Fotos de Denise Fragoso e Daisy Fragoso, respectivamente.

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Fig. 96. Liana Jaxuka e Catharina em troca de segredos, à esquerda. Alessandra Yva pinta o rosto de Sabrina, à direita. Fotos de Rafael Vera Mirĩ.

Fig. 97. À esquerda, Denise pinta o rosto de Elaine Poty Mirĩ e registro da selfie92 de Alessandra Yva e Sabrina, à esquerda. Fotos de Anderson Tupã Mirĩ Ju e Daisy Fragoso, respectivamente.

Fig. 98. Selfie de Railidia Jera e Catharina. 92

Selfie é um neologismo inglês do termo self-portrait, que significa autorretrato. É uma foto tirada pela própria pessoa que aparece na foto.

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III.3.5. O dia da “Não-oficina de música”: o aprendizado entre as crianças guarani Mbya Para este relato, decidi descrever exatamente quais foram as minhas impressões momentâneas sobre a oficina de música que tentei realizar com as crianças guarani, intencionalmente, sem antes refletir sobre a razão delas. Após o relato, que está carregado de mim, da minha formação cultural, profissional e acadêmica, da minha visão de mundo, tratarei destas reflexões. A ideia, neste momento, é que o leitor-educador consiga imaginar exatamente – e talvez sentir – o que aconteceu neste dia e, depois, será também convidado a refletir sobre esta “não-oficina”, sobre cultura (a sua e a do Outro) e sobre ideias de música (também as suas e as dos outros) e como isso tudo se revela nas práticas de educação musical e as transforma.

Como o subtítulo do capítulo aponta, a intenção era de que acontecesse uma oficina de música – e esta não aconteceu (lembre-se de que agora falo das impressões antes das reflexões). Para este dia, preparei uma atividade de música com três crianças do grupo não indígena e com as crianças da aldeia participantes da pesquisa em conjunto. A proposta era que as crianças reproduzissem, em forma de improviso musical coletivo, os sons da natureza usando instrumentos musicais diversos. O local para a performance que escolhi e planejei era uma clareira no meio de uma das trilhas da reserva para, quem sabe, inspirarnos durante a atividade. Quanto à descrição da atividade com as crianças indígenas, não pretendia dizer que comporíamos uma canção, porque as canções são, normalmente, reveladas por Nhanderu, ou seja, não há um compositor propriamente dito. Assim, não faria sentido, pensava eu, propor uma composição, ainda que em forma de improviso;93 por essa razão, escolhi que imitaríamos os sons da natureza. A escolha dos instrumentos musicais que usaríamos também foi bastante cuidadosa, afinal, na cultura guarani, há os instrumentos que só meninos podem tocar, outros que só as meninas, outros que são

93

Poucas semanas antes de depositar minha dissertação, as crianças guarani me surpreenderam com uma composição feita por elas para o pequeno Tadeu, contrariando o que pensava sobre as composições até aquele momento e evidenciando que o trabalho de descrever uma cultura e aprender sobre e com ela pode ser o trabalho de uma vida inteira submersa nessa cultura. Esta canção consta no capítulo II – Pequena coletânea de canções guarani Mbya.

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sagrados e assim por diante. Desse modo, escolhi instrumentos que não faziam parte dos rituais da aldeia: xilofone, pau-de-chuva, kalimba, triângulo, plástico bolha, tampinhas de plástico de refrigerante, apitos de pássaros e um violoncelo infantil.

Este era o plano. Não haveria como dar errado. Mas deu, como já antecipado no título acima.

Quando cheguei na aldeia, contei às crianças indígenas que eu havia levado alguns instrumentos e que iríamos tocá-los. Elas ficaram bastante entusiasmadas. Retiramos juntos tudo do carro – as crianças indígenas sempre me ajudam a pegar o que quer que seja no carro – e em vez de irmos à trilha as crianças da aldeia pediram que fôssemos para uma das salas de aula da escola da aldeia porque estava muito frio e ventava bastante. Não era esse meu plano, mas não me preocupei porque já estou acostumada com sala de aula, ora. Enquanto organizava a sala onde realizaríamos a atividade, as crianças da aldeia já foram retirando, sem que eu pedisse, os instrumentos musicais das sacolas, das caixas e já os distribuíram entre si. Pedi a elas que esperassem um pouco (porque a intenção era conversarmos antes sobre a atividade), mas foi em vão. Enquanto “se auto-distribuíam” os instrumentos, já os tocavam vorazmente e, quando terminei de ajeitar a sala para começarmos a atividade, já não era mais possível “controlá-las” nem organizar mais nada. Se Antonio Vieira, em seu Sermão do Espírito Santo, escrito em meados de 1600, descreveu os Tupinambá94 como “inconstantes”, “indiferentes” referindo-se à dificuldade de conversão destes (Vieira, 1657, apud Viveiros de Castro, 2011, p. 185), neste dia, ainda que por motivos distintos, pode-se dizer, senti-me tão frustrada quanto o padre: “quanta inconstância; quanta indiferença!”, pensei.

Além disso, havia acabado de chegar um caminhão com doações de roupas ali perto, atraindo várias famílias da aldeia para o local. Isto não seria problema se as crianças que vinham com essas famílias – e que não participam da pesquisa – não resolvessem entrar na sala onde estávamos e pegar cada uma um instrumento para si também, sem saber do que se

De acordo com Viveiros de Castro, o etnônimo “Tupinambá” é empregado na bibliografia etnológica para “designar os diversos grupos tupi da costa brasileira nos séculos XVI e XVII” (2011, p. 186). 94

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tratava, sem me ouvir dizer do que se tratava e sem se importar com o que se tratava. Como se não bastasse, estas crianças e mesmo as que já participavam da pesquisa entravam e saíam euforicamente da sala com os instrumentos e, ora voltavam sem eles, ora voltava o instrumento com outra criança que eu sequer conhecia. Minhas alunas (não indígenas), que participavam da “não-oficina”, olhavam para mim e pareciam tão confusas e assustadas quanto eu. Soube depois que uma delas se perguntava: “O que está acontecendo com a prô?” (o que significava, de acordo com elas, “Por que ela não consegue fazê-los parar, ouvir e tocar?”). Foi um caos. Para não dizer que tudo deu errado, houve dois momentos em que conseguimos que cada criança começasse tocando, uma por vez, enquanto outras iam acrescentando algo à ideia que já soava. Porém, quando tentava acrescentar algo ou fazer alguma variação, como, por exemplo, de intensidade, caminhando para o forte, o que havia sido construído até ali se “desmoronava”, transformando-se em uma grande e fervorosa “apitação”. Outras crianças indígenas, por exemplo, pegavam a folha enorme de plástico bolha que levei (que, para mim, tinha sido a melhor ideia de acordo com a proposta) e se enrolavam nela fazendo do material outro brinquedo. Tentava dizer a eles que não conseguiriam me ouvir se ficassem tocando sem parar, mas este argumento os motivava e os impulsionava a virem tocando e sorrindo – sem parar ainda – até mim. Pensei por muitos dias sobre esta “não-oficina” e, sem ter como negar, concluí que foi o caos. Mas foi o caos – concluí, para mim e, provavelmente, para minhas alunas – porque não aconteceu o que imaginávamos que ia acontecer e porque esperávamos por algo cujo “padrão” já conhecíamos. Contudo, para as crianças indígenas, não parece ter sido um caos. Quando giraram envolvidas no plástico-bolha, elas estavam brincando e não desconsiderando a mim; quando vinham até a mim e apitavam depois que pedia para não tocarem “fora de hora”, elas não vinham com tom de deboche nem vinham como se estivessem me desafiando; elas vinham rindo como se a brincadeira fosse o próprio desafio de criar outras possibilidades de brinquedo para o material. Tive a impressão de que, para elas, tudo era mais uma de suas brincadeiras e elas brincavam como costumam brincar: sem uma aparente organização de branco. 168

Cheguei a algumas conclusões a respeito dessa atividade, e a primeira delas é que o termo “não-oficina” traz as marcas da minha formação docente e musical e, inclusive, de quem eu sou e como penso e vivencio o mundo, e, se tais marcas são geradas na minha cultura e moldam minhas impressões sobre todos os assuntos que me envolvem, o uso deste termo foi, primeiramente, apressado (porque veio antes da reflexão) e, principalmente, equivocado, exemplificando, mais uma vez, a necessidade da reflexão reflexiva proposta por Bourdieu95 (2012). Agora que já foi pensado sobre quem era o “Eu”, como este pensava e por que pensava, reflitamos sobre quem é o Outro a partir dos acontecimentos registrados em meu diário de campo e descritos abaixo. 18 de Agosto de 2013 – Visita à escola indígena da aldeia Guarani Krukutu96

Acompanhei, nesse dia, parte das atividades escolares das crianças da aldeia Krukutu. Fig. 99 – A aula a que assisti foi a de Educação Física. Ainda em sala, o professor – que era Guarani – distribuiu os bambolês entre as crianças (que diferiam em idade) para que elas o ajudassem a levá-los para o campo de futebol. Chegando ao campo, o professor montou o circuito usando pedaços de madeira, cadeiras e bambolês e, mesmo enquanto montava, as crianças já inventavam brincadeiras com o que já estava no chão. Ao terminar de preparar a atividade, o professor, sem dirigir uma só palavra às crianças, mostrou-lhes o que deveria ser feito: pular os paus, subir nas cadeiras e andar sobre elas e, por último, pisar de pé em pé em cada bambolê. Fig. 100 – Uma menina, que parecia ter 12 ou 13 anos, carregava cerca de cinco bambolês no corpo. Em vez de participar da aula, sentou-se à beira do campo e ficou ouvindo músicas no seu celular. O professor não a chamou para participar da atividade.

95 96

Assunto abordado à página 85. Uma das aldeias guarani também localizada em Parelheiros, bastante próxima da aldeia Tenondé Porã.

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Fig. 101 – Algumas crianças não participavam da atividade e parecia não haver problema quanto a isso. Estas se juntaram a outras crianças que jogavam futebol em um dos lados do campo, enquanto outras se distraíam com seu bambolê e com os cachorros que estavam por ali.

Fig. 99. Aula de Educação Física na aldeia Krukutu. Foto de Daisy Fragoso.

Fig. 100. Garota guarani se dirigindo à beira do campo com os bambolês. Foto de Daisy Fragoso.

Fig. 101. Garoto guarani brinca com bambolê e com cachorro durante a aula de Educação Física. Foto de Daisy Fragoso.

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*** 2 de outubro de 2013 – Grande ato de Resistência Guarani na Avenida Paulista97

Juntei-me, nesse dia, aos povos indígenas de diversas aldeias do Brasil na Avenida Paulista, em São Paulo, por ocasião das manifestações a favor de seus direitos. Juntei-me a eles por dois motivos: o primeiro, sim, é porque me identificava com a causa; já o segundo consistia em observar e registrar algumas questões que contribuíssem de alguma forma para o trabalho de pesquisa, tais como 1) as canções entoadas durante o ato e 2) como as crianças se comportavam nessas manifestações, afinal, eu já sabia que elas participavam junto com os adultos também nesse tipo de atividade.

Quando cheguei ao vão do MASP, procurei primeiro pelas crianças e, sim, elas estavam por lá. Não era possível identificar com quem estavam, quem era o responsável por elas, mas elas estavam por lá. Os indígenas (eu soube depois que eram cerca de 500) estavam divididos, conforme pude observar, em 4 grandes grupos: os líderes que eram homens adultos, as mulheres com as crianças de colo, os adolescentes que conduziam os cantos sagrados (por meio da voz e de instrumentos musicais) e as crianças que estavam por lá. Porém, chamou-me a atenção o fato de que, quando a música começava, boa parte das crianças se juntava aos adolescentes (é importante lembrar que havia índios de todo o país e que eles não se conheciam uns aos outros) e cantava com eles. Quando a música acabava, elas voltavam a brincar de correr, de pegar coisas no jardim de trás da mureta do vão do MASP, entre outras diversões. Tentei reparar se alguém chamava por elas na hora do canto, mas não. Elas simplesmente vinham e tomavam parte no canto espontaneamente.

Passada uma hora, mais ou menos, as pessoas se dirigiram para a avenida e as crianças que corriam também se juntaram à multidão sem que lhes fosse ordenado. Enquanto caminhava entre as pessoas na manifestação, notei que, junto aos mais velhos, as crianças também estavam segurando as faixas com palavras de ordem. Mas não eram os pequenos cartazes. Eram as grandes faixas pretas que dividem as pessoas em blocos durante as manifestações, 97

Neste dia, ainda não conhecia a família do Elias Vera, participante da pesquisa.

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aquelas que saem nas fotos dos jornais. Não dava para ver as crianças pela frente da faixa, somente por trás. Elas simplesmente estavam lá sem que alguém as tivesse chamado, e também ninguém as proibia de estarem ali.

Fig. 102. Grande ato de “Resistência Guarani” na Avenida Paulista em 02/10/2013. Foto de Daisy Fragoso.

Por que estavam essas crianças ali? Quem as mandou e quem as conduzia? As crianças, algumas descalças, estavam caminhando havia mais de três horas! Decidi perguntar a uma criança guarani que havia conhecido lá, o Richard, cujo nome guarani era Vera, de 11 anos de idade. Perguntei a ele se seus pais estavam lá, e ele me disse: “Não”. Insisti perguntando com quem e por que ele estava lá. Ele respondeu: “Com ninguém. Eu vim porque eu tinha que vir. Você viu que o cara da TV Record falou mal da gente?”98.

*** 17 de abril de 2014 – Lançamento da Campanha de Resistência Guarani no Pátio do Colégio – SP

Quando cheguei ao Pátio do Colégio, as crianças já estavam cantando. Os homens e meninos cantavam, dançavam; também tocavam o mbaraka mirĩ (chocalho), a rave’i (rabeca) e o mbaraka (violão). As meninas e as mulheres cantavam e dançavam. Crianças e

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Um apresentador da TV Record disse, durante a exibição de seu programa, quando da manifestação na Rodovia dos Bandeirantes no dia 26/09/2013, que se os índios queriam fazer manifestação, que a fizessem na porta da Funai e não em uma Rodovia.

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adultos cantavam e dançavam todos juntos, independentemente da idade, afinal, é com os mais velhos, ou melhor, participando das atividades dos mais velhos que as crianças aprendem. Tanto é, que é comum que crianças mais novas façam parte das brincadeiras das mais velhas, por exemplo. Ainda que não sejam capazes de executar com precisão o que os mais velhos estão fazendo, estão juntas ao grupo participando da brincadeira à sua maneira.

Fig. 103. Canto guarani abrindo a “Campanha de Resistência Guarani” em 17/04/2014. Fotos de Daisy Fragoso.

Ao final da programação preparada pelos Guarani para este dia, os homens e meninos fizeram a dança do xondaro (que não são acompanhadas por voz, somente pelos instrumentos musicais), e uma situação me chamou a atenção: o Tiago Vera Tataendy (um dos filhos do Elias) também participava da dança junto com seu filho, Tadeu Vera Mirĩ, de três anos de idade. Do que já pude observar, não há idade mínima para as crianças participarem dos rituais, ou seja, elas participam desde sempre, pois é dessa forma que aprendem e apreendem os cantos e danças sagrados. Mas o que me intrigou nesta dança (da qual as mulheres não participavam) foi a relação de ensino-aprendizagem entre o pequeno e seu pai. A dança é feita com os homens correndo em círculo, uns atrás dos outros, enquanto realizam movimentos rápidos, como pular e girar, e foi desta dança que o garotinho quis participar. Como esperado, o pequeno não acompanharia a velocidade da roda, então, seu pai formou, somente com ele, uma nova roda dentro daquela maior e, ali, os dois dançaram juntos: o pai fazendo os movimentos que deveriam ser feitos enquanto a criança o acompanhava, imitando-o com os mesmos movimentos, mas à sua maneira; e, em momento algum, seu pai o corrigiu; o pequeno Tadeu participava com o pai da dança ao mesmo 173

tempo em que a dança acontecia e junto com os que participavam dela. O processo de aprendizagem era contextualizado e genuíno.

Entretanto, em nenhuma das situações descritas (a da aula de educação física, a da manifestação e a do garotinho que dança com seu pai), ainda que na primeira e na última delas houvesse a intenção de se ensinar algo a alguém, não havia a declaração verbal disso, isto é, não existe a frase “venha aqui para que eu te ensine”, nem mesmo “faça como eu faço”, e parecem ser raros os momentos em que isso acontece99. Mesmo o professor de educação física, que, sem emitir palavra alguma, apenas mostrou o que deveria ser feito às crianças. Os adultos simplesmente fazem e as crianças, se quiserem e quando quiserem, imitam-nos à sua maneira, sem que sejam corrigidas para que dancem, cantem, toquem ou façam algo como fazem os adultos ou os mais velhos.

Fig. 104. Tadeu Vera Mirĩ, três anos, filho do Tiago Vera Tataendy. Foto de Alessandra Yva.

Um dos poucos momentos em que acontece declaração verbal do ensino, de acordo com Jera Poty Mirĩ (em entrevista ainda não publicada realizada por Alice Haibara, Joana Cabral e Valéria Macedo), liderança guarani da aldeia Tenondé Porá, é quando a menina menstrua pela primeira vez; é “só nesse momento [que] se mostra e se fala” como fazer determinada atividade. 99

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*** 04 de junho de 2014 – Conclusões sobre o dia da “não-oficina”: o aprendizado entre as crianças guarani Mbya

Das observações feitas em campo e descritas acima, já é possível concluir que a relação de ensino-aprendizagem entre os Guarani Mbya é diferente daquela que eu apreendi seja quando fui aluna, seja quando filha pequena, seja como professora; e isso talvez já bastasse como conclusão, mas, podemos, ainda, ampliar a discussão.

A situação de aparente caos, de aparente falta de ordem foi a tônica do relato feito sobre a não-oficina. No entanto, os relatos de outros momentos sobre diferentes situações de aprendizagem apontam não para a desordem, mas para outro modo de perceber a ordem – e mesmo o aprendizado. As crianças guarani Mbya agem e vivem com tal liberdade que, quando as comparamos com crianças não indígenas, pode ser que nos cause estranheza no sentido de acharmos que há desordem, falta de regras, descaso ou algo assim. Nunes (2002a), por exemplo, verificou que, entre os A’uwẽ-Xavante, as crianças também vivem em

[...] aparente desordem ou falta de ordem, ou, antes, uma ordem vivida de outro modo, imersa num espírito lúdico, espontâneo e sem compromisso, que pode estar no cerne de todo um processo educacional. Afinal, o que pode parecer caótico e sem regras obedece a esquemas rigorosos de construção e transmissão de saberes, e é desse modo que as crianças os incorporam e deles vão tomando consciência (Nunes apud Nunes, 2002a, p. 72, grifo meu)

A ordem que eu imagino para que a oficina acontecesse como se esperava era outra, e, por isso, não me parece (agora) que tenha havido desordem, tampouco falta de controle, afinal, a ordem entre as crianças guarani é “uma ordem vivida de outro modo” (ibidem), assim como entre os A’uwẽ-Xavante e, possivelmente, com outras comunidades.

Por outro lado, observei, que, com as crianças guarani Mbya, o aprendizado é também construído por meio da experiência, ou seja, pela vivência e pela observação é que as 175

crianças incorporam os saberes. Isto não significa a imitação pura e simples de um gesto feito pelos mais velhos; é mais do que isso: significa um gesto que vai se elaborando, moldando-se e se aperfeiçoando com o tempo, através da vivência contínua por toda a vida, todo o tempo. Perguntei ao Ueliton Tupã Mirĩ Ju, adulto já, quem o havia ensinado a tocar violão (mbaraka). Ele me respondeu: “Eu vi. Eu vi e aprendi”. “Ver e aprender” não pode ser traduzido como “imitar e aprender”; mas traduz-se em “viver e aprender”. Tocar é um gesto apreendido, não imitado, tampouco ensinado explicitamente; logo, não faria sentido, na oficina, eu mostrar como se tocava determinado instrumento, porque este não fazia parte da vida das crianças, porque a aprendizagem não foi fruto de uma observação contínua – consciente ou não. Ainda que a proposta fosse a livre experimentação, as crianças não fariam o que propus (e de fato não fizeram), não porque não eram capazes, mas porque não haviam visto como tocar, ou melhor, não haviam vivido esta maneira de tocar.

A vivência e a experiência são mencionadas como meios de aprendizado, ainda, em outras etnias. Para os Bakairi, “desde que acordam, aprendem vivendo”. A educação, para eles,

[...] se processa através da participação nas atividades da vida cotidiana, das mais aparentemente insignificantes até as mais sagradas. Desde pequenas, as crianças ouvem a narração de mitos, escutam os cânticos sagrados do Kado (...), observam e aprendem a respeitar as regras da vida em sociedade. Crescem ouvindo histórias de lutas de nossos antepassados e, ouvindo-as, alimentam sua autoestima. Aprendemos fazendo junto com os mais velhos, imitando-os, e colaborando nas atividades do dia a dia” (Darlene Yaminalo Taukane apud Silva, 2002, p. 47).

Já os Xikrin, de acordo com Cohn (2000, p. 119-120), consideram os olhos e os ouvidos como os órgãos de aprendizado, e quanto mais fortes, mais desenvolvidos estes forem, mais capacidade haverá para aprender, assim, uma criança ainda tem os olhos e ouvidos fracos, porque ainda não viu e ouviu o suficiente

Bep-to, Kanôx, Bep-Koro [boktire, ou seja, meninos logo antes de se tornarem norony, rapazes solteiros] têm ainda o ouvido fraco, não sabem nada ainda (...). Mas os menorony (Kudjoire, Kapôt, [rapazes solteiros]) já têm o ouvido forte/bom, já entendem bem, e já se começa a contar as coisas para eles, já ouvem/ aprendem (Bep-keiti, Bacajá, apud Cohn, 2000, p.

119). 176

Do depoimento acima, temos que se os olhos e ouvidos vão se tornando fortes na medida em que as crianças vão ficando mais velhas, o aprendizado, de igual modo, acompanha este crescimento e, desta maneira, aprende-se enquanto se vive.

Fig. 105. Meninos guarani aguardando o início de sua apresentação, portando os instrumentos rave’i e mbaraka. Encontro dos coros não indígena e indígena na USP.

Em uma de minhas idas à aldeia, recebi no caminho uma mensagem da Laudiceia, mãe do Tadeu Vera Mirĩ: “Você já está vindo? Que horas vai chegar?”. Respondi que ainda levaria cerca de uma hora. “Que pena. Você vai perder a dança dos xondaro com as crianças. Vou gravar para você ver quando chegar”. Como não puderam me esperar para assistir, imaginei que as crianças deveriam estar se apresentando para alguém, mas não; o motivo da dança naquela manhã de feriado era para que aprendessem a dança dos xondaro, e era uma situação declarada de ensino e de aprendizagem: os adultos reuniram as crianças, pintaramnas com urucum e organizaram a dança para que as crianças aprendessem. Mas, nos vídeos que a Laudiceia me mostrou, não havia adulto algum ensinando como dançar; havia um líder adulto segurando a taquara, sobre a qual as crianças deveriam pular durante a dança (e que depois deu seu lugar a uma das crianças), e outro tocando o mbaraka (violão); e havia as crianças dançando. As crianças aprendiam a dançar enquanto dançavam, assim como

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tudo o que aprendem: elas aprendem enquanto fazem (re)produzindo e transformando o que já observaram, isto é, elas vivenciam e experimentam. E assim vão se fazendo Guarani.

Assim, a pergunta feita a mim por uma das crianças não indígenas presentes na oficina após o ocorrido conclui bem este capítulo: “Mas, prô, eles têm aula de música?”. A Sabrina, no mesmo dia, entendeu que, para aquela “aula” acontecer, era preciso que tivéssemos tido juntos mais momentos como aquele (não que a inclusão de aulas de música seja a solução, mesmo porque uma solução implica em um problema, e não houve problema); que era preciso vivenciar mais experiências como essa juntos; que era preciso ver e viver para aprender.

III.3.6. O trabalho em sala de aula – Oporaei, japoraei100 Abaixo, descrevo alguns trabalhos musicais que as crianças não indígenas, que, como já mencionado, participam do coro infantil Tico-tico, fizeram a partir do repertório recolhido. Enquanto propostas, tais trabalhos estão aqui descritos como sugestões de abordagem. Contudo, os processos de educação musical que foram valorizados nesta parte da pesquisa recorrem à criação por meio de composições, elaboração de arranjos e improvisações cuja matéria prima foram as próprias canções recolhidas na aldeia.

O primeiro exemplo trata de um trabalho de criação que envolvia tanto a improvisação, como a composição. Iniciamos nosso trabalho com a canção Apykaxu xiĩ’i oveve101. Escolhi esta canção porque parte das crianças já a conhecia do dia em que fomos fazer o primeiro painel de registro102. Partimos do vídeo feito nesta ocasião. Mostrei aos meus alunos o vídeo em que as crianças indígenas cantavam essa música e lhes traduzi o que estava sendo cantado. Para esta canção, optei por seguir o que vinha fazendo com outras canções guarani: não ofereci a partitura da canção, mas cantava trecho por trecho e as crianças 100

Nós (exclusivo) cantamos, nós (inclusivo) cantamos. Canção registrada em “O caso de Apykaxu xiĩ’i oveve”, página 71. 102 Momento descrito no capítulo III. 3.3 – “Assim, vocês poderão se lembrar sempre da gente”: primeiros vínculos. 101

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memorizavam e repetiam. Elas aprenderam a canção com rapidez, mesmo porque elas já estavam familiarizadas com a língua guarani e mesmo com rudimentos de sua pronúncia (por exemplo, a letra “y”, cujo som não há equivalência no português). Em seguida, pedi a elas que cantassem a música procurando criar arranjos vocais de improviso, melodias que combinassem entre si, uma segunda voz e assim por diante. O arranjo, então, começou a tomar forma a partir de pequenas improvisações: enquanto o grupo cantava, aqueles que tinham alguma ideia para acrescentar, para modificar, deveriam fazê-lo cantando.

A primeira conclusão a que as crianças chegaram foi a de que caberia um cânone, mas este cânone seria feito com o primeiro grupo cantando o texto e o segundo cantando a melodia em bocca chiusa, porque dessa maneira, de acordo com eles, a pombinha voando estaria melhor representada, já que seu voo, nas palavras das crianças, é leve como o canto em bocca chiusa. Esse comentário revela a importância da criança conhecer técnicas de canto e saber do que se trata a canção e a possibilidade de articulação entre música e letra que esses conhecimentos permitem. Depois foi sugerido por uma das crianças que tentássemos fazer o cânone usando o texto (ou seja, sem bocca chiusa); depois do teste, decidiram que ficariam com esta última opção. Para elas, o cânone retratava o voo incessante da pombinha. Assim, ficou resolvido que cantaríamos a primeira parte em uníssono e depois faríamos o cânone. Como a música ainda estava sem final, um aluno sugeriu: “Por que não acrescentamos o ‘Oreru’ no final da música? A gente pode acabar com essa”. “Oreru Nhamandu Tupã” é uma música que havia sido ensinada a nós pelos Guarani quando cantávamos juntos na casa de reza na primeira visita que fizemos à aldeia. Infelizmente não podemos apresentar a partitura do arranjo feito em função da canção Apykaxu xiĩ’i oveve, que não pôde ser divulgada103. Depois desse arranjo pronto, mostrei às crianças a versão guarani da brincadeira “Corre Cutia” (Akuxi ojere – partitura 4) e lhes contei que havia também uma versão desta para o português, mas que não era uma tradução literal104, e sim uma adaptação (partitura 5). Então, sugeriram que fizéssemos também uma versão em português da música Apykaxu

103 104

Conforme descrito na página 71. “A cutia dá voltas / À noite, de dia / O galo cantou / E a casa caiu”

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xiĩ’i oveve. Para isso, discutimos as seguintes opções: elaborar uma versão e aproveitar a mesma melodia; elaborar uma nova melodia e usar a tradução literal; ou criar melodia e texto novos, valendo-se do tema principal. A opção eleita foi esta última (partitura 15, abaixo), e a escolha feita foi baseada na música Akuxi Ojere, em que a versão em português trata do mesmo assunto, mas apresentando letra e música diferentes.

Partitura 15. “A pombinha branca”: composição coletiva a partir de “Apykaxu xiĩ’i oveve”.

É relevante destacar, na criação da nova letra, como a linguagem infantil (cuja elaboração e expressão também são culturais), através da exegese, isto é, da interpretação intuitiva da letra, reflete as experiências orais e culturais (que mantêm entre si uma relação dialética) da própria criança. Ainda que as crianças conhecessem a tradução literal da canção, elas fizeram algumas escolhas para sua composição: enquanto “apykaxu xiĩ’i” significa “pomba branquinha”, com o diminutivo no adjetivo, para as crianças era mais coerente (culturalmente) falar de uma “pombinha branca”, isto é, aplicando o diminutivo no sujeito. O acréscimo de “céu azul”, bem como a troca do verbo original “alcançar” pelo “voar”, também atestam as marcas da cultura. Já na última frase, a tradução original continha a palavra “somente” e esta foi excluída da versão em português por não caber na frase musical proposta. Ao final, a palavra “aqui” foi acrescida à frase pela aluna mais nova do grupo, Giovana, de cinco anos de idade, para completar a frase musical, mas também, provavelmente, por razões de linguagem cultural. No jogo de improvisação que fizemos 180

(descrito a seguir), por exemplo, um dos alunos propôs a primeira frase da seguinte maneira: “A pombinha branca vai pra casa de Nhanderu”, unindo razões tanto pragmáticas (ao reunir em um único verbo – “vai” –, as palavras “alcançar” – da tradução feita – e “voa” – da primeira versão elaborada) quanto musicais (para seguir o padrão rítmico criado). Por outro lado, se bem repararmos, a tradução feita, quando comparada à tradução baseada no dicionário (Dooley, 1998) (fig. 106), é também fruto de uma interpretação intuitiva, também elaborada na cultura de quem a traduziu. Por último, foi proposto a elas um jogo de experimentação a partir de improvisações105 cujas ideias deveriam ser trazidas da própria música Apykaxu xiĩ’i oveve: eles poderiam usar palavras soltas desta canção, traduções, novas versões, fragmentos melódicos da canção original ou da composição ou novas melodias. – Podemos fazer um mix? Pedi que explicasse. – A gente podia juntar outras canções numa só. – Como um medley? Um medley de canções guarani? – Perguntei. – Não, prô. – outra criança respondeu. – Não é para cantar uma música depois da outra. É ao mesmo tempo. Tudo junto. E antes que eu estivesse pronta para gravar, um aluno começa: “A pombinha branca...”.

As crianças juntaram em um só improviso as três canções guarani que conheciam: Apykaxu xiĩ’i oveve, Kyrĩgue’i peju jajerojy e Oreru Nhamandu Tupã. O aluno que sugeriu a primeira frase continuou com uma nova versão, “Vai pra casa de Nhanderu”, e este tema foi sendo intercalado com palavras soltas como “apykaxu xiĩ’i”, “oreru”. Outras crianças propuseram um acompanhamento feito com percussão corporal e com a sílaba tã; outra decidiu fazer um passeio sobre essa elaborada colcha de retalhos musicais, cantando a música Kyrĩgue’i peju jajerojy (partitura 9). Esta aluna não seguiu a estrutura rítmica original da canção, mas foi adaptando-a à base construída pelo grupo. É nítido o caráter 105

Áudio da improvisação disponível em https://soundcloud.com/daisy-fragoso/improviso-apykaxu-xiiioveve .

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experimental desta composição, ou seja, é possível perceber que as crianças estavam, antes de tudo, experimentando o que se encaixaria melhor ao que já estava soando e, na medida em que percebiam que o risco corrido havia resultado em êxito, firmavam-no como elemento sonoro legítimo. Ao final, fizeram um decrescendo e as vozes foram se retirando até terminarem com o motivo inicial, “A pombinha branca”, acompanhado de uma terça maior superior feita pela aluna que cantava Kyrĩgue’i peju jajerojy. Abaixo (fig. 107) seguem as principais células, que ora se mantinham conforme escrito, ora variavam quanto ao tempo, à afinação, ao timbre e mesmo quanto à própria célula.

Fig. 106. Principais motivos criados na improvisação feita a partir da música “Apykaxu xiĩ’i oveve”

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Vale ressaltar que o que foi descrito aqui é parte do projeto desenvolvido e que muitas são as opções de trabalho. Deste modo, a maneira como o trabalho foi conduzido aqui não é uma receita que deve ser seguida por outro educador musical interessado em músicas de outras etnias, mas um exemplo dado a partir do trabalho realizado com um grupo específico em situações específicas. Serve, no entanto, como sugestão, para que, a partir dele, outras ideias surjam. Isto é, o professor pode elaborar outras propostas e criar outros caminhos, inclusive trabalhar em conjunto com outras disciplinas. Enfim, as possibilidades são infinitas e devem ser consideradas a partir do grupo com o qual se trabalha, sempre considerando o ensino contextualizado, e criativo e, assim, significativo, para que fujamos dos estereótipos de índio e, consequentemente, de cultura e música indígenas.

Além deste, outros trabalhos com canções recolhidas na aldeia também foram desenvolvidos, dentre os quais destaco a apresentação de um arranjo feito por mim de uma das canções – Oreru Nhamandu Tupã – em um encontro de corais infantis (partitura disponível no anexo A) e um jogo de mão elaborado para a canção Jaguata tape rupi (anexo B), a fim de que as crianças não indígenas compreendessem melhor a estrutura rítmica da canção (por exemplo, a frequência das notas de três tempos aos finais de frase de boa parte das canções guarani). A intenção era de que esta canção também fosse incorporada ao nosso repertório, mas, em função do encerramento das atividades do grupo, ficamos somente com o jogo. Ainda assim, aproveitei a canção com uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental da escola em que trabalho, elaborando um arranjo (do qual o jogo de mão fazia parte) que apresentamos no concerto de final de ano.

Ainda que estes arranjos já estejam prontos e possam ser usados pelos professores de música e regentes de coros infantis, sugiro que, a partir das canções recolhidas durante essa pesquisa, cada educador crie novos arranjos, novas possibilidades, mesmo porque todos estes arranjos foram elaborados ora considerando o grupo de crianças com quem eu trabalhava, ora criando com eles. Tanto é que a canção Jaguata tape rupi, que foi trabalhada com o Tico-tico e com outra turma de crianças, teve resultados sonoros distintos entre si e inclusive diferem do arranjo que disponibilizei aqui. Neste sentido, o professor deve-se lançar junto com seu grupo de alunos num ambiente em que o fazer musical seja 183

resultado do movimento entre as culturas que estão em contato, neste caso, a cultura guarani trazida pela canção a ser trabalhada, a do professor e a de cada aluno envolvido.

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IV

Coletânea de pequenas histórias: resultados “O homem não possui território interior soberano, ele está inteiramente e sempre sobre uma fronteira; olhando o interior de si, ele olha nos olhos do outro ou através deles. Não posso dispensá-lo, não posso tornar-me eu mesmo sem ele; devo encontrar-me nele, encontrando-o em mim” (Mikhael Bakhtin106)

Animada, Catharina conta-me o seguinte relato: – Prô, na aula de História de hoje estávamos estudando os povos do Brasil. Aí eu disse ao meu professor que eu conhecia índios de verdade, os índios Guarani, e também disse que era amiga deles. Depois eu disse que sabia até cantar uma música guarani que aprendi na aldeia. Aí eu cantei “Oreru Nhamandu Tupã” pra sala toda. Num outro dia, após um ano de trabalho na aldeia, estávamos recebendo novos integrantes em nosso coral. Enquanto contava aos novos membros sobre as frequentes visitas que fazíamos aos Guarani, João, na tentativa de tranquilizar as crianças que chegavam, interrompeu-me: – Não precisam se preocupar. Eles não vão atirar flechas em vocês. Não é como todo mundo pensa.

Neste mesmo dia, uma das crianças que acabara de chegar, comenta: – Eu já estudei na escola sobre os indianos. Imediata, mas delicadamente Sofia a corrige: – Não são indianos. São indígenas.

106

Bakhtin, 1961, 287.

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Enquanto, no início da pesquisa, eu pretendia verificar se, de alguma forma, experiências compartilhadas entre as crianças indígenas e não indígenas provocariam novos arranjos musicais e sociais, e, caso provocassem, de que caráter seriam e como aconteceriam, Elias, nosso xeramoĩ, em nossa primeira conversa, já havia previsto o que escreveria neste capítulo: “Se você ensina [música guarani] para um aluno seu, esse aluno vai ensinar para outros e vai ajudar a divulgar nossa cultura, nosso povo”.

Se a mídia e os livros didáticos têm poder para hegemonizar saberes, os saberes maiores, as crianças têm hábil capacidade de espalhar os saberes menores, se a estes tiverem acesso, conforme já previa o xeramoĩ. E o fazem com orgulho. E com autoridade. Por exemplo, na história acima protagonizada por João, ele fez questão de tranquilizar as crianças que chegavam, afinal, no início do trabalho havia ficado bastante preocupado acerca do que os Guarani fariam com ele quando chegasse pela primeira vez à aldeia. Se fizéssemos uma releitura do conselho de João, provavelmente caberia a frase “Não é como todo mundo pensa, por isso, não se preocupe. Acredite no que digo, porque eu também pensava assim, e depois que fui à aldeia, percebi que não era como imaginava”. No entanto, a autoridade adquirida pelas crianças não indígenas sobre o assunto, ou, “o conhecimento de causa”, só foi possível por conta do rearranjo das primeiras impressões. Pode ser que, sem este rearranjo (o qual foi, neste caso, mediado pela música e pelo brincar), as crianças, sobre isso, não teriam o que ensinar de novo, não teriam conselhos para dar, nem histórias para contar. Mesmo assim, a postura confiante em relação às questões indígenas foi-se construindo aos poucos, ao mesmo tempo em que as primeiras impressões cediam lugar às novas e estas aconteciam ao mesmo tempo em que conheciam o outro grupo, o das crianças guarani. Na primeira visita que o grupo fez à aldeia (aquela do dia 10 107), pedi que duas crianças, Pedro S. e Neilson Karai, filmassem o encontro na opy. Quando fui assistir às gravações, reparei que as imagens feitas pelos meninos tinham algo em comum: ambos haviam registrado somente o seu respectivo grupo cantando, isto é, Pedro S. filmou quase que

107

Capítulo III.3.2 – O dia dez.

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somente o coro não indígena, enquanto Neilson, da mesma forma, filmou somente o coro guarani. Imaginava, quando pedi aos meninos que registrassem este momento, que cada um, ao contrário do que aconteceu, filmaria o grupo do Outro, do que era diferente do seu. Porém, talvez não parecesse fazer sentido para as crianças gravar em vídeo imagens que não lhes dissessem respeito, que não tratassem e não falassem de si. Mesmo as fotos feitas neste dia por crianças de ambos os grupos, em sua maioria, registraram os membros de seu próprio grupo; registraram sempre seus iguais. O mesmo aconteceria, mais tarde, com o painel que as crianças guarani fariam sobre este primeiro encontro: os desenhos feitos por este grupo faziam referência somente ao próprio grupo indígena. No entanto, nesta atividade do painel, as crianças não indígenas não repetiram o registro de si, como feito nos vídeos, mas registraram o grupo que não era o seu. Provavelmente porque o registro feito no painel era uma atividade conduzida sob a orientação “desenhem como foi o encontro de vocês com as crianças guarani”, enquanto o registro em vídeo, de algum modo, era mais livre: “registrem o que está acontecendo aqui na opy”.

Fig. 107. Neilson filmando os grupos cantando juntos no dia dez. Imagem extraída de vídeo feito por Denise Fragoso.

Nos encontros seguintes, os registros passaram a apresentar outro padrão, mas que não era o oposto do anterior. Se antes as crianças filmaram e fotografaram somente os que pertenciam ao seu próprio grupo, na medida em que se conheciam, passaram a se fotografar em conjunto, como um grupo só, o que nos leva a refletir sobre as relações infantis. As crianças reconhecem no Outro as diferenças, mas estas não as impedem de, com ele, se relacionarem. Ao contrário, dispõem-se e se comprometem ao diálogo e à troca com o Outro, provocando movimentos em direção a ele e rearranjando suas linhas sociais e culturais.

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Sabrina me contou que comentava com seus amigos de escola que tinha amigos Guarani. Para provar àqueles o que dizia, contou-lhes o nome de alguns deles, provocando-lhes risos debochados. A fim de fazer com que estes amigos parassem com as risadas, Sabrina tentou explicar como os nomes (tanto em português quanto em guarani) eram dados às crianças guarani, mas foi em vão. Irritada, Sabrina abandona a conversa com a seguinte frase: “Vocês não conseguem perceber que as pessoas têm culturas diferentes e que o nome faz parte disso. Vocês não entendem porque vocês não conhecem”. Com este relato, Sabrina nos faz refletir sobre algumas questões. Quando o deboche começa, a primeira tentativa da aluna é explicar de onde vêm os nomes de seus amigos guarani, afinal – parece ter pensado ela –, se aqueles amigos de escola soubessem que a escolha dos nomes em guarani faz parte da cosmologia guarani, não tratariam o assunto com banalidade e deboche. Como isso não funcionou, Sabrina argumenta que os nomes são parte de uma cultura, e diferem dos nossos, tal como as culturas diferem entre si, e conclui dizendo que a razão de seus colegas não respeitarem o Outro é porque não o conhecem. Mas este “conhecer” a que Sabrina se refere tem significado mais amplo. Não é “conhecer” como se conheciam a família árabe entrevistada por Bourdieu (2012, p. 40 e 41) e os franceses, cujas diferenças não eram toleradas nem respeitadas mutuamente108. É, na verdade, um conhecer do saber o que pensam e porque pensam; é um conhecer de se relacionar, de se dispor ao movimento de ir e vir entre uma cultura e outra, de maneira que possam se conhecer, compartilhar experiências e se transformar mutuamente.

Fig. 108. Encontro dos coros guarani e não indígena na USP. Da esquerda para a direita: Liana Jaxuka, Catharina, Jade Jaxuka, Heloisa, segurando a pequena Eliara, e Giovana. Foto de Pedro Paulo Salles.

108

Veja página 7.

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O coral que participou desta pesquisa foi convidado para um concerto com outro coro infantil. Nesta apresentação, os coros se apresentariam sozinhos e, em seguida, cantariam juntos algumas músicas. As crianças do primeiro grupo estavam bastante ansiosas por este evento porque conheceriam outras crianças (conheceriam no sentido a que se referia Sabrina; conheceriam como conheceram os Guarani). A ansiedade parecia estar relacionada ao fato de que poucos dias antes, elas tinham se juntado para cantar com o coro guarani na aldeia e, de acordo com elas, fizeram novos amigos nesta ocasião; assim, a oportunidade de cantar com outras crianças era sentida por elas como uma oportunidade de fazerem mais novos amigos.

Mas isso não foi o que aconteceu. De acordo com meus alunos, as tentativas de amizade não foram nem de longe correspondidas, fazendo com que se sentissem intensamente tristes e frustrados com a experiência. Tanto foi que, ao final da nossa apresentação, enquanto a plateia aplaudia, uma das crianças começou a chorar no palco exatamente por esta razão, sendo, então, abraçada pelos companheiros de coral no mesmo momento.

No caminho de volta, quando conversávamos sobre o que havia acontecido, disseram-me: – Eu não sei o que aconteceu, prô. Na aldeia, que era mais assim, não foi assim... – “Mais assim” como? – eu perguntei. – Mais diferente, sabe? Nós éramos diferentes deles [das crianças indígenas] e eles diferentes da gente, e foi tudo bem, todo mundo virou amigo. Hoje, que era só cantar junto, foi desse jeito.

Na maior parte dos registros feitos pelas crianças em atividades coletivas, nos diários de campo, nos desenhos que me entregaram e em suas falas, o elemento mais encontrado é a menção às crianças guarani como “meu amigo”: “Nos tornamos amigas”, “ele é meu amigo”, “eu tenho amigos Guarani”, “eu vou sempre à aldeia visitar meus amigos”, exemplificando o sentimento de aproximação (ou o desejo de aproximação) entre crianças 189

não indígenas e as Guarani. Mesmo as crianças indígenas, quando vou sozinha à aldeia, perguntam-me sempre pelas crianças: “Onde está a Catharina?”, “por que o João não veio?” e assim por diante. As crianças normalmente desejam se aproximar umas das outras, e este momento, o momento da infância, é o mais oportuno para o deslocamento quase que totalmente desprendido de uma cultura a outra, porque as crianças estão dispostas a isso. Basta, em geral, que sejam promovidos espaços favoráveis a este movimento, à transculturalidade, e que posturas de respeito e apreciação às diferenças sejam estimuladas nos diferentes contextos nos quais a criança está inserida.

Fig. 109. Liana Jaxuka e Giovana D. em passeio pela aldeia, à esquerda. À direita, estamos Liana, Giovana D. e eu passeando pela aldeia. Foto de Denise Fragoso e desenho de Giovana D.

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Fig. 110. Liana Jaxuka e Giovana D. brincando de mandi'o nhemondoro. Foto de Daisy Fragoso e desenho de Giovana D.

Embora não possamos definir com precisão quão marcante e intensa foi essa experiência para o grupo de crianças não indígenas (e mesmo para as Guarani), não seria ingênuo conceber que essa troca poderá, em alguma medida, influenciar posturas mais tolerantes durante sua vida. Hoje, por exemplo, as crianças não indígenas acompanham páginas na internet e nas redes sociais relacionadas a questões políticas indígenas. Heloisa, aluna mais velha (17 anos) que me ajudava no coral como monitora, acompanha-me sempre nas visitas que faço à aldeia, mesmo depois do trabalho terminado. Ela participou, inclusive, de atos da “Campanha de Resistência Guarani”, reivindicando o reconhecimento de terras indígenas. Além disso, sabendo de suas experiências entre os Guarani e das causas indígenas que passou a defender, amigos de Heloisa se interessaram pelas mesmas questões e passaram a defendê-las, apontando para a rede de influências que é possível criar a partir de nossas ações.

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Fig. 112. Movimentação das crianças do coral Tico-Tico nas redes sociais em torno das questões indígenas em geral.

Paralelamente, é possível notar que durante o trabalho, as crianças não indígenas foram capazes de compreender uma questão etnomusicológica crucial, ainda que não tenham se dado conta disso: que música nada mais é que a expressão da cultura de um povo e que tanto a música é caminho para experimentarem outra cultura, quanto a imersão em outra cultura pode ser caminho para experimentarem, com efeito, sua música: 192

– O que vocês sentiram – pergunta um adulto guarani ao grupo de crianças não indígenas – quando vocês cantaram junto conosco nossa canção aqui na casa de reza? – Ah, é diferente – responde uma criança não indígena. – Diferente como? – perguntei. – É diferente do ensaio porque aqui é sério. – E por que aqui é sério? – questiono mais uma vez. – Porque aqui a gente está cantando no lugar onde eles [os Guarani] cantam e é sério para eles. Então é sério para nós, porque nós respeitamos isso. Os Guarani que acompanhavam a atividade sorriem.

As crianças mostraram que a disposição de se movimentar em direção ao Outro é o principal agente de tolerância, mesmo porque, o movimento de lá para cá, o ir-e-vir, é que poderá provocar devires, transformações; e estas são as responsáveis pela emergência da tolerância. E se as músicas de outras culturas estimulam e proporcionam devires, por que não estendê-las às crianças?

Fig. 112. Heloisa carregando criança guarani. Foto de Denise Fragoso e desenho de Pedro A, 11.

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Considerações finais

A previsão do xeramoĩ

É difícil arrematar com poucas palavras todas as experiências que vivi com as crianças envolvidas neste trabalho e as suas experiências às quais assisti durante dois anos. Para falar delas, foi preciso todo este trabalho escrito; então, resumi-las aqui seria como reduzir um arranjo inteiro a somente três notas. São muitos detalhes para um único nó de muitos laços e muitos pacotes. Do que me foi mostrado pelas crianças, do que foi falado, contado e cantado pelas crianças guarani e não indígenas, para este momento só parecem caber duas situações: aquela em que Alessandra Yva, uma das crianças guarani, disse-nos “Assim, vocês poderão se lembrar sempre da gente” e a previsão do xeramoĩ Elias sobre os resultados deste trabalho.

Perguntei às crianças não indígenas, ao final do trabalho, se havia algo que gostariam de dizer às crianças da aldeia. Dentre muitas respostas, escolhi algumas para transcrever aqui: “Eu gosto muito de vocês. Tudo aí é muito bem-vindo, muito bem amado, não importa a raça, não importa...”, “Não conheci muito bem eles porque eu ficava tímido. Eu lembro do Giovane [Tupã Mirĩ] que me ajudou a subir uma montanha na trilha. Mas eu quero agradecer eles porque eles tiveram paciência com todo mundo” e “Eu não quero dizer para alguém específico. Eu só quero dizer que ‘nós nascemos para sermos felizes’”. Tanto o que foi dito pela Alessandra Yva quanto pelas crianças não indígenas vêm carregado de afeto, de envolvimento e de sentimento, o que aponta para o fato de que as crianças são sempre, em alguma medida, afetadas pelas situações que experimentam, que vivenciam e compartilham. Considerando isso, seria de grande proveito que o educador estivesse atento à sua prática, de modo a aproveitar tal envolvimento. O último depoimento, por exemplo, contém um trecho da canção Apykaxu xiĩ’i oveve (“jaiko’i aguã”, que significa “nós nascemos somente para sermos felizes”) e que teve, por alguma razão, maior significado para a criança que guardou isso com ela, com chances de acompanhá-la ainda por muito tempo. Pode ser. E pode ser que o desejo da Alessandra Yva se realize. Estou apostando que sim.

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Já a previsão do Elias tinha caráter coletivo. Ele foi o único a me dizer que a música era o caminho para que o preconceito em relação a sua cultura fosse reduzido. Enquanto a maioria dos autores mencionava o desenvolvimento da tolerância e da redução do preconceito em relação a músicas de outras culturas, Elias se referia à redução do preconceito em relação à própria cultura. Para ele, o fato de as crianças não indígenas conhecerem sua música poderia fazer com que se tornassem mais tolerantes não somente à sua música, mas à sua cultura, a seu povo e, no limite, a ele mesmo. E ainda previu mais: pela música, as crianças compartilhariam e fariam ecoar por onde passassem o que experimentaram entre os Guarani.

A música foi o elemento inicial de mediação e de integração social escolhido para este trabalho. A música era o propulsor que rearranjaria as relações sociais das crianças. Dada a partida neste projeto, muitas notas foram sendo acrescentadas pelas crianças guarani e não indígenas ao arranjo original. Notas todas previstas no discurso do xeramoĩ Elias. Dos quatro símbolos que atuam como instrumentos de integração listados por Bourdieu109 (arte, mito, língua e ciência), três foram verificados nas experiências que as crianças não indígenas compartilharam com as Guarani: partindo da música, as crianças chegaram aos mitos e à língua. As crianças chegaram à língua quando pediram “Apy!” (“Aqui!”) para receberem a bola numa partida de futebol; e chegaram aos mitos quando defenderam os nomes de seus amigos guarani e quando creditaram a Nhanderu a possibilidade de cura de uma criança com leucemia.

Perpassar (ou transpassar) elementos que compunham o nhandereko guarani, porém, não foi premeditado; foi, antes, uma necessidade. Neste sentido, Elias previa que as crianças não indígenas e que a experiência e troca musicais às que se exporiam seriam pontes para diálogo com os saberes de sua cultura. Era inevitável, enxergou Elias, que as crianças não indígenas falassem das canções guarani e cantassem seus mitos; que brincassem de trocar ideias e trocassem ideias sobre brinquedos e brincadeiras guarani; que experimentassem sua língua e que falassem por aí afora de seus costumes; que enxergassem Nhanderu e acreditassem na vida que viam, como vida que é. A necessidade era também a de 109

Assunto abordado na página 161.

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conquistar um lugar num grupo ao qual não pertenciam para que compartilhassem a infância e a humanidade, humanidade revestida de tolerância e respeito, atributos antecipados por Elias, os quais todos os povos, em alguma medida, almejam. A previsão do xeramoĩ parece ter sido confirmada. E Nhanderu parece ter ouvido à Alessandra Yva. E também, acredito, ouviu a mim: as vozes das crianças estão ecoando.

Desenho da Sarah

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DISCOGRAFIA

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ANEXOS Anexo A – Arranjo de Oreru Nhamandu Tupã Oreru para coro infantil a 3 vozes e piano

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Anexo B – Arranjo de Jaguata tape rupi para coro infantil a 2 vozes e piano (com jogo de mão)

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