Entre a transgressão e a afirmação da Lei do Pai: algumas protagonistas do cinema português

June 24, 2017 | Autor: C. Ferreira | Categoria: Gender Studies, Film Studies, Portuguese Cinema
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Entre transgressão e afirmação da. In: Ana Maria da Costa Toscano, Shelly Godsland. (Org.). Mulheres Más Percepção e Representações da Mulher Transgressora no Mundo Luso-Hispánico. 1ed.Porto: Universidade Fernando Pessoa, 2004, v. 1, p. 103-120. Entre a transgressão e a afirmação da Lei do Pai: algumas protagonistas do cinema português nos anos noventa

Carolin Overhoff Ferreira*

Introdução Transgressoras O cinema sempre foi um lugar predileto para a representação das mulheres más. Principalmente no cinema dominante de Hollywood a articulação do desejo da mulher e a ameaça da sua sexualidade foram vistas nas primeiras décadas da produção cinematografica com preocupação e através de estereótipos que derivaram dos medos e desejos masculinos, como demonstrou Claire Johnston (1973). Os exemplos clássicos são a vamp do cinema mudo e a femme fatal do film noir. Estas personagens enigmáticas e misteriosas resultam de mitos que apresentam o feminino como perigoso, além de eterno e inalterável. Geralmente, elas vivem sua sexualidade de forma mais independente e são, por isso, relacionadas com a vontade de usar, manipular ou enganar os homens. Sendo que elas pretendem a transgressão do poder masculino através de ousadia, beleza e falta de moral, são representadas incentivando homicídios e outros crimes, através dos quais desviam os homens do caminho correto e impedem que eles alcancem a socialização no patriarcado. No entanto, estas mulheres más são normalmente punidas pela transgressão no final da narrativa, assassinadas pelos homens que tentaram atrapalhar. Análises críticas revelaram não somente a necessidade de representar a mulher como obstáculo perigoso de narrativas cinematográficas. Estudiosas como Laura Mulvey (1975) abriram também a discussão sobre a tentativa de controla-las, objetiva-las e torna-las num fetiche através do poder do

olhar da câmara. Entretanto, nem as estratégias cinematográficas e nem as narrativas conseguem sempre afirmar a subjetividade masculina. No caso do film noir, por exemplo, E. Ann Kaplan (1983) fala em masculinidade em crise como resultado da crescente emancipação da mulher. Para o cinema português, Nissa Torents (1990) observa que as mulheres más aparecem com freqüência até aos anos setenta, ao lado de outros estereótipos como a boa mãe, a noiva modesta e as engenhosas camponesas e pescadoras. A autora acrescenta que as mulheres transgressoras são quase sempre estrangeiras, devido à ideologia conservadora e nacionalista do governo salazarista: “Documentary and features idealized the family, banished class conflict, exalted gentlemen farmers, their bulls and their humble peasants, praised the nations glorious past and its great writers; and presented an image of Catholic spirituality in opposition to the materialism of European democracies“ (Kuhn et al., 1990: 319). Além deste tipo de representação da mulher como fatal e de má caráter, a teoria feminista do cinema encontrou uma alternativa nos melodramas e women’s films dos anos quarenta e cinqüenta. Conforme Mary Ann Doane (1981), entre outras, estes filmes ultrapassam a descrição negativa da mulher como também a negação do seu desejo de independência. Além disso, estes gêneros foram interpretados como transgressivos em termos de poder patriarcal, sendo que expressam as contradições que resultam da negação da mulher. Todavia, as narrativas melodramáticas encontram quase nunca uma resolução em favor do desejo da mulher. A mulher boa e sofredora consegue tornar-se protagonista, mas acaba por denunciar à transgressão, aceitando marginalização e martírio. Desde então, muitas estratégias tem sido exploradas para dar mais espaço ao desejo feminino: o counter-cinema feminista dos anos setenta, por exemplo, pretendeu rejeitar a narrativa clássica e a ilusão do realismo através de inovações formais para revelar a construção da representação da imagem feminina. Hoje existem estudos de uma longa lista de realizadoras, desde as vanguardistas dos anos trinta e quarenta como Maya Deren, Germain Dulac ou Marie Epstein até diretoras de documentários e longas-metragens como Agnes Varda ou Jane Campion, que representam a mulher de forma diferenciada e através de reflexões críticas sobre o aparelho cinematográfico.

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No entanto, a crescente consideração pelo potencial transgressor das mulheres pode enganar. Muitas vezes quando o cinema parece interessar-se pela independência ou revolta das mulheres e lhes da papeis principais, críticos observam novamente a sexualização ou degradação delas e concluem que isto reflete novamente as fantasias masculinas. Segundo Beverley Zalcock (1998), os “exploitation movies” dos anos setenta que apresentam gangs de raparigas enraivecidas dentro de um contexto de liberação sexual e racial são um exemplo da concepção erronea masculina, como também, de acordo com Jeffrey Brown (1996), as recentes heroinas de filmes de ação dos anos 90. O aumento do protagonismo feminino, entretanto, tem se tornado indiscutível em obras de tanto realizadores e realizadoras. Também no cinema português, os últimos anos demonstram que cada vez mais longa-metragens possuem personagens femininas principais. Através da inventariação de todos os filmes de ficção produzidos em Portugal por José de Matos-Cruz (1999), é possível notar que no final dos anos noventa a mulher como heroina as vezes sobressai nas produções nacionais. No ano 1998, por exemplo, seis de dez longa-metragens possuiram uma protagonista, sendo que dois foram realizadas por mulheres. Este interesse não é necessariamente relacionado com o aumento de realizadoras: dos sete filmes estreados em 1999, três contam histórias com personagens femininas como motor da narrativa e todas elas foram realizadas por homens. Através do catálogo do Instituto do Cinema Audiovisual e Multimedia (ICAM) de 2001 é ainda possível verificar que no ano 2000 duas de dez longa-metragens se dedicaram ao protagonismo feminino. Dos dezassete filmes apresentados como estando em produção, dez eram projetos de mulheres.

Transgredir a teoria da Lei do Pai A maior consciência em relação à representação feminina resulta principalmente das análises e teorias feministas de cinema, cuja revelação mais importante consistiu na critica da diferença biológica dos sexos defendida por Sigmund Freud. Esta diferença passou a ser considerada como construção dos gêneros masculino e feminino através de discursos culturais. Enquanto a idéia chave da psicanálise, que a formação da subjetividade resulta da diferença ou separação do outro

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(especificamente da mãe) causou ), causou criticas severas (veja por exemplo Teresa de Lauretis, 1984), ela não foi substituída por outra teoria. Lembramos que para Freud a subjetividade resultava da rejeição do desejo pela mãe e a identificação com o pai; para Jacques Lacan ela originava da repressão da mãe perdida e da entrada na Ordem Simbólica, na Lei do Pai. Ambos os teóricos colocaram a mulher na posição de objeto. A psicanálise como teoria do objeto somente tem sido questionada a partir dos anos noventa. Introduzindo o conceito da inter-subjectividade, a psiquiatra Jessica Benjamin (1995) critica que a psicanálise se manteve muito tempo na fase edipal. Segundo esta autora, houve uma sobrevalorização da separação do outro e uma hierarquização referente a sua importância na formação da subjetividade. Benjamin demonstra que a teoria do objeto se preocupa somente com a interiorização do outro como responsável pela independência e afirmação do eu. Na sua opinião, esta concentração no mecanismo intra-psíquico esqueceu que a criança tem prazer e aprende desde cedo mecanismos inter-subjetivos através dos quais é capaz de perceber o outro como centro de experiências próprias e reconhece-lo como sujeito. A autora critica que a cultura ocidental tende a simplificar e a eliminar elementos heterogêneos, e defende que a teoria do objeto resulta destas estruturas binárias. Sendo que as representações das mulheres no cinema são cada vez mais comuns, porém ambíguas, parece útil aplicar a teoria da inter-subjetividade de Benjamin para entender melhor até que ponto isto implica também um afastamento da teoria do objeto (a mulher como lugar de passagem) e um maior interesse na capacidade de inter-subjetividade (o reconhecimento da mulher/do outro como sujeito). Analisaremos então uma pequena amostra de cinco filmes do Cinema Português dos anos 90, procurando identificar se estas protagonistas transgressoras reafirmam a teoria da Lei do Pai, a teoria do objeto, devido a mecanismos intra-psíquicos, ou se elas transgridem essa lei, e, além disso, a sua teoria, através da representação de mecanismos intersubjetivos.

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Como a literatura em relação ao Cinema Português contemporâneo é escassa e muitos dos filmes não facilmente acessíveis, optamos por uma estratégia de escolha que de forma alguma pretende ser exaustiva ou conclusiva. Ela resulta 1) de uma procura de protagonistas no cinema dos anos noventa; 2) de uma procura de protagonistas em contextos diversos e retratadas por realizadores de ambos os sexos e de gerações diferentes; e 3) da disponibilidade dos filmes. Os filmes escolhidos são: Corte de Cabelo de Joaquim Sapinho (1995), Inquietude de Manoel de Oliveira (1998), Os Mutantes de Teresa Villaverde (1998), Ossos de Paulo Costa (1997) e Elas de Luis Galvão Teles (1997).

Análise dos filmes Iniciamos com um filme cujo título pode servir de metáfora: Corte de Cabelo de Joaquim Sapinho aplicou em 1994 um novo look ao relacionamento heterosexual. A sua protagonista, Rita, é uma jovem lisboeta de dezanove anos que trabalha num lugar que representa a Lisboa moderna e o mundo feminino: um salão de beleza num shopping centre. Introduzida como consciente da sua atraente aparência física, no dia do seu casamento Rita decide cortar algo característico da sua imagem: a sua grande cabeleira que vá até a cintura. É um teste para verificar se o seu noivo, Paulo, um jovem que trabalha com vídeo, não se apaixonou somente pela sua beleza. Aquele corte revela, entretanto, um abismo entre os noivos justamente durante o casamento civil porque os valores do noivo são mais tradicionais do que aparentaram. O desaparecimento do longo cabelo leva à crise e separação dos noivos durante a noite de núpcias. Paulo sai para filmar e Rita vagueia pela cidade, no início ainda a procura dele. Mais tarde ela é acompanhada por um colega do shopping. Este colega de descendência africana serve no início do filme, quando tenta assediar Rita sexualmente, para construir estereótipos sexuais e raciais. Devido à discriminação que ambos sofrem de um grupo de skinheads, eles se tornam amigos durante a noite. Rita e o seu desejo de transgredir a Lei do Pai não domina totalmente a narrativa. Paulo igualmente possui o seu percurso, todavia, é confrontado com o questionamento dos seus valores. A

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amizade com o seu melhor amigo, que se revela dependente de drogas, entra também em ruptura. Vítima de um vício moderno, este amigo o defronta com a sua postura dominadora e falta de compaixão. Assim o male bonding, o reconhecimento entre os homens, não serve a Paulo como alternativa para a relação heterossexual em crise. Quando Rita e Paulo se reencontram no final da noite, ele utiliza novamente a sua câmara para filmar o corpo de Rita. É um ato de dominância através do qual Sapinho revela a atitude de idealização da imagem de Rita nas primeiras imagens do filme. Entretanto, ambos mudaram durante a noite e o ato de filmagem que Rita detestava agora não é mais contrariado por ela. Em vez disso, ela é mostrada apreciando outras imagens captadas durante a noite. Paulo, por sua vez, é agora atencioso e carinhoso. Este final semi-aberto não aponta para uma resolução da tensão entre eles, porém, para uma redefinição dos seus papeis: Rita conseguiu fazer Paulo perceber que não quer ser um objeto bonito e Paulo foi confrontado com a sua posição dominante, como voyeur e péssimo amigo. É um passo de ambos para o reconhecimento do outro como sujeito.

De um dos representantes mais jovem do Cinema Português, Joaquim Sapinho nasceu em 1964, passamos para o mais experiente e internacionalmente reconhecido: Manoel de Oliveira. Oliveira dedicou a maioria dos seus filmes a assuntos e protagonistas femininos, muitas vezes em colaboração com a escritora Agustina Bessa-Luís. João Bénard da Costa chega mesmo à conclusão que “se é indiscutível que o cinema de Oliveira ou a concepção oliveiriana do cinema mudou imenso de 1931 até hoje, parece-me igualmente indiscutível que há uma unidade profunda – unidade temática e unidade obsessional – ao longo de toda a sua obra” e que o “eterno feminino” pode ser considerado a pedra de toque da sua obra (Costa, 2001: 8). A eternidade feminina resulta certamente de uma concepção mítica da mulher. Será que Inquietude de 1998, na qual Oliveira conecta três histórias, adaptações de três autores diferentes (a peça de teatro Os Imortais de Helder Prista Monteiro, e os contos Suzy de António Patrício e Mãe de um Rio de Agustina Bessa-Luís) realmente representa este antiquado mito da mulher?

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No primeiro episódio, um pai cientista insiste que o seu filho se suicide porque este atingiu o auge da sua carreira como matemático e deve fugir da velhice para ficar imortal. Entanto, o filho gosta de viver, se sente jovem e é introduzido como apreciador de mulheres, olhando e ser olhado por estatuetas femininas alegres na sua secretária. É o olhar de uma outra estatueta, uma menina dançando, que o faz afirmar a sua vontade de viver perante as insistências na imortalidade do pai. Por isso, convida uma antiga aluna para um piquenique. Quando esta encanta os homens, dançando entre as árvores e oferecendo frutas ao pai, este modifica por um momento sua posição e afirma que “mulheres assim são capazes de alterar o destino de um homem”. Mas, uma vez de volta ao apartamento acaba com esta possibilidade e mata o filho, empurrando-o pela janela. Perante o retrato da antiga aluna que ocupa o lugar de (perigosos) objeto de tentação da vida, o pai entra em desespero e segue o filho. Este episódio foi assistido em um teatro pelas personagens cuja história é a paixão de um homem sem nome, Ele, por Suzy, uma prostituta bela e provocadora da Belle Epoque portuense. Este amor é igualmente impossível devido à situação social de Suzy. Quando esta personagem secundária morre, Ele é consolado por um amigo através de um conto que pretende explicar o destino das mulheres. Neste terceiro episódio, uma menina da aldeia, Fisalina, ambiciona casar com um jovem de outra aldeia, desafiando assim as leis arcaicas da região. O único ser capaz de lhe ajudar é a Mãe de um Rio, uma mulher mítica que vive na natureza. Através desta, Fisalina descobre que é da mesma essência eterna e assume mais tarde a posição dela. A primeira alteração do seu estado se manifesta nos seus dedos de ouro que, quando descobertos numa procissão religiosa, assustam as mulheres da aldeia que a perseguem como bruxa. Fisalina abandona então o namorado e assume a posição da Mãe de um Rio. No final do filme, os amigos do segundo episódio expressam sua compaixão com as mulheres: “pobre Fisalina” e “pobre Suzy”. As três narrativas possuem como tema central a impossibilidade do amor, mas também a incapacidade do homem de alcançar a imortalidade porque esta é a essência da mulher. Na opinião de João Bénard da Costa Inquietude é “um filme sobre o mistério da mulher e a impotência

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masculina face à ela”. O autor defende ainda que “o olhar sobre Inquietude é um olhar feminino” (Costa, 2001: 8). É possível concordar que Oliveira ridiculariza no primeiro episódio o desejo do homem de se tornar imortal, revelando os mecanismos intra-psíquicos dos mesmos. Todavia, no segundo e no último episódio, a representação da mulher resulta do mesmo mecanismo. Suzy, inatingível e venerada por Ele, expressa por exemplo de forma enigmática o seu prazer de ser prostituta, numa cena na qual é encenada como um belo artefacto dentro de uma paisagem idílica que decora a parede. Fisalina é igualmente estranha nos olhos do noivo, porém, não é objeto de veneração, mas desprezada pela comunidade. As mulheres transgressoras e misteriosas são entretanto inofensivas porque mantidas fora da Lei do Pai: como objeto de luxo do homem ou como parte da natureza. Assim elas não atingem um lugar na Ordem Simbólica e é por isto que os homens lamentam-nas. Oliveira demonstra sem dúvida a dependência do homem da mulher e a força desta. Contudo, isto leva a re-mistificação da mulher como eterno mistério, sem a perspectiva desta ser reconhecida como sujeito. O olhar masculino que separa de forma binária os gêneros é, a final, reafirmado.

Ao contrário desta proposta, Teresa Villaverde realça no seu filme do mesmo ano, Os Mutantes, a necessidade de inter-subjetividade através de três personagens marginalizadas de ambos os sexos. A realizadora usou para o filme experiências de adolescentes de instituições do estado, pesquisadas para um projeto de um documentário que antecedeu a longa-metragem de ficção. O filme somente resultou da não autorização por parte do Ministério da Educação do documentário pretendido. Devido a estas experiências, a realizadora realçou que o “estilo do filme vem da energia dessas pessoas. Empurraram-me para o filme, não podia recuar“ (Câmera, 1998: online). Andreia, e os dois amigos Pedro e Ricardo fogem de instituições do estado para encontrar o outro: de preferencia a família da qual eles foram afastados. Devido a uma diferença importante, o percurso da personagem feminina ocupa, entretanto, o maior espaço da narrativa. Por ser mulher, Andreia acabou por ter uma responsabilidade maior: ela

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ficou grávida. A sua procura é por conseguinte diferente: primeiro quer encontrar o pai da criança, e somente no final volta para o único membro da sua família: a sua mãe. Mesmo assim, Villaverde não distingue entre os sexos no que diz respeito ao desfecho das transgressões dos menores. Ricardo, descendente Africano, é assassinado por membros de uma gang juvenil. Ainda no início do filme, ele é quase violado por um elemento português que faz parte de uma equipe alemã que os contratou para um filme pedófilo. A perspectiva de Pedro igualmente não é muito boa. Ele retorna sem muitas esperanças para a miséria da sua casa, onde seu irmão mais novo sustenta o pai alcoólatra através de trabalho infantil. Para Andreia o futuro é incerto: expulsa de uma das instituições por fuga, abandona também a segunda e acaba dando a luz num banheiro público de um posto de gasolina. Os adultos vêm a socorrer o bebe quando o encontram abandonado neste local. Andreia fica olhando do café do posto para a compaixão que a sociedade demonstra somente com o recém nascido. A cena do banheiro mostra provavelmente a parte mais sofrida do suposto mistério da mulher. A denuncia é sutil, mas clara: Os adolescentes não possuem lugar na sociedade e a sua vontade e necessidade de reconhecimento não é atendida. Villaverde mostra o erro dos adultos em várias cenas: ou eles tratam os adolescentes como adultos, assumindo que já formaram a sua subjetividade e não precisam de mais ninguém, ou demonizam-nos como rebeldes ou criminosos. A realizadora também não deixa dúvidas que as chances de um futuro são ainda menores para a jovem mulher e o jovem descendente africano.

Ossos de Pedro Costa, realizado em 1997, compartilha com Villaverde a denúncia social. No bairro degradado Estrela da África em Lisboa as personagens principais são três jovens CaboVerdianos. Tina e o Pai também tiveram um bebe, mas sua miséria e dificuldade de sobrevivência são realçados através do nascimento. Tina tenta duas vezes de se auto-destruir: uma vez junto com o bebe quando sai do hospital e a segunda quando o Pai leva a criança embora. Para o Pai o bebe é somente um objeto que pode ser trocado com a sociedade portuguesa. Nesta tentativa, ele cruza

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com uma enfermeira que acaba por ajuda-lo quando a criança passa mal. Esta personagem desenvolve, devido a sua própria solidão, um interesse em ficar com o bebe, mas se recusa a pagar por ele. Assim, o Pai acaba por oferece-lo a uma amiga prostituta. É novamente um recém-nascido que demonstra que os pequenos ainda possuem abrigo, enquanto os adolescentes imigrantes não interessam à ninguém. A terceira personagem principal, Clotilde, a amiga de Tina, trabalha como empregada nas casas dos portugueses e usa o emprego para ajuda-la. Ela consegue trabalho na casa da enfermeira com o intuito que Tina tome seu lugar e possa encontrar o pai ou a criança. Mas Tânia usa o apartamento com melhores condições para tentar novamente o suicídio. Clotilde decide então de cuidar dela e abandona o marido. No final da narrativa, Clotilde volta ao apartamento da enfermeira, onde o Pai ainda dorme, e abre o gás numa tentativa de mata-lo. As personagens pouco articuladas e o ambiente marginal fizeram com que o filme fosse acusado de pessimismo. Pedro Costa discordou desta interpretação e explicou que não pretendia dar uma visão negativa: “O que é sombrio no filme, são talvez as tentativas de suicídio. Mas eu mostrei sobretudo que não nos podemos matar“ (Coutinho, 1998: online). A solução que ele apresenta para as suas personagens femininas cabo-verdianas é uma celebração de irmandade. Elas conseguem emancipar-se das personagens masculinas irresponsáveis. Não somente o Pai é incapaz de apoiar Tina, também o marido de Clotilde é um machista que, mal que ela saiu de casa, acolhe a enfermeira na sua cama. A portuguesa, que poderia fazer a ponte entre as duas culturas e os dois espaços da cidade, não é reconhecida nem por Clotilde nem por Tina, e a cena em que ela se deita com o marido de Clotilde lhes dá razão. Costa acaba assim por afirmar várias fronteiras: entre as duas culturas, mas principalmente entre os sexos numa mecanismo de demonização do mundo masculino. A questão principal que levou a marginalização, a difícil integração na sociedade portuguesa, é, como a enfermeira, periférica à narrativa. Mesmo assim, ao nível cinematográfico existe uma contra-estratégia. Enquanto Tina e Clotilde são observadas na sua inexpressividade, existem outras mulheres cabo-verdianas, amigas delas, que

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olham no início do filme algumas vezes diretamente para a câmara. Nestes poucos segundos é estabelecida uma relação com o espectador que convida reconhecer as personagens como sujeitos. As fronteiras raciais e sociais, que são reforçadas através da falsa utopia de irmandade, desaparecem aqui em favor de uma possível inter-subjetividade.

O título do filme Elas de Luis Galvão Telles indica a sua principal preocupação. Realizado em 1997, ele conta com cinco personagens femininas, todas na casa dos quarenta anos. A narrativa inicia com depoimentos de cada uma delas, porque Linda, uma jornalista, pretende fazer uma reportagem para seu programa televisivo feminino, Maquillagem, sobre os três principais desejos das mulheres. Reunidas na casa de Linda, as amigas revelam separadamente as suas aspirações secretas. Cloé, proprietária de uma clínica de estética, deseja, depois de ter vencido a toxicodependência, que “alguém a ame”. Mais tarde será revelado que ela é lésbica e que está apaixonada por uma das amigas de nome Branca. Essa é atriz e cantora, e considera o dinheiro como seu principal objeto de desejo, sendo que através deste conseguirá realizar os outros: roupas, viagens, homens. O obstáculo na sua vida é sua filha que sofre com as aventuras e a instabilidade da mãe. Ainda há Bárbara, uma mulher algo insegura com dois filhos já adultos. Ela tem medo da solidão e deseja o seu ex-marido de volta. Resta Eva, uma professora universitária de literatura que se apaixonou por um dos seus alunos: Luis, o filho de Bárbara. O fato dela ser 25 anos mais velha será o problema que esta personagem terá que enfrentar ao longo do filme. A própria Linda não quer revelar o seu desejo, mas é sua história amorosa que da união aos vários sub-enredos. Sendo uma mulher independente, o seu namorado, o realizador de televisão Gigi, tem que sair da sua casa e cama sempre às três horas da manhã. Revoltado com esta exigência, ele opta por um relacionamento com uma jovem atriz e Linda lutará para consegui-lo de volta. O filme tem a ambição de mostrar, com apoio nas atrizes estrelas do seu elenco, que os obstáculos que a idade das protagonistas pode oferecer podem ser vencidos e que elas são fortes, independentes e sexys. Por isto, tudo dá certo no desfecho do filme no qual é comemorado o

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casamento da filha de Bárbara: Cloé conquista Branca, o ex-marido de Bárbara regressa para ela, Gigi volta para Linda e Eva ficará com Luís. Entretanto, este final feliz ilude sobre a capacidade de transgressão das mulheres, afirmando na verdade a fraqueza do sexo feminino. No caso de Barbara, o marido volta por caridade. A resolução de Eva também não convence porque ela vai poder encontrar-se com o filho de Barbara somente as escondidas, para não desafiar a boa moral. A personagem mais segura das cinco, Linda, se revela também volátil e acaba por fracassar na sua carreira, muito na maneira das women’s films dos anos cinqüenta. Quando ela apresenta sua reportagem, vai ao ar chorando e explica isto com a doença de Bárbara. Somente depois de demonstrar publicamente sua vulnerabilidade e fraqueza, seu amante decide voltar. A insaciável Branca é recuperada num relacionamento homosexual onde ela poderá viver a sua sexualidade sem desafiar a moral da filha e da sociedade. Telles domestica assim todas as personagens transgressoras, reafirmando que a independência é somente uma pose do sexo fraco verdadeiramente fraco. Os relacionamentos não resultam de inter-subjetividade, mas do desejo não pronunciado de Linda de poder ser dependente.

Conclusão Obviamente não é possível extrair conclusões finais sobre a representação das mulheres no Cinema Português dos anos noventa através de apenas cinco filmes. Todavia, o que pode ser afirmado é o papel de destaque da mulher em geral. Portanto, em relação à afirmação ou transgressão da Lei do Pai as estratégias são diversas. No caso de Luis Galvão Telles é o questionamento da independência e força feminina que faz das mulheres novamente objetos. A representação da mulher no seu filme é a mais convencional dos filmes analisados porque as transgressoras acabam numa harmonia que engana sobre a constante necessidade de negociar a tensão entre dois sujeitos. Benjamin (1995: 96) realça como esta tensão é inerente no encontro com o outro: “Each self wants to be recognized and yet to maintain its absolute identity: the self says, I want to affect you, but I want nothing you do or say to

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affect me, I am who I am. In its encounter with the other, the self wishes to affirm its absolute independence, even though its need for the other and the other’s similar wish undercut that affirmation”. Telles faz as mulheres abdicarem ao desejo de auto-afirmação, impedindo assim a possibilidade de serem reconhecidas como sujeitos. Teresa Villaverde e Pedro Costa apresentam versões mais interessantes sobre a intersubjetividade, ligadas a denuncias sobre a situação de jovens e imigrantes à deriva da sociedade. Contudo, Villaverde, a única diretora cujo trabalho é aqui analisado, leva este relacionamento mais longe. As suas personagens adolescentes, especialmente Andreia, demonstram na sua rebelião contra as instituições e na sua procura de apoio tanto a necessidade de auto-afirmação coma a carência do outro. A realizadora é pessimista sobre a atual capacidade de reconhecer os adolescentes como sujeitos. Porém, mesmo que suas personagens sejam vulneráveis, elas não são vítimas e procuram sempre o reconhecimento. Costa também resiste à vitimização como mecanismo intra-psíquico, entretanto, usa-o novamente quando fecha as personagens numa demonização do mundo que os rodeia. A intersubjetividade é para ele somente possível entre iguais: entre as mulheres cabo-verdianas, abusadas e abandonadas pelos seus homens. Ao mesmo tempo, e como Villaverde, o realizador faz perceptível que os imigrantes fazem parte da sociedade e devem ser reconhecidos como sujeitos. Como Costa, Manoel de Oliveira permanece no ambíguo. Ele sabe da fraqueza dos homens, mas acredita também na idealização da mulher enigmática e consequentemente exclui a possibilidade de reconhecimento mútuo. As mulheres são principalmente lastimáveis por não poderem participar na Ordem Simbólica. A proposta mais positiva é oferecida por Joaquim Sapinho onde se assiste à transformação das personagens Rita e Paulo. Em vez de continuarem a se negarem estas personagens começam a entender a posição do outro e a reconhece-lo. É o único filme onde a inter-subjectividade é o resultado de um ato de transgressão feminino.

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Dos filmes analisados somente Elas realmente afirma a Lei do Pai e fá-lo através de mulheres transgressoras fracassadas. Inquietude, por sua vez, afirma em vez da fraqueza das mulheres a dos homens, o que resulta novamente do mistério da mulher. Nos restantes filmes a transgressão da Lei pelas mulheres é vista como positiva ou necessária: Em Ossos, na verdade não existem representantes da Lei porque o Pai e o marido de Clotilde vivem no patriarcado português de forma totalmente alienada. Mesmo assim, exercem mecanismos intra-psíquicos e se tornam responsáveis pela difícil situação das mulheres. Corte de Cabelo dá esperança no sentido de redefinir e alargar os papeis, e Os Mutantes revela igualmente a necessidade da inter-subjetividade. Podemos concluir que estes últimos dois filmes usam personagens que não somente transgridem a Lei do Pai, mas também a sua teoria, a teoria do objeto.

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Carolin Overhoff Ferreira é professora auxiliar na Universidade Católica Portuguesa, Escola das Artes, Departamento de Som e Imagem desde 2000. As suas áreas de investigação são adaptação literária, representação da subjectividade e pos-colonialismo no cinema Português e Brasileiro, como também a questão da identidade no teatro contemporâneo latino-americano e europeu.

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Johnston, Claire (1973): “Women’s Cinema as Counter-Cinema”, in: C. Johnston (ed): Notes on Women’s Cinema. Society for Education in Film and Television: London. Kaplan, E. Ann (1983): Women & Film. Both sides of the camera. Routledge: London. Kaplan, E. Ann (ed.) (1990): Psychoanalysis & Cinema. Routledge: London. Kuhn, Annette; Radstone, Susannah (1990): The Women’s Companion to International Film. University of California Press: Los Angeles. Lauretis, Teresa de (1984): Alice doesn’t. Feminism, Semiotics, Cinema. Indiana University Press: Bloomington. Matos-Cruz, José de (1999): O Cais do Olhar. O cinema português de longa metragem e a ficção muda. Cinemateca Portuguesa: Lisbon. Mulvey, Laura: “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, em: Screen, 16:3, pp.6-18. Thornham, Sue: (1999): Feminist Film Theory. A Reader. Edinburgh University Press: Edinburgh. Zalcok, Beverley (1998): Renegade Sisters: Girl Gangs on Film. Creation Books: London.

Filmografia: Costa, Pedro (1997): Ossos. Oliveira, Manoel de (1998): Inquietude. Sapinho, Joaquim (1994): Corte de Cabelo. Teles, Luis Galvão (1997): Elas. Villaverde, Teresa (1998): Os Mutantes.

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