Entre documentos e depoimentos: análise musical e o “falar de si” na investigação acadêmica da música popular. SIMPEMUS 6 - UFPR Curitiba 2013

July 25, 2017 | Autor: S. Paulo Ribeiro ... | Categoria: Musicology, Popular Music, História Oral, Musical Analysis, Análise Musical
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Entre documentos e depoimentos: análise musical e o “falar de si” na investigação acadêmica da música popular MODALIDADE: Resumo expandido (apresentação oral) Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) – [email protected] Palavras-chave: Análise e crítica da música popular. História oral. Metodologia de pesquisa em música popular.

Com a crescente expansão dos estudos críticos e analíticos acerca da música popular em âmbito acadêmico em nosso país, algumas questões conhecidas no universo das humanidades (cf. ANGROSINO, 2009; BOURDIEU, 1996; BRANDÃO, 2004; FAULKNER e BECKER, 2011; PRINS, 1992) estão se tornando notórias também em nossas rotinas de investigação musicológica. Questões afins que, de modo genérico, podem ser resumidamente reapresentadas assim: Como lidar com depoimentos dos músicos a respeito de sua própria obra, de seus projetos, processos e intenções? Como e em que medida seria possível contrapor metodologias de história oral aos dados obtidos via rotinas de análise musical? As operações analíticas sancionadas pela musicologia estariam suficiente e legitimamente autorizadas a sustentar contra-argumentações ou mesmo objeções aos relatos pessoais destes músicos? O artista criador será sempre o mais confiável informante acerca de sua própria obra? Seria viável conciliar dados obtidos via declarações auto-referenciadas com dados observados via outros mecanismos de crítica visando a elaboração de uma interpretação densa e de ampla abrangência? Seria possível medir a isenção de um investigador frente ao depoimento de um informante de indiscutível autoridade musical, cultural e mercadológica? Seria factível consociar a validade e a confiabilidade da investigação científica com a pronta agregação de um admirável capital simbólico acumulado em outro campo e já plenamente assegurado? Delegar ao músico poeta, ao cancionista ou ao compositor a tarefa de analisar tecnicamente a sua própria produção seria, ou não, uma espécie de transferência de tarefas, de responsabilidades ou mesmo de competências que cabem ao crítico, ao professor e ao analista musical? Para estimular uma reflexão provisória, em parte ética e em parte metodológica, acerca de questões assim, o presente estudo propõe um exercício comparativo de dois casos que podem ser considerados ilustrativos. Em cada caso confronta-se o depoimento de um músico a um documento em partitura, todos já públicos. O primeiro caso retoma trechos da entrevista do violonista, arranjador, cantor e compositor Dori Caymmi (1943-) concedida à Smarçaro (2006, p. 181) em outubro de 2005. Nesses trechos, Dori Caymmi rememora a criação de um

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segmento musical que, por fim, se tornou o refrão da canção “Amazon River” que ganhou versos do poeta Paulo César Pinheiro (1949-) e foi lançada no álbum “Brasilian Serenata” de 1991. Recortando o relato de Dori Caymmi encontramos declarações como: “é inexplicável”, “sei lá. É um momento em que, de repente tem um click, bate, que de repente você tem uma música”, “eu pedi ao [contrabaixista estadunidense] Jimmy Johnson pra fazer um solo e ele não sabia, e eu dei uma cagada que eu fiz o... (canta melodia do refrão de “Amazon River”)... e descobri um triângulo que eu não sabia que existia em música, porque eu não tenho técnica nenhuma”. “E aí descobri essa triangulação da mesma melodia que sai de Láb menor, Dó menor, pra Mib menor e Láb menor outra vez... espontânea”. “E foi pura sorte, eu fiz na cagada... não foi nada pensado”. Contudo, estudando “Amazon River” a partir das gravações comerciais já lançadas pelo artista e do documento em partitura disponibilizado em seu sítio na internet (CAYMMI, 1991), é possível sustentar conclusões analíticas que oferecem um nítido contraste complementar aos informes e apreciações fornecidas pelo próprio compositor nesta entrevista. Assim, considerando referências do campo da teoria de escola – tais como Bribitzer-Stull (2006), Cinnamon (1986, p. 6-12), Gauldin (2009, p. 534-542 e 631-645), Kinderman e Krebs (1996, p. 17-33), Kopp (2002, p. 230-234), Lerdahl (2001, p. 89-104), Salzer e Shachter (1999, p. 182-188 e 190-191) e Taruskin (1996, p. 265-267 e 280-283) – bem como do campo da jazz theory – tais como Boling e Coker (1993, p. 16-17), Delamont (1965, p. 269-275), Herrera (1995, p. 117-121), Mangueira (2006, p. 72-73) e Nettles e Graf (1997, p. 162-165) –, a audição e leitura deste documento musical evidencia escolhas, razões e raciocínios harmônicos, melódicos e fraseológicos como: o emprego do ciclo de teças maiores coligando as áreas tonais de Si maior, Mib maior e Sol maior e o emprego de um nítido encadeamento melódico apoiado nas terças e sétimas de acordes que se sucedem por progressões de quintas diatônicas. Constatações desta ordem permitem então observar o refrão de “Amazon River” como uma espécie de paráfrase, ou recriação, que seleciona e combina soluções musicais salientes em dois Standards jazzísticos de grande prestígio – a saber: “All the things you are”, a exitosa canção de Jerome Kern (1885‐1945) e Oscar Hammerstein II (1895‐1960) já chamada de a “apoteose do ciclo de quintas” (FORTE, 1995, p. 75) e de “a canção perfeita” (SCHWARTZ apud FORTE, 1995, p. 73) e “Giant Steps”, a influente composição do saxofonista e compositor estadunidense John Coltrane (1926‐1967) gravada em 1959. O segundo caso faz uma espécie de caminho inverso. Partindo de uma análise da lead sheet publicada por Chediak (1992, p. 148-149), podemos destacar alguns traços da canção “Refazenda” lançada em 1975 pelo violonista, cantor e compositor Gilberto Gil (1942-). Digamos, esquematicamente: trata-se de uma

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canção dividida em dois segmentos de 8 compassos. O primeiro está na tonalidade de Ré maior e intercala duas harmonias que, a cada compasso, se repetem: o acorde de Ré maior e o acorde de Lá maior com sétima, nona e quarta suspensa harmonizam uma melodia apoiada quase que exclusivamente nas notas ré, lá e fá#. O segundo segmento está na área tonal de Ré menor, e também intercala duas harmonias a cada compasso: o acorde de Ré menor e o acorde de Lá menor com sétima harmonizam uma melodia apoiada quase que exclusivamente nas notas ré, lá e fá natural. Verificações assim, de ordem objetiva ou mensuráveis nesta versão em pauta, poderão afiançar algum argumento crítico valorativo. Contudo, estudando o depoimento técnico e instrumental gravado pelo próprio Gilberto Gil na seção de extras do “DVD Bandadois” lançado em 2009, constata-se que este documento em partitura, embora tenha sido publicado com a chancela do compositor, pode ou necessita ser reescrito. E que, com isso, as considerações e avaliações analíticas poderão se modificar substancialmente. Em conclusão, argumenta-se que casos deste tipo podem ilustrar particularidades para as quais também a investigação acadêmica da música popular deve estar atenta: nosso objeto de estudo requer “descrição densa” (GEERTZ, 1989), estimula consultas diversas e a confrontação criteriosa de dados obtidos em diferentes fontes, posto que, por vezes, pode existir uma grande discrepância entre aquilo que um músico diz acerca de sua obra e aquilo que a própria obra informa sobre si mesma. Referências: ANGROSINO, Michael. Etnografia e observação participante. Bookman, 2009. BOLING, Mark e COKER, Jerry. The jazz theory workbook. Rottenburg: Advance Music, 1993. BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta Moraes (Org.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1996. p. 183-191. BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Ed. da Unicamp, 2004. BRIBITZER-STULL, Matthew. The Ab–C–E complex: the origin and function of chromatic major third collections in nineteenth-century music. Music Theory Spectrum, v. 28, p. 167–190, 2006. CAYMMI, Dori. Rio Amazonas [Amazon River], partitura manuscrita, 1991. Disponível em . Acesso em: 03 abr. 2012.

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CHEDIAK, Almir (Ed.). Songbook Gilberto Gil. Volume 2. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1992. CINNAMON, Howard. Tonic arpeggiation and successive equal third relations as elements of tonal evolution in the music of Franz Liszt. Music Theory Spectrum, v. 8, p. 1-24, 1986. DELAMONT, Gordon. Modern harmonic technique. The advanced materials of harmony. Volume 2. Delevan, NY: Kendor Music, 1965. FAULKNER, Robert e BECKER , Howard. El jazz en acción: la dinámica de los músicos sobre el escenario. Editorial Siglo Veintiuno, 2011. FORTE, Allen. The American popular ballad of the golden era 1924-50. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1995. GAULDIN, Robert. La práctica armónica en la música tonal. Madrid: Ed. Akal, 2009. GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: ______. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 13-41. HERRERA, Enric. Teoria musical y armonia moderna. Barcelona: Antoni Bosch, 1995. KINDERMAN, William e KREBS, Harald. The second practice of nineteenth-century tonality. Lincoln: University of Nebraska Press, 1996. KOPP, David. Chromatic transformations in nineteenth-century music. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. LERDAHL, Fred. Tonal pitch space. New York: Oxford University Press, 2001. NETTLES, Barrie e GRAF, Richard. The chord scale theory & jazz harmony. Advance Music, 1997. PRINS, Gwyn. História oral. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. da UNESP, 1992. p. 163-198. SALZER, Felix e SHACHTER, Carl. El contrapunto en la composición: el estudio de la conducción de las voces. Barcelona: Idea Books, 1999. SMARÇARO, Júlio César Caliman. O Cantador: a música e o violão de Dori Caymmi. Dissertação (Mestrado em Música) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2006. TARUSKIN, Richard. Stravinsky and the russian traditions. Berkeley: University of California Press, 1996.

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