Entre corpos abjetos e zonas de monstruosidade: traçados e passeios pela legislação

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Descrição do Produto

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia

Vanessa Marinho Pereira

Entre corpos abjetos e zonas de monstruosidade: traçados e passeios pela legislação

Rio de Janeiro 2015

Vanessa Marinho Pereira

Entre corpos abjetos e zonas de monstruosidade: traçados e passeios pela legislação

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Anna Paula Uziel

Rio de Janeiro 2015

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

P436

Pereira, Vanessa Marinho. Entre corpos abjetos e zonas de monstruosidade: traçados e passeios pela legislação / Vanessa Marinho Pereira. – 2015. 87 f. Orientadora: Anna Paula Uziel. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 1. Psicologia Social – Teses. 2. Identidade de Gênero – Teses. 3. Monstros – Teses. 4. Ciborgues – Teses. 5 Legislação – Teses. I. Uziel, Anna Paula. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

es

CDU 316.6

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte. ___________________________________ Assinatura

_______________ Data

Vanessa Marinho Pereira

Entre corpos abjetos e zonas de monstruosidade: traçados e passeios pela legislação

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Aprovada em 27 de fevereiro de 2015.

Banca Examinadora: ___________________________________________ Prof.ª Dr.ª Anna Paula Uziel (Orientadora) Instituto de Psicologia - UERJ __________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Adriana Ribeiro Rice Geisler Departamento de Direito – PUC/Rio ___________________________________________ Prof.ª Dr.ª Tatiana Lionço Instituto de Psicologia - UniCEUB __________________________________________________ Prof. Dr. Luís Antônio dos Santos Baptista Instituto de Psicologia – UFF __________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho Bicalho Instituto de Psicologia - UFRJ

Rio de Janeiro 2015

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à minha mãe Regina Célia, que me deu forças para continuar mesmo ausente no plano carnal

AGRADECIMENTOS

Esse trabalho não existiria sem aos encontros e afetos presentes em minha estrada, os agradecimentos são muitos e surgem com toda a intensidade que há em mim. Se cito apenas alguns entes aqui, não é por falta de carinho ou agradecimento, mas sim por falta de espaço nessas folhas. Sendo assim, agradeço: A Gu, meu pai guerreiro, à Yemonjá, minha sábia mãe e a todos os Voduns e Orixás que estão comigo a todo instante e sempre se fazem presentes quando necessito; À minha mãe carnal, espiritual, dessa e de outras vidas, Regina Célia, que em vida sempre me apoiou e se orgulhou da forma como eu defendo tudo em que acredito, pela coragem para seguir viagem quando a noite vem; À minha orientadora e amiga, Anna Uziel, pela liberdade, companheirismo, bons encontros e paciência com meu jeito não convencional de ser e estar na Academia; Aos meus colegas de orientação, pelos encontros e afetos que propiciaram que esse trabalho embora escrito por duas mãos, fosse fruto de muitos corpos, mentes e saberes; À Lola, minha namorada, companheira e amiga, pela paciência com meus dias de estresse, pela impressão gratuita de livros dos quais eu necessitava, por ler inúmeras vezes tudo que eu escrevia mesmo achando tudo “informal, louco e abstrato demais”, por não reclamar das noites de produção em que a luz ficava acesa durante a madrugada atrapalhando seu sono, e, principalmente, por me apoiar e amar sempre; À minha Doné Zoraia, por entender e respeitar meu afastamento de minhas funções religiosas para me dedicar a escrita desse trabalho; À minha irmã Michelle, por compreender minhas presenças ausentes nas festas de família, em que eu era um sujeito notebook; Ao meu sobrinho lindo Cauet, por saber que quando a tia não podia brincar, jogar ou passar mais tempo com ele, não era por falta de desejo ou afeto, mas pela necessidade de escrever a dissertação Às lindas, feministas e vadias Helô e Vivi, pela presença crucial em minha vida e pelo help com os resumos; Ao dyvo do Luan, que além de um amigo-irmão, acompanhou de perto todo meu processo de escrita, me apoiando sempre.

Mas eu deito. Eu enfeito. Minhas palavras não são profundas o bastante. Elas disfarçam, elas escondem. Não descansarei enquanto não tiver falado de minha queda para uma sensualidade que foi tão escura, tão magnificente, tão louca quanto meus momentos de criação mística estonteantes, extáticos, exaltados. Anaïs Nin

RESUMO

PEREIRA, V. M. Entre corpos abjetos e zonas de monstruosidade: traçados e passeios pela legislação. 2015. 87 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de PósGraduação em Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. O presente trabalho consiste na análise crítica de normatizações e legislações referentes a sujeitos transexuais e travestis, no território brasileiro, contabilizando sessenta e um documentos, compreendidos entre 1997 e março de 2014. Ademais de podermos pensar o dispositivo da transexualidade que aparece como uma tentativa de docilizar corpos nãobinários, domesticar sexualidades através da sua nomeação e reconhecimento social, reconhecimento este construído por um diagnóstico de transtorno de identidade de gênero. Que além de patologizar e psiquiatrizar vivências não normativas, destitui o sujeito trans* da autonomia sobre seu corpo, deslegitima sua identidade e o violenta de várias formas, até fixálo em padrões merecedores de políticas e direitos. A análise dos documentos apontou como conteúdo dois elementos centrais: uso do nome social e normas técnicas de patologização. Os discursos variam e ao mesmo tempo se assemelham, mostrando incongruências internas e reproduções errôneas (mas podemos falar em originalidade? E serão erros mesmo?). Dessa forma, criam-se alguns Frankensteins que podem ser potências, podem produzir anulações ou zonas de monstruosidade. Seja como abjeto, monstros ou ciborgues, as identidades trans* tencionam constantemente fronteiras e dialogam com o anômalo e as subjetividades nômades ao mesmo tempo em que oscilam entre discursos e figurações normatizadoras. Palavras-chave: Abjeto. Monstro. Ciborgue. Transgêneros. Judicialisation.

ABSTRACT

PEREIRA, V. M. Between abject bodies and monstrosity zones: strokes and rides through legislation. 2015. 87 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de PósGraduação em Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. The present work consists in a critical analysis of rules and legislation regarding transsexual and travesti people in Brazil, amounting to sixty one documents from the period between 1997 and March 2014. Besides the consideration that the transsexuality dispositif appears as an attempt to domesticate non-binary bodies and sexualities through its naming and social recognition, which is constructed by a diagnosis of gender identity disorder – that is, besides pathologizing and psychiatrizing non-normative experiences –, this diagnosis destitutes the trans* subject from the autonomy over their own body, delegitimizes their identity and violates them in several ways until such subject is fixed under standards which are defined as deserving of policies and rights. Analysis conducted on the available documentation pointed out to two central elements: the recognition of trans* people's selfassigned names, known in the Brazilian context as 'social names', or technical standards for pathologization. Discourses are similar and different at the same time, demonstrating internal incongruences and incorrect reproductions – however, can we speak of originality? And, besides, are those actually errors? In this sense, some 'Frankenstein' which are created and can be potencies, produce annulations or monstrous zones. Be them seen as abject, monsters or cyborgs, trans* identitites constantly challenge borders and dialogue with the anomalous and nomad subjectivities while, at the same time, they oscillate between discourses and normalizing figurations. Keywords: Abject. Monster. Cyborg. Transgender. Judicialisación.

RESUMEN

PEREIRA, V. M.. Entre el cuerpo abyecto y sítios de la monstruosidade: caminhos y paseos en la legislación. 2015. 87 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – Instituto de PósGraduação em Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. El presente trabajo he analizado críticamente normatizaciones y lesgislaciones referentes a sujetos transxesuales y travestis, en el territorio brasileño. Así que fueron contabilizados 61 (sesenta y uno) documentos desde 1997 hasta marzo de 2014. Además de poder pensarse el dispositivo de la transexualidad que se muestra como una tentativa de docilizar cuerpos que no se reducen al esquema binário, domesticar sexualidades a través de su nominación y reconocimiento social. Reconocimiento que es construido por un diagnóstico de trastorno de identidad de género, que además de patologizar vivencias distintas de las normativas, quita la autonomia sobre los cuerpos de los sujetos transexuales, deslegitimando su identidad y violalo de diversas formas, hasta fijarlo em padrones merecedores de políticas y derechos. El análisis de los documentos há apontado dos elementos centrales: la utilización del nombre social y normas técnicas de patologización. Mientras los discursos varían, también se asemejan, enseñando las incongruências internas y reproducciones equivocadas (se puede hablar en originalidade? Aún serán equívocos?). Así, hay la creacción de algunos Franksteins que pueden ser potencias, pueden producir anulaciones o sítios de monstruosidades. Sea como abyecto, monstruos o cyborg las identidads trans* hacen tensión em las fronteras y transitan em el anômalo y lo nômade mientras reproducen protocolos y normas.

Palavras-claves: Abyecto. Montruo. Cyborg. Transgénero. Legislación.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES E GRÁFICOS

Figura 01 -

Pirâmide de Kelsen..................................................................................................

26

Gráfico 01 -

Forma como a legislação se refere às identidades trans*.............................

46

Gráfico 02 -

Utilização de pronomes……………………………………………………

47

Gráfico 03 -

Referência a documentos………………………………………………...

52

LISTA DE SIGLAS

AIDS ANS APA CEE CFESS CFM CFP CID CIS CME CNCD CNPCP CONSEPE DIDG DSM DST FAPERJ GM HIV IBGR LGBTT MG MS ONU SME SOC SUS UFRN WPATH

Síndrome da Imunodeficiência Adquirida Agência Nacional de Saúde Associação Americana de Psiquiatria Conselho Estadual de Educação Conselho Federal de Serviço Social Conselho Federal de Medicina Conselho Federal de Psicologia Código Internacional de Doenças Cisgênero e/ou Cissexual Conselho Municipal de Educação Comissão Nacional de Combate à Discriminação Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária Conselho Universitário Declaração Internacional dos Direitos de Gêneros Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais Doenças Sexualmente Transmissíveis Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro Gabinete do Ministro Vírus da Imunodeficiência Humana International Bill of Gender Rigths Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis Minas Gerais Ministério da Saúde Organização das Nacões Unidas Secretaria Municipal de Educação Standart of Care Sistema Único de Saúde Universidade Federal do Rio Grande do Norte World Professional Association for Transgender Health

SUMÁRIO

DO(S) POR-VIR(ES) OU INTRODUÇÃO..........................................................

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1

DE UM UNIVERSO, MOSTRO O PONTO QUE SOU.....................................

14

1.1

“A pesquisa sangrava parte de si mesma, parte do próprio pesquisador”........

14

1.2

Pulga atrás da orelha ou dos (meus)problemas de pesquisa...............................

16

2

DO METEORO A LAPIDAR, O OLHAR DO OURIVES.................................

21

2.1

De colchas, rendas, redes e turbantes pego meu retalho.....................................

21

2.2

Da abjeção à formatação........................................................................................

26

2.3

Um mundo de lentes: do telescópio ao microscópio, estão em mim os óculos...

31

3

MOVIMENTOS E PASSOS DOS DOCUMENTOS...........................................

39

3.1

Não é preciso abrir a porta....................................................................................

39

3.2

A dança dos papeis..................................................................................................

43

3.3

Da sarjeta ao cárcere, agora me amarram ao consultório..................................

53

4

FRANKENSTEIN,

O

FILHO

PRÓDIGO

A

CASA

RETORNA.

CIBORGUE A INCENDEIA.................................................................................

64

4.1

"...existe algo selvagem dentro de todos nós”.......................................................

67

4.2

Na orgia ciborguiana a potência orgásmica é em gel e xs convidadxs subjetividades toxopornográficas.......................................................................... “PREFIRO

SER

UMA

CIBORGUE

A

UMA

DEUSA”

71

OU

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................

76

REFERÊNCIAS......................................................................................................

79

ANEXO A – Tabela da legislação analisada............................................................

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ANEXO B – Carteira de Nome Social para Travestis e Transexuais no Estado do Rio Grande do Sul.....................................................................................................

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DO(S) POR-VIR(ES) OU INTRODUÇÃO

As identidades trans* ganham cada vez mais visibilidade social nesse início de século XXI. Ocupam capas de revistas, manchetes de jornais, tomam as ruas no dia 29 de janeiro, dia internacional da visibilidade trans*, denunciando a violência e assassinatos decorrentes da estigmatização. Mundialmente, criam-se pontes para lutar pela despatologização dessas identidades que nascem sobre a égide jurídico-biomédica. Dessa forma, emergem enquanto pauta de movimentos sociais e de Governo. Surgem leis e regulamentações que de maneira incipiente começam a falar de um sujeito até então invisibilizado nas políticas enquanto sujeito de direitos, de alguns direitos que não ameacem a norma cissexista. Se por um lado a inserção em documentos oficiais fomenta discussões que viabilizam a existência de identidades e vivências não binárias e não normativas na nossa sociedade, por outro, cria novas verdades e produz novas exclusões. Nas linhas que se sucederão procuro demonstrar um caminho conturbado, confuso e por vezes tortuoso. É a tentativa de colocar no papel uma série de encontros, afetos, pensamentos e vozes. Busco traçar os possíveis da legislação e demonstrar alguns efeitos da tentativa de fixar as multiplicidades trans* em um Ser, a-histórico e patologizado. Assim, de um universo, mostro o ponto que sou, sujeito militante implicada com toda a intensidade do meu ser. Quando digo que a pesquisa sangrava parte de si mesma, parte do próprio pesquisador é porque essa frase define muito bem o que foi o meu processo de pesquisa, analisando minhas implicações no campo do meu estudo. Com a pulga atrás da orelha ou dos (meus)problemas de pesquisa procuro contextualizar e historicizar meu interesse pelas questões identitárias e de produção de subjetividades, em especial as identidades trans*. Do meteoro a lapidar, o olhar do ourives apresenta a quem lê essas páginas a verdade contingencial do que escrevi, salientando que é apenas uma das possibilidades entre as múltiplas epistemes existentes e que ainda estão por existir. De colchas, rendas, redes e turbantes pego meu retalho é um funil que, deixando minha megalomania de lado, delimita meu estudo, localiza-o nas normas que dizem respeito às identidades trans*. Da abjeção à formatação conta um pouco do trajeto que levou ao surgimento dessa legislação. A lente com a qual analiso a legislação surge de um mundo de lentes: do telescópio ao microscópio, estão em mim os óculos. Não é preciso abrir a porta, a judicialização da vida tem a chave e entra sem pedir licença. Nos movimentos e passos dos documentos, ela se instala e produz zonas de

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monstruosidade, fazendo com que da sarjeta ao cárcere, agora me amarram ao consultório seja uma história de criminalização, patologização e estigmatização daqueles que não se mantêm com o mesmo gênero e/ou sexo assignado ao nascimento, ou que borram as fronteiras do binarismo de gênero. Frankenstein, o filho pródigo a casa retorna. Ciborgue a incendeia mostra as repercussões da legislação analisada, apresentando os sujeitos toxicopornográficos que, em suas resistências, podem transitar pelas zonas de abjeção, pelas zonas de monstruosidades, onde existe algo selvagem dentro de todos nós, e pelas potências ciborguianas de produções subjetivas. Assim, prefiro ser uma ciborgue a uma deusa e acreditar que somos todos grupelhos, unidos por uma subversão desejante.

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1 DE UM UNIVERSO, MOSTRO O PONTO QUE SOU

1.1 “A pesquisa sangrava parte de si mesma, parte do próprio pesquisador”1

O presente trabalho surgiu a partir das minhas vivências e encontros enquanto mulhercisgênero-branca com mulheres e homens-transgêneros, travestis e pessoas com gêneros não binários de raças, etnias e classes sociais variadas, ao longo da minha vida e do incômodo em relação às políticas públicas voltadas para tais sujeitos, assim como a patologização dessas subjetividades. Minha relação com essas pessoas variou de intensidade, tempo e forma. Se alguns relacionamentos foram curtos e virtuais, alguns assistenciais (pela minha formação de Psicóloga), outros forjaram importantes laços de amizade, de militância e inspiração, chegando a constituir um relacionamento afetivo-sexual socialmente identificado como “namoro”. Em todos esses encontros fui afetada e acredito ter afetado essas pessoas. As (auto)identificações trans*2 dessas pessoas com quem estive eram múltiplas mulheres e homens transexuais, transgêneros, travestis, mulher de peito e pau; as classes, cor da pele, etnia e níveis de escolaridade também compunham um leque de possibilidades que se arranjavam de forma peculiar em cada trajetória: brancxs, negrxs, brasileiríssimxs, descendentes de orientais, pós-graduadxs, formadxs pela vida, heterossexuais, homossexuais, monogâmicxs, poliamoristas, black blocks e feministas. As identificações eram tantas que essas são apenas algumas das quais me lembro. Contudo, algumas linhas eram visíveis em quase todas essas vivências, inclusive algumas nas minhas próprias; linhas estas decorrentes de hierarquias e valorização de corpos, gêneros e sexualidades normativas, nem cito a questão econômica para não complexificar ainda mais as interseccionalidades logo no início do texto. O devir mulher, enquanto primeira forma de desconstrução, enfrenta cotidianamente opressões e violências em suas mais variadas formas. A subalternização e fetichização de nossos corpos é constante e naturalizada através de cantadas, assovios, olhares de cobiça ou desaprovação, toques não-consentidos e, se para mim a agressão física não é comum, para essas pessoas já ocorreu no mínimo uma vez desde a identificação do seu devir trans, 1

(Merhy, 2004:22)

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Utilizarei o termo trans* no texto com o sentido de termo guarda-chuva, em conformidade com blogs, textos e discussões de pessoas transgêneros, que, ao acrescentarem o * ao termos trans, denotam a multiplicidade de identificações e vivências dessas pessoas, incluindo categorias como “transgênero”, “transexuais”, “travestis” e demais gêneros não binários.

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inclusive para aquelxs que possuem uma passabilidade3 cisgênero que em algumas situações xs protegem. O processo de realizar esse trabalho para mim é muito bem descrito pela frase: “A pesquisa sangrava parte de si mesma, parte do próprio pesquisador” (MERHY, 2004, p. 22). Esse meu lugar de “sujeito militante implicado” (MERHY, 2004, p.26) exigiu e ainda exige de mim grande investimento afetivo-emocional e intelectual. A necessidade de uma análise da minha implicação é constante, em um processo que muitas vezes é penoso e me fez mudar os rumos da pesquisa. Em muitos momentos pensei em pular do barco e fugir, mas fui novamente atravessada por correntezas que me fizeram querer mergulhar cada vez mais. O corpo, os corpos, os devires e por-vires desse trabalho falam muito de mim e de minha história pessoal. Trazem afetos e sentimentos evocados por memórias, em mim e nas outras mãos que estão nesse texto. Este trabalho fala também de eventos que, no início da escrita, ainda eram porvires e, ao longo do processo que foi escrever e materializar esse texto, foram nos tocando e produzindo. É um trabalho escrito a muitas mãos, não apenas pelas minhas, da minha orientadora, dxs colegas do grupo de orientação, dxs teóricxs e sujeitos trans* que estiveram comigo nesse caminho, mas também pelas vozes que estão por aí e não são ouvidas, seja na militância ou seja na academia; vozes estas de corpos abjetos relegados a não-existência social. Diria que meu método é o encontro. O resto é ferramenta. O encontro com textos, livros, documentos...Um mar de papéis, uma constelação de pixels, de encontros comigo mesma, meu eu em outrxs. Movida pelo interesse de trazer à tona tensões e deslocamentos das Políticas Públicas e regulamentações, encontrei-me diante de corpos-resistência, vivências e turbilhões de devires; (des)enrolar de devires, não qualquer devir, mas dois em especial, o devir-mulher e o devir-trans. Sem esquecer do devir-vadia. Devires estes que ultrapassam limites corporais, explodem identidades, que são meus e de outros, esbarram e se expandem em mim. Em muitos momentos, não identifico fronteiras (mesmo que ínfimas) entre um eu e o outro e, em outros, essas fronteiras são como abismos. Com o risco de (pare)ser megalomaníaca, tento entender os movimentos e as tensões que criam demandas e fazem com que umas sejam privilegiadas e outras não por alguns sujeitos sociais e políticos. E se aqui vos falo de papéis é, talvez, por ser mais fácil falar deles e sua mobilização em mim, do que

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Termo êmico utilizado por pessoas trans* para se referirem a outras pessoas trans* que no espaço público aparentam/são consideradas por desconhecidos como cis. Ou seja, “passam” enquanto cis e podem gozar dos privilégios sociais cisgêneros naquele espaço.

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de outros encontros de nossas lutas. Isso porque “NOSSA LUTA É TODO DIA. CONTRA O MACHISMO, O RACISMO, A HOMO E TRANSFOBIA”.

1.2 Pulga atrás da orelha ou dos (meus)problemas de pesquisa

Nossa senhora dos Desvalidos, desesperadamente eu quero ser um nenhum. Mesmo desgostando do seu nome rogo à senhora para ser uma, ou um, inclassificável nenhum. Ontem fui ao posto médico doar sangue para uma antiga colega de calçada. Pegaram a bicha, deram tanta porrada no meio da rua que ela quase morreu. Precisava com urgência de sangue. No posto me informaram que o meu não prestava. Na portaria o cartaz dizia que homossexual masculino não poderia doar. Homossexual é o caralho.!!!

Santa dos desvalidos, dos

desclassificados, dos descamisados, dos desgraçados desculpe mais uma vez o palavrão, mas saí puta daquele lugar. O meu corpo gasto, com este silicone vencido nos seios e esta tripa dependurada ainda vive. Meu sangue não tem nome. Baptista, 2011

Na última década do século XX e primeira do século XXI, discussões acerca da construção da categoria transexual se proliferaram pelo viés de normalizações e regulações. No contexto internacional, algumas das sexualidades dissidentes deixavam os manuais nosológicos, com a retirada do termo “homossexualismo” do Manual de Diagnóstico e Estatísticas de Transtornos Mentais, DSM-III4, na década de 1980, e, posteriormente da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, CID10, em 1990. No âmbito nacional, têm-se a publicação da resolução nº 001/99, pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual e, em 2006, a resolução nº 489/2006 do Conselho Federal de 4

Para a autora Arán e Lionço (2009, p.53), “o lançamento da terceira versão do Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais da Associação Psiquiátrica Americana (DSM III) elevou de modo significativo os transtornos/desvios relacionados à sexualidade e ao gênero, apesar da retirada do termo homossexualismo do manual.”

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Serviço Social (CFESS), que estabelece normas vedando condutas discriminatórias ou preconceituosas, por orientação e expressão sexual por pessoas do mesmo sexo, no exercício profissional do assistente social. Em um movimento aparentemente antagônico têm-se a inclusão da transexualidade no Código Internacional de Doenças (CID- 10), DSM-IV e no Standart of Care (SOC)5. Em relação à inclusão da transexualidade enquanto transtorno ou desordem de identidade de gênero, ou ainda, transexualismo, nos manuais nosológicos internacionais, Fernández (2010) discorre que foi uma maneira de manter o controle biomédico, em especial psiquiátrico, sobre os corpos e sexualidades não normativas após a retirada da homossexualidade (ainda homossexualismo) do DSM III e demais manuais. A autora explicita que:

(...) a existência desta [a homossexualidade] como categoria diagnóstica condensava o controle sobre outras múltiplas identidades não normatizadas (e não somente sobre a homossexualidade). Abandonada a homossexualidade como lugar de regulação da expressão de modelos de orientação sexual distintos da heterossexualidade normatizada – mas não completamente -, surgia a necessidade de abrir um novo campo para canalizar o controle sobre as expressões de gênero que destoem das normas culturais. (tradução livre, p.183)6

No Brasil o Conselho Federal de Medicina (CFM) se pronuncia acerca da transexualidade através da Resolução de número 1.482/97, revogada posteriormente pela resolução nº 1.652/2002, ambas dispõem sobre o procedimento de transgenitalização e demais intervenções sobre gônadas e caracteres sexuais secundários. Entendida assim, pelo viés da patologização, o Ministério as Saúde através da portaria MS/GM nº 1.707/08 institui o Processo Transexualizador no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Vê-se cada vez mais a temática das identidades trans* emergindo enquanto pauta de movimentos sociais e de Governo. Surgem leis e regulamentações que de maneira incipiente começam a falar de um sujeito até então invisibilizado nas políticas enquanto sujeito de direitos (não que tais políticas tenham elevado essas pessoas ao lugar de cidadãos e agentes políticos tal qual o homem-cis-hetero-branco). Se por um lado a inserção em documentos oficiais fomenta discussões que viabilizam a existência de identidades e vivências não 5

SOC são “manuais de cuidado” elaborados por médicos e psiquiatras norte-americanos que traçam diretrizes clínicas para o tratamento de transtornos mentais e outras patologias. Sem diagnosticar, no entanto, o manual utiliza o diagnóstico do CID e DSM para através de “dados clínicos e fontes científicas” apresentar técnicas e protocolos de assistência.

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No original “la existência de esta [a homossexualidade] como categoria diagnóstica condensava el control sobre otras múltiples identidades no normativas (y no únicamente sobre la homosexualidad). Abandonada la homosexualidad como lugar de regulación de la expresión de modelos de orientación sexual distintos de la heterosexualidad normativizada – si bien nunca del todo -, surgia la necesidadad de abrir um nuevo campo hacia el que canalizar el control sobre las expresiones de género que disienten de las normas culturales.”

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binárias e não normativas na nossa sociedade, por outro, cria novas verdades e produz novas exclusões. Vê-se o que Foucault (2003) sinalizava como judicialização da vida 7 quando nos referimos a direitos sexuais e reprodutivos, direitos LGBTTs e direitos para a população trans*. De acordo com Lobo (2012), o controle dos comportamentos e das populações continua funcionando na lógica de vigilância e correção, contudo o poder decisório de prevenção e correção de formas de ser não normativas tem cada vez mais se transferido para o poder judiciário. Neste contexto, busca-se através de leis, regulamentações, decretos, convenções,

etc,

transformar

relações

historicamente

instituídas,

que

abarcam

comportamentos, práticas e identidades a partir de regulamentações jurídicas enquanto modalidades de governo que fazem funcionar mecanismos protetores – no geral de populações e grupos ditos “vulneráveis”. Segundo Scheinvar (2012, p.46):

Seja definindo castigos para ações definidas como ilegais, seja determinando com que idade uma pessoa pode contrair matrimônio – entre tantos exemplos possíveis –, a lei enquadra a vida. A potência da lei está na verdade. Instaura uma lógica de vida, desqualificando outras possibilidades de existência”

Foucault (1985) nos fala acerca do poder nos microespaços nas relações cotidianas e nos corpos. Assim, pelo discurso de disciplinas, como a medicina, a psiquiatria, a teologia, dentre outras, se captura um corpo que se tece a partir das ações, moldando-o, transformandoo e dominando-o. Vale ressaltar que não se trata de um poder central e maior e sim de micropoderes formando um sistema de relações, que se espalham sutilmente entre todos os indivíduos através de pequenas práticas repetitivas e cotidianas, como teias funcionais enraizadas no corpo social em que há um exercício constante e recíproco de forças. Esse poder associado ao saber investe maciçamente nas subjetividades e nos corpos, pois este passa a ser a superfície sobre a qual se constitui e se materializa o próprio poder. Dessa forma, para que o corpo se torne útil há a necessidade de que se aplique um sistema de dominação sobre ele instituindo-se um sistema produtivo, submetendo o corpo a medidas disciplinares de maneira a serem co-incorporadas como movimentos espontâneos a esse corpo, ou seja, naturais a ele. Cria-se, assim, um corpo domesticado e dócil. Quando o poder-saber adota o mecanismo da enunciação, criando a necessidade de que tudo seja falado, em certas condições, diante de certos grupos classificadores, visa o conhecimento dos prazeres mais particulares dos indivíduos, gerando a possibilidade de medição e regulação dos mesmos. O 7

Observa-se o “clamor por leis mais duras e corretivas para evitar que mulheres sejam espancadas, crianças levem palmadas, minorias sejam desrespeitadas, para evitar acidentes de trânsito, e assim por diante, ou seja, a lei cumprindo função pedagógica de mudanças de comportamento” (FOUCAULT, 2003, p.29)

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corpo é o que se declara, é do que se fala e é como se diz. Ao invés de reprimir faz-se o corpo falar, existências são produzidas e categorias criadas, identifica-se o inominável e as subjetividades antes sem importância são moldadas, como a transexualidade que ao ser nomeada ingressa quase que automaticamente em manuais, discursos ditos científicos, normas e regulações. Diversos são os discursos que se propõem a explicar a origem da transexualidade, entretanto, a patologização é algo comum entre eles. Bento (2006, p. 122) identifica um eixo unificador “que é dado por um dos princípios de funcionamento das normas de gênero, qual seja, a defesa da heterossexualidade”. Ainda segundo a autora, esses discursos buscavam construir uma identidade transexual a partir da delimitação de atributos inerentes a esta, que caracterizariam o “transexual verdadeiro”. Segundo Benjamin8, o/a verdadeiro/a transexual é fundamentalmente assexuado/a e sonha em ter um corpo de homem/mulher que será obtido pela intervenção cirúrgica. Essa cirurgia lhe permitiria, ao mesmo tempo em que permitiria exercer a sexualidade apropriada, com o órgão apropriado. (Bento, 2006:126)

De acordo com Hausman (1995), a experiência transexual só pode ser compreendida através da relação com a tecnologia médica, uma vez que sua existência social estaria na reafirmação de seus “desvios” e “inadequações” postulados pelo discurso médico. É nessa patologização, iniciada em meados dos anos de 1950, que seus corpos se tornam materializáveis e assim disciplináveis. Na concepção da autora, a posição subjetiva de transexuais dependeria necessariamente de uma relação com a definição biomédica e seu discurso patologizante, denotando a medicina enquanto tecnologia disciplinar, que pela coexistência entre domesticar e regulamentar os corpos do indivíduo e da sociedade produz sujeitos entramados numa lógica normativa de patologização. A esse respeito, Arán (2009, p.28) afirma que “o agenciamento transexual se fundamenta na demanda constante pela tecnologia médica”. Uma tecnologia que através do discurso médico emerge enquanto forma pública de identidade, a qual não é entendida por um “desvio sexual” como o travestismo, o fetichismo e outras parafilias, pois é uma condição retificável pelas tecnologias médicas disponíveis. Neste sentido, a autora acrescenta:

(...) a necessidade da racionalidade médica de diferenciar transexuais de outras “condições sexuais”, o que produz e influencia o “comportamento transexual

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A autora se refere a Harry Benjamin, endocrinologista alemão radicado nos Estados Unidos, em seu artigo “Transvestism and transsexualism”, de 1953.

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verdadeiro”, demonstra fortemente a homofobia 9 do discurso médico, onde tanto a transexualidade como a intersexualidade só podem ser compreendidas através de uma matriz heterossexual.” (ARÁN, 2009:27)

Tecnologias capazes de afastar a morte e postergar a vida, uma vida que pode ser constantemente aprimorada. Nesse diapasão, o que o saber biomédico busca não é a extensão de uma vida, mas sim a adequação de uma não-pessoa à norma de forma que ela se torne socialmente aceitável e viva uma vida que mereça ser vivida, “é o não reconhecimento dessa pessoa como... pessoa. Travesti não é tida como uma pessoa, então quando ela morre, não causa impacto” (CARVALHO, 2011, p. 38). Bento (2006), a respeito da medicalização e adequação do corpo trans*, diz que esse processo é uma forma de assepsia de corpossexuados, em que através de técnicas e protocolos se restaura “a suposta unidade perdida naqueles corpos pré-operados” (BENTO, 2006, p. 230). A esse respeito, Lionço (2009, p.57) acrescenta:

O saber médico psiquiátrico justifica as correções anatômicas, seja no argumento de anormalidade na conformação dos corpos (no caso de hermafroditismo, por exemplo), seja na dimensão do transtorno psíquico (no caso de transexuais, para os quais o que se supõe um ‘erro’ no corpo que deve ser corrigido).

A “correção” e “aprimoramento” deste corpo dizem respeito ao enquadramento dele ao que pode ser entendido, nomeado e controlado e, mais ainda, ao que se insere na norma de uma matriz hegemônica de coerência entre sexo, gênero e práticas sexuais; calcada na heterossexualidade compulsória e nos binarismos mulher x homem, feminino x masculino, heterossexuais x homossexuais; em que há uma escolha implícita, “normal” e linear. A heteronorma ou heteronormatividade atua através de dois dispositivos, são eles: o heterossexismo institucional, que mantém a aparente hegemonia heterossexual, considerandoa compulsória e alocando no privado todas as demais manifestações, que são subalternizadas. O outro, no plano individual, cria subjetividades homófobas e identificadas com a cultura normativa. Ou seja, “a heteronormatividade é um conjunto de instituições, estruturas de compreensão e orientações práticas que fazem não só com que a heterossexualidade pareça coerente – isto é, organizada como sexualidade - como também seja privilegiada” (WARNER apud PELÚCIO; MISKOLCI, 2009, p. 142).

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A autora se refere à homofobia em função da necessidade de interesse sexo-afetivo hetero-orientado que os protocolos do Processo Transexualizador criam, entretanto também pode-se fazer uma leitura em termos de transfobia.

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2 DO METEORO A LAPIDAR, O OLHAR DO OURIVES

2.1 De colchas, rendas, redes e turbantes pego meu retalho

Se no século XX os discursos sobre a transexualidade se proliferaram, no século XXI vê-se a efervescência de lutas por visibilidade social da população trans* e busca pela garantia de direitos para esta parcela da população que por décadas esteve invisibilizada e considerada aquém de nossa sociedade. Se hoje podemos gritar que essas pessoas têm existência real e são sujeitos como qualquer outra pessoa, que garantias de existência cidadã elas possuem? Será que temos os mesmos direitos? Minha premissa para a resposta dessa questão é: Não. Não possuímos os mesmos direitos. O sujeito universal ainda é o homem, branco, cisgênero, heterossexual, de classe média, cristão. Para todas as variantes desse sujeito universal existe um escalonamento de direitos. E nessa pirâmide onde estão as pessoas trans*? A partir dessa indagação, resolvi buscar quais legislações dão existência a essas pessoas perante o Estado, seus órgãos e outras instituições. A escolha por esse objeto se deu pela minha percepção de que algumas mudanças de pensamento e sociabilidade só têm se efetivado quando instituídas nesse movimento de judicialização da vida contemporânea. Para algumas pessoas trans*, com quem tive o prazer de conviver, embora tivessem sua identidade reconhecida e respeitada em seus grupos e territórios vivenciais, quando rompiam essas fronteiras, precisavam muitas vezes recorrer a alguma legislação para ter direitos básicos, como o respeito ao seu nome, garantidos; tornando um pedaço de papel o seu anjo da guarda ao lidar com atendentes, professores, médicos, dentre outros profissionais. Assim, papéis foram se tornando armaduras, anjos, armas, em que a materialidade, a voz e a existência dessas pessoas não passavam de espectros. Acredito que o maior desafio desse trabalho foi o de fazer com que esses papéis vibrassem. Os documentos falam, em sua literalidade, ao considerarmos conjuntos de letras e signos gramaticais, abstratamente, em suas ligações semânticas e interpretações por lentes sócio-pessoais, mas, sobretudo, em suas entrelinhas e ausências. E são justamente esses vácuos e não-dizeres que despertam meu interesse, meus afetos e possibilitam o vibrar da materialidade que é um documento oficial, estabilizado, que muitas vezes é fetichizado, romantizado ou queimado, despertando novas formas de ser.

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Internacionalmente, os papéis mais importantes e difundidos em relação aos direitos da população LGBT, em específico às identidades trans*, são os Princípios de Yogyakarta (2007), que são um conjunto de 29 (vinte e nove) princípios sobre a aplicação da legislação internacional de Direitos Humanos em relação à orientação sexual e à identidade de gênero, organizados pela Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Humanos; e o manual Nascidos Livres e Iguais: Orientação sexual e identidade de gênero nas normas internacionais de Direitos Humanos, publicado pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 2012. Tais documentos servem de base para a elaboração de normas em vários lugares do mundo, como nos países latino-americanos Argentina e Uruguai, que atualmente são considerados países com legislação avançada no que tange aos direitos humanos voltados para pessoas que vivenciam relações e afetos com pessoas do mesmo sexo e/ou gênero e pessoas não cisgêneros. Os Princípios de Yogyakarta e o Manual Nascidos Livres e Iguais são de extrema importância, pois são fruto de discussões e debates entre representantes de países dos cinco continentes, demonstrando a gravidade das violências e discriminações em função da identidade de gênero e da orientação sexual dos sujeitos. Esses documentos firmam a necessidade e a importância de se garantir os direitos sociais e civis da população LGBT a nível global. Ambos documentos enumeram princípios ou direitos essenciais e ressaltam o papel das nações na criação de medidas legislativas e condições para que tais direitos se efetivem. Tais documentos não almejam privilégios para a população LGBT, mas sim, medidas equitativas para que estas pessoas possam gozar socialmente dos mesmos direitos que as pessoas cisgêneros heterossexuais. Se no Manual Nascido Livres e Iguais, da ONU, e nos Princípios de Yogyakarta, lê-se que todos os sujeitos nascem livres e iguais, no decorrer do texto relatam que, no cotidiano de pessoas não-heterossexuais ou não-cisgêneros, suas vivências são constantemente interpeladas e barradas por agressões e violências psicológicas, físicas e sociais, chegando muitas vezes à morte, na literalidade desta palavra. Havendo, dessa forma, que se garantir direitos e princípios para que através de medidas equitativas possamos chegar a uma ideia de liberdade e igualdade ampla, que possa abarcar a maior parte possível da população dos Estados. Nos Princípios de Yogyakarta (2006, p. 06), o início do texto já nos mostra que nem todos os sujeitos são iguais em nossa sociedade, ao falar de violações sofridas pela população LGBT, tais como: “execuções extra-judiciais, tortura e maus-tratos, agressões sexuais e estupro, invasão de privacidade, detenção arbitrária, negação de oportunidades de emprego e educação e sérias discriminações em relação ao gozo de outros direitos humanos.”. Em ambos

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tratados, na tentativa de reverter e impedir que tais violações se perpetuem, há a apresentação de alternativas a nível Estatal para que sejam criadas diretrizes de combate à homofobia, lesbofobia e transfobia em todos os seus níveis de expressão. Analisei ao todo 61 (sessenta e um) textos redigidos por diversas instâncias governamentais e de níveis federal, estadual, municipal e regional. Todos os documentos foram aprovados pelas Comissões e autoridades devidas e publicados em Diário Oficial. A escolha por deixar de fora da análise projetos de lei e pareceres ocorreu pela natureza não oficial dos primeiros, podendo haver muitas alterações em seus conteúdos até se tornarem oficiais ou serem definitivamente arquivados e, no caso de pareceres, a grande quantidade dos mesmos, pelas mais diversas motivações e contexto inviabilizariam a análise em tempo hábil para uma pós-graduação sticto sensu. A procura por legislação concernente a identidades trans* até o momento não foi simples. O Núcleo Tirésias da Universidade Federal de Natal (UFRN) e o Estruturação Grupo LGBT de Brasília disponibilizam em seus sites parte dessa legislação, porém, ao olhar tais sites, verifiquei que ainda eram poucos documentos considerando a urgência da temática. Assim, ampliei a busca na internet pesquisando nos sites das principais universidades públicas brasileiras, abarcando também pelo menos uma instituição de ensino e um órgão do lesgislativo de cada um dos 27 estados brasileiros. Também busquei nos arquivos físicos da biblioteca do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro o texto de alguns decretos, portarias e resoluções que, embora sejam citados em trabalhos acadêmicos ou em outros documentos legislativos, não estão disponíveis online, e, ainda, outros cuja versão online não está completa. A despeito do valor desses dois documentos internacionais, somente 03 (três) dos documentos legislativos, publicados no Brasil entre 1997 e março de 2014 e analisados neste trabalho, fazem alusão aos Princípios de Yogyakarta, e nenhum ao Manual publicado pela ONU em 2012. A Constituição Brasileira de 1988 é o documento mais comumente referido, em 32 (trinta e dois) documentos. Destes, 2810 (vinte e oito) citavam o artigo 1º, em seus incisos II e III, e o artigo 3º, em seu inciso IV, a saber:

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Os outros 04 (quatro) documentos foram publicados por Conselhos de Medicina a nível federal e regional. E citam o seguinte trecho da Constituição Brasileira: “Considerando o que dispõe o artigo 199 da Constituição Federal, parágrafo quarto, que trata da remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de pesquisa e tratamento (...)”. Salvaguardando os direitos da categoria profissional em questão e apontando a lente pela qual estes conselhos veem as identidades trans*.

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Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, 1988)

A Constituição Federal também nos fala de igualdade e liberdade, mas por uma concepção jusnaturalista11 de direitos humanos que sustenta que o homem seria detentor de direitos inatos, bastando nascer para ter garantidos seus direitos e, além disso, que todas as pessoas nascem em condição de igualdade; baseando-se na ideia de sujeito universal e de direitos universais. Para fins operacionais, organizei o material de acordo com a regionalidade, data de publicação, semelhanças e diferenças textuais, para então proceder à análise crítica, tendo como eixos norteadores os conceitos de corpo e processos de subjetivação. Ou seja, busquei organizar os documentos a partir do local de publicação e competência, considerando o ano de publicação e as semelhanças textuais e de demandas, além da forma como o sujeito trans* é abordado em cada um desses documentos e quais são as demandas que aparecem; além de assinalar a ausência de outras demandas ou aspectos constitutivos da vida cotidiana de muitos desses sujeitos, considerando territórios existenciais e processos de fabricação de subjetividades. Debruço-me no tratamento desses documentos, a fim de entender melhor qual é o sujeito presente na legislação, a qual deveria existir para resguardar direitos básicos dos sujeitos trans*, mas que muitas vezes nega a essas pessoas seu status de sujeitos de direitos, corroborando com a invisibilidade sócio-política e/ou destituindo-as de sua autonomia e patologizando-a. Antes de apresentar a análise dos documentos tratados, acredito ser crucial entender algumas noções do Direito no que se refere aos tipos de documentos e suas competências. Olhando o anexo A é possível ver que a legislação compreende portarias, resoluções, leis, 11

O Jusnaturalismo representa um conjunto de doutrinas jurídicas distintas, que em sua base ontológica afirmam a existência de um "direito natural" (ius naturale), considerando os direitos fundamentais como todos aqueles adstritos a todas as pessoas humanas universalmente. Para maiores esclarecimentos acerca da concepção jusnaturalista dos Direitos humanos consultar Herrera Flores, 2009.

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instruções normativas, etc. O esclarecimento acerca da hierarquia entre esses documentos é de fundamental importância. Outro ponto importante é que, embora o legislativo seja o responsável pela promulgação de leis, no Brasil, tem ocorrido um movimento de regulamentação jurídica através do executivo, muito comum no que tange aos direitos LGBTTs, através de políticas de governo que criam políticas públicas, que acabam sendo medidas de curto prazo, com existência frágil, pois podem permanecer ou serem extintas ao fim do mandato que a promulgou. Vale lembrar que muitas dessas políticas são transformadas em Projetos de Lei e enviadas à Câmara, ao Senado ou ao Congresso Nacional, dependendo do nível a que se pretende legislar: municipal, estadual e nacional, respectivamente. Na composição deste trabalho, transito por tratados internacionais de Direitos Humanos, leis, decretos, portarias, resoluções federais, estaduais, municipais e institucionais, atos normativos, normas técnicas. Tais documentos têm aplicabilidades e funções distintas, embora muitas vezes tenham a mesma temática em sua base. Todos estes documentos possuem validade, entretanto têm limites quanto à sua abrangência e aplicabilidade, em razão, principalmente, da hierarquia existente entre as normas. O Brasil é um país onde vigora o princípio da Supremacia da Constituição, segundo o qual as normas constitucionais encontram-se em um patamar de superioridade em relação às demais leis, servindo de determinante para a elaboração e validade destas. A hierarquia de legislação foi explicada por Kelsen (1987) e ilustrada através de uma pirâmide (fig. 1, p. 26). Em seu topo encontram-se as normas primárias, constitucionais, tidas como verdadeiras e que fundamentam as demais. As normas primárias são as que regulam e instituem a criação e os métodos utilizados nas normas inferiores, validando as mesmas desde que elas estejam em consonância com suas verdades. As normas gerais são colocadas logo após a Constituição e podem ser emendas constitucionais ou Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos que tenham passado pelo mesmo sistema de votação qualificada das emendas constitucionais. Ou seja, para os tratados ocuparem tal posição hierárquica, devem ser votados em cada casa do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), em 02 turnos, considerando-se aprovado se obtiver, em ambos, 3/5 dos votos dos respectivos membros. Todas as outras normas são consideradas normas secundárias, que em tese explicitariam o conteúdo das normas primárias de forma técnica e operacional. Quanto mais próximo à base da pirâmide, menor é o valor normativo do documento em questão. Pelo sistema federalista, com a divisão dos três poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário), as leis são de responsabilidade do Legislativo, porém vê-se que parte considerável dos documentos analisados são decretos (geralmente provenientes do executivo estadual), que

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assim como decretos reguladores (provenientes de agências reguladoras como ANS e ANAC) e decretos-presidenciais são provenientes de outros poderes ou trâmites legais. Assim, as normas podem ser separadas em 03 (três) grupos: normas constitucionais, normas infraconstitucionais (ou normas abaixo da Constituição) e normas infralegais (ou normas abaixo da lei). Figura 01 – Pirâmide de Kelsen

2.2 Da abjeção à formatação

Quando se pautam direitos trans*, muitos agentes políticos defendem a criação das chamadas políticas de ações afirmativas, como forma de democratizar o acesso a certos serviços e de alguma forma compensar a exclusão histórica de grupos minoritários a processos políticos e lugares sócio-econômicos privilegiados. No final do ano de 2013, uma

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notícia de nossos vizinhos uruguaios criou reboliço ao anunciar a implementação de uma ação desse tipo. O Ministério de Desenvolvimento Social uruguaio realizou um concurso para contratar novos profissionais, sendo pré-requisito para as vagas que as pessoas fossem transexuais, travestis ou trangêneros. O ministro em entrevista fala que esse é um mecanismo de correção da discriminação sofrida por esse grupo:

São três categorias que integram este grupo excluído e discriminado. É uma população que por sua identidade de gênero sofre uma discriminação que culmina em expulsão familiar, evasão escolar, dificuldade de inserção no mercado e trabalho formal, as quais em 95 % dos casos condenam essas pessoas ao trabalho sexual, não como escolha mas como estratégia de sobrevivência. Tentamos com esse mecanismo corrigir isto. Hoje o socialmente esperado para uma pessoa trans é dedicar-se à prostituição. Isto tenta transmitir uma mensagem de que outro tipo de vida é possível.” (Scagliola, em entrevista ao jornal La Razon) 12

É impossível discutir esse tipo de ação sem falar em igualdade, interseccionalidade e equidade. Conceitos caros às políticas públicas. Segundo Scott (2005, p.15), “a igualdade é um princípio absoluto e uma prática historicamente contingente. Não é a ausência ou a eliminação da diferença, mas sim o reconhecimento da diferença e a decisão de ignorá-la ou de levá-la em consideração”. O conceito de igualdade pode adquirir sentidos distintos ao longo do tempo, como o mote “Liberdade, igualdade e fraternidade”, da Revolução Francesa, em que a igualdade não implica necessariamente cidadania para todos. Assim, percebe-se que uns são mais iguais do que outros na hora de ter acesso à cidadania e a alguns direitos sociais, de modo que é um ato de escolha, em que características determinadas são valorizadas para marcar “os iguais” e assim dar-lhes direitos, enquanto outras características são maximizadas para marcar diferenças e alocar os sujeitos desiguais em lugares subalternizados. Ao longo da história da nossa sociedade tivemos e temos vários grupos de “desiguais”, alguns deles são: as mulheres, os negros, os pobres, os gays, as prostitutas, etc. A igualdade na sua distribuição de direitos trabalha com grupos identitários, que são organizados a partir de uma política da diferença. Embora igualdade e diferença pareçam conceitos antagônicos, um necessita do outro para existir e é justamente a partir dos jogos entre positivos e negativos que as identidades são forjadas. A esse respeito, Silva (2000) acrescenta a ideia de traço, proposta por Derrida, em que um signo carrega além daquilo que substitui, aquilo que não é, 12

No original: Son tres categorías que integran este grupo excluido y discriminado. Es una población que por su identidad de género sufre una discriminación que arranca en la expulsión familiar, la desafiliación educativa y las dificultades para acceder al trabajo formal, las cuales en el 95% de los casos condenan a estas personas al trabajo sexual, no como una elección sino como salida de supervivência. Intentamos con este mecanismo corregir esto. Hoy lo socialmente esperado para una persona trans es dedicarse a la prostitución. Esto intenta transmitir el mensaje de que otro tipo de vida es posible.

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sendo assim um enunciado positivo que carrega consigo seu negativo intrínseco. Quando falamos “eu sou” afirmamos algo que carrega em si um conjunto de “eu não sou” enquanto constituintes. Dessa forma, não pode ser reduzido a si mesmo. Ou seja, ao afirmar uma identidade há nela identificações e diferenças, adere-se a algo para marcar que não se é inúmeras outras possibilidades. Assim, as identidades grupais operam uma série de generalizações que tecem critérios para a identificação com os grupos. Nascem, assim, os chamados grupos minoritários, que são considerados minoritários não porque possuem poucos elementos, mas pelo lugar subordinado nas relações de poder com o cidadão por excelência – homem cisgênero, branco, heterossexual de classe média. Esses grupos, ao adotarem uma identidade grupal, podem usá-la para se fortalecer na luta por reconhecimento social e na busca por direitos. Essa identidade pode ser estereotipada como forma de discriminação e, em uma armadilha, dissipar qualquer identidade individual quando ocorre uma exagerada redução individual a categorias. A temática da igualdade está intrinsecamente relacionada à ideia de políticas de ação afirmativas, que no Brasil geraram muitas discussões no que se refere à política de cotas raciais nas universidades, assim como nas propostas e projetos de leis referentes a direitos LGBT ou de criminalização da homofobia. No geral, os argumentos contrários se baseiam na concepção de sujeito universal, de um homem abstrato, o qual tem seus direitos garantidos pela constituição. Porém, tal ideia de igualdade, ao se referir a um sujeito abstrato, desconsidera a história e as relações de poder que cotidianamente ferem e matam grande parcela da população. É uma igualdade virtual, que não se ancora no conceito de equidade e interseccionalidade. A esse respeito, Sposati (1999, p.128) nos fala: “a noção de igualdade só se completa se compartilhada à noção de eqüidade. Não basta um padrão universal se este não comportar o direito à diferença. Não se trata mais de um padrão homogêneo, mas de um padrão equânime”. Em relação ao conceito de interseccionalidade, Piscitelli (2008, p. 266) afirma que “a proposta de trabalho com essas categorias é oferecer ferramentas analíticas para apreender a articulação de múltiplas diferenças e desigualdades”. As políticas de ações afirmativas priorizam identidades grupais, pois entendem que os indivíduos continuarão sendo menos iguais enquanto os grupos dos quais fazem parte (muitas vezes não por escolhas próprias, mas por imposições sociais) não forem valorizados e estiverem em posições subalternizadas nas relações de poder. Quando pensamos a partir dos conceitos de equidade e interseccionalidade, entendemos que existem tensões nas relações entre identidades grupais e individuais e que os sujeitos são perpassados por diversos grupos e instituições, gerando múltiplas articulações de diferenças e desigualdades que socialmente

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refletem opressões e discriminações. Dessa forma, há que se valorizar as diferenças para se alcançar efetivamente a igualdade. Mas não uma igualdade que universaliza e homogeneíza as demandas e direitos, e sim, uma perspectiva de igualdade que considera as particularidades dos grupos (nesse sentido não pensando mais em gênero, raça e classe como conceitos separados, mas articulados), a fim de que possam gozar, de forma mais plural, dos direitos que hoje acabam sendo destinados apenas àquele que é considerado o “homem universal”, ou seja, o homem cisgênero, branco, heterossexual de classe média. O’Donnell (2008) fala do dever do Estado democrático de sancionar e resguardar os direitos de cidadania política, civil, social e cultural de seus habitantes. Estabelecendo-se, assim, uma relação entre espaço público, coletividade, participação política e Estado, fazendo emergirem atores políticos variados. O mesmo ocorre na construção de políticas públicas, uma vez que segmentos não governamentais se envolvem na sua formulação, como grupos de interesse, movimentos sociais, agências multilaterais. Os graus de influência de cada um desses atores varia de acordo com o tipo de política formulada, coalizões que integram o governo, acordos eleitorais e partidários. Levando isso em conta, é um desafio formular políticas públicas capazes de assegurar o desenvolvimento econômico e promover a inclusão social de parcelas marginalizadas da população (SOUZA, 2003). Nesse contexto, (...) as políticas públicas deveriam ser globais: por dizerem respeito ao Estado, e não ao governo; por não deverem se restringir ao período de um único governo; e por necessariamente contarem, em sua elaboração, com a participação do conjunto da sociedade civil.” (OBSERVATÓRIO, 2004)

As políticas públicas são formuladas para ter sua aplicabilidade em um corpo social coletivo, porém específico, no sentido de que é necessário delimitar os grupos que serão atendidos. Dessa forma, surgem as identidades enquanto demarcadores acerca de qual sujeito tem acesso a qual política. Tais identidades servem como definidoras do grupo e da causa demandada. A respeito das políticas públicas identitárias, Heller (2003, tradução livre) acrescenta: Geralmente a ampla disseminação de políticas identitárias – seja acerca da raça, etnia, tipo de orientação sexual – foi iniciada também por forças da sociedade civil. Em um aspecto, estes movimentos identitários se parecem aos movimentos finalistas que exercem pressão sobre o Estado, o Parlamento e as instituições legais para corrigir discriminações e adotar a ativação de políticas judiciais.13 13

No original: La generalmente vasta propagación de las políticas identitarias -sea acerca de la raza, etnicidad, tipo de orientación sexual- ha sido iniciada también por las fuerzas de la sociedad civil. En un aspecto, estos movimientos identitarios se parecen a los movimientos finalistas en cuanto a que ejercen presión sobre el

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Lionço (2008) entende a proposição de políticas públicas específicas enquanto um recurso de efetivação de princípios como o da universalidade, através da promoção da equidade entre grupos sociais em situações desiguais. A partir desse referencial, evidencia-se a necessidade de políticas públicas para LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais), através da formalização em 2004 do Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra LGBT e de Promoção da Cidadania Homossexual, pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD). Tal programa salienta “o estigma e a patologização como determinantes das condições de sofrimento e de agravos à saúde de LGBT” (LIONÇO, 2008, p.13). A atenção à saúde dessa população não decorreria necessariamente de características intrínsecas a ela, e sim, das “consequências das representações e significações que recaem sobre suas práticas sexuais e de modos de vida, enquanto desviantes em relação a um suposto padrão de normalidade ou ‘saúde’ implicado na heteronormatividade” (LIONÇO, 2008, p.13). Rios (2007) enfatiza a necessidade da discussão sobre direito e sexualidades a partir de uma perspectiva da universalidade dos direitos humanos ao invés de uma discussão pautada no acesso através da patologização, como no caso de transexuais. Ainda, segundo o autor, na prática percebe-se: (...) a ausência de uma regulamentação fundada na perspectiva dos direitos humanos quando se cuida da situação específica da transexualidade ou de travestis. Nestas frentes, aliás, costumam prevalecer as abordagens biomédicas, especialmente no que respeita à transexualidade. Quanto ao tratamento dirigido a travestis, mesmo nos países onde tal condição não é considerada ilícita, predomina uma abordagem repressiva, a partir da criminalização de atos considerados obscenos na via pública e da repressão à prostituição. (RIOS, 2007, p. 05)

A definição da população de LGBTT enquanto grupo vulnerável à exclusão social pelo CNCD, e o posterior encaminhamento de políticas públicas para este grupo, demonstram conquistas decorrentes de mais de duas décadas de mobilização social (ARÁN; MURTA; ZAIDHAFT, 2008). Entretanto, estes autores evidenciam a necessidade de considerar as

políticas para transexuais “para além da questão pré e pós-operatória, sendo a questão mais complexa e danosa a própria representação social sobre a transexualidade, que patologiza e estigmatiza este segmento populacional.” (ARÁN; MURTA; ZAIDHAFT, 2008, p.1146). A partir do dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1985), a ciência sexual buscou desvelar a verdade sobre o sexo, traduzindo as possibilidades de si em identidades naturalizadas e Estado, el Parlamento y las instituciones legales para corregir agravios e introducir la activación de políticas judiciales.

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imobilizadas, em sexos determinados, exigidos e reconhecidos pelas estruturas sociais e jurídicas. Em relação a políticas públicas para identidades trans*, há que se pensar a partir do que Bento (2006) denomina como dispositivo da transexualidade, ou seja, a categoria transexual surgiu com o advento de técnicas biomédicas capazes de efetivar o assujeitamento de subjetividades que não se enquadram nas normas cissexistas e, posteriormente, são postuladas políticas públicas para esse sujeito. Nesse âmbito, o dispositivo da transexualidade aparece como uma tentativa de docilizar corpos, domesticar sexualidades, através da sua nomeação e reconhecimento social. Tal reconhecimento é construído por um diagnóstico de transtorno de identidade de gênero que, além de patologizar e psiquiatrizar vivências não normativas, destitui o sujeito trans* da autonomia sobre seu corpo, deslegitima sua identidade e o violenta de várias formas, até fixálo em padrões merecedores de políticas e direitos.

Somente a partir do século XVII as teorias biológicas da sexualidade, as condições jurídicas do indivíduo, as formas do controle administrativo nos Estados modernos conduziram pouco a pouco à refutação da idéia da mistura de dois sexos em um só corpo e restringiram, por conseqüência, a livre escolha dos indivíduos incertos. (FOUCAULT apud ARÁN, 2005, p. 03)

2.3 Um mundo de lentes: do telescópio ao microscópio, estão em mim os óculos

Acredito que a esta altura já tenham percebido as lentes que me auxiliam em minha miopia, mas como bem diz o protocolo acadêmico, devo especificar meu grau para demarcar quais são minhas lentes e, quem sabe, potencializar distorções. Não que não haja falhas no processo, mas pelo menos não podem me acusar de confundir minha mulher com um chapéu. Falemos de conceitos. Questões identitárias e de formação de subjetividades perpassam por todo o corpo deste trabalho. Não pretendo fechar ou definir “o que é subjetividade”, “o que é identidade”, mas dar pistas dos conceitos que utilizo em meu pensamento, explicitando que os usos que faço não são lineares e necessariamente contínuos, podendo tomar formas que são confusas e complexas até para mim mesma, mas que em seu conjunto amarram um certo feixe de pensamentos.

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Veja bem, se a identidade é apenas um jogo, apenas um procedimento para favorecer relações, relações sociais e as relações de prazer sexual que criem novas amizades, então ela é útil. Mas se a identidade se torna o problema mais importante da existência sexual, se as pessoas pensam que elas devem “desvendar” sua “identidade própria” e que esta identidade deva tornar-se a lei, o princípio, o código de sua existência, se a questão que se coloca continuamente é: “Isso está de acordo com minha identidade?”, então eu penso que fizeram um retorno a uma forma de ética muito próxima à da heterossexualidade tradicional. (FOUCAULT, 2004, p. 266)

Bento (2006) aborda a questão das identidades enquanto posições de sujeito construídas por práticas discursivas, sendo assim, temporárias. Hall (2000, p. 110) acrescenta que “as identidades resultam de uma bem–sucedida, porém precária, articulação ou ‘fixação’ do sujeito ao fluxo do discurso, realizada por meio das tesouras e das costuras nas subjetividades”. Essa tentativa de fixação através de remendos, costuras, é antagônica a si mesma, pois sua busca possibilita o questionamento das identidades hegemônicas ao criar identidades com inúmeros arranjos, que impossibilitam a existência de uma identidade original da qual todas decorreriam. Seriam multiplicidades anômalas, fruto de hibridizações, arrumações de recortes que criam outras possibilidades de subjetividades. Segundo Deleuze e Guattari (1997b, p. 221), no tipo rizoma a multiplicidade não se subordina ao uno, elas são “anômalas e nômades e não mais normais e legais; multiplicidades de devir, ou e transformações, e já não de elementos numeráveis e relações ordenadas”. Hall (2000) afirma a inexistência de identidades unificadas, que são cada vez mais fragmentadas, multiplamente construídas através de tecnologias diversas, historicizadas e fronteiriças. Rolnik (1997) a esse respeito acrescenta:

Esta nova situação, no entanto, não implica forçosamente o abandono da referência identitária. As subjetividades tendem a insistir em sua figura moderna, ignorando as forças que as constituem e as desestabilizam por todos os lados, para organizar-se em torno de uma representação de si dada a priori, mesmo que, na atualidade, não seja sempre a mesma esta representação. (ROLNIK, 1997:02)

Contudo, quando as desconstruções tendem ao limbo, as identidades surgem como uma fronteira, uma última forma na qual se agarrar. Como fomentar subjetividades nômades, anômalas e políticas pós-identitárias, quando as categorias sociais dadas não são desestabilizadas e questionadas, ao contrário, são criadas mais categorizações e identidades definidoras das subjetividades possíveis para o reconhecimento civil? Como fomentar subjetividades nômades, anômalas e políticas pós-identitárias se políticas públicas neutralizam subjetividades em referências identitárias ao despotencializar os processos de

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subjetivação, alocando-as em referenciais estáveis, homogêneos e monolíticos? De que forma pode-se garantir direitos a partir de lógicas que valorizem devires e fomentem processos de subjetivação?

O que se coloca para as subjetividades hoje não é a defesa de identidades locais contra identidades globais, nem tampouco da identidade em geral contra a pulverização; é a própria referência identitária que deve ser combatida, não em nome da pulverização (o fascínio niilista pelo caos), mas para dar lugar aos processos de singularização, de criação existencial, movidos pelo vento dos acontecimentos. (ROLNIK, 1997, p. 02)

Ao falar de subjetividades com propriedades anômalas, refiro-me ao sentido de anomalia cunhado por Deleuze e Guattari (1997b), em que o anômalo14 diferencia-se do anormal. Este diz respeito ao que não tem regra ou contradiz a regra, definindo-se em função de características específicas ou genéricas. Enquanto aquele “designa o desigual, o rugoso, a aspereza, a ponta de desterritorialização (...) é uma posição ou um conjunto de posições em relação a uma multiplicidade” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 21); é uma figura de borda, de passagem, de crítica, que se encontra na fronteira, ou entre territórios. Para falar de subjetividades fluidas tomei emprestado algumas conceituações do nomadismo de Deleuze e Guattari e, conforme autorização dos mesmos em Da Produção de Subjetividade (2009), não me aproprio do conceito como um todo, mas, assim como essas subjetividades, farei recortes, usarei retalhos formando uma colcha que também é processo. Guattari (2009, p. 01) nos fala de uma subjetividade heterogeneamente constituída, plural, polifônica: “E ela não conhece nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca.”. Concorre nessa construção elementos que o autor chamou de:

1. componentes semiológicos significantes que se manifestam através da família, da educação, do meio ambiente, da religião, da arte, do esporte; 2. elementos fabricados pela indústria dos mídia, do cinema, etc. 3. dimensões semiológicas a-significantes colocando em jogo máquinas informacionais de signos, funcionando paralelamente ou independentemente, pelo fato de produzirem e veicularem significações e denotações que escapam então às axiomáticas propriamente lingüísticas. (GUATTARI, 2009, p.02). 14

“Nem indivíduo, nem espécie, o que é o anômalo? É um fenômeno, mas um fenômeno de borda. Eis nossa hipótese: uma multiplicidade se define, não pelos elementos que a compõem em extensão, nem pelas características que a compõem em compreensão, mas pelas linhas e dimensões que ela comporta em "intensão". Se você muda de dimensões, se você acrescenta ou corta algumas, você muda de multiplicidade. Donde a existência de uma borda de acordo com cada multiplicidade, que não é absolutamente um centro, mas é a linha que envolve ou é a extrema dimensão em função da qual pode-se contar as outras, todas aquelas que constituem a matilha em tal momento; para além dela, a multiplicidade mudaria de natureza.” (GUATTARI, 2009, 1997b, p. 22)

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Contudo, essa heterogeneidade é aglomerada em identidades fixas, a-históricas e aparentemente lineares. A polifonia da subjetividade é silenciada e o Ser15 é instalado através da temporalidade como imutável. Nessa perspectiva de uma fixidez identitária e dominação do Ser, as subjetividades que não se dobram às normas tornam-se perigosas, pois sua própria existência já questiona esse Ser. “O Ser é como um aprisionamento que nos torna cegos e insensíveis à riqueza e à multivalência dos Universos de valor que, entretanto, proliferam sob nossos olhos.” (GUATTARI, 2009, p.14). O nomadismo constitui a subjetividade fluida no sentido de que os pontos constituintes desta, ao invés de serem princípio e fim e determinarem trajetos, são subordinados e consequência desses trajetos, sua existência está no abandono, ou seja, existe enquanto alternância. As singularidades impessoais perpassam a subjetividade, o ambiente, os acontecimentos e todas as coisas que passam a ser “não mais do que uma singularidade que se abre ao infinito dos predicados pelos quais ela passa, ao mesmo tempo em que perde seu centro, isto é, sua identidade como conceito e como eu” (DELEUZE apud CORSINI, 2007, p.28). Diremos, por convenção, que só o nômade tem um movimento absoluto, isto é, uma velocidade; o movimento turbilhonar ou giratório pertence essencialmente à sua máquina de guerra. É nesse sentido que o nômade não tem pontos, trajetos, nem terra, embora evidentemente ele os tenha. Se o nômade não pode ser chamado de o Desterritorializado por excelência, é justamente porque a reterritorialização não se faz depois, como no migrante, nem em outra coisa, como no sedentário (...) Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 53).

“A vida do nômade é intermezzo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 51), ele vive no entre, cruzando constantemente fronteiras. Silva (2000) atenta para o fato de que as situações fronteiriças desestabilizam e questionam as identidades fixas. O permanecer na fronteira torna-se acontecimento crítico, pois não é passível de identificação, não cede a nenhum dos pólos das classificações calcadas na lógica binária, são produções do entre, do meio, encadeadas por lógicas outras que não seguem uma linearidade. Nas sociedades modernas a lógica binária vale por si mesma, operando por meio de máquinas duais, “procedendo simultaneamente por relações biunívocas e sucessivamente por escolhas binarizadas” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 86). Essas produções inventam conexões e formas de existir próprias, a partir do não-território, aproximando-se da formulação de 15

O Ser é grifado pelo autor com inicial em maiúscula como oposição ao ente, que possui todas as suas letras em minúscula. Para maiores informações consultar: GUATTARI, Félix. Caosmose; um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 11- 44

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subjetividade nômade (BRAIDOTTI, 2002), que ocupa espaços de transição, construindo-os e desconstruindo-os sucessivamente, subvertendo convenções, negando qualquer senso de identidade fixa e resistindo às adequações aos pólos binários. E é justamente nos estudos de gênero e sexualidade que essas “identidades fronteiriças” se evidenciam, que podem aparecer na ambiguidade que rompe a lógica masculino x feminino, na performatividade de cross dressing, drags queens e drags kings, dentre outras manifestações da sexualidade que rompem com a coerência entre sexo, gênero e práticas sexuais. Segundo Butler (2003), há uma exigência social de coerência entre anatomia, identidade de gênero, desejo e prática sexual. E aquilo que acreditamos ser “homens” ou “mulheres” é apenas uma ilusão proveniente da repetição e sedimentação de normas de gênero que foram substancializadas como essenciais aos seres de um polo ou outro. Entretanto, identidades de gêneros não apresentam coerências lineares, não são instâncias fixas, mas se constituem em ato, no momento em que ocorrem. São atos e comportamentos performáticos que, por uma série de repetições, são reiterados continuamente. Dessa forma, não há um sexo ou gênero correto ou fixo para cada um de nós, ao contrário, somos obrigados a desempenhá-los, inventá-los e reinventá-los a cada momento, em cada contexto. Esse processo nem sempre é consciente, podendo ser muitas vezes automático e obrigatório socialmente. Existem muito discursos que lançam sobre a materialidade dos corpos a justificativa do binarismo de gênero, muitas vezes corroborados por discursos científicos biológicos ou psis. Assim, “meninas seriam mais frágeis” e “meninos mais agressivos por causa dos hormônios”. A dicotomia masculino x feminino está tão arraigada na cultura ocidental contemporânea que se difunde no senso comum inúmeras relações causais que atrelam diferentes marcadores biológicos a significantes sociais e condutas, para a manutenção do cissexismo enquanto norma. Um exemplo recorrente refere-se à tentativa de explicar a agressividade associada ao masculino às taxas de testosterona, justificando comportamentos violentos.

Um exemplo proeminente é a relação que se supõe existir entre hormônios masculinos e agressividade. [...] Fausto-Sterling examina esses e outros argumentos familiares sobre as bases biológicas das diferenças sexuais, demonstrando que são infundadas por várias razões. (MOORE, 1997, p.01)

Quando me deparo com explicações de causa e efeito associando determinados marcadores hormonais a comportamentos sociais de determinado gênero, recordo da abertura

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do filme Generonautas: Jornada por Identidades Mutantes16, da cineasta Monika Treut. No filme, percebe-se como a diferença binária dos sexos, assim como uma série de características e comportamentos socialmente atribuídos a um gênero ou outro, são criações arbitrárias da nossa cultura ocidental. O trecho consiste em sequências de imagens de hienas em uma savana com a seguinte narração:

A natureza pode ser mais inventiva que a cultura. No reino animal, tem uma espécie que é extremamente fascinante para mim (porque elimina a oposição entre machos e fêmeas): a hiena-malhada. As hienas-malhadas fêmeas possuem uma aparência masculina por causa do alto nível de testosterona em sua corrente sanguínea. Testosterona é o hormônio sexual masculino.” (tradução livre)

Na década de 1970, a Sociobiologia, algumas feministas e certas correntes antropológicas consideravam o sexo biológico enquanto algo “natural” e permanente, e o gênero, enquanto uma interpretação cultural desse sexo. Assim, o gênero seria limitado em termos de diferenciação sexual, pois haveria certa universalidade comum a todas as mulheres, tal qual características comuns a todos os homens, sendo o corpo biológico o fundamento último do gênero. Moore (1997) critica tal perspectiva, dentre outras coisas, por desconsiderar que a própria noção de biológico já é socialmente construída. Nesse sentido, a própria biologia enquanto disciplina foi influenciada pela diferença sexual binária, sendo as plantas a princípio sexuadas de acordo com as ideias de gêneros humanos. A esse respeito Rose (2010, p.50, tradução livre,):

A ciência, a partir de ideias políticas e culturais acerca do gênero (e da raça), interpretou a “natureza” de maneira que este conhecimento cientifico culturalmente construído foi utilizado para justificar a crença nas diferenças “naturais” 17

De acordo com Yanagisako e Collier citados por Moore, o sexo se constrói no interior de um conjunto de sentido e práticas sociais. Dessa forma, não se deve pensar sexo e gênero em termos da dicotomia natural x cultural, pois a própria ideia de natural já evoca práticas discursivas que produzem o sexo materializado nos corpos.

[...]tanto o sexo quanto o gênero (e não somente o gênero) são socialmente construídos, um em relação ao outro. Corpos, processos psicológicos e partes do

16

Título origina: Gendernauts: A Journey Through Shifting Identities (1999)

17

Originalmente: La ciência, bajo la influencia de ideas políticas y culturales acerca del gênero (y la raza), interpreto la ‘naturaleza’, de manera que este conocimiento científico culturalmente influído se empleó para justificar la creencia em las diferencias ‘naturales ’.

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corpo não tem sentido fora das suas compreensões socialmente construídas. (MOORE, 1997, p.05)

Ainda a respeito da dicotomia natural/cultural, em relação ao sexo e ao gênero, Butler (2000) rompe com tais binarismos ao historicizar o corpo em sua teoria da performatividade de gêneros, ao falar que o gênero se torna corpóreo por ações reiteradas constantemente. Sendo o efeito dessa repetição de práticas a ideia de que o sexo é “natural”. O ‘sexo’ é um constructo ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o ‘sexo’ e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada dessas normas. (BUTLER, 2000, p. 111)

O olhar biomédico ocidental, no qual me insiro, criou saberes e disciplinas sobre os corpos, atrelando aos mesmos virtualidades conceituais como sexo e gênero enquanto constitutivas dos sujeitos. Preciado (2008, p.85, tradução livre), explicita que:

Nem os critérios visuais que regem a assignação do sexo no nascimento, nem os critérios psicológicos que fazem com que alguém se sinta interiormente como homem ou mulher possuem realidade material. Ambos são ideais reguladores, ficções políticas que encontram na biosubjetividade individual seu suporte somático.18

Moore (1997) usa o “S” maiúsculo ao falar de sexo, para demarcar que se trata de uma forma discursiva que incide sobre os corpos, gerando a diferença sexual, a qual só pode ser conhecida através do sexo com “s” minúsculo. Este – o sexo - só existiria na cultura biomédica ocidental, pois é uma ideia intrínseca à incidência de parâmetros fisiológicos, genéticos, dentre outros, enquanto diferenciadores de gênero. Naturalizou-se a ideia de que a diferença real entre homens e mulheres estaria calcada no papel desempenhado na reprodução. Dessa forma, genitálias, taxas hormonais e cromossomos se tornaram o fundamento da diferença sexual, pela criação arbitrária de padrões que desconsideram as múltiplas variações existentes nas categorias de homem ou mulher, corroborando com o binarismo de gênero.

18

No original: Ni los criterios visuales que rigen la asignación de sexo en el nacimento, ni los criterios psicológicosque hacen que alguien se considere interiormente como hombre o mujer tienen materialidad material. Ambos son ideales reguladores, ficciones políticas que encuetran la biosubjetividad individual su soporte somático. (PRECIADO, 2008, p. 85)

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Atualmente, as pessoas que rompem com as normas de gênero são automaticamente taxadas e estigmatizadas19 pelo uso do termo “trans”20, em referência a transexual e/ou transgênero, assim como travestis e cross-dressing. A militância trans* tem buscado esclarecer os significados do termo e utilizar politicamente o termo cis, em referência a cisgênero ou cissexual, para pessoas não trans como forma de salientar o caráter históricosocial da norma, explicitando que pessoas cis têm suas identidades sexuais e de gênero tão construídas quanto as suas. Dessa forma, uma pessoa cis, nesse caso cisgênero e cissexual, é uma pessoa cujo sexo designado ao nascer, o gênero atribuído no nascimento, o sentimento interno/subjetivo de sexo e o sentimento interno/subjetivo de gênero, estão “alinhados” ou estão “deste mesmo lado” – o prefixo cis em latim significa “deste lado” (e não do outro). Havendo casos em que se é apenas cisgênero ou apenas cissexual. No primeiro, apenas o gênero atribuído ao nascimento se mantém “do mesmo lado”, enquanto o sexo não. No segundo, apenas o sexo atribuído ao nascimento se mantém “do mesmo lado”, enquanto o gênero.

19

A militância e o respeito a auto-identificação buscam ressignificar o termo trans* de forma a valorizá-lo e desestigmatizá-lo, porém a identificação por outrem geralmente carrega um valor pejorativo e a taxação como um sujeito que transgride a norma cissexista. 20 Embora muitas identidades/vivências possam ser englobadas pelo termo, uma vez que socialmente ocorre a confusão entre sexualidade e gênero, a militância trans* busca utilizá-lo para pessoas auto identificadas como transgênero, transexual ou travesti; demarcando um borrão nas normas de gênero e, não necessariamente, a vivência de sexualidades (não) normativas. Dessa forma, alguém que adote uma identidade trans* pode em relação a sexualidade ser bissexual, gay, lésbica, heterossexual, assexual, pansexual, dentre outras possibilidades.

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3 MOVIMENTOS E PASSOS DOS DOCUMENTOS

3.1 Não é preciso abrir a porta

Não se trata absolutamente de ficar ligado a um corpo individual, como faz a disciplina. Não se trata, por conseguinte, em absoluto. Não se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo em seu em seu detalhe, mas, pelo contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação. Foucault, 2010, p. 209

A existência de alguma legislação concernente às identidades trans* é resultado de processos de judicialização da vida, que se intensificou nas últimas décadas do século XX e, é uma característica do século XXI. Em que políticas e leis atreladas a lógicas de proteção e denúncia tem nomatizado cada vez mais nossas vidas. Não se pode fazer política sem críticas, no sentido de reflexões sobre limites, entendendo que as políticas públicas são políticas de Estado e, assim como toda a legislação, são políticas de controle. E que movimento é esse em que a sociedade contemporânea clama cada vez mais por regulações? A judicialização da vida se intensifica e se ramifica para todas as relações sociais e pessoais: os corpos, os afetos, os caminhos são perpassados por regulações e por uma capilarização da função do tribunal, em que todxs tornam-se juízes das condutas alheias. Nascimento (2014, p. 460) afirma que a judicialização da vida é uma “construção subjetiva que implanta a lógica do julgamento, da punição, do uso da lei como parâmetro de organização da vida”, nos direcionando à crença de que a lei e demais procedimentos jurídicos são o caminho para a resolução de nossos problemas e conflitos. Desta forma, clama-se pela criação de mais leis e para que as leis existentes se tornem cada vez mais duras em suas penas. Assim, as punições servirão de “exemplo” para as condutas e comportamentos desviantes futuros, virtualidades existenciais classificadas em normais e

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anormais por essas próprias leis. “É por se acreditar na lei, por se temer a lei, que a justiça se torna a referência para atuar e passamos a ter uma institucionalização do judiciável, cuja função, além de determinar o que é lícito e o que é ilícito, é regular as funções do corpo social” (NASCIMENTO, 2014, p. 462). Dessa forma, a judicialização da vida produz subjetividades baseadas nos moldes das práticas do judiciário, em que “as decisões, determinações e sentenças são centralizadas na figura do juiz que, de forma individualizada (...) pode desconsiderar as análises, os estudos, as ponderações (...) e impor suas decisões” (NASCIMENTO, 2007, p.158). Essa ampliação do judiciável tornou-se possível devido ao que Foucault (2010) chama de biopolítica e da normalização dos corpos através de uma lógica da vigilância atualizada da sociedade de controle. Assim, age-se sobre o corpo individual e sobre a população, no entrecruzamento da norma, da disciplina e da norma da regulamentação, formando o que o autor denominou de sociedade de normalização. Nesse processo difunde-se a ideia de risco atrelada à lógica da denúncia, pautadas em um discurso de proteção individual e social, a qual é garantida pelo Estado através do Judiciário. Por conseguinte, recorre-se cada vez mais ao Sistema Judiciário para dar conta de questões que antes eram consideradas privadas, da esfera do sujeito, de suas relações e de sua autonomia. “Não há mais campos reservados à política e ao mercado nos quais o direito deixe de se imiscuir. Mais do que isso: ele vem deslocando todas as outras regulações, substituindo-as tão completamente, de modo que todas as relações sociais tendem a se tornar jurídicas” (LOPES, 2005, p. 13).

No campo do Direito, as discussões de direitos LGBT se encaixam nos chamados interesses difusos da sociedade. Nesse campo, nas últimas décadas, temos observado uma grande profusão de sentenças judiciais garantindo direitos civis que não são abarcados pela legislação vigente, através de uma extensão de direitos por analogia. De acordo com Lopes (2005), há um deslocamento no caráter decisório de relações sociais tradicionalmente alheias ao direito, pela mobilização do judiciário. E é nesse escopo que algumas pessoas trans* começaram a ter seu reconhecimento social, através de decisões e pareceres jurídicos, que pelo menos em algum momento os visibilizaram enquanto sujeitos. Visibilidade esta, de acordo com a análise dos documentos que, destituindo-as de autonomia, ora age de forma protetiva autorizando o uso do nome escolhido e pelo qual a pessoa se reconhece, ora autoriza que seus corpos ou parte deles sofram intervenções plásticas, farmacológicas, hormonais ou estéticas. Tais autorizações são dispensáveis quiçá impensáveis para pessoas cisgêneros, pois

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estas possuem autonomia para gerenciar seus nomes e identificações, tal qual seus corpos (salvo corpos de mulheres cisgêneros, em que o limite da autonomia esbarra no Estado quando se trata de concepção e reprodução, questão também muito marcada pela classe social). Para Ventura (2010, p. 93), no Brasil, a prática penal foi o lugar de origem de determinadas verdades sobre a transexualidade em seu aspecto ético-jurídico “reproduzindo a trajetória histórica de como as questões da sexualidade são tratadas pelo direito”. Resultando em normas universais a serem aplicadas sem considerar as condições diversas em que vivem as pessoas trans*, tornando-se instrumentos de disciplinarização e homogeneização da diversidade de corpos e experiências desses sujeitos. Esse processo desconsidera completamente o saber das pessoas trans* sobre si mesmas impondo a decisão de outrem sobre seus corpos e identidades. O saber válido e legitimado nessa legislação é o saber biomédico e jurídico. As identidades trans* são amordaçadas para que “os especialistas” falem por elas. A figura social e o status de poder do especialista remetem a um lugar historicamente construído de “detentor da verdade”, de uma verdade dos sujeitos. Como psicóloga, também sou constantemente chamada a ocupar esse lugar de especialista. E é a partir das reflexões de Foucault (2006) acerca da relação poder-saber que me indago sobre o lugar sócio-político que o “nós” especialista/intelectual me coloca em relação às questões trans*. Esse lugar social dos especialistas e intelectuais é construído e se sustenta a partir de uma relação de legitimação e deslegitimação de discursos.

(...) os intelectuais descobriram que as massas não precisam deles para saber; que as massas sabem claramente, precisamente, muito melhor do que eles. E elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra só nas instâncias superiores da censura, mas que penetra profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. (FOUCAULT, 2006, p. 39)

Delimita-se uma série de saberes e discursos que são encarados como verdades para determinadas Disciplinas, desautorizando-se, assim, que todos os demais discursos e saberes que não pertençam a tais campos ou não sejam proferidos pelos intelectuais e especialistas dos mesmos venham a ser “verdades”. Nesse processo, não apenas discursos e saberes são silenciados, mas também, e principalmente, corpos, desejos e vivências. A esse respeito Foucault (2006), nos fala da difusão social dessa relação entre especialista-verdade, que penetra todo o corpo social, gerando, muitas vezes, um auto-silenciamento.

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Há efeitos de verdade que uma sociedade como a sociedade ocidental, e hoje se pode dizer a sociedade mundial, produz a cada instante. Produz-se verdades. Essas produções de verdades não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdades têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam. (FOUCAULT, 2006, p. 229) Com a emergência das discussões sobre a despatologização da transexualidade as ciências sociais têm sido cada vez mais convocadas a falar sobre questões trans*. Contudo, a própria permanência da transexualidade em manuais nosológicos demonstra que o poder ainda é centrado nos discursos biomédicos. Quando as questões se referem a “verdades do corpo”, “verdades do sexo” e, a partir da segunda metade do século XX, “verdades do gênero”, o poder do discurso ainda se centra nas ciências biomédicas, psi e, não raro, jurídicas. Historicamente as sexualidades e/ou gêneros não normativos se constituíram como problemas sociais, ora remetidos ao sistema penal, como a homossexualidade, que teve durante alguns séculos (e atualmente em alguns países) a incriminação da prática da pederastia, criando o sujeito homossexual-criminoso; ora nas ciências psi, com a patologização de desejos e práticas não-heterocentradas, onde não se fala mais do sujeito criminoso, ele não infringe a lei, pois não tem culpa, e sim do sujeito doente. Demonstrando, a importância das disciplinas para a produção de sujeitos e regulação de condutas, neste caso na base da sociedade ocidental, a sexualidade. No Brasil, atualmente, as principais demandas públicas em relação à transexualidade dizem respeito à alteração do registro civil e às mudanças corporais. Em ambas, ainda, para sua concretização, é necessário o aval de um jurista e de um médico ou psicólogo. O Direito, a Psicologia e a Psiquiatria ainda são os detentores da “verdade” desses sujeitos. A quem interessa que nós, pessoas cisgêneras, falemos se aquela pessoa na nossa frente pode ou não fazer alterações corporais, deve ou não ser identificada pelo nome que escolheu, deve ou não ter sua identidade legitimada? Por que deve ser um laudo ou um parecer atestando que aquele sujeito é doente e que para sua cura há que se fazer mudanças no corpo que é escutado, e não a voz do próprio sujeito, seu desejo, sua existência que é ouvida? Por que é um juiz que deve decidir se o nome através do qual aquela pessoa se identifica deve constar em seus documentos? Acredito que há que se deslocar essa lógica para que as pessoas trans* sejam as agentes de suas verdades, de suas vidas e que estas sejam escutadas e não um laudo, parecer ou decisão de outrem.

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3.2 A dança dos papéis

Imersa em papéis e bytes inicio meu caminhar, os pixels logo transformaram-se em celulose, aumentando a pilha sobre a mesa. A necessidade de pegar, mover, lançar a matéria talvez tenha sido o ato inicial dessa análise. Lançamo-nos ao chão onde começam nossos movimentos juntos (ambos, eu e essas legislações já havíamos nos movido muito até esse encontro). Espalhados em um caos subjetivamente organizado surgem as primeiras conexões: “de onde são?”, “qual sua idade?”, “o que me dizem?”. Conversemos... Os dados brutos me contam que, pela Pirâmide de Kelsen, dos 61 (sessenta e um) documentos analisados apenas 03 (três) deles se classificam como infraconstitucionais, 03 (três) leis, as quais possuem maior valor normativo do que os 58 (cinquenta e oito) documentos infralegais restantes. Temporalmente, todos os documentos analisados são recentes. Somente 02 (dois) deles surgiram na década de 1990, todos os demais são fruto dos anos 2000, sendo os anos de 2009 a 2012 os com maior aprovação de legislação, e a região sudeste a com maior concentração local de normas, e a centro-oeste, com a menor. O caráter protetivo já é apontado logo de início quando observo os órgãos e secretarias responsáveis pelos documentos: Educação, Saúde, Desenvolvimento Humano/Social, Combate à Pobreza e por aí segue. Sem esquecer dos muitos documentos aprovados pelo CFM e suas ramificações, que também agem, em parte, por essa lógica. Ao contrário disso, documentos publicados por outros países, como a Ley de Identidad de Género21 da Argentina, foi sancionada pelo Congresso Nacional em 2012 e delega seu cumprimento ao Registro Nacional de Pessoas, esfera governamental que não atende apenas a grupos vulneráveis, mas a todxs xs cidadxs. O conteúdo primordial da legislação brasileira se limita a dois elementos: uso do nome social e normas técnicas de patologização. Os discursos variam e ao mesmo tempo se assemelham, mostrando incongruências internas e reproduções errôneas (mas podemos falar em originalidade? E serão erros mesmo?) – alguns Frankensteins que podem ser potências, ciborgues22 talvez; podem produzir anulações e zonas de monstruosidade, dando materialidade ao que antes eram corpos abjetos (BUTLER, 2002). Como em uma dança, os documentos começam a se movimentar: os que são infraconstitucionais trocam seus lugares mostrando-me por onde começar. Resolvo iniciar por 21

Lei n° 27.743, aprovada pelo Congresso Argentino em maio de 2012, que “estabelece o direito a identidade de gênero das pessoas”.

22

Conceito elaborado por Donna Haraway, que será explicitado no item 5.3 do meu trabalho.

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eles, que mesmo com maior valor normativo ainda são frágeis em termos políticos. Vejo a Lei nº. 10.948/01 se adiantar, fruto da Assembleia Legislativa de São Paulo, que “Dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual e dá outras providências”. Em todo o seu texto, ao lado de “cidadão homossexual, bissexual” está também “cidadão transgênero”. Embora ao longo de todo o seu texto a palavra presente seja orientação sexual, o uso de “transgênero” suscita uma certa esperança de que futuramente eu veja aparecer o descolamento entre as sexualidades e as identidades de gênero. Anos depois, no fim da década, pulula de Minas Gerais, mais especificamente de São João Del Rei, o Decreto nº. 3.902/09. Com o Uai! a Prefeitura “Determina aos órgãos da Administração Pública Municipal e iniciativa privada que observem e respeitem o nome social de travestis e transexuais”. Na mesma linha, surgem o decreto nº 006/09, no município de Picos – Piauí; o decreto nº 1.675/09, no estado do Pará; a lei nº 5.992/09, no município de Natal; e a lei ordinária nº 5.992/09, no estado do Piauí. Todos instituem a utilização do nome social nas instituições públicas de sua competência e nas organizações privadas em seus territórios, em documentos cotidianos e no trato pessoal, sendo o nome social excluído de qualquer documentação expedida para fora dos tijolos concretos de seus prédios. O município de Picos começa se referindo ao “nome social dos transexuais” e fala da legislação municipal que “garante a Liberdade de Orientação Sexual” e, em seguida, lembra que o nome social “das pessoas travestis” também deve ser respeitado. No decorrer de seu texto, faz questão de salientar, invisibilizando outras construções identitárias, que deve “prevalecer a identidade de Gênero Feminino das pessoas transexuais e travestis”. No estado do Pará - embora se utilize o pronome masculino, privilegiado em nosso idioma na generalização para se referir às identidades trans*, e não dê corpo a essas identidades, pois são sempre “transexuais e travestis” pairando pelo texto – aponta-se para o conceito de cidadania com o parágrafo: “os transexuais e travestis têm o direito de escolher a identidade sexual que entenderem melhor para a busca de sua felicidade, sem perder de vista os direitos que são assegurados a todas as pessoas”. Natal é o primeiro município que no corpo do seu texto considera a utilização do nome social e do gênero vivenciado no atendimento às identidades trans*, pois em seu Art.1º diz que devem “observar o nome social e o sexo utilizado pelas pessoas transexuais e travestis”. Ademais, esta lei também inova ao conceituar o nome social, prática inexistente nos documentos anteriores.

Art. 1º - § 2º - Para efeitos desta Lei entende-se nome social como o nome público e notório utilizado pelo indivíduo transexual e travesti, que se distingue de seu assento de nascimento. (Lei nº 5.992/09)

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Mal adentramos 2010, a prefeitura de São Paulo assegura a utilização do nome social nos registros municipais com o decreto nº 51.180/10. Sendo rapidamente seguido pelo estado de São Paulo, que através do decreto nº 55.588/10 instituiu “o tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos”. Este decreto considera que “os direitos da diversidade sexual constituem direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, e que a sua proteção requer ações efetivas do Estado”, o que segue o fluxo dos Princípios de Yogyakarta ao traçarem linhas de atuação para os Governos. Ademais, na lógica protetiva/punitiva, esta norma prevê o ensejo de processos administrativos de acordo com a lei nº 10.948/01. Um ano depois, o estado do Rio de Janeiro instituiu o uso do nome social através do decreto n° 43.065/11; Vitória o fez pelo decreto nº 15.074; e o Rio Grande do Sul, no meio de um combo de decretos que instituíram o “Dia Estadual de Combate a Homofobia” (N° 48.117) e a II Conferência Estadual LGBT (N° 48.119), assegurou a utilização do nome social através do decreto nº 48.118. Um papel que cria papel é o que vejo no decreto n° 49.122. Ele estabelece a confecção da “Carteira de Nome Social para Travestis e Transexuais”, um documento expedido pelo Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul, para pessoas com prévia identificação civil no estado, para que transexuais e travestis tenham acesso aos direitos previstos no decreto n.º 48.118/11. Cria-se, assim, mais uma barreira entre os sujeitos e seu nome23. Este decreto condiciona o respeito ao nome, à exibição pública de um pequeno (sic) documento de 9x6cm (anexo B) visualmente diferente de qualquer documento de identificação civil, criando uma espécie de passe para as zonas de monstruosidade, conceito que será melhor explorado a seguir. Utilizo essa categoria de “monstro”, pois vejo no texto de alguns documentos uma espécie de “eu te nomeio, você pode existir, mas não é como nós”. Criam-se zonas espectrais de um continuum entre a abjeção e a norma, que de diferentes formas se aglutinam aos sujeitos: Legislações que utilizam os termos “transexual” e “travestis” como palavras soltas, sem materialidade nenhuma, não se referindo em nenhum momento aos sujeitos de identidades trans* como “pessoas”, “cidadãs/ãos” ou “sujeitos”. Eles não só pairam sobre o texto, que a princípio deveria privilegia-los, como também tornam-se literalmente objetos de agência de outros. Em discursos em que a legislação fala do nome social sobre a perspectiva e protocolos do outro que irá legitimá-la: “Determina que as Unidades (...) passem a registrar o

23

O nome a que me refiro é a escolha subjetiva do sujeito quanto à sua identificação. Quando for me referir às identificações atribuídas por outrem, usarei o adjetivo “civil”.

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nome social de travestis e transexuais em fichas (...)”24, “deve observar, obrigatoriamente, as seguintes disposições: (...) III – que o nome social não substituía o nome civil; mas venha após-posto e entre parênteses”25. Os documentos que atribuem alguma materialidade às identidades trans* referem-se a elas nos termos mostrados no gráfico a seguir. Gráfico 01 - Forma como a legislação se refere às identidades trans*

Transexuais e travestis enquanto: paciente 12%

cidadão/ã 10% sujeito 0%

população 18%

pessoa 53%

indivíduo 7%

cidadão/ã

sujeito

pessoa

indivíduo

população

paciente

A partir das fatias do gráfico acima, vemos que, nos documentos, além de elas serem um vazio, são pessoas, população, indivíduos, poucas vezes cidadãs/ãos, nunca sujeitos e, mais vezes do que eu gostaria, pacientes. Talvez a não nomeação, o lugar de paciente e, não raro, a citação enquanto procedimentos, partes do corpo ou um CID, configurem-se como um sintoma do cissexismo de nossa sociedade. Quando se legisla sobre o parto, aflora a gestante ou parturiente; quando legisla-se sobre a educação, surge o aluno ou estudante; na saúde do homem, temos o cidadão; mas nas identidades trans*, depois da pessoa, aparece o Processo Transexualizador, o paciente, o caso de transexualismo, todos sem sujeito, que mesmo em sua virtualidade, não aparece. Nossa língua materna, em sua hierarquia de gênero, privilegia a utilização de pronomes masculinos quando de grupos mistos ou quando se tratem de generalizações.

24

Portaria n° 041/09 – Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano de João Pessoa

25

Resolução nº 032/10 – CEE do Tocantins, Art. 2° inciso III.

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Discussões a esse respeito são feitas na Linguística, enquanto a militância (trans)feminista busca formas alternativas ao se comunicar. Dessa forma, vejo a utilização do “@”, do “x”, do “es”, no lugar dos pronomes masculinos e femininos e na generificação das palavras. Vejo também a utilização de palavras com gêneros neutros26 e, em alguns casos, a inversão da hierarquia pela utilização do feminino para grupos mistos e generalizações como forma de mexer com o status quo linguístico. Considerando a força do discurso na vida e na construção das subjetividades, os marcadores de gênero tornam-se normas regulatórias das expressões fundantes “é um menino”/“é uma menina”, e da resposta dxs sujeitos a essa interpelação ao longo da vida. Neste sentido, é crucial para a construção de algumas identidades trans* a utilização do pronome de gênero adequado à sua identidade ou à não generificação, quando remetidas a tais identidades. O que a legislação me mostrou sobre o respeito à identidade de gênero na utilização dos pronomes foi que a maioria dos documentos buscou respeitar e adequar os pronomes através da utilização de palavras neutras ou da utilização de pronomes femininos/masculinos, tentando abarcar o binarismo de gênero. O gráfico abaixo elucida esse movimento.

Gráfico 02 - Utilização de pronomes

Utilização de pronomes Feminino 5% Masculino 14%

Neutros 66%

Feminino

26

Masculino

Fem/Masc 15%

Fem/Masc

Neutros

Palavras com gêneros neutros ou não genereificadas, como “pessoa”, “indivíduo”, “sujeito”, “criança”; que abarcam o masculino e o feminino, não havendo contração dos pronomes de gênero.

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Entretanto, um dos documentos analisados utiliza marcadores de gênero masculinos em todo o texto, apontando uma utilização pejorativa e violenta, pois essa portaria surgiu a partir da solicitação de um grupo do movimento social da região, composto prioritariamente por travestis prostitutas27. Tal portaria, no início do texto, fala que o documento é resposta ao ofício nº 0179/09, enviado pela Associação Garotos da Noite28, e, ao final, dispõe que “adjuca o pedido” do ofício, nestes termos:

(...) autoriza os travestis e transexuais, a terem o seu nome social, juntamente com o original, cadastrados nas Unidades dessa SEAS, permitindo desta maneira que os mesmos possam ser atendidos de forma com que não sejam constrangidos. 29

Nesta citação, percebo que é utilizado o termo “original” para se referir ao registro civil. O que seria o nome social quando o registro civil é o original, o verdadeiro? Um nome falso? Nome de guerra? A partir da segunda metade dos anos 2000, os textos dos documentos passam a conceituar o “nome social”, que no geral aparece entendido como “a forma pela qual travestis e transexuais se reconhecem, são identificados, são reconhecidos e são denominados por sua comunidade e em sua inserção social”30. Alguns falam em nome ou identificação pública. O Conselho Municipal de Educação de Belo Horizonte acrescenta a existência de homens trans e corpos que vivenciam a masculinidade com o trecho: “Nome social é o nome pelo qual travestis e transexuais femininos ou masculinos preferem ser chamados”31. Entretanto, a utilização de termos como “preferência”, “escolha” ou “livre escolha” não implicam em autonomia32, uma vez que há a necessidade de uma norma e procedimentos burocráticos, além da necessidade de que a comunidade em que a pessoa transita e constrói sua rede de relações reconheça e utilize o nome social, para que este nome tenha legitimidade. Esse cerceamento molar da “função autonomia” pelo Estado corrobora com as funções de culpabilização, segregação e infantilização necessárias à produção de 27

No meu discurso, prefiro utilizar o termo “prostituta” pela força da palavra e seu uso pelo Movimento de Prostitutas, no lugar de “profissional do sexo”.

28

Embora seja uma entidade que trabalha na prevenção de HIV/DST/AIDS junto a prostitutas, é formada por muitas travestis e se engaja na luta por direitos para esse público.

29

Trecho retirado da Portaria nº 438/09 – Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania do Amazonas

30

Resolução CEE – Goiás nº 005/09

31

Resolução n°002/2008

32

Autonomia é aqui entendido em termos de “função autonomia” (Guattari; Rolnik, 2005), expressando-se a nível molecular nos processos de produção de subjetividades através de agenciamentos micropolíticos de organizações distintas da modelização capitalística.

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subjetividade capitalísticas. Guattari e Rolnik citados em Uziel e Berzins (2012, p.112) explicitam: Essas funções consistem em: identificar unicamente no sujeito supostos desvios – culpabilização; através de sistemas de modelização, segregar esses sujeitos desviantes – segregação; e então submetê-los a uma relação de dependência e mediação pelo Estado – infantilização. Isto é, após estabelecer as marginalidades, cria-se uma relação onde “tudo o que se faz, pensa ou se possa vir a fazer ou pensar seja mediado pelo Estado”

O fato de somente o nome social requerer conceituação demonstra a essencialização da identificação civil como algo posto, dado desde sempre ou, como aparece na Portaria nº 438/09, o “nome original”. Quase todos os documentos conceituam o que seria “nome social”, porém raros são os que também o fazem com o “nome ou registro civil”, demonstrando uma naturalização do nome dado ao nascimento em contraponto a uma construção do “nome social”. Somente as resoluções n°132/09 do CEE de Santa Catarina e a n° 437/12 do CEE do Ceará que conceituam a identificação civil além do nome social: “Art.2° (entendendo) por nome civil aquele registrado na certidão de nascimento ou equivalente.”33 Pouquíssimos documentos falam acerca de medidas para a inclusão do nome social de sujeitos menores de 18 anos e, quando o fazem, exigem a autorização dos responsáveis legais, sendo que a realidade de parte dxs adolescentes trans* está relacionada à expulsão de casa e à exclusão do núcleo familiar. A existência de sujeitos trans* analfabetxs também é invisibilizada, uma vez que todos os documentos exigem o preenchimento de algum formulário de solicitação por escrito e apenas 07 (sete) documentos preveem alternativas para aquelxs que não sabem ou não conseguem escrever, sendo o procedimento padrão34 um funcionário preencher o formulário para o requerente na presença duas testemunhas. A disposição do nome social nos materiais escritos confeccionados pelas instituições, como crachás, carteiras e pautas, é variável e muitas vezes tal alocação é absurda, beirando ao grotesco. Em toda a legislação o nome civil prevalece quando “o interesse público exigir” e é somente o nome civil que consta nos documentos oficiais expedidos, como diplomas, certificados e similares. Nos documentos em que é permitido o uso do nome social ele pode aparecer sozinho – “Art. 5°: O nome social será o único exibido em documentos de uso

33

Resolução n° 437/12 do CEE do Ceará

34

“No caso de pessoa analfabeta, o servidor ou empregado público municipal que estiver realizando o atendimento certificará o fato, na presença de 2 (duas) testemunhas, mediante declaração” (Decreto n°17.620/12 – Campinas)

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interno”35. Ou, em outros documentos, ele constará no anverso e a identificação civil, no verso. Ou, ainda, existem legislações que ensejam as organizações a seguir: “Art. 1° - Parágrafo Único – nos cadastros gerais o nome social deverá ser observado antes, e entre parênteses os nomes civis das pessoas travestis e transexuais”36 Nome social (nome civil)  Marvelnessa37 (Vanessa) Marinho Pereira “Art. 1° § 2º A anotação do nome social das pessoas travestis e transexuais deverá ser colocado escrito, entre parênteses, antes do respectivo nome civil”38 (Nome social) nome civil  (Marvelnessa) Vanessa Marinho Pereira “Art. 2º III – que o nome social não substitua o nome civil; mas venha após-posto e entre parênteses”39 Nome civil (nome social)  Vanessa (Marvelnessa) Marinho Pereira “Art. 2° - O nome social será assentado ao lado do nome civil”40 Nome civil nome social  Vanessa Marvelnessa Marinho Pereira “Art.1° § 2º (...) deverá ser colocado, em primeiro lugar e em destaque, o nome social da pessoa travesti ou transexual e, logo abaixo, a identificação civil.”41

Nome social

Marvelnessa Marinho Pereira

Nome civil

Vanessa

A confusão entre gênero e sexualidade é extremamente comum nos textos dos documentos. Não apenas de forma objetiva, ao tentarem conceituar transexualidade ou travestismo, como também na constante citação, como forma de validar o documento em questão, de legislações estaduais ou municipais de respeito à orientação sexual ou à livre sexualidade. Raros foram os documentos que relacionavam a questão trans* à identidade de gênero. No trecho a seguir, a vivência da transexualidade é atrelada à escolha de uma identidade sexual e a um pronome marcador de gênero masculino, evidenciando o 35

Resolução n° 232/12 – CONSEPE UFRN

36

Decreto n° 3.902/09 – Prefeitura de São João del-Rei

37

Utilizo meu nome e meu pseudônimo a fim de exemplo, sem qualquer intenção de igualar a importância de nomes artísticos e similares ao nome social.

38

Decreto nº 15.074 – Prefeitura de Vitória

39

Resolução 032/10 – CEE do Tocantins

40

Portaria n° 003/10 – SME Fortaleza

41

Lei Ordinária n° 5.916/09 – Governo do estado do Piauí

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embricamento entre sexualidade e gênero na legislação: “os transexuais e travestis têm o direito de escolher a identidade sexual que entenderem melhor para a busca de sua felicidade, sem perder de vista os direitos que são assegurados a todas as pessoas”42. Apenas um decreto se refere ao uso do nome social enquanto um direito das pessoas trans* de terem sua identidade de gênero respeitada. Contudo, no interior desse mesmo texto, é possível ver confusões em relação aos conceitos de sexo e gênero, ao se referir a “transexuais e travestis” como pessoas “que possuem identidade de gênero distinta do sexo biológico43”. Embora alguns textos utilizem gênero neutro ou ambos os gêneros para se referirem às identidades trans*, uma parte significativa do grupo analisado utiliza apenas o feminino, invisibilizando a existência de homens trans, como no trecho: “deverão prevalecer a identidade de gênero feminino das pessoas transexuais e travestis”44. A Declaração Internacional dos Direitos de Gênero (DIDG ou IBGR- International Bill of Gender Rights), de 1993, e Os Princípios de Yogyakarta, de 2006, são tratados internacionais importantíssimos para as discussões de Direitos Humanos e mais especificamente de direitos sexuais, de gênero e reprodutivos, pois problematizam as violações decorrentes do não respeito à sexualidades e às identidades de gênero e traçam princípios e direitos civis cruciais para a dignidade humana. Contudo, nenhum dos documentos analisados se refere a DIDG ou ao Manual Nascidos Livres e Iguais da ONU, e apenas 03 (três) documentos analisados citam a existência dos Princípios de Yogyakarta, como pode ser visto no gráfico abaixo. A Carta Magna é a mais citada, sendo seguida por documentos federais e estaduais de pouco valor normativo, com existências frágeis que dependem do interesse dos governantes em exercício para permanecerem válidas. Logo após, estão os documentos institucionais, de agências reguladoras ou conselhos profissionais, no geral de profissões da área da saúde.

42

Trecho do Decreto nº 1675/09 – Governo do Estado do Pará

43

Trecho retirado do Decreto 55.588/10 – Governo do Estado de São Paulo

44

Retirado do Decreto nº3902/09 – Prefeitura municipal de São João Del Rei – MG

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Gráfico 03 - Referência a documentos

Referências Documento Institucional 24%

Princípios de Yogyakarta 3%

Manual da ONU 0%

Constituição Federal 33%

Documento Municipal 3% Documento Estadual 13%

Documento Federal 24% Princípios de Yogyakarta

Manual da ONU

Constituição Federal

Documento Federal

Documento Estadual

Documento Municipal

Documento Institucional

3.3 Da sarjeta ao cárcere, agora me amarram ao consultório

Neste ponto, pelo cansaço dos papéis e o café derramado sobre os mesmos, gostaria de falar da nova Tekpix45 que acaba com o cissexismo, a heteronorma e promove o orgasmo livre, coletivo e popular, mas ainda tem o CID, o DSM e o travestismo. As identidades trans* ainda são vistas como partes de corpos doentes, anormais ou que precisam de procedimentos correcionais, para leigos, ignorantes ou pessoas mal intencionadas que insistem nessa patologização. Falarei daqueles que são sempre chamados a falar dos corpos trans* e a legislar sobre suas identidades (ou pelo menos dos documentos com valor normativo deles): o Conselho Federal de Medicina e suas ramificações e o Ministério da Saúde. Dos 61 (sessenta e um), agora são 09 (nove) documentos, datados de 1997 a março de 2014. E, para falar deles, também é necessário retomar a definição de transexualismo e transtorno de identidade de

45

Termo êmico geracional utilizado para ironizar conversas com conteúdos de grande intensidade e mobilização afetiva.

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gênero, do CID-10 e DSM-IV46, uma vez que estes documentos baseiam-se nesta classificação nosológica para se referirem às identidades trans*. F64 – Transtornos da identidade sexual F64.0 – Transexualismo Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado. (CID-10, 1992) F.64.X – Transtorno da Identidade de Gênero47 Características diagnósticas Há dois componentes no TIG, sendo que ambos devem estar presentes para fazer o diagnóstico. Deve haver evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, que consiste no desejo de ser, ou a insistência do indivíduo de que ele é do sexo oposto (Critério A). Esta identificação com o gênero oposto não deve refletir um mero desejo de quaisquer vantagens culturais percebidas por ser do outro sexo. Também deve haver evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou uma sensação de inadequação no papel de gênero deste sexo (Critério B). O diagnóstico não é feito se o indivíduo tem uma condição intersexual física concomitante (por ex., síndrome de insensibilidade aos andrógenos ou hiperplasia adrenal congênita) (Critério C). Para que este diagnóstico seja feito, deve haver evidências de sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo (Critério D). (DSM-IV, 1994)

Comecemos pelo movimento das resoluções do CFM que pautaram a definição de transexualismo48, os critérios diagnósticos e prognósticos que nortearam a instituição do Processo Transexualizador no sistema Único de Saúde. Na resolução CFM n°1.482/97 não é necessário nem chegar ao que ela “resolve autorizar” para entender quem é visto como sujeito de direitos, que deve ser resguardado, e quem (ou o que) é o objeto de intervenção. Vejamos o respaldo legal49, assegurado e enfatizado ao sujeito do texto, o médico. 46

Embora tenha sido publicado em 2013 a última versão do DSM, o DSM-V, no qual o transexualismo saiu da categoria diagnóstica “Transtorno da Identidade Sexual” e foi alocado como “Disforia de Gênero”, permanecendo assim enquanto uma patologia, optei por utilizar o DSM-IV, pela dificuldade de acesso a última versão do manual e porque todos os documentos analisados e bibliografia consultada se referem ao DSM-IV.

47

“El trastorno de identidad de género no existe. Lo que sí existe es la transfobia. Nos estudian, nos tocan, nos explican lo que nos pasa, nos hacen miles de pruebas para buscar la causa de nuestro terrible mal, nos analizan, nos pegan, nos violan. Nos tratan como a niños y nos matan como a perros. De día nos odian y de noche nos compran.” (Manifiesto de la Red por la Despatologización de las Identidades Trans del Estado español, 2010)

48

Utilizo o termo transexualismo nesta parte do texto, mesmo sabendo das implicações patologizantes do sufixo ismo, por ser o termo utilizado na legislação analisada e pela intrínseca relação com a linha diagnóstico/prognóstico.

49

Esses trechos se repetem nas resoluções CFM n° 1.652/02 e n° 1.955/10, que revogaram a resolução n° 1.482/97

54

CONSIDERANDO o que dispõe o artigo 199 da Constituição Federal, parágrafo quarto, que trata da remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como o fato de que a transformação da genitália constitui a etapa mais importante no tratamento de transexualismo; CONSIDERANDO que o artigo 42 do Código de Ética Médica veda os procedimentos médicos proibidos em lei, e não há lei que defina a transformação terapêutica da genitália in anima nobili como crime; CONSIDERANDO que o espírito de licitude ética pretendido visa fomentar o aperfeiçoamento de novas técnicas, bem como estimular a pesquisa cirúrgica de transformação da genitália e aprimorar os critérios de seleção;

Nas resoluções CFM n° 1.482/97, n° 1.652/02 e n° 1.955/10, o que se privilegia da Constituição Federal não é a dignidade humana e a igualdade entre os sujeitos, mas a licitude da remoção de órgãos e tecidos visando ao tratamento do que eles consideram uma doença. A ética em questão não se refere ao cuidado de si e dos outros, mas à proteção da classe profissional, que considera nos procedimentos de transformação de genitálias a possibilidade de pesquisar e aperfeiçoar novas técnicas cirúrgicas e o aprimoramento de critérios seletivos. O sujeito trans* é totalmente objetificado como o “portador de um desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à auto-mutilação e ao auto-exterminío.”50. Esta visão essencialista, além de objetificar os sujeitos, considera-os como auto-destrutivos e, como tais, além de não terem autonomia, necessitariam de medidas protetivas contra si mesmos. Ademais, definem a transexualidade ou, em seus termos, transexualismo como:

(...) a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados: 1. Desconforto com o sexo anatômico natural; 2. Desejo de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; 3. Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; 4. Ausência de outros transtornos mentais.51

De acordo com Arán e Lionço (2009, p.54) a “definição de transexualismo desconsidera a pluralidade na transexualidade, estabelecendo como critério diagnóstico o desejo pela correção ou adequação da genitália à experiência do gênero”. Esta definição está totalmente em consonância com os manuais nosológicos internacionais e serve para corroborar o silenciamento e assujeitamento necessários para a manutenção das pessoas trans* enquanto objetos nessa relação de poder fármaco-bio-médica. Além de produzir como efeito

50

Resoluções CFM n° 1.482/97, n° 1.652/02 e n° 1.955/10

51

Resoluções CFM n° 1.482/97, n° 1.652/02 e n° 1.955/10

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um discurso estereotipado entre aqueles que desejam a cirurgia, como entre os profissionais que prestam assistências a essas pessoas. Dessa forma, o CID cria as doenças e os sujeitos patológicos, o CFM regulamenta a prática médica e o saber sobre esses sujeitos, e isso provoca efeitos de verdade nos próprios corpos dos sujeitos.

O DSM-IV, o CID-10 e o SOC-6 partindo da transexualidade como transtorno psiquiátrico grave que necessita de um cuidadoso diagnóstico diferencial, que só é possível em um processo a longo prazo realizado por profissionais de saúde mental qualificados, desqualificando assim a informação fornecida pelas pessoas trans. 52 (tradução livre; SEEN apud SUESS, 2010:35)

Essa conceituação essencialista e patologizante da transexualidade vai de encontro à visão de que as identidades trans* são apenas manifestações de vivências para além do padrão binário cissexista e que devem ser respeitadas e valorizadas enquanto uma das formas de produções de subjetividades. Tal conceito essencialista também apaga o caráter histórico dessa definição patologizante que foi fruto de interesses de classes profissionais que buscam manter a hierarquia de gêneros e a norma cisgênero e heterossexual em nossa sociedade. Nesta esteira, Ira B. Pauly, integrante da APA e presidente da World Professional Association for Transgender Health (WPATH) de 1985 a 1987 – período de retirada da homossexualidade dos manuais e do ingresso da transexualidade nos mesmos –, considerava que a transexualidade:

(...) apresentava um impacto minoritário na população em relação à homossexualidade, o que tornava impossível considerá-la uma variante da diversidade humana” (...) [E, sendo] “a norma estatística a que reflete às normas da natureza, e a natureza, tendo como porta voz a psiquiatria, não poderia dar conta de grupos com aparente escassez representativa.” (FERNÁNDEZ, 2010, p. 180, tradução livre)53

52

No original: “El DSM-IV, el CIE-10 y el SOC-6 partiendo de una conceptuación de la transexualidad como transtornos psiquiátricos graves que un cuidadoso diagnóstico diferencial, que solo es posible en un proceso a largo plazo realizado por profesionale de salud mental cualificados, descalificando así la información provisa por parte de la persona trans.” (SEEN apud SUESS, 2010, p. 35)

53

No original: “em primer lugar, señalaba que la transexualidade presentaba um impacto más minoritário em la población que la homosexualidad, lo que hacía imposible considerarla uma variante de la diversidade humana (...) Para Pauly, era la norma estadística la que refljaba las normas de la naturaleza, y la naturaleza, hablada a través del altavoz de la psiquiatría, no podría dar cabida a grupos con aparente escasez representativa.” (FERNÁNDEZ, 2010, p.180)

56

Nesse sentido, vê-se que a patologização não se baseia em uma ética do cuidado54 e perspectiva de saúde55, mas sim em relações de poder violentas em que para ter existência social as pessoas trans* necessitariam da autorização de outros para existir e falar sobre si, além de implicar na aceitação de uma categoria patológica. Sendo assim, a Resolução n° 1.482/97 autoriza “a título experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo”. A cirurgia é considerada o ponto crucial da vida e do “tratamento dos casos de transexualismo”, como se houvesse um fluxo único para a vivência dessas pessoas, o qual se daria no âmbito médicotecnológico. A autorização está condicionada aos seguintes fatores: avaliação da pessoa trans* por uma equipe multiprofissional56 por um período mínimo de 02 (dois) anos; diagnóstico médico de transexualismo; idade mínima de 21 (vinte e um) anos; e “ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia” (CFM, 1997).

Tais critérios de

autorização permanecem inalterados nas resoluções posteriores do CFM, havendo modificações nos tipos de procedimentos realizados. Nas resoluções n° 1.652/02 e n° 1.955/10, as cirurgias neocolpovulplásticas de “transformação do fenótipo masculino para feminino” perdem o caráter experimental, podendo ser oferecida por hospitais públicos e privados e, segundo o Conselho, apresentariam “bom resultado cirúrgico, tanto do ponto de vista estético quanto funcional”. Ou seja, essas vaginas estariam de acordo com o desejo de consumo masculino e aptas a receberem a penetração de um pênis, de modo que o ponto de vista orgásmico da pessoa trans* não é considerado. Demonstrando a reprodução de um padrão heteronormativo em que os corpos que vivenciam feminilidades seriam objetos para saciar os desejos e prazeres masculinos. As neofaloplastias e procedimentos complementares sobre gônadas permanecem sob título experimental e só podem ser realizados em hospitais universitários autorizados, mantendo a ideia de pesquisa clínica.

54

A ética do cuidado é entendida aqui como a constituição de si enquanto “sujeito moral”, “sujeito ético” (Foucault, 1984; 1994) na perspectiva de uma estética da existência que visa o cuidado de si e dos outros administradas em um sentido de não dominação.

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Merhy (2007) acrescenta que as ações de saúde têm sido despotencializadas por perderem a dimensão de produção do cuidado que tendo como eixo norteador os encontros e afetos produtores de singularidades, fabrica a si e ao outro como sujeitos, não hierarquizando os saberes e perpetuando microfascismos.

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Embora a equipe seja teoricamente multiprofissional, o CFM considera que “o diagnóstico, a indicação, as terapêuticas prévias, as cirurgias e o prolongado acompanhamento pré e pós-operatório são atos médicos em sua essência.” (Resolução CFM n° 1.652/02 e n° 1.955/10)

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O Ministério da Saúde, em resposta a apelação cível n° 2001.71.00.026279-9/RS57, movida pelo Ministério Público Federal no ano de 2007, em 2008, instituiu o chamado Processo Transexualizador no âmbito do SUS com a portaria n° 1.707. Arán e Lionço (2009) acreditam que a revogação da resolução CFM n° 1.482/97 pela, resolução n° 1.652/02, inseria-se no “contexto de judicialização da demanda pelo custeio da transgenitalização” (ARÁN; LIONÇO, 2009, p.49), uma vez que o MS em resposta a ação cível n° 2001.71.00.026279-9/RS do MPF alegou que o caráter experimental da cirurgia neocovulplástica era um impedimento para seu custeio, “dado que o SUS não incorpora procedimentos cuja eficácia terapêutica não seja atestada pela comunidade médico-científica” (ARÁN; LIONÇO, 2009, p.50). Neste documento, o MS considera que:

a orientação sexual e a identidade de gênero são fatores reconhecidos pelo Ministério da Saúde como determinantes e condicionantes da situação de saúde, não apenas por implicarem práticas sexuais e sociais específicas, mas também por expor a população GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) a agravos decorrentes do estigma, dos processos discriminatórios e de exclusão que violam seus direitos humanos, dentre os quais os direitos à saúde, à dignidade, à não discriminação, a autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade.

Embora reconheça as problemáticas sociais vivenciadas por LGBTT enquanto questões decorrentes da heteronormatividade e cissexismo da nossa sociedade, o MS reitera a patologização das identidades trans* e a destituição de autonomia desses sujeitos ao enquadrá-los no CID F64.0, sob a nomenclatura de “transexualismo”, e na definição postulada pelos manuais nosológicos e pelo CFM. Na portaria nº 457/08 há o destrinchamento do que seria o Processo Transexualizador, dos locais em que poderia ser realizado, e de quais procedimentos estariam englobados no processo. O sujeito trans* existe no texto como “o indivíduo com indicação para a realização do processo transexualizador”, o qual, a partir do princípio de integralidade do SUS, ingressaria no código de serviço 153, criado pela portaria em questão: “153 – Atenção Especializada no Processo Transexualizador”. Esta atenção compreende o “procedimento específico para tratamento hormonal pré-operatório à cirurgia sequencial de transgenitalização”, apenas para pessoas maiores de 21 (vinte e um) anos. Ou seja, apenas adultos com um diagnóstico de transexualismo teriam acesso à administração de “acetato de ciproterona e estrógeno” antes de realizarem a cirurgia. O que significa dizer que os homens trans são esquecidos, considerando que a hormonioterapia prevista abarca apenas

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Esta ação teve como relator o Juiz Federal Roger Raupp Rios e apelando para a força normativa Constitucional e os direitos de igualdade, não discriminação e direito à saúde, solicita a “inclusão na tabela SIH-SUS de procedimentos de transgenitalização”.

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aquelas pessoas que buscam uma feminilização corporal, além de impor como condição para o acesso à terapia hormonal o desejo pela “cirurgia sequencial”. Neste sentido, a Portaria em comento considera, na contramão da realidade, que todos os sujeitos trans* que utilizam hormônios têm como finalidade a cirurgia nos genitais, voltando a uma antiga definição de transexualidade como atrelada à cirurgia. Além disso, convém sublinhar a invisibilidade dos homens trans naquele momento, evidenciada ao longo de toda a portaria que só prevê consultas e procedimentos cirúrgicos para mulheres trans, a saber: Redesignação sexual – 1º tempo Descrição: Consiste na retirada dos testículos (orquiectomia bilateral), na amputação peniana e na construção de uma neovagina a partir da bolsa escrotal. Redesignação sexual – 2º tempo Descrição: Consiste no alongamento das cordas vocais e tiroplastia para redução do Pomo de Adão, com vistas à feminilização da voz. 58

Os procedimentos de feminilização do corpo se centram na questão cirúrgica e se restringem à genitália e à voz. Não se coloca em questão outras vias que não sejam tão invasivas para esta feminilização. Tais procedimentos reproduzem padrões de feminilidade pautados na existência de uma vagina, deixando de levar em conta que, em muitos casos, uma prótese cirúrgica - ou prótese externa não invasiva - dos seios, para algumas dessas mulheres, é muito mais importante do que possuir uma vagina ou um pênis. Em 2013 o MS outorgou a portaria n° 859, que foi revogada no dia seguinte à sua publicação, a qual ampliava e redefinia o Processo Transexualizador, mantendo a patologização e os critérios diagnósticos e prognósticos da resolução CFM n° 1955/10. Esta portaria instituía o uso do nome social nas unidades de atendimento e determinava uma idade mínima para ingresso no processo Transexualizador, entendida como a de 05 anos, exclusivamente para acompanhamento clínico, entendendo que existem crianças que não se enquadram no binarismo de gênero e vivenciam desde cedo de forma mais acentuada a violência de gênero do cissexismo institucional. A idade para atendimento pré-operatório e hormonioterapia seria de 16 (dezesseis) anos, visibilizando a existência de adolescentes trans* e, ainda, previa que os procedimentos cirúrgicos poderiam ser realizados a partir de 18 (dezoito) anos. Os homens trans também seriam contemplados por esta Portaria, pois seriam incluídos no Processo através de procedimentos como a administração de testosterona, a mastectomia simples bilateral (remoção das mamas), a histerectomia com anexectomia bilateral e a colpectomia (ressecção de útero, ovários e trompas). A portaria também abrangia outras cirurgias e 58

Portaria MS n° 457/08

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reconstruções, ainda pautada pela ideia dos procedimentos cirúrgicos enquanto objetivo principal nas vivências trans*. Um ponto antagônico no texto dessa portaria é que, apesar de reconhecerem a utilização do nome social durante toda sua redação, não respeitam a identidade de gênero das pessoas trans*, ao passo que, na descrição dos procedimentos, referem-se aos homens trans como “usuárias” e às mulheres trans como “usuários”. Em certa maneira, ainda reforçam a idéia de que o sexo está arraigado à biologia, sendo a anatomia seu lócus, ao classificarem as pessoas trans* destinadas a cada procedimento de acordo com o sexo que lhes foi atribuído no nascimento (ou antes dele, nos exames de ultrassonografia em que a nomeação como “menino” ou “menina” inicia o processo de generificação dos corpos). O MS também criou em 2011, através da portaria n° 2.836, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, na qual assinala a necessidade de ampliar e qualificar o acesso da “população LGBT” ao SUS. Ademais, na resolução n° 002/11, O MS estabeleceu as estratégias de orientação do Plano Operativo desta nova política. A resolução n° 2.836 estabelece objetivos específicos, como o oferecimento de atenção aos “problemas decorrentes do uso prolongado de hormônios femininos e masculinos para travestis e transexuais”; a garantia de direitos sexuais e reprodutivos; a garantia do uso do nome social; a ampliação da rede do Processo Transexualizador; e a “implementação de ações, serviços e procedimentos no SUS, com vistas ao alívio do sofrimento, dor e adoecimento relacionados a aspectos de inadequação de identidade, corporal e psíquica relativos às pessoas transexuais e travestis”59. Oxalá que estes objetivos deixassem as linhas do texto e se tornassem reais no que diz respeito à autonomia, à equidade e aos direitos humanos de todos os corpos e vivências que não se limitam ou não se enquadram nas normas sociais de gêneros e sexualidades. Sabemos que esta resolução não chegou à prática, ficando longe de tornar-se real, demonstrando que um papel por si só não é capaz de educar e abrir a mente de uma sociedade marcada a ferro pelo machismo, cissexismo, lesbo-homofobia e transfobia. E é através de fábulas que chego à resolução conjunta n° 001/14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD-LGBT). Esta resolução prevê medidas que minha inserção no campo60, em pesquisa anterior, mostrou serem cruciais para o respeito à dignidade humana.

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Portaria MS n° 2.836/11

6060

Participei como psicóloga-pesquisadora junto a Professora Anna Uziel da pesquisa intitulada “Homossexualidade e Conjugalidade no Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro”, com financiamento da

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Dignidade esta que não subsiste no Sistema Penitenciário no caso de pessoas trans* (na pesquisa em questão homens trans ou pessoas não binárias com vivências de masculinidades em privação de liberdade nas unidades penitenciárias femininas). Pela minha experiência no campo, a efetiva implementação do “Art. 2° - A pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade tem o direito de ser chamada pelo seu nome social de acordo com seu gênero. O registro de admissão no estabelecimento prisional deverá conter o nome social da pessoa” e do “Art. 5° - À pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade serão facultados o uso de roupas femininas ou masculinas, (...) garantindo seus caracteres secundários de acordo com sua identidade de gênero”61, melhorariam significativamente a vivência das pessoas trans* nas unidades de internação, onde atualmente suas identidades de gênero e suas vivências são deslegitimadas e muitas vezes punidas para além da pena jurídico-criminal. Este documento também prevê a atenção integral à saúde, de acordo com a Política Nacional de Saúde integral LGBT, abarcando a não interrupção da hormonioterapia. Além disso, a resolução em questão prevê o encaminhamento de homens e mulheres trans para as unidades prisionais femininas e o encaminhamento de travestis para espaços específicos nas unidades masculinas. Neste último item, tem-se claramente a marginalização das travestis, que permanecem atreladas à masculinidade62, devendo permanecer nas unidades carcerárias masculinas enquanto as demais identidades trans* seriam encaminhadas para as unidades femininas. Parte dos documentos prevê ações de capacitação de técnicxs e funcionárixs e/ou “programas de combate à homofobia63”, no caso de legislação promulgada por/e de competência de instituições de ensino, saúde ou órgãos específicos e de ações de sensibilização através de Secretarias ou Conselhos LGBTTs. Entretanto nenhuma legislação traça ações ou parâmetros educativos efetivos. A análise da legislação apontou que as existências trans* se inserem na política a partir de apenas dois eixos, a utilização do nome social e modificações corporais, limitando drasticamente as demandas e lutas dos movimentos sociais. Essas ausências no papel e urgências nas vozes denotam o silenciamento imposto às pessoas trans* e aos grupos que FAPERJ, no período de 2011 a 2013. Neste ínterim realizei visitas semanais para a realização de entrevistas com internxs em unidades carcerárias femininas do Estado do Rio de Janeiro. 61

Resolução conjunta CNPCP e CNCD n° 001/14

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A respeito da distinção transexual x travesti com foco na genitália, em que a mulher trans teria horror ao próprio pênis, sendo este fonte de dor, e a travesti teria orgasmos através do pênis, sendo este fonte de prazer; reiterando a dicotomia atividade x passividade, gozo-masculino x frigidez-feminino; consultar FERNÁNDEZ, 2010.

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Trecho retirado da Portaria nº 013/10 – Secretaria Estadual de Educação do Distrito Federal

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buscam a despatologização dessas identidades. Nesse sentido, a legislação se configura como uma tentativa de conservar privilégios cissexistas e heteronormativos. Assim, a cidadania se mantém:

(...)como privilégio de classe, fazendo-a ser uma concessão regulada e periódica da classe dominante às demais classes sociais (...) as diferenças as assimetrias sociais e pessoais são imediatamente transformadas desigualdades, e estas, em relações hierarquia, mando e obediência (CHAUÍ, 1993, p.53-54).

A ausência de demandas se configurou enquanto um analisador, uma vez que a legislação se refere apenas à utilização do “nome social” ou de intervenções médicocirúrgicas. As pessoas trans* não possuem outras demandas, suas vidas se resumem ao respeito do nome social e às intervenções corporais? Não há problemáticas referentes à reprodução ou conjugalidade? Institucionalização em abrigos, prisões e hospitais não são questões? Assédio, violência e agressão não são vividas? Almeida (2012, p. 229) traça caminhos em termos de outras demandas a partir da pluralidade “de experiências de matizes muito diversas quando nos aproximamos ou vivemos com pessoas que se afirmam transexuais ou que têm na transexualidade uma vivência”, que não é abarcada pela experiência-padrão dos discursos técnicos biomédicos ou jurídicos. Uma vez que, para o autor: A política estatal de saúde pública brasileira, ao construir o modelo de atendimento aos transexuais no SUS incorporou em grande parte este determinismo, distinguindo quem pode e quem não pode realizar transformações corporais a partir de critérios psiquiátricos. Este modelo favorece a exclusão de indivíduos que não possuem todas as características esperadas de "transexual verdadeiro". Além disso, tal modelo condiciona a aquisição de um novo nome e identidade civil à submissão ao poder da biomedicina na forma de laudos que embasam a Justiça na tomada de decisões (ALMEIDA, 2012, p. 230).

A educação e a inserção no mercado de trabalho também aparecem como demandas quando a transexualidade passa a ser olhada em sua materialidade, nas múltiplas vivências e corpos das pessoas trans*. A instituição do uso do nome social pela legislação da forma que é realizada, sem pautar o respeito utilização de sanitários, uniformes e espaços binariamente generificados de acordo com a identidade de gênero das pessoas trans*, instaura zonas de monstruosidade que muitas vezes violentam e constrangem tais pessoas. O que acarreta evasão escolar (em que não é x alunx que evadi, e sim é x alunx que é evadido) nos anos iniciais dos processos de transição de muitas pessoas trans*. Configurando um quadro em que, ainda, predomina uma escolaridade limitada entre as subjetividades trans*, em especial

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entre as travestis oriundas de camadas populares. A esse respeito Almeida (2012, p. 232) acrescenta:

(...) são frequentes as histórias de abandono ou expulsão família ainda na infância ou adolescência, assim como narrativas de violência institucional no âmbito da escola. A consequência em geral é a migração para as capitais em busca de lugares onde a travestilidade é mais tolerada e a inserção no mercado sexual como profissionais do sexo como a única opção. Neste processo muitas passam a viver em situação de rua e/ou experimentam exploração sexual sofrendo novas violências.

A inserção no mercado de trabalho se configura como uma ausência crucial na legislação, pois limita as opções de vida das pessoas trans* e, muitas vezes reforça a estigmatização e vulnerabilidade dessas vivências. O mercado formal de trabalho, ainda, é marcado pela misognia e cissexismo, tornando difícil a contratação de pessoas que não se enquadram nas normas de gêneros ou que borram as fronteiras das expectativas sociais de coerência entre gênero e sexo. Almeida (2012) explicita que pessoas trans* que não escondem seu gênero quando buscam emprego no mercado formal de trabalho são constantemente discriminadas, não conseguindo a inserção nas vagas pleiteadas e sendo relegadas ao mercado informal. A falta de políticas que pautem a habitação ou o acolhimento em abrigo de pessoas trans* acarreta a total falta de respeito à dignidade desses sujeitos que, em situação de rua, quando são abrigados em instituições de acordo com seu sexo identificado no registro civil. Submetendo, constantemente, essas pessoas a violências físicas e psicológicas. Tais violências englobam desde a obrigação de utilizar vestimentas que não condizem com a identidade de gênero vivenciada, ao corte de cabelos, a imposição de que se comportem de acordo com o gênero assignado ao nascimento, à agressões físicas. A patologização da transexualidade e as normas do Processo Transexualizador no SUS reiteram os processos de exclusão social vivenciados pelas pessoas trans* e instauram um Ser baseado em uma “experiência-padrão”, não assegurando uma assistência à saúde efetivamente integral. A saúde desses sujeitos não diz respeito apenas a cirurgias genitais e hormonioterapia, mas também a processos cotidianos de exclusão, discriminação e patologização.

A política estatal de saúde pública brasileira, ao construir o modelo de atendimento aos transexuais no SUS incorporou em grande parte este determinismo, distinguindo quem pode e quem não pode realizar transformações corporais a partir de critérios psiquiátricos. Este modelo favorece a exclusão de indivíduos que não possuem todas as características esperadas de "transexual verdadeiro". Além disso, tal modelo condiciona a aquisição de um novo nome e identidade civil à submissão ao poder da

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biomedicina na forma de laudos que embasam a Justiça na tomada de decisões. (ALMEIDA, 2012, p.230)

Não pretendo esgotar todas as demandas relacionadas as identidades trans*, elas são muitas e múltiplas, meu desejo é salientar a necessidade de despatologização dessas vivências para que seja possível novas formas de pensar e pautar essas identidades na legislação. Formas que valorizem esses sujeitos, sejam potências e não dispositivos de precaridad.

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4 FRANKENSTEIN, O FILHO PRÓDIGO, À CASA RETORNA. CIBORGUE A INCENDEIA

Diferentemente das esperanças do monstro de Frankenstein, o ciborgue não espera que seu pai vá salvá-lo por meio da restauração do Paraíso, isto é, por meio da fabricação de um parceiro heterossexual, por meio de sua complementação em um todo, uma cidade e um cosmo acabados. Haraway, 2009, p.39

Nesse trabalho considero que a legislação para as pessoas trans* tem caráter dúbio, funcionando como acesso a direitos básicos e muitas vezes como garantidora de existência oficial, como também marca o ingresso formal nas lógicas de judicialização da vida, de normalização de condutas e cerceamento de potências. Para pensar esses processos, parto do conceito de abjeto de Butler (2000; 2002; 2010), um conceito que articula existência ontológica e materialização dos corpos através de uma dobra performativa. Sendo a afirmação “há corpos abjetos” o processo de atribuir existência ontológica a uma série de corpos e vivências que foram excluídos sistemática e propositalmente das zonas ontológicas do sujeito (BUTLER, 2002). Esses seres abjetos habitariam zonas sombrias, inóspitas e inacessíveis da vida social, possuindo corpos ininteligíveis e, portanto, não importantes. A produção dessas zonas de abjeção funcionam como o outro constitutivo das zonas ontológicas do sujeito, pois sua existência é necessária para circunscrever o perímetro onde os corpos adquirem materialidade e formam sujeitos com vidas que são consideradas vivas. Nesta esteira, alude a autora:

Esta matriz excludente pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres abjetos, aquele que ainda não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “inóspitas” e “inabitáveis” da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do “inabitável” é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. (BUTLER, 2000, p. 113)

O abjeto não se restringe aos sexos, gêneros, heteronormatividade e cissexismo, uma vez que se relaciona a todo tipo de corpos, cujas vidas não são consideradas “vidas”, cuja

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materialidade é entendida como “não importante”. Essas vidas não entendidas como “vivas” não são dignas de duelo e nem choradas, pois para que uma vida seja entendida como perdida, há que ser apreendida pelos planos normativos, a priori, como “viva”64. (BUTLER, 2009, tradução livre)

Os planos normativos se veem interrompidos reciprocamente, se fazem e desfazem segundo operações mais amplas de poder, e embora enfrentem versões espectrais do que pretendem conhecer: assim, há “sujeitos” que não são completamente reconhecidos como sujeitos, e há “vidas” que não são de todo – ou nunca o são – 65 reconhecidas como “vivas”.

Embora as zonas de abjeção não se limitem ao âmbito dos gêneros e sexualidades, as identidades trans* habitaram (e em parte ainda habitam, principalmente se pensarmos a existência de crianças e adolescentes que não vivem de acordo com as normas binárias e cissexista dos gêneros) por muito tempo essas zonas fora do pensamento socialmente inteligível, pois a existência de seus corpos parece não importar. “De fato, importam, pois os abjetos precisam estar lá, ainda que numa higiênica distância, para demarcar as fronteiras da normalidade” (PELÚCIO apud PERES, 2012, p. 241). Além da abjeção de certos tipos de corpos genereificados e sexuados ser produto de sua inaceitabilidade por códigos de inteligibilidade66 social, a formação do sujeito exige uma identificação com os códigos normativos do sexo. Tal identificação ocorre através de um repúdio das vidas não reconhecidas como “vivas”, produzindo um domínio de abjeção, um repúdio sem o qual o sujeito não poderia emergir. Butler (2000, p.161) explicita que a lógica binária de:

(...)construção do gênero atua através de meios excludentes, de forma que o humano é não apenas produzido sobre e contra o inumano, mas através de um conjunto de exclusões, de apagamentos radicais, os quais, estritamente falando, recusam a possibilidade de articulação cultural”.

64

A esse respeito Butler (2009, p.16) acrescenta: La capacidade epistemológica para apreender uma vida es parcialmente dependiente de que esa vida sea producida según unas normas que la caracterizan, precisamente, como vida, o más bien como parte de la vida.”

65

No original: Los planes normativos se ven interrompidos reciprocamente los unos por los otros, se hacen y deshacen según operaciones más amplias de poder, y muy a menudo se enfrentan a versiones espectrales de lo que pretenden conocer: así, hay “sujetos” que no son completamente reconocibles como sujetos, y hay “vidas” que no son del todo – o nunca lo son – reconocidas como vivas. (BUTLER, 2009, p. 17)

66

Para Preciado (2008) a não inteligibilidade social dos corpos abjetos diz respeito a capitalização desses corpos pela indústria técno-fármaco-científica ocidental. Nesse sentido, os milhares de soropositivos que morrem anualmente na África, não é considerada uma população enferma para o sistema farmacopornográfico pois estes corpos não estão nem mortos, nem vivos.

66

Dessa forma, ao se nomear um grupo “excluído”, damos a ele um status oficial, um reconhecimento e, logo, uma possibilidade de articulação e reivindicação de direitos. Isso faria com que os corpos que constituem esses grupos ganhassem alguma materialidade ou inteligibilidade, esfumaçando as bordas entre as zonas de abjeção e as zonas de monstruosidade, possibilitando que, mesmo na presença de documentos que reconhecem a existência de sujeitos trans*, as suas mortes não sejam choradas. Não sejam choradas socialmente, pois nos microespaços são choradas e lembradas por aquelxs que mesmo não possuindo status social de sujeitos o fazem enquanto o cissexismo social e a heteronorma não apaguem suas existências. O modo pelo qual essas vidas, esses corpos, não são entendidos como “vivos”, é expresso quando suas mortes podem ser contadas numericamente, mas sem nenhuma especificidade. Pessoas trans* são violentadas, agredidas e assassinadas cotidianamente e quando aparecem nos noticiários são apenas dados, mais um corpo, sem nenhuma identidade, história pessoal, familiar ou psicológica complexa. Siqueira (2013), em plataformas virtuais, nos fornece os nomes e identidades de 121 (cento e vinte e um) travestis e mulheres trans assassinadas e nos pergunta quem irá chorar por elas. Essas mulheres não são choradas, e mesmo depois de mortas têm sua identidade de gênero deslegitimada, sendo novamente violentadas por reportagens jornalísticas que as tratam por pronomes masculinos e, muitas vezes, as culpam por suas próprias mortes, legitimando a atitude de seus agressores. Neste sentido, pode-se pensar que é precisamente porque os corpos são igualmente precários, encontrando-se em seu estado existencial ameaçados, que se produzem formas de dominação e hierarquização. Assim, para Butler (2009), a precariedad67 seria uma condição existencial compartilhada por todos os corpos, e a precaridad, um dispositivo sócio-político que objetifica o aniquilamento de certos corpos e populações. A apreensão da precariedad da vida pode levar a lógicas de proteção, como forma de manutenção das vidas dignas de serem choradas, ou podem levar à potencialização da violência, para a destruição das vidas que não são dignas de duelo68. O fato de que toda vida é precária, necessitando de condições para que se possa viver, institui que a capacidade de ser chorada é a condição de surgimento e manutenção da vida, pois ser digna de ser chorada é um pressuposto de todas as vidas que importam. Ou seja, “sem capacidade de suscitar condolência, não existe vida alguma, ou melhor dito, há algo que está 67

Mantenho o conceito na língua original por não haver vocábulo que mantenha o sentido preciso do utilizado por Butler (2010), em que precariedad e precaridad são conceitos distintos.

68

A esse respeito a autora fala: Puede ser que (...) la aprehensión de la precariedade conduzca a uma potenciación de la violência, a una percepción de la vulnerabilidade física de certo conjunto de personas que provoque el deseo de destruirlas. (Butler, 2009:16)

67

vivo mas é distinto da vida (BUTLER, 2009, p. 32, tradução livre)69. É justamente essa concepção social de que pessoas trans* são corpos abjetos que justifica expressões de transfobia e o aniquilamento brutal dessas subjetividades. O aniquilamento de que falo não é apenas simbólico, mas também segue ao pé da letra a vivência dessas pessoas e seus corpos. Carrara e Vianna (2006), em seu artigo “Tá lá o corpo estendido no chão...”: a Violência Letal contra Travestis no Município do Rio de Janeiro, mostram dados dos assassinatos e execuções de travestis e o patenteado desinteresse da polícia na apuração dos casos, não havendo detidos ou acusados e constantemente ocorrendo a culpabilização da vítima. O aparente descaso policial e do Judiciário nada mais é do que a perpetuação da idéia de que essas vidas perdidas não são objeto de duelo, uma vez que não são, anteriormente, sequer apreendidas como vivas. Configura-se, assim:

A distribuição diferencial do direito a duelo entre as diferentes populações têm implicações importantes na hora de saber por que e quando sentimos disposições afetivas de especial importância política, como, por exemplo, horror, culpabilidade, sadismo justificado, perda ou indiferença. (BUTLER, 2009, p. 45, tradução livre)70

4.1 "...existe algo selvagem dentro de todos nós."71

Nos borrões e apagamentos de bordas, infiltração de fronteiras e zonas o abjeto e o monstro se interpelam. Se o abjeto não é inteligível na episteme social, o monstro, por outro lado, ingressou nesse território e tem certo reconhecimento da sociedade. O monstro opera no limite das categorias, entre a categorização e a não categorização. Para Foucault (2013, p.48), “o que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza”. Devido sua estreita ligação com as normas, o monstro é uma criação gestada por cada cultura temporo-espacialmente, assim, cada sociedade cria seus monstros. Medusas,

69

No original: “Sin capacidade de suscitar condolência, no existe vida alguna, o, mejor dicho, hay algo que está vivo pero que es distinto a la vida.”

70

No original: La distribución diferencial del derecho a duelo entre las distintas poblaciones tiene importantes implicaciones a la hora de saber por qué y cuándo sentimos disposiones afectivas de especial importância política, como, por ejemplo, horror, culpabilidade, sadismo justificado, perdida o indiferencia. (BUTLER, 2009, p. 45)

71

Frase do filme Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak (2012).

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centauros, quimeras, bufões, corcundas, siameses, anormais, hermafroditas, psicopatas, gays, travestis: são algumas das faces ou identidades encarnadas pelos monstros. Historicizando o conceito de monstro, Kappler (1994) sustenta que a ambiguidade entre terror e fascínio produzida pelo monstro remonta à Antiguidade Clássica, em que os monstros também eram classificados como maravilhas uma vez que encarnavam em seus corpos e existências a natureza e o sobrenatural. O autor também afirma que é somente na baixa Idade Média, por influência do cristianismo, que os monstros perdem seu caráter dúbio sendo associados ao demônio cristão, encarnando algo maléfico e destrutivo por natureza. Leite Jr. (1999, p. 561) afirma que “a monstruosidade é entendida como uma transgressão das leis estabelecidas, visando, através de sua presença, inspirar temores e dúvidas ou punir contra infrações”. Além de que esta presença é materializada por sua corporeidade, que “mostra” ou “revela”, seja pela deformidade ou alteridade de seu corpo, a alteridade ou deformidade da alma. E é justamente pelo que o corpo revela, que entre os séculos XIII e XVI, os “monstros” ocuparam uma posição social única na Europa, vivendo junto ao rei e nobres como os famosos “bobos da corte”. Escolhidos devido mutações físicas ou debilidades mentais, serviam para divertir, sendo alvos de chacota, desprezo e ofensas. De acordo com Leite Jr. (2006, p. 10), esses corpos “eram a materialização da vida fora da ordem, da vileza da alma encarnada na feiúra da aparência, provavelmente quanto mais deformado melhor expressava o “mundo fora dos eixos”. Desta forma, quanto maior o sentimento de “desordem” encarnado, maior seria o sentimento de “ordem” evocado no meio. Nesse sentido o monstro se assemelha do abjeto por ser o Outro necessário ao sujeito, mas se o abjeto é imperativo para a constituição epistêmica desse sujeito, o monstro é indispensável para a manutenção das fronteiras da “normalidade”. Segundo Gil (2009, p. 42), “é por isso que as diferentes formas do Outro tendem para a monstruosidade: contrariamente ao animal e aos deuses, o monstro assinala o limite “interno” da humanidade do homem”. De acordo com Foucault (2010, p. 54) “só há monstruosidade onde a desordem da lei natural vem tocar, abalar, inquietar o direito, seja o direito civil, o direito canônico ou o direito religioso”. O monstro é essencialmente o misto, a mistura de duas espécies, dois indivíduos, dois sexos, vida e morte. São “híbridos que perturbam, híbridos cujos corpos externamente incoerentes resistem a tentativas para incluí-los em qualquer estruturação sistemática. E, assim, o monstro é perigoso, uma forma — suspensa entre formas — que ameaça explodir toda e qualquer distinção” (COHEN, 2000, p. 30). Por serem a irregularidade ou o deslocamento da ordem binária obrigam o direito a se interrogar acerca de seus “próprios fundamentos, ou sobre suas práticas” (FOUCAULT, 2010, p. 54) levando-o a renunciar, criar

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jurisprudências ou a apelar para outros sistemas de referência, como a medicina, a assistência, a incriminação ou a estigmatização do senso comum. As zonas de monstruosidade borram as fronteiras entre os corpos pessoais e nacionais destruindo distâncias estruturais que podem engendrar mecanismos de precaridad, como violências e comportamentos xenófobos ou racistas. A esse respeito, Cohen (2009) explica que quando um tipo de alteridade:

(...) é freqüentemente escrita como outra, de forma que a diferença nacional (por exemplo) é transformada em diferença sexual. [...] A pele negra estava associada com o fogo do inferno, significando, assim, na mitologia cristã, uma proveniência demoníaca. O pervertido e exagerado apetite sexual dos monstros era, em geral, rapidamente atribuído ao etíope (COHEN, 2000, p. 37-40) No século XVIII os monstros sobem aos palcos nos espetáculos dos freak shows e ao mesmo tempo adentram os consultórios e museus teratológicos, tornando-se ao mesmo tempo objetos de espetacularização e de pesquisas. Com a dissecação do estranho e do grotesco pelas lentes biologizantes a monstruosidade até então encarnada no corpo de gêmeos siameses e marcada pela mistura dos sexos de hermafroditas, banaliza-se. Ou seja, deixa de ser uma monstruosidade, tornando-se uma imperfeição, uma anomalia somática. No início do século XIX surgem as monstruosidades da conduta, sendo o monstro aquele que transgride tudo o que separa um sexo do outro. Para Foucault (2010, p.62) “aparece a atribuição de uma monstruosidade que não é mais jurídico-natural, que é jurídico-moral”. Desta maneira, as sexualidades não hetero-orientadas, as práticas sexuais não procriativas e os gêneros não binários constituem-se como zonas de monstruosidade que servem para policiar as fronteiras do possível, interditando alguns comportamentos e ações, além de barrar certas existências. Neste sentido, Cohen (2000, p.44) acrescenta:

O monstro corporifica aquelas práticas sexuais que não devem ser exercidas ou que devem ser exercidas apenas por meio do corpo do monstro. Ela e Eles!: o monstro impõe os códigos culturais que regulam o desejo sexual.

Ao contrário do abjeto, o monstro se insere nas categorias de pensamento socialmente inteligíveis, ele não se situa fora do domínio humano, mas sim em sua limiaridade. Contudo, para Leite Jr. (2012, p.562) nessas zonas “a noção de humanidade não opera com a mesma força ou com os mesmos pressupostos, ou seja, as mesmas regras que valem (e são reforçadas) para o mundo dos humanos não são vistas como válidas para o universo dos monstros” . A essa não humanidade, ou humanidade espectral, dos monstros é permitida

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existência desde que nos limites ditados pela normalidade, quando estes são ultrapassados, os monstros precisam ser aniquilados, tornando-se abjetos. A oficialização da transexualidade e demais identidades trans* em zonas de monstruosidade através da legislação não é estável, ela tensiona e cruza constantemente as fronteiras entre o monstro e o abjeto. A humanidade legitimada pelos papéis não representa uma inserção de cidadania tal qual a das identidades cis e nem iguala essas existências na sociedade. Nessa esteira, a necessidade do diagnóstico diferencial instituído pela legislação cria as zonas de monstruosidade em que procedimentos de mudanças corporais e funcionais associadas a questões estéticas quando se tratam de pessoas cisgêneros, exigem a autorização de outrem e a aceitação da patologização para serem realizadas por pessoas trans*. As zonas de monstruosidade também são ligada ao dispositivo da transexualidade, intrinsecamente associados a tecnologias fármaco-biomédicas, quando a legitimação das identidades trans* estão sujeitas a “restrições normativas e interdições para o acesso aos procedimentos que incidem sobre transformações corporais de caracteres sexuais, intermediando de forma reguladora o acesso aos bens e avanços biotecnológicos” (ARÁN; LIONÇO, 2009, p. 56). As portarias instituídas pelo MS que regulam o atendimento às pessoas trans* as situa “no contexto da medicalização e da suposta objetividade em que a assistência à saúde tem orientado suas reflexões e condutas terapêuticas, tomando como referência o modelo biomédico e as conduções psiquiátricas” (LIMA, 2012, p. 07). Dessa forma, a autonomia e direito ao corpo não funciona na mesma lógica para pessoas cis e trans*, explicitando o lugar de monstros dessas. As legislações que tangem a utilização do nome social, também mantém a distância higiênica de tentativa de demarcação das fronteiras de normalidade ao instituírem alocações conjuntas de registro civil e nome social. O registro civil não corresponde ao corpo ali presente, não remete a nenhuma identificação real da pessoa trans*, não serve no processo de produção daquela subjetividade que não para constranger e marcar aquela humanidade como diferente. A “Carteira de nome social para Travestis e Transexuais” criada pelo decreto n° 49.122, explicita visualmente essas marcas de monstruosidade, pois ao invés de propor mudanças nas lógicas de identificação civil, instaura um documento de segregação que mantém as normas vigentes. Deixando as zonas de abjeção, esses corpos ingressam em zonas de monstruosidade. Alguns normatizam-se almejando deixar a precaridad para trás e tornarem-se vidas dignas de duelo, vidas choradas. Há também aquelxs que, sabendo que o espectro xs acompanhará

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aonde forem, dançam pelas zonas, tencionam os limites, não aceitam a taxinomia de anormais, tampouco de normais: são ciborgues. Transitando entre abjeção, monstruosidade e existências ciborgues as identidades trans* dialogam com o anômalo e as subjetividades nômades ao mesmo tempo em que oscilam entre discursos e figurações normatizadoras. As subjetividades trans* podem constituir processualidades em trânsito próximas a modos de subjetivação nômades ou, ainda, cristalizarem modelos de verdades e discursos essencialistas, mantendo a heteronormatividade “demarcada por códigos de inteligibilidades falocêntricos” (PERES, 2012, p. 540).

4.2 Na orgia ciborguiana a potência orgásmica é em gel e xs convidadxs subjetividades toxopornográficas

Me llaman la Agrado, porque toda mi vida sólo he pretendido hacerle la vida agradable a los demás. Además de agradable, soy muy auténtica. Miren qué cuerpo, todo hecho a medida: rasgado de ojos 80.000; nariz 200, tiradas a la basura porque un año después me la pusieron así de otro palizón... Ya sé que me da mucha personalidad, pero si llego a saberlo no me la toco. Tetas, 2, porque no soy ningún monstruo, 70 cada una pero estas las tengo ya superamortizás. Silicona en labios, frente, pómulos, caderas y culo. El litro cuesta unas 100.000, así que echar las cuentas porque yo, ya las he perdio... Limadura de mandíbula 75.000; depilación definitiva en laser, porque la mujer también viene del mono, bueno, tanto o más que el hombre! 60.000 por sesión. Depende de lo barbuda que una sea, lo normal es de 2 a 4 sesiones, pero si eres folclórica, necesitas más claro... bueno, lo que les estaba diciendo, que cuesta mucho ser auténtica, señora, y en estas cosas no hay que ser rácana, porque una es más auténtica cuanto más se parece a lo que ha soñado de sí misma. Personagem Agrado em Tudo sobre minha mãe, 1999

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Preciado (2008) fala de biocapitalismo farmacopornográfico, uma espécie de miniaturização e torsão da sociedade de controle (DG, Mil Platôs), de uma absorção e da sociedade disciplinar (Foucault), através de dispositivos intensivos de produção de subjetividades que agem do interior dos corpos. Não se trata apenas de corpos dóceis, mas de subjetividades capitalísticas que pela digitalização, molecularização e eletrização dos mecanismos de controla e se tornam subjetividades toxicopornográficas. Parafraseando x autorx: A sociedade contemporânea está habitada por subjetividades toxicopornográficas: subjetividades que se definem pela substância (ou substâncias) que domina seus metabolismos, pelas próteses cibernéticas que se tornam agentes dos tipos de desejos farmacopornográficos que orientam suas ações. Assim, falaremos de sujeitos Prozac, sujeitos cannabis, sujeitos cocaína, sujeitos álcool, sujeitos ritalina, sujeitos cortisona, sujeitos silicone, sujeitos heterovaginais, sujeitos dupla-penetração, sujeitos Viagra, etc. (PRECIADO, 2008, p. 33, tradução livre)72

As subjetividades na sociedade capitalística não se definem pelo que são, mas sim pelo que fazem, diluindo o sujeito e, por fluxos e agenciamentos, corpos sem órgãos, entes e máquinas desejantes, podem se lançarem aos devires vivendo o nomadismo, o anômalo como potências em seus processos de singularização. Claro que também podem silenciar essa polifonia e aprisionar-se no Ser, de onde decorre o indivíduo. De acordo Preciado (2008, p.39) esses processão são tão regulados pela economia farmacopornográficas, que não é possível falar de sujeitos em termos de um substrato biológico exterior as tramas de produção e manutenção próprias da tecnociênca, uma vez que “este corpo é uma entidade tecnoviva multiconectada que incorpora tecnologia”. Aparecendo nesse contexto a figura do ciborgue enquanto potência subjetiva. O ciborgue é organismo e máquina, fluxos e devir, é um corpo sem órgãos, é a conexão de vários terminais com algo sempre por-vir. O corpo do ciborgue não necessita de órgãos, ele é um organismo. A respeito do corpo sem órgão e seus devires Deleuze (2007, p. 47) nos fala:

O corpo sem órgãos se opõe menos aos órgãos do que a essa organização dos órgãos que chamamos de organismo. Trata-se de um corpo intenso, intensivo. Ele é percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações de sua amplitude. O corpo, então, não tem órgãos, mas limiares ou níveis.

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No original: “La sociedade contemporânea está habitada por subjetividades toxicopornográficas: subjetividades que se definem por la sustancia (o sustancias) que domina sus metabolismos, por las prótesis cibernéticas a través de las que se vielven agentes, por los tipos d deseos farmacopornográficos que orientan sus acciones. Así hablaremos de sujetos Prozac, sujetos cannabis, sujetos cocaína, sujetos alcohol, sujetos ritalina, sujetos cortisona, sujetos silicona, sujetos heterovaginales, sujetos doblepenetración, sujetos Viagra, etc.” (Preciado, 2008:33)

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Na sociedade biocapitalista farmacopornográfica não há distinção entre máquinas biológicas, humanas, mecânicas, eletrônicas, naturais, sociais, institucionais. Para Haraway (2000, p.40), a fronteira entre o humano e o não-humano foi rompida no final do século XX. Ou seja, “caíram as últimas fortalezas da defesa do privilégio da singularidade [humana] – a linguagem, o uso de instrumentos, o comportamento social, os eventos mentais; nada disso estabelece, realmente, de forma convincente, a separação entre o humano e o animal”. Além disso, o antigo dualismo homem-máquina/tecnologia não faz mais sentido, quando não está claro quem faz e quem é feito nesta relação. Segundo a autora, “a cultura high-tech contesta – de forma intrigante – esses dualismos. [...] Não está claro o que é mente e o que é corpo em máquinas que funcionam de acordo com práticas de codificação (HARAWAY, 2009, p. 91). Sendo uma das consequências disso o fato de que “nosso sentimento de conexão com nossos instrumentos é reforçado” (HARAWAY, 2009, p. 92) constantemente, criando sujeitos iphone, sujeitos smartphone, sujeitos instagram, sujeitos facebook, etc. A hibridização é expressa por estados de transe de usuários de jogos online, na experiência de deficientes físicos com mecanismos de comunicação ou locomoção, ou em nós acadêmicxs e nossos kindles ou tablets. Nesse sentido, a vida se constitui em interfaces de fluxos humano-virtuais sem as quais não teriam existência. Dessa forma, “a máquina não é uma coisa a ser animada, idolatrada e dominada. A máquina coincide conosco, com nossos processos; ela é um aspecto de nossa corporificação” (HARAWAY, 2009, p. 97). Nossos

corpos

legítimos

de

duelo

estão

inseridos

nessa

biocapitalista

farmacopornográfica, tanto quanto os dos monstros. Todxs somos subjetividades toxicopornográficas, os acessos ás tecnologias de hibridização que diferem de acordo com o grau de humanidade que nos atribuem. A inteligibilidade de ser cis em nossa sociedade aliada à lógica biocapitalística faz com que seja extremamente fácil para mulheres cis tornarem-se sujeitos silicone, seja pelo desejo de ter os maiores seios do mundo ou por ter um terceiro seio para se afastar dos padrões estéticos de consumo do desejo masculino; ou ainda sujeitos barbie, realizando inúmeras cirurgias estéticas e genitais para se adequarem a um padrão de feminilidade violento.

Nenhuma dessas hibridizações requer uma patologização ou

acompanhamento psicológico pela legitimidade cis em uma sociedade cissexista. Para aquelxs que não se inserem nesse sistema de inteligibilidade enquanto sujeitos, mas como monstruosidades, as tecnologias se precarizam, seja em termos de acesso – quando exigem a aceitação de uma subjetividade patologizada –, seja no que diz às técnicas utilizadas – como a utilização de silicone industrial através de “bombadeiras”. A respeito da precaridad do

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processo de hibridização das travestis na construção de seus projetos corporais, Fernández (2004, p.174) conta: (...) uma jovem recebia injeções de silicone nas nádegas enquanto mordia a almofada para suportar a dor (...) De um galão de plástico branco retiravam o espesso líquido com canecas, que finalmente, alimentavam as seringas. Através de uma agulha espessa, as seringas esvaziavam-se lentamente por baixo da pele dos glúteos que, gradualmente, tornavam-se rosados.73

Comumente esta é a única forma para esses corpos que habitam zonas de monstruosidade assegurarem sua hibridização, as práticas dolorosas e as condições materiais sépticas elevam os riscos e a vulnerabilidade desses corpos. Esse habitar em zonas de monstruosidade solicita desses corpos novas formas de existir, linhas de fuga dos protocolos, fluxos e traçados não-institucionalizados. Dessa forma, Peres (2012, p.542) se refere às travestis como “seres híbridos particulares, que expressam estilísticas marginais do desejo” que pela sua potência de deslocamentos nômades traz à tona “a necessidade de que a questão da diferença entre as diferenças seja tomada como afirmativa, ativa, transitória e potente” (PERES, 2012, p.543). Potência esta constituinte do ciborgue, que pela regeneração de partes de si cria membros novos, monstruosos, devires. Almeida (2012) ao falar de sua experiência pessoal e de outras pessoas que se autoidentificam como trans*, explicita a potência dessas vivências ao lidarem com a estigmatização social em suas trajetórias, as linhas de fuga e resistências que surgem nessas zonas de monstruosidade. Tais estratégias de existencialização, de viver mesmo quando os processos sociais de precaridad marcam esses corpos e tentam apagá-los constitui um devirciborgue de subjetividades trans*.

Com frequência, viver como transexual, mesmo que tal identidade não seja publicamente revelada, implica trajetórias de vida marcadas por forte estigmatização que, se por um lado faz vítimas mais ou menos constantes de discriminação, por outro obriga a construção de estratégias criativas por meio das quais é elaborada a própria existência, trata-se, portanto, de um processo de conformismo e resistência. (ALMEIDA, 2012, p.231)

As pessoas trans* se aproximam do conceito de ciborgue quando produzem processos de singularização em meio as adversidades impostas pela sociedade, quando pelo nomadismo, pela criação, adaptação e quebra de normas produzem modos de subjetivação apoiados na 73

No original: “una joven recibía inyecciones de siliconas en los glúteos mientras mordía la almohada para soportar el dolor (...) De un bidón de plástico blanco se llevaba el espeso líquido a los tazones que, finalmente, alimentaban las jeringas. A través de una gruesa aguja, las jeringas se vaciaban lentamente bajo la piel de los glúteos que, gradualmente, se volvía morada. (FERNÁNEZ, 2004, p. 174)

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diferença das diferenças. O ciborgue se constitui quando elas levantam, se regeneram e recriam a cada violência que nossa sociedade as impõe, mostrando que suas vidas também importam, também são dignas de duelo e devem ser choradas. E sua existência ciborgue “pela circulação, mobilidade, fuga, êxodo, deserção: trata-se de multidões que resistem de maneira difusa e escapam das gaiolas sempre mais estreitas da miséria e do poder” (PELBART, 2011, p.142). Para Haraway (2009, p.98), “precisamos de regeneração, não de renascimento, e as possibilidades para nossa reconstituição incluem o sonho utópico da esperança de um mundo monstruoso, sem gênero”. O gênero, a raça, o sexo e todas as demais fronteiras e marcações identitárias, nos ciborgues seriam a presença simultânea e fluida de muitos de tais eixos: intempestivos, múltiplos, rizomáticos, híbridos, intensos. Em que só se poderiam constituir teorias ciborguianas, nunca epistemes totalizadoras. Dessa forma, “o que existe é uma experiência íntima sobre fronteiras – sobre sua construção e desconstrução” (HARAWAY, 2009, p.98)

O ciborgue não sonha com uma comunidade baseada no modelo da família orgânica mesmo que, desta vez, sem o projeto edípico. O ciborgue não reconheceria o Jardim do Éden; ele não é feito de barro e não pode sonhar em retornar ao pó. É talvez por isso que quero ver se os ciborgues podem subverter o apocalipse do retorno ao pó nuclear que caracteriza a compulsão maníaca para encontrar um Inimigo. Os ciborgues não são reverentes; eles não conservam qualquer memória do cosmo: por isso, não pensam em recompô-lo. (HARAWAY, 2009, p.40)

As subjetividades toxicopornográficas podem permanecer inertes, presas ao Ser; ou podem se tornar ciborgues, a diferença crucial entre elas diz respeito a resistência a norma, à consciência dos processos farmacopornográficos de construções subjetivas, o que se produz a partir daí é criação. Tornar-se ciborgue, “significa tanto construir quanto destruir máquinas, identidades, categorias, relações, narrativas espaciais. Embora estejam envolvidas, ambas, numa dança em espiral, prefiro ser uma ciborgue a uma deusa” (HARAWAY, 2009, p. 99).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS OU “PREFIRO SER UMA CIBORGUE A UMA DEUSA”74

No decorrer de todo o trabalho procurei mostrar que as zonas de monstruosidade, as zonas de abjeção e as de normalidade não são fixas e duras; elas se interpelam, se misturas, se infiltram. Não há fronteiras bem definidas e muros concretos, são mais entres coloidais que se tensionam, realizam torsões, dobras e de vez em quando se desfazem em fluxos. Assim como a legislação analisada, as zonas compreendem aprisionamentos, violências, mortes e exclusões, como também são palco de resistências, produções subjetivas, potências, máquinas desejantes e linhas de fuga. Acredito que o fundamental na relação das pessoas trans* com a legislação, assim como com as identidades, é o saber transitar, é utilizar os papéis, físicos e simbólicos, estrategicamente, sem torná-los sua prisão. A presença da legislação insere às identidades trans* oficialmente no aparato Estatal, há um reconhecimento de suas existências, assim como a criação de padrões do “Ser” transexual perante uma sociedade cissexista, heteronormativa e misógina. Como os processos de judicialização da vida nos mostram, a existência de legislação por si só não modifica os pensamentos e as condutas sociais. A falta de respeito às duas únicas demandas pautadas pelas normas que analisei continuará existindo enquanto o cissexismo social, a misoginia e a heteronorma se mantiverem como eixos norteadores de nossos corpos e existências. Se por um lado, a legislação concernente a implementação do nome social nos documentos internos e trato cotidiano de organizações obriga funcionárixs a chamarem os sujeitos trans* pelos seus nomes efetivos, por outro não agencia ações de educação ou de mudanças de perspectivas que façam com que àquelas identidades trans* sejam legitimadas e respeitadas. E, é por essa incompletude, esse hiato na judicialização da vida, que as zonas de monstruosidade se formam e mostram sua normatização e sua potência. É no vazio que se constitui entre o nome social estar no papel com suas localizações bizarras e nos lábios com seus risinhos e olhares tortos, e na possibilidade de falar “querido, você vai ter que me chamar assim porque esse papel diz isso”; é na professora que pede ao Luan Cassal que a ajude a legitimar seu posicionamento junto à direção da escola porque aquela aluna trans é uma menina, e ela (a professora) acha inconcebível quererem que ela use uniforme masculino ou que a tratem pelo seu registro civil no espaço escolar; é na diva

74

Haraway, 2009, p. 99

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ativista Indianara Siqueira falando ao policial que lhe deu voz de prisão que ela pode mostrar seus seios e desnudar seu corpo feminino, porque seu documento de identidade diz que ela é um homem. Mais do que dar respostas, meu interesse é levantar reflexões acerca da potência das vivências trans*, para que as zonas de monstruosidade não se configurem como um espaço de violência e apagamentos e, sim “políticas de multidões”, marcadas pelo devir. Que essas zonas não se tornem espaços de reprodução e perpetuação de um lugar de diferença sexual e de gêneros binários em que os corpos e modo de existência são padronizados e fixados como naturais e biológicos. As resistências e singularidades das vivências de algumas pessoas trans* podem se constituir como máquinas de guerra de desestabilização das normas de gêneros e dos processos de subjetivação capitalísticas. A despatologização das identidades trans* é o ponto crucial para que as zonas de monstruosidade não sufoquem essas pessoas. É a partir de uma perspectiva não patológica das produções estéticas e desejantes de existências não normativas que novos fluxos poderão se constituir e fomentar ciborgues. Lutar contra a psiquiatrização dessas existências é romper com o controle médico-psiquiátrico de nossos corpos, pois o feminino também foi e é empurrado constantemente para zonas de monstruosidade. Nesse escopo, lutar contra a transfobia é lutar contra a misoginia. Pessoas trans* que vivenciam feminilidades sofrem cotidianamente com processos de desprezo em virtude de seu desejo de performar o feminino. Assim como identidades trans* que expressam masculinidades são deslegitimadas e subalternizadas quando a sociedade lê qualquer traço feminino em seus corpos.

A

passabilidade cis não é um privilégio. É um seqüestro do CIStema das performances das pessoas trans* e uma despotencialização dos seus corpos e existências. É uma forma de reafirmar que aquele corpo seria menos monstruoso por se aproximar da norma e, não uma afirmação de beleza da sigularidade daquela pessoa. É proeminente que alarguemos as possibilidades de ser, que apaguemos as fronteiras para que não haja mais centro. Realizando dobras, onde dentro e fora são o mesmo lado e, as zonas seja de abjeção ou de monstruosidade sejam desconstruídas. Ocupando as praças, as ruas, as cidades, que nossas máquinas de guerra fomentem novas formas de garantir direitos, outras formas de fazer política, que não se aprisionem no instituído. Multipliquemos os grupelhos75 ao infinito! Que eles substituam “as instituições da

75

A noção de grupelho pode se associa ao conceito “grupo sujeito”, contraposto a “grupo sujeitado”, à idéia de “agenciamento coletivo de enunciação” e de “molecular”, contraposto a “molar”, todos conceitos cunhados por Guattari.

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burguesia; a família, a escola, o sindicato, o clube esportivo etc” (GUATTARI, 1977, p. 17). Que para além da luta revolucionária, se “organizarem para a sobrevivência material e moral de cada um de seus membros e de todos os fodidos que os rodeiam” (GUATTARI, 1977, p. 18). Que nossa luta seja por subversões desejantes e estéticas de si que não repousem sobre o alargamento das zonas de monstruosidade e abjeção, mas sim pela desconstrução dessas zonas, e sim pela dimensão de toda experimentação social, de multiplicidades de singularidades e devires.

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ANEXO A – Tabela da legislação analisada

Tipo

Portaria

Resolução

Nº/ano 457/08 1707/08 016/08 026/09 041/09 438/09 1820/09 220/09 003/10 001/10 013/10 233/10 2836/11 2488/11 859/13 1482/97 001/99 1652/02 489/06 002/08 183/09 005/09 132/09 208/09 032/10 188/10 1955/10 105/11 2735/11 014/11 001/11 615/11 002/11 028/12 437/12 018/12 073/12 014/12

Legislação analisada Competência Ministério da Saúde Ministério da Saúde Pará Amazonas Paraíba Amazonas Ministério da Saúde Bahia SME Fortaleza SMA Fortaleza Distrito Federal Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão Ministério da Saúde Ministério da Saúde Ministério da Saúde (revogada) CFM (revogada 1652/02) CFP CFM (revogada 1955/10) CFESS CME/Belo Horizonte - MG SEASDH/RJ CEE/Goiás Santa Catarina CREMESP - SP Tocantins SES Paraná CFM ConsEPE - ABC PAULISTA CEE-ES CFP CONSUNI UFMT CFESS Ministério da Saúde IFPB CEE – CE CU – UFSC CUNSU UNIFESP CEP UEM

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232/12 Tipo Resolução

Decreto

Lei Deliberação Instrução de Serviço Orientação Normativa

N°/ano 032/13 001/14 3902/09 006/09 1.675/09 51.180/10 55.588/10 48117/11 48118/11 48119/11 143 / 11 43.065/11 49.122/12 17620/12 160/13 10948/01 5916/09 5992/09 006/10

CONSEPE UFRN Legislação Analisada Competência CONSUNI UFC CNPCP São João Del Rei - MG Picos –PI Pará São Paulo/SP São Paulo/SP Rio Grande do Sul Rio Grande do Sul Rio Grande do Sul SMCDH - ES Rio de Janeiro Rio Grande do Sul Campinas - SP UFF São Paulo/SP Piauí Natal-RN CEPE/IFSC-SC

001/13

DAE – UFF

9722/13

UFRJ

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ANEXO B – Carteira de Nome Social para Travestis e Transexuais no Estado do Rio Grande do Sul

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