Entre Carreiras, redes e Circuitos - Uma abordagem etnográfica dos estilos e padrões de uso de cocaína em São paulo, 1994 a 2006

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PARTE 1

educação

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Entre carreiras, redes e circuitos uma abordagem etnográfica dos estilos e padrões de uso de cocaína em São Paulo, 1994 a 2006

Osvaldo Fernandez Edward MacRae

A produção científica, no campo de “estudos sobre drogas”, compreende inúmeros discursos, mas tem como referência hegemônica as ciências da saúde (psiquiatria, farmacologia e epidemiologia), operando sob a égide e a liderança da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, a produção do saber sobre o uso ilícito de substâncias psicoativas tem estado quase inteiramente voltada para a pesquisa do “usuário problemático”, contatado em ambulatórios e serviços de saúde. Historicamente, a ciência social brasileira tem dado relativamente pouca atenção ao uso dessas substâncias, destacando-se entre seus pioneiros o antropólogo Gilberto Velho, com sua dissertação Nobres e anjos, defendida na Universidade de São Paulo (USP) ainda em 1975. Lá, como ele diz, a questão é tratada “como parte de um estilo de vida e visão de mundo, num esforço para não reificá-la, procurando compreendê-la num contexto sócio-cultural”. (VELHO, 1998, p. 8) Outra pesquisa pioneira, já influenciada pelo trabalho de Velho, foi realizada em 1982, pela antropóloga Janirza C. Rocha Lima, em Recife. Ela estudou usuários de Algafan, uma droga injetável, empregando como métodos a observação participante e entrevistas abertas. (LIMA, 1990) Finalmente, deve-se também lembrar a importante contribuição para a contextualização do uso da maconha, em termos históricos, socioculturais e médicos, feita pelo livro Diamba-sarabamba: coletânea de textos brasileiros sobre a maconha, organizada por Anthony Henman e Osvaldo Pessoa Jr., publicada em 1986

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e ainda uma importante fonte de referências sobre o assunto, incluindo artigos de autores das primeiras décadas do século XX, como Rodrigues Dória, e estudos por renomados cientistas contemporâneos, como Elisaldo Carlini e Luís Mott, além do próprio Henman. (HENMAN; PESSOA JUNIOR, 1986) O antropólogo e etnobotânico Anthony Henman viria também a desempenhar um importante papel como mentor intelectual informal ou fonte de inspiração para toda uma geração de estudiosos que começavam então a se interessar pela abordagem sociocultural da questão das drogas, como os autores deste artigo, por exemplo. Seu livro seminal, Mama Coca, publicado originalmente na Inglaterra, sob o pseudônimo Antonil, em 1978, e posteriormente na Colômbia, em 1981, agora em espanhol e com a autoria plenamente explicitada, já é um modelo de estudo antropológico de uma planta psicoativa. No dia a dia, sua atitude, radicalmente questionadora do senso comum sobre drogas, continua a provocar novos posicionamentos entre o crescente número de pesquisadores/militantes antiproibicionistas. Mas, somente a partir do final da década de 1990, constatou-se um aumento de interesse por esse tipo de pesquisa e um crescente emprego do método etnográfico nesse campo. Embora esta produção intelectual ainda se mantenha grandemente presa a um diálogo com o discurso médico, o saber daí resultante é de cunho eminentemente “cultural”, principalmente nos estudos envolvendo programas de redução de riscos e danos relacionados à transmissão do HIV entre usuários de drogas injetáveis, assim como o consumo recreativo da Cannabis e o uso ritual e religioso de enteógenos. Outra linha de pesquisa é a que investiga a associação das drogas com o circuito do crime e da violência. Grande parte desses estudos tem se embasado numa concepção biopsicossocial dos fenômenos da droga, em que três determinantes devem ser observados: a droga (ação farmacológica da substância em si), o “set” (a atitude da pessoa no momento do uso, levando em conta sua estrutura de personalidade) e o “setting” (a influência do contexto físico e social onde ocorre o uso). Destes, o “setting” é o que menos atenção tem recebido nas pesquisas de cunho médico, mas tornou-se agora o principal foco dos cientistas sociais. (ZINBERG, 1984, p. 5) Argumenta-se frequentemente que uma das contribuições da pesquisa antropológica sobre o consumo de drogas ilícitas no Brasil tenha sido a de permitir que se ouvisse a voz e o ponto de vista dos “nativos”; neste caso, daqueles envolvidos com sua produção, distribuição e consumo. Além do seu caráter científico, tal abordagem é de grande relevância política, visto que os sujeitos dessas pesquisas geralmente sofrem uma série de limitações institucionais e legais que frequentemente também se estendem aos estudiosos desse campo, cerceando-lhes a liberdade de pesquisa e atuação. Além de enfrentarem dificuldades para contatar e conquistar a confiança de usuários de drogas ilícitas, estes estudiosos são, às vezes, enredados em dilemas que não são contemplados nem mesmo pelos códigos de ética de suas associações profissionais. (MACRAE; VIDAL, 2006) Ficam, por exemplo, divididos entre a necessidade

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de manter o anonimato de seus sujeitos de pesquisa, para preservar-lhes a integridade, e a obrigação de prestar o devido reconhecimento a eles enquanto atores políticos, assim como a importância de seu saber experimental sobre o uso de substâncias psicoativas. Lembremos que, no atual contexto proibitivo e repressor, é comum ocorrerem violações de direitos de usuários das mais variadas e graves. Já a ênfase dada nas pesquisas de cunho médico aos usos problemáticos, que são as que chegam à atenção dos clínicos, acaba por encobrir a muito mais generalizada ocorrência de outras práticas menos danosas, tanto do ponto de vista individual quanto social, contribuindo, assim, para reforçar a estigmatização de qualquer maneira de uso de drogas ilícitas. Assim, dar importância a diferentes discursos e pontos de vista, principalmente aos dos consumidores, contribui para revelar outros modos de uso – particularmente o uso moderado – permitindo uma melhor compreensão do fenômeno e o desenvolvimento de políticas públicas, voltadas para a educação, saúde e segurança, que sejam mais democráticas, pragmáticas e eficientes. O saber e o conhecimento de sujeitos que têm uma prática de consumo de drogas que poderia ser categorizada como “uso não problemático”, por sua natureza controlada e funcional, aponta para novos direcionamentos na educação e na prevenção. De acordo com o psiquiatra americano Norman Zinberg, um dos pioneiros da abordagem biopsicossocial da questão das drogas, a promoção do uso controlado de psicoativos deveria ser entendida como um modo cientificamente prático de prevenção ao abuso de consumo de drogas. Foi também ele quem mais contribuiu, em sua época, para a divulgação da noção de que, para se entender plenamente as diferenças entre uso e abuso de drogas, deveria-se sempre levar em conta, ao lado de considerações de natureza farmacológica, tanto o “set” quanto o “setting”. (ZINBERG, 1984, p. 81) Por isso, esta observação etnográfica procurou investigar diferentes contextos socioculturais, estilos de vida e tipos de usos de drogas, visando conhecer os fatores que interferem na autorregulação do consumo. Adotamos as perspectivas de pesquisadores, influenciados pelos conceitos e métodos desenvolvidos pelas ciências sociais, tais como: Howard Becker, Norman Zinberg, Jean Paul Grund, entre outros poucos que têm se interessado pelo estudo do “uso controlado de drogas”. O presente artigo apresenta resultados de um longo trabalho de campo que incluiu a observação direta de quatro grupos de usuários de cocaína, a aplicação de duas séries de entrevistas e o acompanhamento detalhado de onze dos sujeitos na Região Metropolitana de São Paulo. Estes eram caracterizados predominantemente como sendo usuários regulares, embora também fossem incluídos alguns usuários ocasionais, mas com uma longa trajetória de consumo de cocaína inalada.1 O estudo foi

1 Esta pesquisa foi realizada originalmente por Osvaldo F. R. L Fernandez, sob orientação de Edward MacRae. O estudo completo pode ser encontrado na tese de doutorado de Osvaldo F. R. L. Fernandez: “‘Coca Light?’: usos do corpo, rituais de consumo e carreiras de ‘cheiradores’

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desenvolvido em dois períodos, entre os anos de 1994 e 2006. Passados doze anos após as primeiras observações e entrevistas, realizadas em 1994, foram feitas re-entrevistas e retomados contatos estreitos com alguns dos usuários, possibilitando a visualização das diversas trajetórias e carreiras desenvolvidas ao longo do tempo, sinalizando diferentes padrões de uso dessa substância. Como estratégia metodológica principal, foi adotada a observação participante, para se poder conhecer melhor os grupos e selecionar os entrevistados. Dependendo do grau de aceitação demonstrado pelos diferentes sujeitos, pôde-se ter acesso privilegiado a informações normalmente ocultadas e obter assim também uma visão parcial do comércio e da rede de tráfico de drogas. Tais observações foram decisivas para coletar os dados sobre o consumo, rituais sociais e as performances dos usuários, confrontando opiniões e informações, dadas pelos informantes-chave nas entrevistas, com observações diretas recolhidas pelo pesquisador. Desta forma, a investigação etnográfica focalizou as cenas e padrões de uso de várias redes de sociabilidade de diferentes territórios e estilos de vida. Alguns dos usuários observados foram selecionados como informantes-chave, dando-se preferência àqueles que se mostravam dispostos a manter uma interlocução contínua com o pesquisador em campo, assim como tendo uma boa inserção em diferentes territórios e redes de consumidores de produtos à base de coca. Ao serem entrevistados, foram capazes de descrever o próprio consumo, os perfis de outros consumidores, o contexto sociocultural, os estilos de vida, as visões de mundo e o imaginário social em torno do consumo. Nossa intenção era a de contextualizar diferentes formas de uso de cocaína, relacionando-as aos estilos de vida na metrópole e à sociabilidade de indivíduos das camadas médias urbanas. Portanto, privilegiamos a descrição do processo etnográfico, a seleção dos entrevistados (informantes-chave), a caracterização dos estudos de casos e as mudanças ocorridas no mercado e vivenciadas pelos consumidores etc. A pesquisa concentrou-se na cidade de São Paulo, onde foram observadas diversas cenas de uso, ou cenários. Estas, por mais variadas que fossem, eram caracterizadas pela discrição e/ou privacidade. Incluíam-se, entre eles, bares, boates, salas de aula, festas domiciliares e moradias, localizados em diferentes regiões da cidade (Central, Oeste, Norte e Leste). Enfocou-se o consumo inalado de cocaína, procurando desvelar a cultura desenvolvida ao redor dessa substância e seus diferentes padrões

de cocaína em São Paulo”. As entrevistas e observações de campo iniciais desse estudo foram realizadas no escopo de um projeto internacional, coordenado internacionalmente por Aurélio Diaz “The Cocaine Project, WHO/UNCRI, 1995”. Osvaldo Fernandez atuava como entrevistador de campo, sob a coordenação local do prof. Elisaldo Carlini, que gentilmente o autorizou a trabalhar com os dados coletados nas entrevistas realizadas por ele.

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de uso. Mais especificamente, interessavam-nos as regras e controles informais desenvolvidos pelos usuários em sua autorregulação de consumo. Os seguintes quatro grupos, retratados na etnografia, eram formados por até 10 pessoas amigas, incluindo, às vezes, alguns que eram menos conhecidos, mas que haviam sido formalmente apresentados por colegas de confiança. 1 – Território Comunidade Terapêutica e Casa de Apoio à AIDS – Osasco Nesta comunidade terapêutica, mantida por uma ONG e situada em Osasco (Região Sudoeste da Grande São Paulo), moravam 35 usuários de cocaína e outras drogas, autodeclarados “dependentes” e portadores de HIV/AIDS. Seus integrantes eram homens e mulheres, de diferentes orientações sexuais, pertencentes às camadas mais vulneráveis e pauperizadas da sociedade, tais como moradores de rua e profissionais do sexo, entre outros. 2 – Circuito Periferia Zona Oeste Este circuito era formado por uma quadra, um bar, uma rua sem saída e uma casa de pagode de um bairro periférico da Zona Oeste, situado ao lado direito da Rodovia Bandeirantes no km 10. Seus integrantes também eram provenientes das camadas populares com variados graus de participação no “submundo do crime”. 3 – Circuito Jovens Universitários Neste circuito encontramos frequentadores de uma instituição privada de ensino superior; jovens e adultos na faixa de 18 a 50 anos, provenientes das classes média e alta. Numa quadra de esportes dessa universidade fazia-se, durante um tempo, uso explícito de maconha, ocorrendo também o comércio de outras drogas e um pequeno consumo de cocaína. A quadra era frequentada por estudantes, funcionários e por outros jovens da classe média alta moradora do bairro. Com o passar do tempo, a instituição começou a reprimir o uso de maconha no local, proibindo, também, a entrada dos jovens usuários do bairro na universidade. Tal política parece ter acabado por levar ao aumento do uso de cocaína dentro das salas de aula, entre os antigos consumidores de maconha, sobretudo devido à discrição desta prática quando comparada ao uso da Cannabis, sempre acompanhada de forte odor característico. 4 – Circuitos de Gays, Lésbicas e Simpatizantes (GLS) Na observação de campo, durante anos, visitou-se, em dias alternados, um bar que se localizava numa rua perpendicular à Rua da Consolação, numa região residencial de

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classe média alta, conhecido como Jardins. Este território era frequentado, predominantemente, por homens, jovens e adultos, homossexuais, solteiros, de classe média alta e participantes da “cultura dance”, conhecidos localmente como clubers ou “modernos” e batizados pela grande imprensa como “GLS”. Neste território há várias ruas, locais e estabelecimentos comerciais, como bares, boates, restaurantes, cafés, cinemas e lojas integrantes do circuito. Nele pôde-se deparar com cenas de consumo ostensivo de drogas, principalmente maconha, anfetaminas e cocaína inalada. Foram selecionados, para observação mais detalhada, um bar e uma boate onde havia forte presença de consumidores de cocaína. Estes locais, palcos para a sociabilidade e os estilos de vida de tais consumidores, permitiam, ainda, mostrar o impacto do contexto sociocultural nas cenas de uso e as formas de ocultação de suas práticas adotadas pelos usuários e pelos próprios estabelecimentos comerciais. Em geral, muitos consumidores de cocaína, fequentadores do bar, após uma certa hora dirigiam-se a uma determinada boate onde continuavam seu uso. Além desses locais públicos, realizou-se também a observação de eventos festivos na casa de alguns de seus frequentadores, quando se pode presenciar, além do uso de cocaína, a sociabilidade e a dinâmica do consumo, tanto para fins recreativos quanto “instrumentais”, como estimulante para o prolongamento da jornada laboral. Eram apartamentos e casas típicas das camadas médias e altas, muitas vezes pertencentes a homossexuais com parceiros sexuais e afetivos estáveis (“casados”).

A importância dos aspectos socioculturais do uso de drogas As observações e entrevistas foram norteadas pelo objetivo de recolher dados a respeito da carreira dos usuários de cocaína, dando especial atenção à estabilidade dos padrões de uso inalado da substância e para os sistemas de autorregulação adotados pelos sujeitos e sua retroalimentação, como proposto originalmente por Grund, levando em conta reflexões de Howard Becker e Norman Zinberg, entre outros pesquisadores que têm enfatizado a importância dos aspectos socioculturais da questão das drogas. Esses pesquisadores, adotando perspectivas provenientes das ciências sociais, têm chamado atenção para a necessidade de se levar em conta, além da ação farmacológica da substância, o “set” (a atitude do indivíduo no momento do consumo, atentando também para a sua estrutura de personalidade e expectativas) e o “setting” (a influência do ambiente físico e social no qual ocorre o uso). Escrevendo ainda na década de 1950 sobre a “carreira do maconheiro”, o sociólogo americano Howard Becker mostrou como esses usuários devem aprender a usar a sua droga corretamente para obter os efeitos desejados. Esse aprendizado cobre os métodos de aquisição do produto, maneiras de consumi-lo, o reconhecimento dos seus efeitos e maneiras de justificar, para si mesmos e para membros da sociedade envolvente, seu engajamento nessa prática, ilícita e estigmatizada. Becker deixa de

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considerar como intrinsecamente nefasta a “subcultura da droga” e argumenta que o efeito do uso de psicoativos vai, portanto, depender do grau de engajamento do usuário em uma rede em que um saber sobre formas de uso seguro da substância possa se desenvolver e circular. (BECKER, 1977, 2008) Ao discutir a construção social dos usuários de drogas como desviantes sociais, Becker afirma ainda que devemos abandonar a busca pelas suas motivações para o desvio, pois esta categoria seria organizada concomitantemente com a proibição legal de suas práticas. As teorias baseadas em supostas disposições psicológicas para o desvio encontrariam dificuldades devido à grande heterogeneidade e variabilidade dos comportamentos individuais. Portanto, o autor considera que sua tarefa primordial seria conhecer o processo de constituição do desvio na história de vida dos sujeitos pesquisados e suas consequências. (BECKER, 2008) Segundo esse sociólogo, os “impulsos” e “desejos vagos” – muitas vezes uma simples curiosidade acerca do tipo de experiência que a droga induz – seriam transformados em padrões definidos de ação através da interpretação social da experiência física, a qual é geralmente ambígua e diversa. (BECKER, 2008) A “carreira de usuário” seria, segundo ele, uma sequência de etapas reconhecidas e valorizadas pelos consumidores, a partir de suas experiências com a substância e dos modos de reação que desenvolveram em relação aos vários controles sociais relativos ao consumo de drogas: segredo, maneiras de manter as drogas e a postura diante da moral vigente. A partir do estudo da trajetória de vida de casos concretos de usuários de maconha, Becker faz generalizações, buscando estabelecer uma sequência típica de mudanças na atitude individual em relação ao uso desses produtos. A etapa inicial da carreira do usuário percorreria três estágios: 1) aprendendo as técnicas de uso; 2) aprendendo a perceber os efeitos; e 3) aprendendo a desfrutar os efeitos. Depois desse aprendizado, haveria três outras etapas: a do iniciante, a do usuário ocasional e a do uso regular. Becker investiga quais seriam as condições para continuar usando a substância, salientando que, em cada etapa, o consumidor tem uma relação diferenciada com os controles sociais em geral e com as subculturas onde a droga é encontrada, em particular. (BECKER, 2008) Nas décadas de 1960 e 1970, Norman Zinberg estudando o uso de diversas drogas ilícitas, chamou a atenção para a necessidade de se diferenciar entre “uso controlado” e “uso compulsivo”. O primeiro, cuja própria existência era até então pouco reconhecida, teria baixos custos sociais enquanto o segundo, disfuncional e intenso, teria efeito contrário. O que distinguiria os dois tipos de uso é que o primeiro seria regido por regras, valores e padrões de comportamento, veiculados tanto pela cultura hegemônica quanto pelas subculturas desenvolvidas por diferentes grupos de usuários. Esses controles sociais, fossem eles formais ou informais, funcionariam de quatro maneiras: 1. definindo o que é uso aceitável e condenando os que fogem a esse padrão;

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2. limitando o uso a meios físicos e sociais capazes de propiciar experiências positivas e seguras; 3. identificando efeitos potencialmente negativos e propondo padrões de comportamento que incluíssem precauções a serem tomadas antes, durante e depois do uso; 4. compartimentalizando o uso de drogas, respaldando as obrigações e relações que os usuários mantêm em esferas não diretamente associadas aos psicoativos. (ZINBERG, 1984, p. 17)

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Além de valores e regras de conduta, chamados por Zinberg de “sanções sociais”, haveria também a observância de “rituais sociais”. Estes seriam padrões de comportamento prescritos em relação a aspectos do uso “controlado” de substâncias psicoativas, como os métodos de aquisição e uso, a seleção do meio físico e social do seu consumo, as atividades empreendidas sob seu efeito e as maneiras de evitar consequências prejudiciais. (ZINBERG, 1984, p. 5) Segundo ele, as respostas que os consumidores de drogas ilícitas dão às normas da sociedade estão diretamente relacionadas aos contextos em que tais substâncias são utilizadas. Portanto, diferentes contextos deverão produzir diferentes padrões de consumo. Na década de 1990, essas ideias foram retomadas na Holanda, pelo psicólogo Jean-Paul Grund (1993), em um estudo sobre comportamentos de risco para AIDS entre usuários de drogas injetáveis. Seu estudo constatou a importância das regras e rituais (as sanções sociais de Zinberg) em controlar ou regular a experiência do uso de drogas. Segundo ele, isso seria especialmente visível nas sequências estereotipadas desenvolvidas em torno da autoadministração de psicoativos por aqueles que fazem um uso individual, mas esses elementos também desempenhariam um importante papel em diversas interações ritualizadas que ele observou, no compartilhamento de drogas, por exemplo. Seu estudo confirmou, portanto, a validade da teoria de que o controle do uso de drogas é, em grande parte, estabelecido por controles sociais de base cultural. Em última instância, os usuários regulariam seu uso de drogas, através de processos baseados no processo de aprendizagem social com os pares, nos quais rituais e regras específicos seriam desenvolvidos em adaptação aos efeitos da interação entre a substância, o set e o setting. (GRUND, 1993, p. 237) Aqui ele faz acréscimos ao esquema proposto por Zinberg para explicar melhor a adesão de alguns usuários a padrões de uso controlado enquanto outros não o conseguiam, enfatizando a importância de dois outros fatores: o grau de disponibilidade da droga e a estrutura de vida do usuário. Segundo Grund (1993), a estrutura de vida, a disponibilidade da droga e as normas, regras de conduta e rituais sociais seriam fatores interativos em um processo circular internamente coerente, onde esses elementos seriam eles mesmos modulados (modificados, corrigidos, reforçados etc.) pelos resultados. Seria um circuito retroalimentado (feedback circuit) que determina a força

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dos processos de autorregulamentação que controlam o uso de substâncias psicoativas. (GRUND, 1993, p. 300-301) Na presente pesquisa, o histórico de uso de nossos entrevistados variou entre um mínimo de 7 e um máximo de 35 anos de consumo de cocaína na vida. Ao analisar e interpretar os dados coletados, buscou-se separar o grupo de usuários que desenvolveu problemas decorrentes do uso de cocaína e de outras drogas, daqueles que não desenvolveram um “uso problemático”, fazendo um emprego pouco prejudicial relativo ao potencial danoso da substância psicoativa, tanto em termos de sua saúde física e mental, quanto em termos de consequências sociais (encarceramento, internações psiquiátricas e outros). Focalizou-se a construção de estilos de uso de cocaína, caracterizando os consumidores conforme sugerido por Zinberg (1984) como: “compulsivos” e “controlados”. Seguindo as evidências etnográficas relativas ao significado particular que a cocaína desempenha para cada estilo de vida (BIELEMAN et al., 1992; DIAS et al., 1992; GRUND, 1993), os rotulamos de usuários light e hard, termos nativos, correntes na época entre nossos sujeitos de classe média em São Paulo. Consideramos, como sendo usuário light, o indivíduo que não desenvolveu problemas de saúde decorrentes do uso de cocaína e nem se engajou na delinquência. Este tipo de usuário não perde a hora do trabalho, desenvolve estratégias cotidianas, mobiliza uma rede de relações sociais, emprega uma série de rituais e regras de utilização do produto, lida com seu consumo de cocaína de forma diferente do usuário compulsivo e/ou disfuncional e realiza uma série de esforços para manter a estabilidade de sua prática. Examinamos a sua trajetória, centrando nosso interesse no seu desenvolvimento de controles informais, na compreensão das flutuações nos seus padrões de uso e na relação entre uso e abuso em determinadas circunstâncias de sua vida, procurando desvendar os vários processos sociais que contribuíam para plasmar suas práticas e os significados variados que assumiam. Consideramos que ele seria equivalente ao “usuário controlado” de Zinberg (1984). De início nos chamou a atenção o fato desse tipo de usuário já ter como equacionados seus problemas de sobrevivência e contar com recursos financeiros adequados à manutenção de seu estilo de vida. Já os usuários que classificamos como hard ou compulsivos seriam aqueles que exibiam sequelas físicas ou sociais, tendo de recorrer mais frequentemente à ajuda especializada do que os chamados usuários light. Os usuários hard geralmente não se restringem ao uso inalado de cocaína, tendo experiência com outras formas de uso da substância, tais como a sua injeção e o fumar de crack ou free base (maconha e cocaína). Diversos haviam desenvolvido carreiras delinquentes e/ou sofrido uma série de internações hospitalares e tratamentos psiquiátricos, experimentando as consequências mais danosas do consumo. Muitas vezes, o recurso a essas outras formas de uso era decorrente de suas dificuldades ou dos poucos recursos de que dispunha para aquisição da droga, além de um certo tipo característico de concepção acerca do próprio corpo e dos efeitos da cocaína. Embora caracterizados por um tipo hard de consumo de drogas ilícitas, isto não os impedia de desenvolver seus próprios rituais,

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regras e controles informais para uso, mas estes, devido a variáveis individuais, não eram suficientes para reduzir os danos significativos que sofriam em relação à sua saúde física e psíquica, assim como às suas relações sociais e econômicas. Embora seu estilo de uso fosse mais intenso que dos usuários light, seu histórico de uso era mais curto, pois, conforme constatamos em nossas entrevistas, é comum um usuário desse tipo trocar seu padrão de uso hard por um mais light, após sofrer sustos decorrentes de experiências fortemente negativas com droga. A partir de um corpo maior de dados coletados e de conclusões provenientes da pesquisa, neste artigo optamos por nos concentrar no modo de funcionamento dos controles informais que afetavam as práticas e estilos de vida observados, basicamente os valores, regras de conduta e rituais sociais adotados pelos usuários, assim como na importância das estruturas de vida e da disponibilidade da substância para o desenrolar das suas carreiras de uso. 34

Rituais e outros controles sociais do uso Conforme apontado acima, vários autores vêm chamando a atenção para a importância dos controles sociais informais no estabelecimento de padrões de uso “controlados”, menos danosos de substâncias psicoativas. Conforme já vimos, Norman Zinberg (1984), pioneiro nessa discussão, os concebe como formados pelo que chama de “sanções sociais” (normas e regras de conduta) e “rituais sociais”. As primeiras definiriam se e como determinada droga deve ser usada. Podem ser informalmente compartilhadas por um grupo ou podem ser formalizadas em leis e políticas de regulamentação de uso de drogas. Já os rituais sociais seriam padrões estilizados de comportamento que surgem em torno do uso de um psicoativo. Teriam a ver com os métodos de aquisição e administração da droga, a seleção do contexto físico e social do uso, as atividades empreendidas depois da administração da droga, e as maneiras de evitar efeitos indesejados. Os rituais serviriam assim para fortalecer e simbolizar as sanções. A existência de sanções e rituais sociais não significaria necessariamente que sejam efetivos, nem que todas as sanções e rituais tenham sido desenvolvidos como maneiras de respaldar o uso controlado. Mais relevante do que se ater a essa questão, seria investigar a maneira como os usuários lidam com conflitos entre sanções. No caso de drogas ilícitas, o conflito mais óbvio seria aquele que ocorre entre os controles sociais formais e informais, ou seja, entre as leis proibindo o uso e a aprovação dada por um grupo referencial a essa prática. Esse conflito poderia acabar por causar ansiedade no usuário, interferindo assim com o seu controle. Para lidar com esse conflito, o usuário pode ser levado a optar pela adoção de posturas de valentia, paranoia ou de sentimentos antissociais. Isso seria uma das razões pelas quais o uso controlado de substâncias ilícitas se mostraria mais difícil que o das lícitas. (ZINBERG, 1984, p. 5-7) Orientados pelas noções de Zinberg e Grund, nesta pesquisa procuramos observar de forma detalhada as

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diversas maneiras em que nossos sujeitos faziam uso de suas substâncias, prestando atenção não só ao que nos diziam, como também aos seus atos. Para tanto, a metodologia antropológica da observação participante foi essencial. Uma boa ilustração da importância desse método foi a constatação de que, ao serem indagados, muitas vezes os consumidores afirmam não seguir nenhuma regra para o uso, pois não concebem os seus rituais como sendo controles informais. Mas, ao se analisar de forma mais detalhada os depoimentos e ao se observar inúmeras cenas de uso, constatou-se que as ações e formas estilizadas de conduta durante o consumo, tidos pelos usuários como atos e gestos mecânicos e automáticos, constituíam, de fato, rituais sociais de importância decisiva para a autorregulação. Para a maioria dos nossos sujeitos, o próprio ritual de uso de cocaína é uma diversão, cujo fim está em si mesmo. Assim que se encerra uma “sessão”, ou rodada de uso, é comum logo se dar início a outra, e este rito se estende até o fim do produto. A costumeira escassez dele transforma o ritual de consumo num evento especial para os praticantes, havendo uma forte valorização deste, da quantidade de droga disponível e das relações entre eles. A inalação é a principal forma de uso da cocaína, a mais popular e conhecida. Seus adeptos são numerosos, mas costumam ser discretos e altamente dissimulados, principalmente quando pertencem à classe média. Os usuários de cocaína constituem grupos frequentemente muito restritos e fechados às relações de amizade e de confiança, devido à criminalização de suas práticas, que os leva à clandestinidade e à ocultação. Nessas condições, o alto preço do produto, aliado à atuação das forças de repressão, acaba por produzir exclusões sociais, atitudes “antissociais”, favorecendo também a adoção de formas “descontroladas” de uso e a desinformação a respeito do assunto. Mas em geral, a adoção de um comportamento ritualístico e sequencial permite que os usuários exerçam um certo controle efetivo sobre as suas experiências com cocaína, seus efeitos e o reconhecimento dos limites de seus corpos. Os rituais de consumo ajudam também a estreitar os laços entre os membros de um grupo de usuários, permeados que são de muitas conversas, músicas, confidências, afagos e divertimento. Em geral, os nossos sujeitos se mostraram mais familiarizados com a inalação da cocaína, a prática de “cheirar pó”, embora boa parte deles tenha consumido tal substância por outras vias de administração alguma vez na vida. A nossa atenção principal focou os consumidores que costumavam inalar cocaína regularmente. O ritual de uso de cocaína é organizado a partir da quantidade de droga disponível visando à sociabilidade e ao melhor aproveitamento da substância, na busca de se alcançar os estados alterados da consciência. Em sua forma mais básica, o ritual de uso de cocaína segue certos padrões clássicos. Devido ao fato de que a cocaína, quando exposta à temperatura ambiente, tende a se umedecer, costuma-se preferir iniciar o processo esquentando um prato e em seguida colocando a substância na superfície quente, para secá-la. Depois se amassa o produto com uma colherinha de chá, cortando-o com uma gilete ou um cartão de banco para que a cocaína deixe a forma de

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cristais e vire “pó”. Isso propicia uma melhora no rendimento e na absorção do produto pela mucosa nasal e, ainda, uma redução dos riscos com “impurezas” e adulterantes. Mas quando não se pode contar com o uso de fogo, com um prato e com colheres, a substância é usada sem esse tipo de tratamento. Nesse caso, continua-se a usar uma lâmina ou um cartão de banco para quebrar os cristais e “esticar” as “linhas” ou “carreiras” de cocaína, mesmo que de forma rápida. Quando não se quer perder muito tempo, nem mesmo para esticar as “linhas”, recorre-se à simples formação de pequenos “montes”. Depois que a cocaína é dividida para o uso, os participantes improvisam um canudo usando cédulas de dinheiro, pedaços de papel, tubos de caneta esferográfica ou canudos de refrigerante para inalarem o “pó”. O mais comum é usar-se uma cédula. Há toda uma arte para enrolar esta nota, pois ela deve estar nova, levando os usuários a darem preferência a notas de valor alto de ou de uma moeda estrangeira. Normalmente, pega-se um dos lados menores da nota, dobra-se até o meio e faz-se um ângulo de 90 graus, formando um triângulo; enrola-se na direção da outra dobra e o canudo está feito. Depois, segura-se a nota pelo lado dobrado para que ela não se abra durante a “sessão”. Caso isto aconteça, apanha-se a nota, enrolando-a novamente para que o canudo fique firme e o “pó” não seja desperdiçado. Muitos procuram ter seus próprios canudos devido a preocupações com a higiene e para evitarem “pegar gripe”,2 mas em geral estes acabam sendo compartilhados também. Coloca-se então o canudo em uma narina e toma-se fôlego para inalar de uma só vez o produto. O ato de “aspirar” cocaína pode realizar-se num só lance ou em várias inalações sucessivas. Geralmente, os usuários procuram inalar a cocaína aos poucos e de forma lenta, buscando um melhor “aproveitamento” do produto e um certo controle sobre os efeitos. Quando o consumo não é realizado de forma solitária, segue-se uma ordem determinada. Normalmente, o primeiro a aspirar é o dono da substância. Uma vez que ele tenha aspirado as carreiras que lhe cabem, passa o implemento para o seguinte na fila. Muitas vezes, a ordem das inalações revela as diferenças de status e as afinidades entre os participantes da sessão, explicitando as suas formas de sociabilidade. Os usuários vão consumindo as “linhas”, as quais geralmente são distribuídas proporcionalmente entre os participantes, sendo costumeiro o dono da droga cheirar mais que todos, usando, como justificativa, o alto preço do produto. Este comportamento ritualístico é conhecido pelos usuários como “cheirar o pó”.

2  Os usuários têm a percepção de que o compartilhamento de canudos implica no risco de contaminação pelo vírus da gripe, mas não costumam pensar em outros vírus, como os das hepatites ou o HIV, aos quais também se expõem. Levando isso em conta e atendendo à necessidade de assepsia, certos programas de redução de danos têm distribuído “kits sniff”, contendo canudos e protetores nasais, entre outros itens, juntamente com folhetos informativos escritos em linguagem simples e tolerante.

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Durante os rituais de inalação de cocaína, é comum ocorrer, concomitantemente, o consumo de outras drogas, como tabaco, maconha e bebidas alcoólicas. Foi encontrado um tipo de usuário que denominamos de cocainista. Este seria um consumidor compulsivo e exclusivo de cocaína inalada que não costuma usar maconha, utilizando apenas álcool e cigarros. Evita fumar maconha, por considerar seus efeitos como opostos ao da cocaína. Além desse tipo, há, também, o alcoolista, que prefere bebidas destiladas e fermentadas usando, eventualmente, cocaína de forma circunstancial, mas mantendo, como consumo preferencial, o álcool. Este tipo é conhecido, no meio pesquisado, como o “tipo da liga”, pela combinação que faz de uísque e cocaína. Há, também, os dispostos a usar de forma combinada qualquer uma dessas drogas, segundo as circunstâncias e a disponibilidade dos produtos. Em algumas redes, alguns usuários podem, eventualmente, fumar free-base3 (maconha ou tabaco com cocaína), principalmente aqueles de idade mais elevada, já que essa prática parece ter sido mais comum na década de 1980 do que nos anos 1990. Esta época foi caracterizada pela emergência entre os mais jovens do consumo de crack, uma droga também conhecida como a “cocaína dos pobres”. Alguns consumidores comentaram que o free-base seria o “pai do crack”. A maioria de nossos entrevistados podem ser caracterizados, então, como “poliusuários”, uma vez que fazem uso combinado de drogas. Em geral, preferem bebidas destiladas, como uísque, mas frequentemente bebem cerveja e/ou conhaque, nessa ordem de preferência. Nos ambientes onde há consumo de cocaína, como certos bares e boates, os consumidores declaram preferir bebidas alcoólicas, devido à má qualidade da cocaína, pois o “pó” vem muito misturado a outras substâncias. Similarmente ao que mostraram as pesquisas sobre o consumo da maconha realizadas nos Estados Unidos por Zinberg (1984, p. 136), MacRae e Simões (2000, p. 71), em São Paulo e Salvador e Fernandez , em São Paulo (FERNANDEZ, 1993, 2007), nossos dados apontaram para uma crescente desritualização do consumo de cocaína, embora o uso que observamos ocorrendo em motéis (circuito periferia), casas de consumidores (circuito doméstico) e mesmo em salas de aulas (circuito universitário) ainda apresentasse fortes traços de comportamentos estilizados, ações ritualizadas e de interações em torno do uso. Assim, mesmo na ausência de todos os apetrechos para a preparação da droga, em muitos cenários costuma-se ainda despender longos tempos nessas sessões, dando-se ensejo a um tipo de interação entre os participantes que se poderia chamar de uma “sociabilidade cocainômana”. Já nos bares e nas boates do circuito GLS, o tempo de uso e as interações são mais rápidos, levando a atitudes mais dispersivas e menos focadas exclusivamente no uso da substância. Os tipos de consumo de cocaína

3 Free base é um termo nativo, denotando uma origem americana da prática.

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realizados nesses bares e boates são mais individualizados e, quando não, são geralmente restritos a um máximo de três pessoas. Seguindo o modelo de Zinberg (1984), em seu estudo de usuários de outros tipos de psicoativos ilícitos, ao conceber rituais de uso não nos limitamos somente ao momento de ingestão da substância, buscando enfocar de forma mais global a sua compra, o momento de sua utilização, assim como as atividades realizadas após o consumo. Foram observados vários locais e ambientes da cidade utilizados pelos nossos entrevistados, cobrindo diferentes contextos socioculturais, posições de classe e estilos de vida. Nesses circuitos, puderam ser observadas diferentes redes, performances ritualizadas e formas de lidar com os controles informais. Em todos, devido ao status ilícito de suas práticas, nos deparamos com uma preocupação com a ocultação das práticas de uso e o desenvolvimento de maneiras de lidar com o segredo. Assim, os principais objetivos dos controles acionados pelos usuários de cocaína invariavelmente tinham como objeto a ocultação dessas atividades, mais ainda do que a preservação de sua saúde. O banheiro foi o local apontado pelos entrevistados como o espaço físico de uso mais recorrente, seja ele num ambiente de festa na casa de amigos, num bar, numa boate ou mesmo no próprio lar. Locais como quartos de motel, de hotel, de pensão e/ou de “república” são também citados pelos informantes-chave. Além destes, foram citados, ainda: o interior de automóveis, escritórios e salas de aula (circuito universitário). Note-se que, na grande maioria destes lugares, não se encontram a assepsia e os equipamentos (prato, fogo e outros) necessários para a otimização do preparo da droga e para o aproveitamento máximo dos efeitos buscados, com o mínimo de desperdício e de riscos à saúde. Nos bares, boates e universidades, constatou-se que, tanto para a compra quanto para o consumo, estes locais eram considerados como sendo seguros, confiáveis e propícios à ocultação das práticas ilícitas. Contudo, nem sempre isso impedia investidas das forças policiais nas proximidades destes lugares, ou a atuação de seguranças particulares, a exemplo de observações feitas nas universidades privadas. Lá os consumidores frequentemente eram submetidos à vigilância de forças repressivas, resultando em conflitos e discussões em torno da questão do consumo de drogas ilícitas. Nesses casos, muitas vezes utilizando seus privilégios de classe social, os estudantes usuários procuravam reafirmar seu direito ao uso de drogas e desqualificar os funcionários por não serem policiais e sim vigilantes particulares, empregados de uma instituição, da qual eles eram os clientes pagantes. Verificou-se, também, que a o local escolhido para o uso de drogas é bom indicador das atividades que irão ocorrer após o consumo. Quando a inalação da cocaína é realizada com fins recreativos e ocorre no ambiente doméstico, a depender da quantidade, do horário e do dia, seguem-se comumente certas sequências. Podem ser inaladas poucas quantidades em preparação a sair para se divertir, dançar, ir a festas, bares; enfim, para incrementar a “agitação noturna”. Mas, em outras ocasiões, se houver uma boa quantidade de cocaína, os usuários podem permanecer em torno do “prato”,

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conversando a noite inteira, muitas vezes desabafando e falando de forma catártica. O limite, nesses casos, pode ser dado pelo fim da droga, pelo esgotamento físico dos seus participantes, ou mesmo pela sua consciência das obrigações que os aguardam no dia seguinte. Em ambientes domésticos quando está em curso uma festa ou uma outra forma de reunião, um grupo pode juntar-se num dos quartos para inalar cocaína, ou, se não houver droga suficiente para todos, os usuários poderão dirigir-se aos banheiros, individualmente, ou em pequenos grupos, para, em seguida, voltar para dançar e conversar com os demais participantes do evento. Mas esse tipo de comportamento muitas vezes acaba demarcando uma diferença entre os participantes, provocando uma mudança nas interações sociais que pode até gerar reclamações. Quando um usuário de cocaína se dirige a determinados bares, talvez pretenda apenas adquirir a droga e seguir para uma boate ou, então, passar grande parte da noite usando o banheiro daquele espaço para consumir a substância. Pode, também, optar por voltar para a casa a fim de usar a cocaína de forma mais tranquila e segura, de preferência acompanhado por um(a) amigo(a) ou um(a) parceira(o) sexual. Quando o consumo se dá em uma boate, as atividades subsequentes geralmente envolvem dança, paquera e conversa com os amigos até o clarear do dia. O público das boates que programam as chamadas after hours ou raves, mantém a sua energia através do consumo de estimulantes, como cocaína, anfetaminas, ecstasy ou refrigerantes à base de cafeína ou assemelhados. Muitas vezes, usuários que não podem consumir drogas ilícitas em casa vão a motéis para fazê-lo. Nesses momentos, costumam levar boas quantidades da substância e irem em grupos de casais, sejam hetero ou homossexuais. Apesar de alugarem vários quartos, acabam por se reunir em apenas um para o consumo da droga. Provavelmente, só após os participantes passarem várias horas “cheirando” e bebendo, é que ocorrerá sexo entre eles, seja em casais, seja em grupo. Os sujeitos que descreveram este contexto de uso, geralmente têm acesso a grandes quantidades de cocaína e muitas vezes levam para estes locais garotas bonitas e de boa inserção social. Estas, por sua vez, não costumam comprar a droga e a recebem em troca de sexo, embora isso não seja geralmente explicitado e as expectativas a respeito são expressas de formas mais sutis. Constatou-se que, nesse universo, há diferentes padrões de uso de cocaína inalada. O padrão de uso ocasional é restrito a eventos festivos e a reuniões de amigos, configurando um tipo de uso que se denomina de “recreativo”. A cocaína é fornecida por amigos. Nessas ocasiões, é rara a participação de pessoas estranhas; geralmente os que “cheiram” em conjunto são amigos e quando alguém de fora do grupo participa é porque foi trazido por um dos seus integrantes mais estabelecidos. Há, também, relatos de uso instrumental de cocaína no ambiente doméstico, com a finalidade de trabalhar para além da jornada, ocasiões em que o uso é geralmente individualizado e limitado. Um entrevistado declarou ter como regra de conduta não inalar

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mais do que 10 carreiras de cocaína por noite,4 alegando que, se ultrapassasse este limite, não conseguiria dormir e, consequentemente, perderia o horário no dia seguinte. Há um grande número de usuários regulares de longa data entre os entrevistados que mantém um padrão de uso semanal que varia de dois a cinco gramas, “cheirados” em prazo de um a três dias por semana. Aqueles que consomem cocaína com a finalidade de prolongar os seus períodos de produtividade no trabalho, prática relativamente restrita, tendem a consumir diariamente entre um e dois “papelotes” por noite.5 Tais padrões são bastante estáveis, mas, às vezes, podem sofrer flutuações em direção ao abuso da substância, com uma certa elevação das quantidades usadas. O uso ocasional é visto pelos próprios usuários como estando sob seu controle, contudo constatou-se que, em alguns momentos, este tipo de padrão pode descambar para um uso abusivo por curtos períodos, conhecido pelos consumidores como de “enfiar o pé na jaca”, prática classificada na literatura internacional como uso binge. Para retomar seu autocontrole sobre os padrões de consumo, certos usuários se afastam momentaneamente de alguns amigos, redes e locais de consumo até restabelecerem certa moderação. As oscilações na intensidade do uso de cocaína inalada, embora bastante comuns entre os usuários observados, geralmente não levam à adoção permanente de padrões de uso tão abusivo. São apenas períodos transitórios, configurando um padrão “intermitente” desenvolvido em ocasiões específicas. Segundo afirmam os entrevistados, o padrão predominante de uso de cocaína inalada é bastante regular, implicando num uso duas ou três vezes por semana, de quantidades que variam de um a dois gramas por ocasião. Nesta pesquisa, foi constatada uma variação nas quantidades usadas, oscilando entre os níveis que classificamos como: baixo (menos de dois gramas por semana), médio (de dois a cinco gramas por semana) e alto (acima de cinco gramas por semana). As maiores quantidades de cocaína consumidas foram encontradas entre os traficantes, que chegavam a usar entre quinze e vinte gramas num mesmo final de semana. A maioria dos entrevistados indicou a sexta-feira como o principal dia da semana para consumir cocaína, pois, nesse dia estão mais cansados devido à jornada semanal de trabalho e, ao mesmo tempo, desejam se divertir e aproveitar bem o fim de semana. Esse dia foi batizado pelos usuários como “sexta-cheira”. Depois do consumo, eles se sentem esgotados, mas raciocinam que ainda lhes resta o final de semana para descansar e recompor as energias despendidas e os esforços realizados.

4 Uma carreira de cocaína não possui um tamanho único, varia segundo a quantidade disponível, o local de uso, a rede de consumidores e os respectivos níveis de uso de cada grupo. Entretanto, nesta pesquisa, para fins metodológicos e de comparação, estimou-se a carreira em 0,25 mg, tal como fez Cohen em Amsterdã. (COHEN, 1995) 5 O “papelote” geralmente teria menos de um grama, aproximadamente 0,90 mg.

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Os usuários consideram que a cocaína seja um estimulante apropriado para se enfrentar os desgastes da vida metropolitana, da velocidade do seu cotidiano e como fornecedora de disposição para as atividades realizadas tanto durante seu tempo livre, quanto no tempo de trabalho. Confirmando as ideias de Zinberg (1984), constatamos que o ambiente físico, por sua vez, exerce importante influência sobre os efeitos subjetivos desencadeados pelas substâncias psicoativas. Alguns usuários do circuito universitário afirmaram não gostar de cheirar em banheiros de bares de rua, considerando que tais lugares podem desencadear sentimentos persecutórios, denominados de “paranoia”. Este termo é muito usado pelos consumidores de cocaína para descrever os sentimentos, de medo e perseguição, que às vezes se manifestam após o consumo da droga. Para lidar com efeitos colaterais indesejados da cocaína, ou para “cortar o barato”, os entrevistados sugerem beber água, beber leite, tomar banhos e ingerir sucos ou refrigerantes que contenham açúcar. Eles insistem na necessidade de se saber usar o produto, de se reconhecer os seus limites corporais, de se estar bem alimentado antes de usar cocaína e, principalmente, de se saber controlar a experiência para evitar acidentes, overdoses e outros problemas decorrentes deste tipo de prática. Uma preocupação muito usual entre os inaladores é a de tentar evitar que o uso torne-se hábito regular, um condicionante de suas vidas. Na tentativa de diminuir os efeitos da cocaína inalada, em geral, fuma-se um baseado ou bebe-se uma bebida alcoólica para ficar “ligado” e afastar a ansiedade. Os consumidores acreditam que beber água ou molhar o rosto podem também ajudar a diminuir os efeitos negativos. A ocorrência de acidentes e de overdoses leva muitos a procurar evitar misturar cocaína com altas doses de bebidas destiladas, principalmente conhaque, uma combinação vista como capaz de levar até a uma overdose fatal. Ouvimos diversos relatos de problemas causados por essa combinação e vários dos entrevistados nos advertiram contra ela. Vale ressaltar o desconhecimento geral dos entrevistados acerca de serviços especializados que façam atendimento de emergência para casos de overdose. Em geral os consumidores deixam de procurar serviços de saúde, devido ao medo decorrente da proibição legal desta prática. O receio de serem expostos a penalidades policiais e jurídicas faz com que, às vezes, usuários abandonem um companheiro que esteja passando mal no próprio local de uso, deixando-o sem atendimento especializado e expondo-o a agravamentos de sua condição que podem até levar ao óbito. Os consumidores afirmam que a baixa qualidade da droga os leva a aumentar seus níveis de uso, bem como a intensificar seu consumo de bebidas de teor alcoólico mais alto. A má qualidade da cocaína circulando na cidade de São Paulo traz riscos à saúde dos usuários; ela frequentemente vem misturada a diferentes substâncias (que às vezes podem até incluir pó de vidro), produzindo efeitos “colaterais” indesejados e imprevisíveis. Todos os usuários entrevistados são unânimes ao dizer que a qualidade da cocaína tem caído continuamente desde os anos 1980. Porém, um entrevistado,

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recém-saído da cadeia, tratado como “primo leal”6 no interior de uma organização ilegal, afirma que o comércio desta substância estaria se modificando e que, nos pontos de venda sob influência do Primeiro Comando da Capital (PCC), estariam chegando ampolas de 1,5 gramas puras, numa qualidade excelente e a um preço acessível. Mesmo que a ilicitude das práticas de uso desestimule os usuários a recorrerem à ajuda das instituições médicas quando um deles passa mal, isso não significa que haja falta de sentimentos de solidariedade entre eles. Estes existem e sua manifestação pode ser observada principalmente em ajudas para o acesso ou aquisição do produto, mas ocorrem também em outros aspectos de suas vidas sociais. Parece-nos que atitudes individualistas e de pouca solidariedade estão mais relacionadas ao status ilícito das suas práticas do que a supostos problemas de caráter. Geralmente é a força da lei e da repressão que levam à ruptura dos laços de solidariedade entre eles, ampliando os seus custos sociais e individuais. Quanto à violência que rondaria os usuários de cocaína, estes afirmam que a substância em si não deixa o indivíduo violento, apenas potencializaria suas características preexistentes. Porém, alguns advertem que a ingestão de álcool, combinado com cocaína, pode produzir situações de violência, mais devido ao uso do álcool e da embriaguez decorrente do que pelo uso da cocaína em si. Apenas três entrevistados consideraram que o uso de cocaína e álcool poderia levar a situações-limite, quando o usuário pode perder a paciência. Ressalte-se que, na nossa observação, tais casos de violência são excepcionais, estando muito mais associados ao álcool e ao submundo do tráfico que a outros aspectos do universo do consumo dessa substância. Atos de extrema violência, realizados sob efeito de grandes quantidades de cocaína, ocorrem, mas não são comuns e, sim, manifestações isoladas e excepcionais. Ouvimos alguns relatos de violência, incluindo um caso de homicídio, envolvendo disputas entre traficantes. Mas tanto este relato quanto outro sobre uma morte por overdose foram apresentados por participantes da rede de consumidores hard do circuito Zona Oeste, ou seja, sujeitos mais pobres e com menor escolaridade. Estes estão envolvidos em processos mais amplos de marginalização social e de delinquência, devido principalmente às suas condições socioeconômicas e à falta de oportunidades no mercado formal de trabalho. Já os indivíduos de classe média e alta parecem não sofrer o mesmo “destino” destes “usuários-traficantes” ou dos usuários mais pobres, encontrando uma forma mais light de se relacionar com o consumo de cocaína, com a vida e não apresentando maiores problemas devido ao uso desta substância. Assim, as manifestações de violência nesse universo seriam decorrentes mais da falta de regulamentação do comércio de drogas, fonte de conflitos entre os agentes do tráfico, e ao tratamento amadorístico da drogadependência em comunidades terapêuticas

6 “Primo leal” é o nome dado aos colaboradores do PCC que executam suas orientações dentro e fora dos presídios.

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dirigidas por “leigos” e/ou ex-dependentes. Para nós, a violência registrada no universo desta pesquisa aparece menos como fruto do consumo e dos efeitos da cocaína do que da ausência do Estado e da ineficiência dos poderes constituídos em gerir a questão.

Disponibilidade da droga e estrutura de vida Grund (1993) constatou que embora seja correta a suposição geral de Zinberg (1984) de que rituais, normas e regras de conduta seriam determinantes chave do processo de autorregulação do uso de drogas, sua teoria não explica a variação intragrupal que pode ser encontrada na habilidade dos indivíduos usarem de maneira efetiva os controles sociais. Tampouco dá conta da natureza multidimensional do processo de autorregulação. Para resolver as dificuldades provocadas por esse aspecto, um tanto estático da teoria, ele introduziu dois outros fatores a serem levados em consideração: disponibilidade da droga e estrutura de vida. O grau de disponibilidade da droga exerceria um grande impacto no cotidiano dos usuários regulares de drogas. Embora uma limitação artificial da disponibilidade da droga possa, até certo ponto, limitar seu consumo, isso teria um grande custo psicossocial. Além de criar um forte incentivo econômico para o tráfico dessas substâncias, isso promoveria também uma fixação na droga, levando a uma forte limitação das expressões comportamentais e implicando na ocorrência, seja de uma fissura pela droga, quando essa não pode ser imediatamente satisfeita, seja de um consumo impulsivo e exagerado, quando uma dose fica disponível. Consequentemente, os rituais e as regras, desenvolvidos em torno do uso da droga, tornam-se menos direcionados à autorregulação e à defesa da saúde e voltam-se mais à segurança, ao acobertamento e à facilitação desse consumo e de atividades relacionadas, tais como o tráfico. Contrastando com isso, a ausência de incerteza sobre a obtenção da dose seguinte libera o usuário dessa preocupação, dando lugar a uma situação em que é possível o surgimento de regras e rituais que sirvam para limitar o uso e promover padrões estáveis de uso. Isso não significa que sejam necessariamente estabelecidos níveis mais baixos de uso, mas, sim, de menores custos biopsicossociais. Assim, para Grund (1993) uma disponibilidade suficiente da droga pode ser considerada como uma precondição para o desenvolvimento e a efetividade de rituais e regras que regulem os padrões e níveis de uso. (GRUND, 1993, p. 243) Outro novo fator que Grund acrescentou ao modelo de Zinberg foi o da “estrutura de vida”. Para tanto, ele se inspirou em artigo de Faupel, sobre usuários americanos de heroína, em que se mostra a importância da disponibilidade da droga e da estrutura de vida na sua manutenção de padrões éticos. Faupel enfatiza que as atividades regulares (tanto as convencionais quanto as relacionadas ao uso de drogas), que estruturam os padrões de vida cotidiana de seus sujeitos, são determinantes chave da sua estrutura de vida. (FAUPEL, 1987) A elas Grund adiciona as relações entre os indivíduos, compromissos, obrigações, responsabilidades, objetivos, expectativas

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etc. Relacionamentos e aspirações exigentes, que também tenham valor em termos social (por exemplo, afeto) ou econômicos (por exemplo, renda), seriam determinantes igualmente importantes da estrutura de vida. Igualmente, contatos regulares com usuários controlados ou não usuários seriam de grande relevância, da mesma forma que a participação em estruturas e atividades que não sejam primariamente voltadas para o uso de drogas. Esse posicionamento sugere que, embora uma boa disponibilidade da droga seja essencial para o desenvolvimento de controles sociais, se não houver uma boa estrutura de vida, a sua efetividade será limitada em promover a autorregulação do uso. (GRUND, 1993, p. 244) Grund conclui ser evidente que o uso de “intoxicantes”, mesmo os mais pesados, não leva inevitavelmente a padrões de uso descontrolados ou danosos, mesmo quando se tornam uma atividade preponderante. Porém, lembra que o uso de drogas raramente ocorre isoladamente, sendo normalmente uma atividade social, imbricada em diversos outros aspectos da vida. Padrões de uso (quais drogas são usadas e como) seriam sujeitos a múltiplos condicionantes sociais, tais como a disponibilidade, tendências e normatizações culturais. Portanto, o uso de drogas não poderia ser isolado de seu contexto social. (GRUND, 1993, p. 254) Nossa pesquisa em São Paulo confirmou em suas linhas gerais as posições de Zinberg e Grund. Constatamos o quanto a disponibilidade da droga é fundamental para a seleção do local de uso, o que por sua vez irá influenciar os níveis de uso, os rituais e as formas de sociabilidade do consumo. Porém nosso campo não deixou de apresentar características próprias. No nosso caso, por exemplo, foi observado que os usuários-traficantes são os que mais consomem cocaína em grandes quantidades durante os rituais de consumo. Contudo, diferentemente dos achados holandeses, no universo da presente pesquisa estes não são os usuários mais controlados. Porém, quando relacionados locais de uso, o tempo do ritual e a quantidade de droga disponível, conseguiu-se uma boa caracterização dos estilos de uso de cocaína em cada território e circuito pesquisado. Esta pesquisa revelou que a disponibilidade e a quantidade de drogas variaram segundo os contextos socioculturais e estilos de vida. Em todos os circuitos foi possível perceber a importância da estrutura e o estilo de vida para o consumo de cocaína, engendrando diferentes formas de rituais, tempos de consumo e quantidades utilizadas. Comprovamos também a proposta de Zinberg de que os rituais seriam fundamentais para o controle da experiência. Pôde-se assegurar que a cocaína possui múltiplos significados para os diferentes estilos de vida pesquisados, o que faz variar os graus de autocontrole resultantes da internalização dos controles societários e legais.

Performances de gênero e sexualidade Constatamos uma grande diferença entre o acesso à cocaína por parte dos homens e das mulheres, principalmente devido às ameaças de violência, roubo ou estupro que

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representam as relações com os traficantes. Apenas as mulheres mais corajosas e desenvoltas conseguem entrar e sair dos pontos de venda sem serem molestadas. Portanto, elas, frequentemente, são mais dependentes econômica e socialmente dos homens para obterem e consumirem este produto. Foi especialmente difícil localizar usuárias para esta pesquisa e, quando encontradas, elas geralmente frequentavam os circuitos e cenários de classe média alta. Dos grupos de consumidores de cocaína observados, somente um era predominantemente formado por mulheres. Mesmo neste, era um homem o responsável por buscar a droga para elas e outro o que as havia introduzido ao uso de drogas ilícitas. A predominância de homens no universo pesquisado faz com que haja uma forte correlação do uso da cocaína com o ethos masculino, mas este aspecto é variável, oscilando conforme as expressões e performances de gênero dos diversos grupos locais. Igualmente encontramos a expressão de variadas formas de masculinidade e de performances de gênero manifestadas nos circuitos observados segundo as diferentes situações culturais vigentes em cada um. Na pesquisa, verificou-se uma forte associação entre sexo e cocaína. Constatou-se que os usuários podem ficar estimulados sexualmente, mas não necessariamente realizam o ato sexual e, às vezes, se masturbam para conseguir dormir. Há relatos de pessoas que utilizam a cocaína para seduzir parceiros(as) sexuais ou para fazerem sexo. Há também os que mantêm relações sexuais para terminar a sessão de consumo. Segundo relatos coletados no campo, a cocaína às vezes é usada para contornar tabus sociais e dar vazão a desejos sexuais mais extravagantes, por parte de usuários que não o conseguiriam se não estivessem sob o efeito da substância. Um dos observados, por exemplo, um bissexual assumido, que geralmente só consegue ser “ativo” em suas relações sexuais, após uma sessão de consumo de cocaína e álcool se deixou ser penetrado. Já no que diz respeito às mulheres da investigação, no período em que foi realizada a pesquisa, todas eram solteiras e nunca haviam estado casadas; exibindo performances distintas da feminilidade hegemônica e alternativa. Durante nossa pesquisa, tivemos a oportunidade de vislumbrar relações sociais de gênero na rede de consumidores de cocaína do circuito da Zona Oeste, particularmente do submundo do crime e da marginalidade social, na perspectiva de uma mulher. Uma entrevistada7 relatou a relutância dos traficantes em usar a droga na companhia de pessoas estranhas, devido à sua preocupação em manter seu grupo fechado; somente fazendo exceção para certas mulheres. Segundo ela, esses homens são exigentes, preferindo mulheres que trabalham, que sejam “uma puta de uma gata”, inteligentes e de companhia agradável;

7 A entrevista foi coletada por uma assistente desta pesquisa, Graça Cremon. O fato dela ser mulher foi de grande importância em deixar a entrevistada à vontade para relatar a dinâmica de seu acesso e consumo de cocaína.

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rechaçando as consideradas como “vulgarzonas”, “de malandragem”, ou da “maluqueira”. As mulheres, convidadas sob condição de trocar sexo por drogas, são submetidas a uma situação de desigualdade econômica e ainda sofrem ameaça de violência física. No caso de nossa entrevistada, tanto a falta de poder aquisitivo para adquirir a droga como o grau de violência implícito, além de todo complexo histórico de drogas que inclui o uso de cocaína injetável, a levaram a se infectar pelo HIV. Esta, em sua história de vida, ilustra bem o grau de vulnerabilidade social que as usuárias de drogas vivem neste universo. Mas, ao falar de suas experiências, a entrevistada se mostrou declaradamente conivente; reconhecia a situação de subalternidade sexual a que se submeteria para não ter de pagar pela cocaína, mas afirmou que gostava de praticar sexo nessas condições. Para ela, tirando uma cena ou outra de pavor e violência, é sempre “só prazer”. Acrescentou também que, muitas vezes, os homens ficam impotentes, o que a leva a fazer o papel de compreensiva junto ao rapaz, descrito como “dengoso”. Observações das relações sociais, imperantes no circuito da Zona Oeste, revelaram situações onde às vezes se conjugava uma “masculinidade marginal” com estratégias de uma “feminilidade” pouco convencional de mulheres que se masculinizam também para conviver neste meio. Usam tais performances de gênero como maneira efetiva de conseguirem o que querem dos homens, ao mesmo tempo que evitam sua violência.

A reentrevista Em 2006, passados 12 anos da pesquisa inicial, aplicou-se uma nova entrevista a onze dos usuários anteriormente observados. Essa volta ao campo foi realizada com o intuito de pesquisar as mudanças no histórico do consumo dos sujeitos e conhecer melhor os padrões de uso de cocaína desenvolvidos por eles ao longo do tempo, assim como as consequências físicas e sociais decorrentes. Procuramos enfocar suas carreiras de uso, a autorregulação do consumo de cocaína nas suas trajetórias de vida e a estabilidade do uso controlado dessa substância. Buscamos também entender, nas flutuações de consumo dos sujeitos apresentados, como os controles formais (leis, instituições etc) e os informais atuam nos contextos de uso de drogas e são introjetados pelos agentes sociais expressando-se em respostas individuais, atitudes, performances e discursos. Nesse momento, nossa principal constatação foi a de que o universo pesquisado continuava composto por usuários moderados de drogas e com baixos níveis de problemas de saúde e de mortalidade. Após se conhecer o seu histórico de uso da substância, foram mais uma vez constatadas a pertinência e a validade do modelo de Zinberg e Grund sobre a autorregulação do uso e do seu sistema de retroalimentação. Este pareceu-nos dar conta das dinâmicas do uso constatadas, ajudando a entender suas flutuações e as variações nos níveis de uso durante a trajetória de vida dos consumidores acompanhados.

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Em relação ao modelo hipotético de autocontrole do uso de drogas de Grund (1993), os dados desta pesquisa apontaram para o fato de que, entre os três fatores por ele apresentados, a “estrutura de vida” seria a mais influente em propiciar o desenvolvimento do uso controlado, a seleção dos locais de uso e o emprego de rituais e regras de consumo, principalmente aqueles mais eficazes em minimizar as piores consequências desse consumo. A estrutura de vida é fundamental para organizar os gostos, consolidar o hábito e mediar esta prática com as obrigações cotidianas. Seria ela o principal fator tanto para a consolidação do hábito de inalar cocaína, quanto para o desenvolvimento do uso controlado de drogas em geral. É ela que permite a manutenção estável do acesso às substâncias, orienta os valores, as regras e rituais em diferentes estilos e trajetórias de vida. O aspecto mais forte do modelo proposto por Grund (1993) é a sua afirmação a respeito da interdependência na tríade de fatores da autorregulação, ou seja, a circularidade e influência recíproca entre disponibilidade de drogas, rituais e regras e a estrutura de vida. Observou-se que mudanças nesta última, como alterações nas condições de trabalho (mudança do período noturno para diurno, por exemplo) ou a perda do emprego, condicionaram mudanças nos padrões de uso. Nesta pesquisa, os sujeitos que não dispunham de condições financeiras para adquirir a droga deram direções às suas carreiras de consumidores diferentes das dos mais bem posicionados economicamente. Os usuários compulsivos desenvolveram formas de adquirir suas doses através da troca de sexo por drogas, tráfico, roubos etc., ampliando sua marginalidade e experimentando as piores consequências (físicas e sociais) decorrentes do uso da substância, tais como: infecções pelo HIV, ou vírus das hepatites, prisões por longo período etc.. Já os usuários controlados se adaptaram à pequena disponibilidade do produto, mantendo uma atitude moderada diante da cocaína e passando a um padrão de uso ocasional ou até deixando definitivamente o seu consumo. Os entrevistados deste estudo são provenientes predominantemente das camadas médias urbanas da cidade de São Paulo e suas formas de aquisição da cocaína através de delivery8 e/ou em estabelecimentos comerciais demonstra uma busca pela segurança e o afastamento de territórios marginais ou de relações marcadas pela violência do tráfico. Quando a renda é suficiente para prover o acesso desejado à cocaína, não se costuma verificar maiores desvios de conduta entre eles. Tais desvios foram mais constatados entre aqueles que, por falta de dinheiro para adquirir a sua droga, são compelidos a lançar mão de estratégias como prostituição, troca de objetos pessoais, roubo, tráfico etc. Na nossa pesquisa, tais indivíduos acabaram sofrendo consequências físicas e sociais graves, incluindo a prisão, com todas as mazelas decorrentes.

8 Entrega da droga em domicílio por pedido telefônico.

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A posição dos sujeitos na estrutura social de classes se mostrou decisiva para delinear práticas de ingestão mais seguras e trajetórias individuais menos problemáticas. Os que se encontravam nessas condições foram os detentores do que chamamos de “carreira de uso bem-sucedida”. No caso de carreiras “malsucedidas”, encontramos sujeitos que não conseguiam escapar dos inúmeros processos de rotulação, sofrendo maior exclusão e piores condições de vida e sobrevivência. Além disso, tornavam-se vítimas preferenciais das forças policiais e repressivas que no país voltam suas atenções primordialmente aos membros dos segmentos subalternos da sociedade. Na carreira dos usuários, o conhecimento experimental das drogas, modos de uso e técnicas corporais mostraram-se objetos de aprendizados sociais, realizados entre pares geracionais. Os diferentes modos de consumir cocaína se relacionam às variadas técnicas corporais adotadas, induzindo percepções, cognições e representações diversas acerca do mesmo produto. As diferenças de classes sociais influenciam o aprendizado corporal, as expressões linguísticas, as práticas de higiene pessoal e de consumo e as performances de gênero, contribuindo para variações na percepção de si e até no reconhecimento dos diversos efeitos experimentados. Para esses consumidores, a dialética do prazer é decisiva, em certo período de suas vidas, servindo tanto para explicar o seu desejo de usar cocaína como também de abandoná-la. O prazer, como ausência de dor e de sofrimento, é um também valor importante para esses consumidores que não são movidos por uma paixão pela morte, mas por um desejo por uma vida intensa e prazerosa, mesmo que ao risco de ser breve e curta. A oscilação entre uso e abuso, a perda de controle e a sua retomada, prazer e desprazer, vida e morte, tudo faz parte do “barato” Entre nossos sujeitos, a maioria acabou por reduzir ou abandonar por completo o uso de cocaína no decorrer de suas trajetórias de vida. Constatamos apenas duas exceções, um, que fazia um uso instrumental de cocaína para auxiliar sua produção no trabalho, aumentou o seu uso, e outro passou a consumir crack, uma forma mais danosa de consumo. Em geral, os sujeitos entrevistados e observados apresentaram poucos problemas de saúde durante uma década de consumo, permanecendo ocultos das estatísticas elaboradas a partir de dados recolhidos na clínica. Isso nos leva a pensar que os indicadores indiretos de saúde pública não são capazes de refletir adequadamente a verdadeira dimensão do consumo de cocaína por via inalada na sociedade brasileira. Tal suposição parece ser confirmada pelo alto número de usuários ocasionais que observamos e um grande número de redes de consumidores descritas pelos informantes-chave. Assim, urge evitar a reprodução do estereótipo do junkie, do dependente e do marginal criminoso, para o usuário de cocaína, em geral. É verdade que se constatou uma maior probabilidade do usuário de longa data desenvolver diferentes tipos de problemas, mas observamos também numerosos casos onde a adoção do uso controlado como padrão estável deixou de apresentar consequências especialmente nocivas tanto para o usuário quanto para a sociedade.

entre carreiras , redes e circuitos

Outra constatação importante que fizemos foi o da ausência de serviços públicos e gratuitos para atender a essa população. Acreditamos ser necessário criar serviços especializados de atendimento a casos de overdoses de cocaína e a outras formas de emergência relacionadas. Deve-se também oferecer a garantia de que os consumidores que socorram companheiros que estejam passando mal não serão penalizados ou estigmatizados ao levá-los aos serviços médicos ou outras instâncias de atendimento ao público. A criação de novos serviços especializados e a sua formação de parcerias com determinados bares e casas noturnas são medidas, relativamente simples, mas que poderão dar uma grande contribuição para a redução da vulnerabilidade social e do índice de mortalidade dos usuários de cocaína, assim como para um aumento da segurança pública.

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