Entre centros e periferias. Reflexões acerca dos sistemas culturais da Macaronésia Lusófona

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Entre centros e periferias. Reflexões acerca dos sistemas culturais da Macaronésia lusófona* A look on the Espirito Santo Feast in Santa Catarina – a cultural contribute to the Azorean Diaspora

ANUÁRIO N.º 3 Centro de Estudos de História do Atlântico ISSN: 1647-3949, Funchal, Madeira (2011)

pp. 934-947

Ana Salgueiro Rodrigues** CEHA_Madeira - CECC (FCH-UCP)

* O presente ensaio corresponde a uma nova versão da conferência por nós apresentada a 2 de Maio de 2011, no Centro de Estudos de História do Atlântico, no âmbito do Ciclo: «Textos e contextos insulares». ** Doutoranda em Estudos de Cultura na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (FCH-UCP), com tese intitulada “Exîle… O exílio nas literaturas das Ilhas Atlânticas (Cabral do Nascimento, João Varela e João de Melo, é bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia – FCT, desde 2008, investigadora júnior do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (FCH-UCP), tendo integrado, a partir de Janeiro de 2011, o projecto «O deve e o haver na História da Madeira» promovido pelo CEHA. É mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e licenciada em LLM - Estudos Portugueses pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É co-autora do livro Vozes de Cabo Verde e Angola. Quatro percursos literários (CLEPUL, 2010), tendo a sua investigação mais recente sido ocupada particularmente pelo estudo das literaturas e culturas das Ilhas Atlânticas, assim como pela problemática do exílio. Tem participado em encontros académicos nacionais e internacionais e editado em publicações periódicas e/ou colectâneas de ensaios diversos, comop.ex.: “A Cape-Verdian view of Europe: history and geography revised in the writings of G. T. Didial”, Europe in Black & White (2010); “Fantasia? Lusitana? Cinema, história(s de vida) e ética artística em Daniel Blaufuks e João Canijo”, Doc on-line (nº 9, Dez. 2010); “Insulated voices looking for the world”, A comparative history of literatures in the Iberian Peninsula (2010); etc.

Resumo Centrando a nossa atenção na análise de alguns aspectos dos sistemas culturais dos Açores, Madeira e Cabo Verde, procuraremos, no presente ensaio, reflectir sobre as afinidades, implicações e/ou diferenciações detectáveis entre estes três sistemas culturais insulares lusófonos. De igual modo, é nosso propósito indagar sobre as relações culturais (e de poder) que ao longo do tempo, e em especial na contemporaneidade, se foram estabelecendo entre estes três sistemas culturais considerados periféricos e as instituições académicas lusófonas ou lusófilas, que, no quadro polissistémico da cultura lusófona, assumem de facto, entre outras instituições e organismos, o estatuto de centros. Poderão as culturas insulares macaronésias ser apenas e tão-só consideradas ‘periféricas’? O que implicará, de facto, a aplicação acrítica desta etiqueta (e de uma outra com estatuto equivalente – ‘regionais’) aos fenómenos culturais produzidos na Madeira, nos Açores e em Cabo Verde? Que lugar é hoje ocupado/destinado, nas academias lusófonas, pelos/aos fenómenos literários e culturais das Ilhas Atlânticas? Palavras-chave: Macaronésia, sistemas culturais insulares, centros, periferias, lusofonia, relações de poder. Abstract Focusing in the analysis of some aspects of the culture systems from the Azores, Madeira and Cape Verde, we will try in this paper, to reason about the similarities, significations, and/ or differences that can be found in the three Portuguese speaking insular systems. It is also our aim, to question the cultural relations (and power relations) that throughout time, and especially at present times, have established themselves in these three cultural systems, seen as outermost regions and the academic institutions that amidst the lusophone culture plural system, alongside other institutions and associations, have gained the statute of centre. Can the macaronesian insular cultures be mere outermost regions? What does this label really implies (as well as the label of regional) when applied without criteria to the cultural phenomena produced in Madeira, Azores and Cape Verde? Which place is occupied/ destined, in the academies, by / to the literary and cultural phenomena from the Atlantic Islands? Key-words: Macaronesia, insular cultural systems, centres, outermost regions, lusophonia, power relations. 935

A

ssumindo o presente trabalho o perfil de um exercício de reflexão, abrimos este ensaio com a citação de dois textos: (1) o poema de um autor cabo-verdiano que aqui servirá de pedra-de-toque e o qual, quando lido sem qualquer indicação de autoria e sem a referência à naturalidade do poeta que lhe deu forma, tem a particularidade de permitir ao leitor (minimamente informado acerca das culturas e imaginários das ilhas da Macaronésia lusófona) conjecturar sobre a hipótese de esse poema pertencer ou ao sistema cultural cabo-verdiano, ou ao sistema madeirense ou ainda ao açoriano; e (2) a definição de «regiões ultraperiféricas», publicada no glossário do Portal «Europa», um dos sítios oficiais da União Europeia, e que, em nosso entender, exige uma leitura bastante crítica, pelo modo como concebe os espaços sócio-culturais referidos por essa etiqueta1. Comecemos, então, pela leitura do poema de Jorge Barbosa: «Panorama ao Manuel Velosa Destroços de que continente, de que cataclismos, de que sismos, de que mistérios?... Ilhas perdidas no meio do mar, esquecidas num canto do mundo 1

Entenda-se aqui o conecito de «etiqueta» no sentido proposto por Nelson Goodman: GOODMAN, 2006, Linguagens da arte.

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- que as ondas embalam, maltratam, abraçam […] onde naufragam navios, aonde aportaram caravelas, onde saltaram marinheiros queimados, corsários, escravos, aventureiros, condenados, fidalgos, negreiros, donatários das Ilhas, Capitães-Mores …2. E consideremos agora a definição inclusa no Portal «Europa»: «Regiões ultraperiféricas As regiões ditas “ultraperiféricas” […] caracterizam-se por uma fraca densidade populacional e por uma grande distância em relação ao continente europeu. Devido à sua situação especial constituem pontas de lança da Europa para o desenvolvimento de relações comerciais com os países terceiros vizinhos geralmente menos desenvolvidos. Sobretudo graças às regiões ultraperiféricas, a União Europeia dispõe do primeiro território marítimo mundial, com 25 milhões de km2 de zona económica. As RUP foram objecto de uma Declaração anexa ao Tratado CE, podendo beneficiar de medidas específicas com base no artigo 229º do mesmo Tratado. Esta Declaração reconhece que as referidas regiões sofrem de um atraso estrutural importante. A Declaração prevê a possibilidade de adoptar medidas específicas em seu favor, na medida em que exista uma necessidade objectiva de assegurar o seu desenvolvimento económico e social. Além disso, o artigo 299º do Tratado autoriza o Conselho a adoptar medidas específicas para fixar as condições de aplicação do Tratado e das políticas comuns às regiões ultraperiféricas.»3 Da leitura deste segundo texto, três ideias devem, em nosso entender, ser sublinhadas: 1. O conceito de «ultraperiferia» com que, de um modo geral, trabalham as instituições Europeias parece inscrever-se num discurso altamente centralista, paternalista e marginalizador em relação às regiões ditas ultraperiféricas (RUP); 2

BARBOSA, 2002, Obra poética, p.35

3

Glossário do Portal «Europa», portal oficial da União Europeia: http://europa.eu/scadplus/ glossary/outermost_regions_pt.htm.

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2. Este conceito, pensado aqui sobretudo do ponto de vista sócio-económico, ignora ou rasura qualquer implicação sócio-cultural, pressupondo-se, assim, que as culturas destas regiões (práticas sociais, valores, hábitos, tradições, manifestações artísticas…) em nada condicionam ou acompanham as realidades locais e o desenvolvimento sócio-económico dessas comunidades; 3. Nesta definição, as ultraperiferias são apenas tratadas como objectos da política económica europeia (e não como sujeitos de direito próprio), sendo retirado às suas comunidades o estatuto de sujeitos políticos e culturais, isto é, o estatuto de construtores da sua polis (com todos os direitos e deveres de cidadania que isto implica), seja esta polis entendida como a região, o estado em que esta se insere ou a própria Europa. Ainda a respeito da crítica à definição aqui em análise, convém ter presente que os conceitos de ultraperiferia e de periferia têm de ser entendidos como conceitos relacionais. Na verdade, só é periférico ou ultraperiférico aquele/aquilo que se posiciona ou é posicionado, numa relação de dependência ou de implicação hierarquizada com alguém ou alguma coisa que é entendida, pelo próprio ou imposta por outros (consciente ou inconscientemente), como mais relevante, mais valorizável, mais poderoso. Consideramos, portanto, que o recurso a etiquetas como estas («centro» e «periferia») exigem sempre uma perspectivação crítica e relacional; um olhar que não seja acriticamente míope e incapaz de perceber que um centro não será, sempre e em qualquer circunstância, central para todos os que se relacionam com ele (e isto por mais centralizador que ele pretenda ser); e que, por mais periférica, que seja uma sociedade, esta não se limita a ser periferia de um único centro, assumindo também o estatuto de centro (centro periférico, talvez) ou até de periferia, mas em relação a outras realidades sócio-culturais tomadas também por centrais. Feitos estes comentários preliminares, passemos então às reflexões que aqui pretendemos desenvolver, regressando, justamente, ao poema de Jorge Barbosa, «Panorama». Jorge Barbosa foi um dos fundadores da revista cabo-verdiana Claridade, cujo primeiro número foi publicado em 1936, na cidade do Mindelo, ilha de S. Vicente, Cabo Verde. Este periódico viria a assumir um papel decisivo no desenvolvimento do sistema cultural e literário cabo-verdiano4. Sob os lemas «fincar os pés na terra» e «pensar o nosso problema» (o primeiro atribuído a Manuel Lopes, o segundo imputado a Baltasar Lopes, dois outros fundadores daquela revista), Claridade fez recentrar nas suas próprias ilhas, o olhar dos agentes culturais que nela colaboraram, ocupando-se não apenas do estudo e divulgação da literatura cabo-verdiana, mas também da música e dança populares, da etnografia e da língua das Ilhas Crioulas. Deste modo, em tempos de profunda crise local, nacional e internacional (estávamos na década de 1930), esta revista promoveu uma importante reflexão sobre a identidade crioula do arquipélago, cunhando o termo que, até hoje, é muitas vezes utilizado para referir essa identidade - o termo «caboverdianidade». Termo este (saliente-se) que é praticamente contemporâneo da divulgação de um outro afim, mas respeitante aos Açores: o termo «açorianidade», que começaria a ser utilizado por Vitorino Nemésio nas tertúlias académicas da Coimbra dos anos 1920, onde Cabral do Nascimento, Luís Vieira de Castro e, entre outros, Ernesto Gonçalves (todos jovens intelectuais madeirenses) também participaram5. 4

A respeito da relevância cultural em Cabo Verde atribuível à revista Claridade ver: ALFAMA, 2002, «Claridade e a independência cultural de Cabo Verde»; CARVALHO, 1986, «Da poética da Claridade e do que ela não foi»; CARVALHO, 1997, «1. Um pouco de historiografia»; SANTOS, 2008, «A literatura cabo-verdiana: dos primórdios à Geração de 50»; SAPEGA, 2003, «Notes on the historical context of Claridade», LOURENÇO, et alii, 2010, Baltsar Lopes (1907-1989) e o movimento da Claridade.

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Esta proximidade entre estudantes insulares na Coimbra dos anos 1920 (e pesem embora todas as divergências político-ideológicas que os distanciariam) é atestada em textos, como por exemplo o artigo de Luís [Vieira] de Castro, publicado no jornal Restauração, em 1924, e onde, a propósito de uma crítica ao livro de Nemésio, Paço do Milhafre (1924), o crítico madeirense evoca as tertúlias públicas e privadas experienciadas

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Do ponto de vista literário, por sua vez, os claridosos estimularam o desenvolvimento de uma estética, de uma retórica e de uma temática próprias, fazendo a apologia de um rumo literário autónomo dos caminhos que, então, eram seguidos na metrópole, mas nem por isso deixando de, mesmo quando a contrario e sob a forma de rejeição, dialogar silenciosamente com eles6. Porquê escolher o poema «Panorama» como ponto de partida num ensaio que tem como objectivo reflectir sobre os sistemas culturais (e literários em particular) da Macaronésia? Na verdade, foi com o estudo da literatura cabo-verdiana que algumas das questões que aqui se colocam nos começaram a desafiar. Questões cujos ecos reencontramos, como veremos, no poema de Jorge Barbosa escolhido (e pour cause) para abertura deste mesmo ensaio. A dedicatória de «Panorama» a Manuel Velosa, o «madeirense» não literato do grupo Claridade, como se referia a ele afectuosamente Baltasar Lopes7, põe a tónica em algo que se tornou evidente no decurso de algumas das nossas mais recentes investigações: a frequente circulação, entre as Ilhas Atlânticas, de agentes culturais dos três arquipélagos, registando-se casos em que se torna evidente uma múltipla afiliação. Manuel Velosa foi apenas um destes casos, mas muitos outros houve e há. Basta evocarmos casos como: Tchalê Figueira (Mindelo, 1953), artista plástico formado na Suiça e escritor cabo-verdiano que, nas notas biográficas publicadas, se apresenta como cabo-verdiano descendente de madeirenses de Câmara de Lobos8; José Pereira da Costa (Angra do Heroísmo, 1922 – Funchal, 2010), investigador açoriano que, depois de desempenhar o cargo de Conservador da Torre do Tombo, veio, nos anos 1950, a substituir Cabral do Nascimento na função de Director do Arquivo Distrital do Funchal e, mais tarde, depois de um percurso profissional desenvolvido em Portugal e no estrangeiro, veio a ser um dos responsáveis pela instalação do Centro de Estudos de História do Atlântico, instituição de que também foi um dos primeiros presidentes (1997-2007) e que esteve/está particularmente vocacionada para a investigação na área dos estudos insulares; Manuel Lopes (São Vicente, 1907- Carcavelos, 2005), o claridoso do lema «fincar os pés na terra» que, entre 1944 e 1956, residiu na ilha açoriana do Faial, trabalhando aí ao serviço da companhia inglesa de cabos submarinos Western Telegraph, e produzindo na cidade da Horta parte considerável da sua obra literária e de pintura; ou até Francisco de Paula Medina e Vasconcelos (Funchal, 1768 – Cabo Verde, 1824), madeirense e autor de dois poemas épicos onde se assiste, precisamente, à questionação da identidade madeirense9, e que, tendo sido condenado a um exílio africano por razões políticas, acabaria por morrer em Cabo Verde, onde alguns dos seus familiares viriam a ser figuras incontornáveis no universo cultural cabo-verdiano, salientando-se, entre estas, o nome do poeta, jornalista autonomista e compositor de mornas Eugénio Tavares (1867-1930), adoptado pela filha de Sérvulo de Paula Medina e Vasconcelos, filho do poeta madeirense. A estes nomes, teremos de acrescentar um outro, pela relevância histórica, literária e cultural que assumirá nos arquipélagos da Macaronésia: Gaspar Frutuoso (Ponta Delgada, 1522 - Ribeira Grande, 1591). Padre e humanista do séc. XVI, nascido nos Açores e formado em Salamanca e Évora, Gaspar Frutuoso é o autor de Saudades da terra, obra estruturada em seis livros, deixada inédita com a morte do escritor em 1591, mas a qual apenas começaria a ser lida sob forma impressa a partir de 1873, ano nos anos 1920, dando testemunho, justamente, dessa proximidade entre insulares (Cf. CASTRO, 1924, «Paço do Milhafre», p.1). Note-se que na década de 1920, Manuel Lopes viveu também em Coimbra, onde frequentou o ensino secundário. Deconhecemos se este futuro claridoso contactou de algum modo com a discussão em torno do conceito de açorianidade de Nemésio. 6

Os claridososos aproximaram-se, sobretudo, dos modernistas brasileiros e em particular dos regionalistas nordestinos, ainda que o título da revista tivesse sido sugerido pelo contacto com o grupo de esquerda argentino ‘Claridade’ e com o movimento ‘Clarté’ de Henri Barbusse, este último um projecto internacional e anti-militarista. Cf. entrevistas com Baltazar Lopes e Manuel Lopes in LABAN, 1992, Cabo Verde. Encontro com escritores, vol. I.

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LABAN, 1992, Cabo Verde. Encontro com escritores, vol. I, p. 12.

8

FIGUEIRA, 2005, Ptolomeu e a viagem de circum-navegação (orelha da capa).

9

Referimo-nos a Zargueida de 1806 e a Georgeida de 1819.

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em que Álvaro Rodrigues de Azevedo edita, no Funchal (sublinhe-se), o Livro II referente ao arquipélago da Madeira10. Esta obra, aliás, regista um acidentado percurso de divulgação e leitura, que só depois da década de 1960 viria a alcançar alguma estabilidade, com a faseada edição dos 6 livros da obra, agora promovida pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada11. Saudades da terra, em conjunto, toma por objecto os arquipélagos de Cabo Verde, Canárias, Madeira e Açores. Nunca perdendo de vista as especificidades diferenciadoras de cada ilha ou arquipélago, Saudades da terra dá, no entanto, especial relevo às semelhanças e implicações detectáveis na história da fundação das comunidades destas ilhas, sublinhando também os trânsitos populacionais inter-insulares, as afinidades biogeográficas, culturais e até familiares existentes entre os quatro arquipélagos. Sendo hoje altamente questionável o rigor historiográfico e documental desta obra, ela é, no entanto, uma fonte incontornável para qualquer trabalho científico ou artístico que pretenda reflectir sobre a história e identidade das Ilhas Atlânticas12. Não tendo Gaspar Frutuoso conhecido todos os arquipélagos de que fala, destaco porém nas suas Saudades da terra a perspectiva de um agente cultural do séc. XVI que imaginou (Benedict Anderson) os Açores, a Madeira, Cabo Verde e também Canárias como uma unidade biogeográfica e sobretudo como um todo geo-cultural compósito13. Ainda a respeito de Saudades da terra, note-se que, significativamente, os dois períodos da sua (re)edição antes assinalados (final do séc. XIX, na Madeira; e década de 1960, nos Açores) correspondem a momentos em que se regista nas Ilhas Atlânticas lusófonas um acentuar do discurso autonomista, ao nível político-administrativo (por vezes num registo que se confunde mesmo com o independentismo), sendo este acompanhado, como sempre acontece nestes casos, por fenómenos culturais que promovem a reflexão sobre as identidades dos três arquipélagos14 Regressando uma vez mais ao poema de Jorge Barbosa, aqui apresentado como pedra-de-toque, podemos verificar que, para além da sugestão aí presente relativamente aos múltiplos trânsitos inter-arquipelágicos e às consequentes afinidades (e confrontos) que eles sempre potenciam, há em «Panorama» a referência a um imaginário que, não deixando de ser cabo-verdiano, é também assumido como sendo dos Açores, da Madeira e até de Canárias. Um imaginário hidrográfico, dominante na nossa modernidade tardia como lembra Isabel Capeloa Gil15, mas que nas Ilhas Atlânticas tem já uma longa tradição, construída e sustentada pelo discurso da História, mas também pelo da literatura, pelo das lendas tradicionais insulares, pelo das práticas sociais e até religiosas, a que se juntam, de um modo geral, as narrativas do quotidiano que circulam nos sistemas culturais dos três arquipélagos. Um imaginário onde prevalecem imagens e motivos como: o mar; as caravelas e os navios (baleeiros na ilha do Fogo e na Horta; transatlânticos, no Funchal, Mindelo e S. Miguel, etc.); os capitães donatários; a frequente mobilidade humana; os naufrágios; os corsários e outras ameaças marítimas; o carácter precário, instável e transitório da vida islenha, devido às condições socioeconómica, políticas e biogeográficas das ilhas16; a confluência de povos e culturas distintos, facto(r) que, paradoxalmente, 10

FRUTUOSO, 1998, Saudades da terra. O Livro I diz respeito a Cabo Verde e Canárias; o Livro II refere-se à Madeira; o Livro III centra-se na ilha açoriana de Santa Maria; o Livro IV continua nos Açores, ocupando-se da ilha de São Miguel; o Livro V, de temática novelesca e lírica, narra a história de dois amigos de São Miguel (Filomesto e Filidor) e suas aventuras de cavalaria; o Livro VI ocupa-se das ilhas açorianas do grupo central e ocidental - Terceira, Faial, Pico, Flores, Graciosa e S. Jorge.

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Para além destas, outras edições de Saudades da terra foram sendo publicadas entretanto. Cf. VIEIRA, 2007, «Introdução, pp. 7-15.

12

BETTENCOURT, 2003, Ilhas conforme as circunstâncias, pp. 43-60.

13

TREMOÇO DE CARVALHO, 2001, Gaspar Frutuoso, o historiador das ilhas.

14

CARVALHO, 1998, «Do classicismo ao realismo da Claridade»; CARVALHO, 2008, «Poesia de Pedro Cardoso»; FERNANDES, 2006, Em busca da nação; MATOS, et alii, 2008, História dos Açores; VERÍSSIMO, 1985, «Em 1917, a Madeira reclama autonomia»; VERÍSSIMO, 1989, «O alargamento da autonomia dos distritos insulares, o debate na Madeira»; VERÍSSIMO, 1995, «Alargamento da autonomia insular: o contributo açoriano no debate».

15

GIL, 2008, «Hidrography and the anxiety of the sea».

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A respeito dos factores biogeográficos, sublinhe-se a relevância que assumem na construção dos imaginários dos três sistemas culturais: nos Açores, os sismos e erupções vulcânica; na Madeira, as aluviões e a paisagem idílica; em Cabo Verde, as secas e o vento leste do Sahel.

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não anula (antes agudiza) o sentimento de insulamento e a nostalgia de um além. A este imaginário hidrográfico, acrescenta-se um outro que, tanto no poema de Jorge Barbosa, quanto em outras manifestações culturais dos três arquipélagos, assume geralmente capital relevância, quando se procede à questionação identitária da Madeira, de Cabo Verde ou Açores. Refiro-me ao imaginário mítico antigo (greco-romano e judaico-cristão), apropriado pelas culturas das Ilhas Atlânticas desde o tempo dos seus primeiros povoamentos, como notaram, entre outros, Orlando Ribeiro, Alberto Carvalho ou Alberto Vieira, e o qual será constantemente revisitado pelos ilhéus quando estes se pensam enquanto comunidade sócio-política e cultural: o mythos da Atlântida; o mythos das Hespérides com o seu jardim e dragão; o da Ilha dos Afortunados; o da Ilha de São Brandão; ou até o mythos do Éden17. Notada a existência de todas estas implicações entre os três arquipélagos, as questões que, de imediato, se levantam a alguém que faz investigação na área dos Estudos Literários lusófonos, penso que são as seguintes: 1. Por que razão(ões) a produção científica na área dos Estudos Literários lusófonos tem praticamente ignorado as afinidades, trânsitos e transferências culturais inter-arquipelágicos aqui por nós sublinhados, quase nunca privilegiando linhas de investigação comparatistas que tomem os fenómenos literários dos três arquipélagos como corpus de análise cultural? 2. Será completamente desprovido de sentido pensar culturalmente as Ilhas Atlânticas18, e em particular as Ilhas Atlânticas lusófonas, como uma unidade, heterogénea e compósita, é certo, mas ainda assim como uma unidade? Estas duas questões tornaram-se ainda mais relevantes quando, quer por confronto com a investigação desenvolvida nos últimos anos nas áreas da História e da Biogeografia, quer por confronto com o actual discurso político europeu e com o discurso jornalístico contemporâneo, verificamos que a ausência desta perspectiva de conjunto na área dos Estudos Literários parece ser a excepção. Na História são já muitos os trabalhos que têm analisado, numa perspectiva comparatista e/ou complementar, os processos históricos e sócio-económicos registados nas Ilhas Atlânticas. Na Biogeografia, área disciplinar que, no século XIX, atribuiria às Ilhas Atlânticas a designação científica de Macaronésia, tem-se também olhado para estes arquipélagos como uma unidade biogeográfica, a que, por vezes, se acrescentam certas regiões da costa africana marroquina. Quanto ao discurso político e jornalístico de hoje, tornou-se frequente o enquadramento de todas estas ilhas na designação comum de região ultraperiférica da Europa, mesmo quando estão em causa territórios que não pertencem a um mesmo estado ou até, como no caso de Cabo Verde, quando o estado que integra esses territórios nem é sequer um estado hoje considerado europeu. O conjunto de questões que decorrem destas últimas parece-nos ser deveras relevante, apresentando contornos que, para além de éticos e deontológicos, são também epistemológicos e, por tudo isto, culturais: 3- Como se poderá explicar que as instituições académicas lusófonas e/ou lusófilas (e portanto centros dos sistemas culturais do que hoje se designa por Lusofonia), mesmo depois dos contributos que os Estudos Culturais, os Estudos Africanos (de feição mais literária, mais historiográfico-política ou mais etnográfica), os Estudos Pós-Coloniais, os Estudos de Tradução ou os Estudos de Fronteira introduziram nas Humanidades a partir da década de 1970, no sentido de uma maior democratização 17

Cf. p.ex.: RIBEIRO, 1954, A ilha do Fogo e suas erupções; CARVALHO, 1995, «Sobre o culto de Camões, convidado das Ilhas Crioulas»; CARVALHO, 2008, «Poesia de Pedro Cardoso»; VIEIRA, s.d., «A fortuna das Afortunadas».

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Entenda-se Ilhas Atlânticas como referindo-se a Madeira, Cabo Verde, Açores e também Canárias.

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do discurso académico e de uma reconfiguração mais aberta e dinâmica dos cânones19, continuem, umas vezes, a privilegiar leituras monocêntricas na análise dos fenómenos literários e culturais das Ilhas Atlânticas, acentuando, assim (e mesmo quando o propósito não é esse) a marginalização desses fenómenos e o insulamento da perspectiva que deles se possa construir; e, em outros casos, embora dando preferência a perspectivas policêntricas, essas instituições sistematicamente ignorem uma linha de abordagem que se ocupe da comparação dos fenómenos literários da Madeira, de Cabo Verde e dos Açores, a que poderíamos, certamente, acrescentar os de Canárias? Fenómenos literários que aqui são entendidos, obviamente, no sentido proposto por Stephen Greenblat: como subtextos do macrotexto cultural em que estão implicados20. Note-se que esta questão não parte da egocêntrica e inútil presunção de que a ‘esta nossa’ perspectiva é mais válida do que a de outros. Ela procura apenas assinalar um facto (o de que não há praticamente investigação académica que coloque em comparação os três sistemas literários insulares) e, acima de tudo, verbalizar a interrogação científica que estará no âmago do presente ensaio. A resposta à questão anteriormente enunciada passa, em nosso entender, por dois problemas. Um, de carácter epistemológico e metodológico, já diagnosticado por David Damrosch em 1995, prende-se com o facto de as Humanidades (e os Estudos Literários em particular), ainda profundamente marcadas pelo paradigma epistemológico que sustentou a emergência de uma geografia político-cultural organizada por estados-nação21, continuarem a insistir em perspectivas monocêntricas, ignorando quer o carácter policêntrico, orgânico e em rede dos fenómenos culturais (como já postulava McLuhan em 1967), quer a dimensão elíptica22 e fluida23 do pensamento, na nossa modernidade tardia. O outro problema, talvez mais de carácter ético e deontológico, foi recentemente colocado por Laura Cavalcante Padilha, embora em contexto distinto do nosso, quando reflectiu sobre (e questionou) o conceito de lusofonia24. Entendendo este conceito/projecto como uma construção político-cultural herdeira de uma outra anterior e com um peso histórico-político incontornável - o lusismo, ou a lusitanidade/portugalidade como lhe preferem chamar, respectivamente, Fernando Cristóvão e Alfredo Margarido25 - Laura Cavalcante Padilha sublinha a necessidade de a lusofonia dever ser entendida como «a fruitful place for mutual possibilities of understanding […] by means of the common use of our language», ou seja: como um projecto de aprofundamento do saber acerca do Eu e do Outro que falam a mesma língua e partilharam uma História comum, embora com leituras diversas26. Considera, porém, que esta lusofonia só será viável mediante «another way of reading and seeing the plot of differences», que permita efectivamente que as variáveis e especificidades culturais inscritas na apropriação 19

A este respeito ver APPIAH, 2001, «Cosmopolitan reading», pp. 200-202.

20

GREENBLATT, 1989, «1. Towards a poetic of culture».

21

Relativamente a este aspecto, ver: ANDERSON, 1983, Imagined communities; APPADURAI, 1997, Modernity at large; GUMBRECH, 2001, «O futuro dos Estudos Literários?»; BECK, 2006, The cosmopolitan vision.

22

DAMROSCH, 1995,«Literary study in elliptical age».

23

BAUMAN, 2000, Liquid modernity.

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PADILHA, 2010, «On lusism and lusofonia». Laura C. Padilha, apresentando-se como brasileira e investigadora na área das literaturas africanas de língua portuguesa, coloca o problema do conceito/projecto de Lusofonia, por vezes, tender para um perfil homogeneizante, onde se regista o apagamento ou a ignorância das diferenças e especificidades das culturas e literaturas africanas. Diferenças/especificidades que, como sublinha, estão sempre implicadas no modo como a língua portuguesa (literária ou não) é produzida em África e, acrescentamos nós, em outros espaços geo-políticos, onde também se incluem as Ilhas Atlânticas lusófonas. L. C. Padilha aponta a herança do lusismo, e em particular do lusismo colonialista, como principal obstáculo/perigo relativamente à concretização do seu conceito de Lusofonia policêntrica, heterogénea e democrática. Porém, esquece, em nosso entender, dois outros factores que podem fazer perigar essa concretização: o crescente poder político, económico e cultural da nova potência mundial que é o Brasil; e o incontornável poder de interferência que os agentes económicos da área da edição e distribuição livreira ou de outras áreas das indústrias culturais (inseridos no mercado globalizado de hoje, predominantemente orientado por uma cultura económica capitalista) têm, de facto, na execução do projecto da lusofonia. Parafraseando Pierre Bourdieu, eu diria que o projecto lusófono terá também de se assumir como um acto de resistência contra um certo tipo de globalização hegemónica e mercantilista (BORDIEU, 1998, Acts of resistance. Against the new myths of our times).

25

CRISTÓVÃO, 2008, Da lusitanidade à lusofonia; MARGARIDO, 2000, A lusofonia e os lusófonos: novos mitos portugueses.

26

PADILHA, 2010, «On lusism and lusofonia», p.182.

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linguística do português (nomeadamente em textos literários) «may be read and seen without omissions or censorship by hegemonies of a historic, symbolic, and above all, political-cultural character»27. Ora quando analisamos a produção científica nos principais meios académicos lusófonos e lusófilos, de imediato se torna evidente o profundo desconhecimento (para não dizer desinteresse) relativamente aos fenómenos literários e culturais dos Açores e particularmente aos da Madeira28. Se, após 1975, a independência política de Cabo Verde parece ter conferido a este arquipélago (ou pelo menos legitimado), do ponto de vista do discurso académico, o estatuto de centro (ainda que muitas vezes esta centralidade continue a ser muito frágil, quando Cabo Verde surge integrado no espaço político e cultural do continente africano ou da comunidade internacional lusófona), o mesmo não ocorreu, depois da Constituição Portuguesa de 1976, com a atribuição à Madeira e Açores do estatuto político-administrativo de regiões autónomas. Se nestes dois arquipélagos a autonomia político-administrativa fomentou, a nível local (aliás como também aconteceu com a independência de Cabo Verde, nesses mesmos anos), a criação de instituições e o desenvolvimento de projectos empenhados no estudo, dinamização e divulgação dos fenómenos culturais das suas ilhas29, o conhecimento desde então aí gerado poucas vezes transpôs as fronteiras que, cerca de 35 anos mais tarde, permanecem a separar e a isolar estas ditas periferias dos centros académicos. Não interessará aqui, porventura, apurar responsabilidades, embora, a meu ver, ela seja atribuível quer a agentes culturais e instituições islenhas, quer a agentes e instituições extra-insulares30. Daí que Madeira e Açores continuem a ser percepcionados pelo discurso académico, quase sempre e tão-só, como (ultra-)periferias de Portugal e da Europa, exceptuando-se aqui, por vezes, o discurso académico que é produzido no âmbito de instituições insulares ou de instituições onde colaboram investigadores de algum modo ligados a ilhas. A etiqueta (ultra-)periférico (a que poderemos acrescentar uma outra mais antiga: regional) nem sempre surge desprovida de uma carga semântica depreciativa ou desvalorizadora, que explicará, provavelmente, parte do desinteresse científico a que os fenómenos culturais destas ilhas têm sido votados31. Porém, acima de tudo, considero que o recurso acrítico àquela etiquetagem (ultra-periféricos e/ou regionais) retira àqueles fenómenos a densidade, a complexidade e a autonomia que eles comportam, inibindo ainda o reconhecimento das relações culturais que eles, frequentes vezes, mantêm 27

PADILHA, 2010, «On lusism and lusofonia», p.182. A reflexão desenvolveida em torno do conceito de lusofonia por cada um três autores aqui citados - a que poderíamos também acrescentar a de Eduardo Lourenço (LOURENÇO, 1999, A nau de Ícaro seguido da imagem e miragem da lusofonia) - é consideravelmente distinta e, no caso de F. Cristóvão e A. Margarido é até antagónica. Enquanto o primeiro insiste na ideia de que a lusofonia, não ignorando as diferenças, deve sobretudo (na esteira da utopia vieiriana do V Império, depois reformulada quer por Pessoa, quer por Agostinho da Silva) provomer o reforço da unidade e das afinidades entre os vários povos e culturas falantes do português, criando um grande espaço sócio-cultural de língua comum (CRISTÓVÃO, 2008, Da lusitanidade à lusofonia, pp.13-15), A. Margarido é um crítico severo dos que partilham a perspectiva seguida por F. Cristóvão. Acusando-os, nem sempre com razão e rigor, de, sob a nova designação ‘lusofonia’, mascararem uma anquilosada atitude imperial e colonialista, A. Margarido é um detractor da viabilidade de construção de um efectivo espaço lusófono (MARGARIDO, 2000, A lusofonia e os lusófonos[…], p.76). A posição de L. C. Padilha parece-nos a mais consistente, actual e interessante do ponto de vista sócio-cultural e político, justamente por ter em atenção o contributo que o projecto lusófono pode assumir na reflexão, reconstrução identitária das comunidades em causa e na superação de eventuais traumas e conflitos históricos.

28

Pese embora o que aqui afirmo, Urbano Bettencourt destaca o interesse que a nível internacinal (Brasil, EUA, Grã-Bretanha e Japão) os fenómenos literários e culturais dos Açores têm vindo, gradualmente, a adquirir nos últimos anos, junto de algumas instituições académicas lusófilas, e em grande parte devido à intervenção de investigadores emigrantes ou descendentes de emigrantes açorianos (BETTENCOURT, 2009, «Percurso da literatura açoriana (1980-2009)»). Em relação ao interesse das academias pelos fenómenos literários e culturais da Madeira, a situação é bem mais deficitária.

29

Embora a emergência destas instituições se tenha iniciado já em períodos anteriores, será depois do 25-de-Abril que esses fenómenos culturais ganharão maior desenvoltura. A este respeito ver: para a Madeira, RODRIGUES, 2008, «Olhando sobre a Margem: Notas acerca de uma revista cultural (Funchal, 1981-2008)»; para os Açores, BETTENCOURT, 2009, «Percurso da literatura açoriana (1980-2009)». Sobre Cabo Verde, ver, p. ex., vol. II de entrevistas a agentes culturais cabo-verdianos organizadas por Michel Laban (LABAN,1992, Cabo Verde. Encontros com escritores), assim como ensaios de Arnaldo França (FRANÇA, 1993, «Panorama da literature cabo-verdiana»), David Brookshaw (BROOKSHAW, 1996, «Cape Verde») e José Luís Hopffer Almada (ALMADA,1991, «A poética caboverdiana e os caminhos da nova geração»).

30

A este respeito ver: ALMEIDA, 2010, «Maria Aurora, quantro arquipélagos numa ilha de força, criatividade e afcetos»; e BATISTA, 1999, «Açores: terra do longe e do perto. Notícia da sua actividade literária».

31

Lembremos, como exemplo, a definição de ultraperiferias citado do portal «Europa» na abertura do presente ensaio.

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com outras realidades geo-sócio-culturais que não apenas as portuguesas ou as europeias. Ao serem referidos como ultra-periféricos ou regionais, verifica-se, antes de tudo, que esses fenómenos culturais parecem ser simplesmente entendidos como uma espécie de adjacências a ou degenerescência exóticas de fenómenos culturais portugueses e/ou europeus32. Por outro lado, ao serem assim classificados acriticamente, regista-se o apagamento de algo fundamental para o seu entendimento: o facto de que para os ilhéus da Madeira e dos Açores (aqui, sem dúvida, também acompanhados pelos de Cabo Verde), os seus arquipélagos sempre tiveram, de facto, o estatuto de micro-centro ou centro periférico, sendo que, com a rasura deste dado, se tende a obstaculizar a busca de sentidos para as realidades culturais da Madeira e dos Açores fora das relações que essas culturas insulares mantêm com o cânone cultural nacional português ou com o cânone cultural europeu. O presente ensaio e o trabalho que temos vindo a desenvolver nos últimos anos, embora não elejam como problemática central a questão dos conceitos de Lusofonia, ou até os de centro e periferia, no entanto, passam pela necessidade por nós sentida de repensar estes mesmos conceitos, por vezes demasiado cristalizados e, nessa exacta medida, a exigirem alguma reflexão. É este exercício de questionação que, implicitamente, aqui procuramos estimular, propondo uma linha de análise dos fenómenos culturais das Ilhas Atlânticas que transgrida a rigidez das fronteiras epistemológicas, político-culturais e ideológicas anteriormente apontadas. Isto, porque consideramos que, ao comparar e confrontar quer as versões de mundo (re)criadas nas manifestações literárias e artísticas, quer outros aspectos dos três sistemas culturais da Macaronésia lusófona, se poderão descobrir novas verdades, talvez menos insuladas, sobre os universos culturais da Madeira, de Cabo Verde e dos Açores, permitindo-nos acrescentar novos sentidos aos fenómenos culturais, sociais, políticos e históricos verificados nos três arquipélagos.

32

Lembremos que desde a Constituição Portuguesa de 1822 até à sua homóloga de 1976, Madeira e Açores assumiram o estatuto político (evidentemente artificial do ponto de vista geográfico) de Ilhas Adjacentes ao Reino de Portugal e, depois, à República Portuguesa. Sublinhe-se que ao longo destes cerca de 150 anos, o estatuto político de Cabo Verde, por vezes, também se confundiu, na prática, com o de ilhas adjacentes. Basta lembrarmos (embora sem a problematização sempre necessária nestes casos) a exclusão de Cabo Verde do Estatuto dos indígenas portugueses das províncias da Guiné, Angola e Moçambique, publidado a 20 de Maio de 1954.

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