Entre a Usp e o Madame Satã: formação cultural e espaços de sociabilidade do \"rock paulista\" nos anos de 1980

July 22, 2017 | Autor: Érica Magi | Categoria: Sociology of Culture, Brazilian Rock
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XVI Congresso Brasileiro de Sociologia 10 a 13 de setembro de 2013, Salvador (BA) GT Sociologia da Arte

Entre a Usp e o Madame Satã: formação cultural e espaços de sociabilidade do "rock paulista" nos anos de 1980

Érica Ribeiro Magi

Bolsista FAPESP e Doutoranda do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo

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Entre a Usp e o Madame Satã: formação cultural e espaços de sociabilidade do "rock paulista" nos anos de 1980

Introdução

Folha de São Paulo, 25/07/1986, p. 34

A colunista social Joyce Pascowitch (1954) fez um interessante registro da reunião de jovens rapazes "bonitos e talentosos" residentes em São Paulo;

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é indicativo da entrada e permanência de novos profissionais na produção cultural da cidade, seja na literatura, na fotografia ou na música popular. Na foto está o escritor Marcelo Rubens Paiva (1959), que ganhou fama ao publicar o romance autobiográfico Feliz Ano Velho, em 1982, ganhador do prêmio Jabuti e um dos livros mais vendidos dos anos 80; o jornalista, compositor e vocalista da banda de rock RPM, Paulo Ricardo de Medeiros (1962); o fotógrafo Rui Mendes (1962), que registrou os grupos punks, surgidos na periferia (Vila Carolina, Freguesia do Ó) de São Paulo, e muitas capas de discos de rock (RPM, IRA!; Inocentes, Ratos de Porão, Ultraje a Rigor); o artista gráfico Michel Spitale (1960), também fez capas de LPs de bandas e artistas (As Mercenárias, Capital Inicial, IRA!, Kiko Zambianchi) e foi o primeiro editor de arte da revista SET (Editora Azul/Abril), cuja primeira edição é de Julho de 1987, trabalhou na revista Bizz (Editora Azul/Abril) e, por fim, Dinho Outro Preto (1964) compositor e vocalista do Capital Inicial, a banda deixou Brasília para tentar a carreira em São Paulo, em 1985 lançam um compacto e no ano seguinte o primeiro LP, em Agosto, pela gravadora Polygram. O pôquer não era o único elemento que os faziam sair de casa e deixar suas namoradas "mais ou menos modernas", talvez fosse um pretexto muito divertido para se encontrarem, todos de alguma maneira estão envolvidos com o universo do rock em São Paulo: compondo, cantando, fotografando, criando capas de discos. E Marcelo Rubens Paiva não é uma exceção ao grupo, quando vivia em Campinas e era estudante de Engenharia Agrícola da Unicamp fez parte de uma banda, fato narrado em Feliz Ano Velho. O grupo de rapazes é chamado com entusiasmo como a "jovem intelligentsia paulista". "Intelligentsia", um termo utilizado, sobretudo, na universidade é apropriado pela coluna social de um grande jornal. No mínimo, ousado. Retomando o seu significado no dicionário Houaiss: "vanguarda intelectual ou artística de qualquer país". Estar envolvido com o universo do rock nos anos 1980 em São Paulo era estar na vanguarda? A MPB (Música Popular Brasileira) já não ditava, como antes, o que era "bom" ou não na música popular, seus agentes não eram mais uma voz única no campo musical. Estava emergindo um corpo de intelectuais (produtores, críticos, radialistas e músicos) que dariam suporte

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ao rock brasileiro na indústria cultural, garantindo a conquista de espaços de produção de fonográfica, de divulgação e de crítica na grande imprensa. Não estou aceitando de pronto a classificação da colunista, mas é preciso pensar que jovens profissionais envolvidos com rock estavam emergindo e repercutindo nos meios de comunicação de massa, e não apenas esses cinco rapazes "bonitos e talentosos", mas eles integravam um grupo maior que estava frequentando e produzindo cultura em espaços institucionais e em espaços pouco ou nada convencionais para os anos 80 em São Paulo. O rock paulista ganhou fama e prestígio nacional no decorrer dos anos de 1980. Titãs, IRA!, RPM e Ultraje a Rigor são os seus maiores ícones. De que espaços e grupos sociais emergiram essas e tantas outras bandas (Fellini, RPM, Voluntários da Pátria, As Mercenárias, Smack, Akira S e As Garotas que Erraram), que não chegaram ao sucesso comercial, e em que contribuíram para dinâmica da indústria cultural da cidade de São Paulo? A década de 1980 foi o período em que músicos e jornalistas especializados – ambos de uma classe média intelectualizada que teve acesso à universidade, viagens, livros, discos, filmes e revistas importadas - estiveram muito próximos, quando novos atores emergiram e conquistaram posições de prestígio e de decisão na indústria cultural brasileira. Bandas e jornalistas estabeleceram estreitas relações, em razão de terem acumulado, durante a adolescência, conhecimentos sobre música pop e rock e terem cultivado certo desprezo ou, no mínimo, uma distância da MPB. De modo que essa geração foi muito bem sucedida, logrou formar e consolidar um espaço para si de produção simbólica, desbancou a MPB como a maior vendedora de discos e como única medida de “bom gosto”, fez crescer o público jovem consumidor de música e de notícias e ajudaram a formar novos profissionais para esse mercado. A presente comunicação objetiva analisar dois dos principais espaços de sociabilidade que fomentaram a criação de bandas; um deles, a Universidade de São Paulo (USP) que aglutinou estudantes, sobretudo da Escola de Comunicações e Arte. Outro espaço de suma importância foi a casa noturna Madame Satã, inaugurada em 1983 no centro da cidade, tornou-se um local de

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diversão, de liberação do corpo por meio da música, da droga ou do sexo; ela permitiu que essas bandas tocassem suas composições em seu porão.

Universidade de São Paulo

O espaço institucional é a Universidade de São Paulo (USP) fundada em 1934, tornou-se rapidamente um marco cultural e intelectual da cidade. Fomentou os encontros, as trocas de ideias, a participação em tendências do movimento estudantil, como a trotskista Libelu (Liberade e Luta), e no início dos anos 80 a formação de bandas de rock: As Mercenárias, Fellini, Voluntários da Pátria, Smack e Akira S e As Garotas que Erraram, RPM e IRA!. Não necessariamente todos os integrantes de cada banda estudaram na USP, o ponto é que a universidade aglutinava as pessoas e era palco de shows, organizados pelos centros acadêmicos. Dentre os cinco rapazes da fotografia, três foram estudantes da universidade: Marcelo Rubens Paiva, Rui Mendes e Paulo Ricardo, que cursaram Comunicação Social, na Escola de Comunicação e Artes (ECA). Rui e Paulo Ricardo entraram no curso em 1980, eram colegas de sala e logo ficaram amigos. Os três provem de uma classe média alta e intelectualizada. Marcelo Paiva estudou no Santa Cruz, tradicional colégio da elite paulistana, era filho do ex-deputado federal Rubens Paiva, que em 1971 fora preso, torturado e morto no Rio de Janeiro por agentes do regime militar. Paulo Ricardo é filho de um militar e de uma professora, morou em vários lugares do país até chegar à São Paulo, abandonou o curso de Jornalismo para viver em Londres e ser correspondente da revista de música SomTrês, volta após dois anos e forma o RPM, trazendo na bagagem o que de mais novo existia no rock inglês. Rui Mendes cresceu em Campinas, é filho de uma advogada e de um auditor fiscal, aos 15 anos foi para os Estados Unidos cursar o high school e,

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logo depois, fez o curso de fotografia no Fort Vancouver Junior College 1, em Vancouver, no estado de Washington; volta para o Brasil e é aprovado no vestibular para a ECA, onde permaneceu por 5 anos e não se formou. Não só de rapazes "bonitos", "talentosos", bem nascidos e viajados constituiu o universo do rock em São Paulo e os espaços de circulação nos anos 1980. A USP configurou-se como a possibilidade de apreensão de um capital cultural valorizado, para àqueles que não tiveram acesso a ele no meio familiar e escolar. É o caso do jornalista, músico e escritor Cadão Volpato (1956), nascido em São Paulo no bairro Jabaquara, onde cresceu e estudou numa escola pública, ou, como ele me disse: era um "colégio vagabundo". Entra para USP em 1975, no curso de Jornalismo, e lá tem a chance de frequentar bibliotecas e, assim, ter contato com muitos e variados livros literatura, poesia, política - e com outro universo simbólico e de pessoas:

Eu vim de escola pública, você imagina, passei a minha vida inteira estudando em escola púbica. Era muito diferente, a universidade era um paraíso. Era um planeta fora da Terra. Era um outro planeta. Isso é incrível. A USP para mim era uma... Nossa, uma vastidão, uma coisa maravilhosa. (Cadão Volpato, em entrevista à autora, 02/07/2013)

"Um planeta fora da Terra", um "paraíso", uma "vastidão", são palavras fortes que dão o tom do quão importante foi a passagem pela USP, lhe possibilitando a incorporação de referências culturais canônicas. Conhece por volta de 1977-78 Thomas Pappon e Alex Antunes, mais novos e quem haviam acabado de ingressar na ECA. Thomas já tocava em algumas bandas (Smack e Voluntários da Pátria), mas queria formar uma em que ele pudesse tocar contrabaixo; resolve convidar Cadão para formar uma banda, onde ele faria as letras e cantaria.

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Fonte: Entrevista de Rui Mendes à revista Babel. http://revistababel.word press.com/2010/07/02/rui-mendes-retratos/

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Estranho convidar um sujeito que nunca havia participado de banda, não cantava e não escrevia letras, não é? Não é estranho para esse período incipiente do rock nacional dos anos 80, muito influenciado pelas premissas do punk-rock inglês, que propunha: "do it yourself" ("faça você mesmo"). Não era preciso cantar e tocar tecnicamente bem para formar a sua própria banda de rock. Nas palavras de Cadão:

"E ele pensou, e chegou para mim, como ele me conhecia e sabia que eu tinha umas veleidades meio intelectuais, eu lia muita poesia, eu lia muito literatura, sempre fui um leitor muito atento e tal, ele achou que eu pudesse fazer as letras. E foi assim, ele falou: ´Você canta e faz todas as letras´. Cantar naquele tempo não significava muita coisa, ninguém tocava muita coisa".

A técnica musical não era o mais precioso, estava longe de ser, até por se tratar de sujeitos que não tiveram acesso à educação formal de música. Aprendiam alguns acordes, escreviam letras em português e tocavam. O punk2 foi o grande responsável por essa nova atitude, que se converteu com a emergência do rock brasileiro em uma nova disposição, no campo da música popular no Brasil3. Pierre Bourdieu (2001), no artigo "Costureiro e sua grife", considera que os "recém-chegados" ao campo "fazem o jogo", precisam impor e exagerar o que eles acreditam, no que creem enquanto criação. Isso é bastante perceptível com a emergência, criando espaços de produção e divulgação na indústria cultural, de uma geração de bandas e jornalistas. No lugar da técnica musical apurada, colocou-se em primeiro plano a preocupação com as letras das canções, e os jornalistas tinham essa mesma preocupação na escrita de seus críticas e reportagens. Thomas e Cadão formam, então, a banda Fellini em 1984, gravaram até o final da década quatro LPs independentes e receberam críticas muito

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Sobre o estilo punk ver: BIVAR (1982), ESSINGER (1999).

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Faço uso do conceito de campo de acordo com a análise empreendida por CERBONCINI (2010), que considera a formação e consolidação de um campo da música popular urbana no Brasil

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elogiosas na revista Bizz, principalmente. Ao mesmo tempo, os dois trabalhavam na grande imprensa paulistana - Thomas trabalhava na rádio Bandeirantes e, depois, tornou-se crítico da mesma Bizz, que elogiou o disco de sua banda; e Cadão era revisor da revista Veja.

Fellini,

1984.

Da

esquerda

para

direita: Jair Marcos, Cadão Volpato, Ricardo Salvagni e Thomas Pappon. Foto feita na casa do Ricardo.

Com Thomas na Bizz trabalhava Alex Antunes (1959), como também os uspianos Bia Abramo (1963) e Celso Pucci (1960). Nasceu em São Paulo, estudou a vida toda em escola pública, fez um cursinho preparatório para o vestibular da USP; ingressou no curso de Jornalismo, não gostou e desistiu; transferiu-se para Cinema e também abandonou. Mesmo sem o diploma na mão, como também não o obtiveram Rui Mendes e Paulo Ricardo, não passou politicamente em branco pela universidade. Junto com Cadão e Thomas militaram na Libelu (Liberdade e Luta), tendência trotskista do movimento estudantil, tinham nome de guerra e reza a lenda (ou melhor, as fontes) de que as únicas festas do movimento onde se tocava rock eram as da Libelu, e, como salientou Cadão, onde estavam as mulheres mais bonitas. A Libelu tinha uma concepção de cultura desvinculada do nacional popular, aceitava o rock e a cultura anglo-americana.

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Em 1984, Alex e o amigo Akira S, contrabaixista, formam a banda Akira S e As Garotas que Erraram. Alex era o vocalista e letrista; a banda lançou um único disco, independente, em 1987.

Primeira foto do Akira S e as Garotas que Erraram, 1984. Da esquerda para direita: Akira e Alex Antunes. Foto: Walter de Silva

As fotos de divulgação das bandas formadas de encontros no interior da Universidade de São Paulo, são um capítulo a parte. Sim, todas elas, as que não alcançaram o sucesso comercial - Fellini, Akira S e As Garotas que Erraram, Voluntários da Pátria, As Mercenárias, Smack - e as que chegaram até ele: IRA!, RPM, Titãs - investiam muito na imagem, na postura e nas vestimentas para serem fotografados. Na maioria das vez, o responsável pelos cliques era Rui Mendes, tido, hoje, como "o fotógrafo do rock brasileiro"4. Muitas fotos foram feitas em preto e branco, com as expressões muito sérias, vestindo camisas e ternos, lembrando muito as imagens das bandas inglesas do pós-punk e do punk (Joy Division, The Cure, The Clash, Sex Pistols, etc.). Rui Mendes também fotografou a única banda formada por mulheres que gravou disco em São Paulo nos anos 1980. Trata-se das Mercenárias. Formada em 1983 por Sandra Coutinho (baixista), Rosália Munhoz (vocalista), Ana Machado (guitarrista) e Edgar Scandurra (baterista). Edgar, era casado 4

Conforme os últimos textos da imprensa sobre o trabalho do fotógrafo: http://bravonline.abril.com.br/materia/os-sem-futuro#image=186-mu-punk-ratos-porao, http://mais.uol.com.br/view/vj22aj2kwm35/um-papo-com-rui-mendes-renomado-fotografo-dorock-nacional-0402CD183770D4994326?types=A&

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com a Sandra, era membro também dos grupos Smack e Ira, e chegou uma hora que ele precisou se decidir. Escolheu o Ira, onde encontrou o sucesso comercial e se consagrou como um grande guitarrista. A bateria das Mercenárias foi assumida pela Lou Moreira. Todas as "mercenárias" eram estudantes da USP, Rosália cursava Psicologia, Ana e Sandra estudavam jornalismo e Lou cursava Ciências Sociais, na FFLCH-USP. As fotos de divulgação da banda não fogem ao "padrão" estético dos outros grupos: preto e branco e poses muito sérias:

Da esquerda para direita: Rosália Munhoz, Ana Machado, Lou Moreira e Sandra Coutinho. Foto Rui Mendes

Madame Satã

“Um casarão muito louco”5, “o porão mais higiênico da cidade”6, assim a

grande imprensa paulistana nos anos 80 chamou o “lendário” Madame Satã. Inaugurado em 21 de outubro de 1983 na Rua Conselheiro Ramalho, número 873, bairro da Bela Vista, centro de São Paulo, pelas irmãs Márcia e Miriam Dutra e pelos irmãos Wilson José e Williams Silva, com a proposta de fazer do 5

ALMEIDA, Miguel de. ”Um casarão muito louco”. In: Jornal Folha de São Paulo, 27/04/1985, p. 35. 6

Folha de São Paulo, 14/06/1985, p. 48.

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antigo casarão um restaurante aberto a performances teatrais e recitais de poesia. Inicialmente, o empreendimento ganhou o nome de "Restaurante Cultural Madame Satã". promoviam-se cursos, debates e exposições fotográficas e, enfim, shows das bandas que estavam surgindo junto com o próprio Madame. O espaço não nasceu como uma “balada”, como diríamos hoje. É de suma importância retomar a origem social dos quatro amigos, para entender de que grupo social nasceu o que ficou na memória social como o "templo do underground paulistano"7. O que era o underground em São Paulo em meados da década de 1980? E quais grupos sociais frequentavam o espaço, é outra questão que tentarei discutir mais adiante. Wilson José dos Santo, nascido em São Paulo, em 1955,, era filho de Neuza Maria dos Santos, que havia sido freira durante 14 anos. Era seminarista, vivia numa casa paroquial no bairro do Tatuapé, ao mesmo tempo, em que era aluno do CPT (Centro de Pesquisa Teatral), idealizado no final dos anos 70 pelo diretor Antunes Filho,

cursava Teologia na FAI (Faculdades

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Associadas do Ipiranga). Ele também participava como ator de apresentações teatrais na Igreja. Williams, o irmão mais novo, não era seminarista, mas também adorava o teatro e participa das peças da paróquia. Faleceu em 1991 em decorrência do vírus da AIDS. Do mesmo modo, as irmãs Márcia e Miriam Dutra tinham uma relação próxima com a Igreja Católica e com o teatro. Moravam em Itaquera e estudavam teatro no curso Macunaíma, e, como Wilson, atuavam em peças eclesiásticas. E como poderia se esperar, Williams, Wilson, Márcia e Miriam se conheceram em uma peça encenada numa igreja em Itaquera. Márcia, em entrevista a Moraes (2006. p. 62), conta como começou a amizade com os irmãos: 7

No documentário "Madame Satã - O importante é ser eu e não o outro" (2012) , hospedado no youtube, é evidente nos depoimentos dos frequentadores a ideia de que estavam "a margem" da suposta "cultura oficial" de São Paulo, isto é, o que acontecia no espaço, só acontecia ali. 8

Fonte dessas informações biográficas: MORAES (2006)

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"Começamos a conversar e, como já tínhamos um grupo de teatro, demos novos rumos aos nossos projetos. As coisas começaram a crescer e nosso tempo começou a ficar muito tomado com as apresentações desse grupo. Tudo começou através da igreja."

Os quatro deram início a uma parceria em torno do teatro, produziram peças

que

perambulavam

de

paróquia

em

paróquia,

mas,

que,

financeiramente, não dava retorno, não era um ganha pão. Em 1981, Wilson abandona o seminário, e prossegue trabalhando com teatro nas igrejas e no curso de Teologia. Em 1983, deixa o curso e começa a trabalhar como operador de telecomunicações no 27º Distrito Policial, no Broklin (MORAES, 2006, 63). De fato, a sobrevivência financeira tornou-se uma preocupação premente, ao passo que no seminário e no teatro seria impossível conquistá-la. Márcia conta como surgiu a ideia de ter uma renda trabalhando com o teatro:

"Tivemos a ideia de montar alguma coisa para ganharmos dinheiro, já que fazíamos tantas coisas juntos. Todos nós éramos absolutamente duros, classe média baixa, e fomos pedir dinheiro emprestado da poupança de pessoas da família e resolvemos que íamos abrir um restaurante." (Apud MORAES, 2006, pp 63-64)

E do encontro numa paróquia em Itaquera, extremo leste de São Paulo, e da paixão pelo teatro e da necessidade de sobrevivência, é claro, surgiu a ideia de montar o "Restaurante Cultural Madame Satã". Madame Satã? "Madame Satã" foi João Francisco dos Santos (1900 1976), um morador da Lapa, bairro boêmio do Rio de Janeiro, negro e homossexual. Ganhou o pseudônimo, em 1938, ao ganhar o concurso de fantasias, vestido de morcego com muitas lantejoulas . Foi um dos primeiros travestis a ser visto no palco no Brasil. Um nome que evoca um universo oposto àquele em que os 4 amigos estavam acostumados a frequentar e vivenciar - a igreja -, uma afronta e uma quebra com esse universo. A organização do espaço do era da seguinte maneira: casarão de dois andares. No primeiro andar, térreo, um espaço amplo que comportava o neon 12

escrito Madame Satã em vermelho, o bar, palco e a cozinha. Perto da cozinha havia uma escada que levava até o porão, onde acontecia a discotecagem na pista e, ainda, existia e um outro palco, onde as bandas se apresentavam inicialmente. Uma fotografia tirada nos anos 80, não se sabe o ano exatamente e nem o autor, dá dimensão do tamanho do primeiro andar:

Uma foto atual da fachada do casarão, que não sofreu nenhum reforma ou mudança. Ele foi tombado pela Prefeitura como patrimônio histórico.

Madame Satã. Rua Conselheiro Ramalho, 873, São Paulo.

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O porão do casarão foi aberto e direcionado aos shows das, o teto era muito baixo e a estrutura de som não era boa. A cada final de semana uma banda nova se apresentava. Havia uma discotecagem também, ali começaram a trabalhar os futuros disc jóqueis mais respeitados de São Paulo, como o Magau e o já, falecido, Dj Marquinhos. Para divulgação dos shows eram confeccionados flyers, pequeno cartazes, trazendo data e hora e algum desenho. Wilson José editava um fanzine que trazia toda a programação que seria apresentada no mês, contudo com o crescimento de público da casa, a partir de 1984, a Folha de São Paulo passou a divulgar os shows, as exposições e os debates com pequenas e divertidas notas.

Flyer do show do Fellini (banda do Cadão Volpato) no Madame Satã, em 1985.

Performances teatrais eram realizadas no palco do primeiro andar. A performance que ficou muito famosa e sempre contada em depoimentos, foi a da travesti Claudia Wonder, onde ela ficava nua, com o pênis ereto, recitava um poema e se jogava numa banheira cheia de groselha.



por

essa

performance, é possível pensar no nível de liberdade e de extravagância que existia dentro do Madame Satã. Talvez seja por aí que se possa compreender o sentido dado ao termo underground: travestis, sujeitos marginalizados e estigmatizados, fazendo performances para um público considerável e pagante. Onde mais era possível esse tipo de manifestação em São Paulo? 14

Como mencionado, a imprensa a partir de 1984 começa a dar notas e fazer matérias sobre a casa noturna. Wilson José concedia entrevistas e sempre falando frases de efeito, de raciocínio particular. Exemplo:

"A aparência não engana: o casarão do início do século, com uma dezena de janelas, incrustado no trôpego do bairro do Bexiga, esconde o recanto explosivo de São Paulo. ALi está o Madame Satã (rua Conselheiro Ramalho, 873, aberto de quarta a sábado, a partir das 22 horas), que não é danceteria, casa de rock, bar de música radical brasileira e nem choperia para estudantes. "É um espaço de crítica a tudo que está por aí, decreta Wilson José, 30, um dos proprietários. "Aqui não se fala de revolução. Aqui a gente mostra o que acontece e o que está para explodir". No gênero, é o único no Brasil. "

(Fonte: Folha de São Paulo, Um casarão muito louco, matéria assinada por Miguel de Almeida, 27/04/1985

Sempre em pauta a necessidade de romper no discurso com o passado e de dizer "nós somos o novo nessa cidade". Por quê? O país estava saindo da ditadura militar, e o Madame Satã se mostrou um espaço privilegiado para se expressar com o corpo e com o pensamento. Existia uma tentativa por parte de Wilson José de discutir as manifestações artísticas na metrópole, para isso ele promovia cursos e debates, algo muito comum hoje em dia em São Paulo, mas que na época era novo:

'A Estética do Urbano' Começa na próxima terça-feira, às 19 horas, na Estação Madame Satã o ciclo de palestras A Estética do Urbano. A primeira será do jornalista Gabriel Priolli; nas três terças seguintes, sempre as 19h, falarão o mímico Paulo Yutaka, o engenheiro Vlady e o compositor Nazi Valadão, e o poeta Glauco Mattoso. (Fonte: Folha de São Paulo, 28/08/1985)

Sobre os shows. Todas as bandas comentadas na primeira parte deste artigo introdutório, passaram pelo porão do Madame Satã. Os grupos formados 15

por estudantes da Usp e as bandas punks, surgidas na periferia da cidade. O público também era heterogêneo: punks, travestis, socialites, universitários, filhos e netos de políticos importantes, como atestam as fontes (jornais, depoimentos) e os roqueiros que seriam, em pouco tempo, ou já eram ídolos nacionais, como Cazuza, Renato Russo, Edgar Scandurra, Paulo Ricardo, que se apresentou com o RPM lá, quando já eram famosos.

Considerações Finais

A USP e o Madame Satã, junto com outras casas noturnas menos conhecidas e que duraram menos de um ano (Carbono 14 e Napalm), fomentaram e deram vazão às experiências na criação artística de uma geração. Dois espaços diferentes, mas complementares na formação cultural e de valores políticos de jovens interassados em trabalhar e produzir cultura: seja na música, na fotografia, na literatura ou no jornalismo. O Madame Satã está na memória social como a casa noturna mais importante e fértil em comportamentos extravagantes (para os conservadores), de liberação do corpo por meio da música, do sexo e das drogas nos anos 1980, em São Paulo. Por lá, passou uma nova geração de jovens interessados por música pop e rock, em dançar e exercer uma liberdade que aos poucos estava voltando para as mãos de cada um dos sujeitos.

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Bibliografia

BIVAR, Antonio. O que é Punk. São Paulo: Brasiliense, 1982. ESSINGER, Silvio. Punk: anarquia planetária e a cena brasileira. 1a edição. São Paulo: Edotpra 34, 1999. FERNANDES, Dmitri Cerboncini. A Inteligência da Música Popular: a “autenticidade” do samba e do choro. Tese de doutorado defendida no Departamento de Sociologia – USP, São Paulo, 2010. MAGI, Érica Ribeiro. Rock and roll é o nosso trabalho: a Legião Urbana do underground ao mainstream. São Paulo: Editora Alameda/Fapesp, 2013. MORAES, Marcelo Leite de. Madame Satã - O templo do underground dos anos 80. 1a edição. São Paulo: Editora Lira, 2006. NAPOLITANO, Marcos. A Síncope das Ideias. A questão da tradição na música popular brasileira.São Paulo: Editora Peseu Abramo, 2007. PAIANO, Enor. O Berimbau e o Som Universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. Dissertação apresentada ao Departamento de Comunicações e Artes da ECA-USP, São Paulo, 1994.

Entrevista à autora Cadão Volpato. 02/07/2013. São Paulo.

Fonte das imagens:

http://www.deepbeep.com.br/db-live/dblive-marquinhos-ms/ 17

http://www.timeout.com.br/sao-paulo/noite/features/280/madame-deroupa-nova http://decadasdesom.blogspot.com.br/2010/08/akira-s-as-garotas-queerraram.html http://www.coquetelmolotov.com.br/pt/entrevistas.php?cod=125 www.cadaovolpato.com.br http://www.flickr.com/people/ruimendes/

Documentário

Madame Satã - O Importante é ser eu e não o outro. Direção: Gabriela Prosdocimi.Trabalho de conclusão do curso de Jornalismo, defendido na Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=zdrZQ9V2WWQ&hd=1

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