ENTRE DOIS MUNDOS: NARRATIVAS E MEMÓRIAS DE BENIGNO CORTIZO BOUZAS, UM ESPANHOL NA AMAZÔNIA (1908-1916) 1

May 24, 2017 | Autor: F. da Silva | Categoria: Amazonia, Amazonian History, Viajantes, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
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ENTRE DOIS MUNDOS: NARRATIVAS E MEMÓRIAS DE BENIGNO CORTIZO BOUZAS, UM ESPANHOL NA AMAZÔNIA (1908-1916)1 Francisco Bento da Silva2 Carlos Alberto Medeiros Lima3 Resumo: Este artigo é uma análise das memórias do espanhol Benigno Cortizo Bouzas, nascido na Galícia em junho de 1893 e que migrou para a Amazônia em 1908, atraído pela construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré - EFMM. Décadas depois de sua chegada ele escreve um livro com suas memórias e registros de coisas que diz ter vivenciado. Voltou duas vezes à sua cidade natal: 1912 e em 1922. É uma narrativa que nas palavras do autor comporta uma fidelidad descriptiva de los hechos e que a obra vai fondo en la realidad da Amazônia. Em 1939 muda-se para os arredores de Recife, período em que se encerra sua narrativa autobiográfica, publicada na capital pernambucana somente em 1950 e intitulada De la Amazonia al infinito. É uma narrativa em que o autor explicita suas crenças e valores nesse transitar entre Europa e Amazônia, cuja identidade é continuamente atravessada por múltiplas situações e experiências. Palavras-chave: Amazônia, memórias, identidades

BETWEEN TWO WORLDS: NARRATIVES AND MEMORIES OF BENIGNO CORTIZO BOUZAS, AN SPANISH IN AMAZON (1908-1916) Abstract: This paper is an analysis of the memories of the Spanish Benigno Cortizo Bouzas, born in Galicia in June 1893 and migrated to the Amazon in 1908, attracted by the construction of the Madeira Mamore Railroad. Decades after his arrival he writes a book with your memories and records of things said to have experienced. He returned twice to his hometown: 1912 and 1922. It is a narrative in the words of the author holds a Fidelidad descriptiva de los hechos of them and that the work will fondo en la realidad of Amazon. In 1939 he moved to the outskirts of Recife, a period that ends his autobiographical narrative, published only in Recife in 1950 and entitled De la Amazonia al infinito. It is a narrative in which the author expresses his beliefs and values in transit between Europe and the Amazon, whose identity is continually traversed by multiple situations and experiences. Keywords: Amazon, memories, identities

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Trabalho apresentado no IX JALLA – Jornadas Andinas de Literatura latino Americana, em 2010, na cidade de Cali – Colômbia. 2 Professor Adjunto do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFAC. Doutor em História pela UFPR. Email: [email protected]. 3 Professor Associado da UFPR, com doutorado em História pela UFRJ. Bolsita do CNPq – Brasil. E-mail: [email protected].

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Estudos acerca da grande onda de migrações internacionais grosso modo datadas do intervalo 1850-1930 usualmente chamam a atenção para tendências de particularismo étnico que teriam sido introduzidas por elas, migrações, nas sociedades receptoras. Neste trabalho, o objetivo é chamar a atenção para o fato de que o caldeirão político da Península Ibérica, transposto para uma determinada forma de pensar a vida política – o liberalismo de tipo conservador aqui chamado “moderação” – pode ter tido apelo entre migrantes portugueses e espanhóis para as Américas, já sob formas difusas, próprias de não especialistas. Essa moderação era originalmente dirigida para a tônica da composição de facções políticas a partir da ênfase na sociabilidade e na integração, que deveriam sobrepor-se ao interesse e à crença, pois se tratava de reinstitucionalização do Estado. Mas o integracionismo interviria igualmente nas reações de migrantes ao ambiente plural das sociedades de destino. É o que se estuda a partir do relato sobre o Brasil de um migrante galego na Amazônia, Benigno Cortizo Bouzas. A fonte primária que nos possibilitou captar os imaginários sociais e políticos, explícitos e difusos, foi a obra escrita por esse espanhol anos depois de deixar a Amazônia e já citada anteriormente: Del la Amazonia al infinito. São memórias atravessadas de nostalgias, privações, desejos e reminiscências. E é a obra que responde pelo autor, no sentido de que ela se torna o elemento intermediário entre aquele que a escreveu e o leitor que toma contato com a narrativa a posteriori.

Viagens: partes que ficam e partes... idas Tentar entrar nos imaginários e pensamentos de autores através de suas obras e escritos é uma tarefa árdua, pois muitas vezes percorrer esses caminhos se mostra algo ao mesmo tempo instigante e permeado de obstáculos. No caso do espanhol Benigno Cortizo Bouzas, autor de um livro de memórias sobre seu período vivido na Amazônia nas primeiras décadas do século XX, não é diferente4. Ele é naquele momento um jovem migrante que por força das circunstâncias desloca-se de sua terra pátria para outro lugar completamente diferente de tudo que conhecia, cujo móvel de sua partida parece se assentar em dois pontos: uma de natureza política, ligada ao confronto ideológico na Espanha entre monarquistas e republicanos e a outra de cunho econômico, tanto numa ponta como noutra. Ou seja, por um lado tem a ver com a situação política e econômica de sua terra natal; por outro, está relacionado à construção da Ferrovia Madeira Mamoré - EFMM, que se torna um pólo 4

BOUZAS, Benigno Cortizo. Del Amazonia al infinito. Recife: Diário da Manhã, 1950.

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atrativo para migrantes de várias partes do mundo que rumam em direção a Amazônia no alvorecer do século XX e ali irão constituir uma multifacetada zona de contatos interculturais5. Algo que vai estimular não só a chegada de Benigno Cortizo Bouzas, mas também seus irmãos e muitos outros compatriotas que já haviam migrado para a Amazônia em busca do novo Eldorado impulsionado pela exploração da goma elástica e depois pela aludida ferrovia que prometia trazer a “modernidade para a selva”6 em uma região na tríplice fronteira internacional: Brasil – Peru – Bolívia. O jornalista Manoel Ferreira aponta em sua obra A ferrovia do Diabo que somente no ano de 1910 chegaram 1.450 espanhóis para as frentes de trabalho da construção da ferrovia7, além de outros como Benigno Bouzas e seus irmãos que não estavam diretamente vinculados aos trabalhos de construção da estrada de ferro, mas em serviços de apoio direto ou indireto. Mas a migração para a Amazônia já era algo que vinha acontecendo desde o final do século anterior, incentivada principalmente pelos governos do Amazonas e Pará para alavancar a colonização da região8. Muitos desses eram ibéricos, mas havia ainda muitos “turcos” (sírios, libaneses), judeus e outras nacionalidades em trânsito ou em busca de novas permanências no “novo mundo” amazônico. Durante o segundo quarto do século XIX, grosso modo (a bibliografia prefere usar como marco inicial o ano de 1833), a população espanhola cresceu enormemente, sem no entanto contar com a válvula de escape da emigração (haviam apenas findado as guerras de Independência da América Latina). Na segunda metade do século, o crescimento reduziu-se, mas continuou, tendo-se incrementado a emigração. A Galícia esteve entre as áreas de maior estagnação econômica, com crescimento demográfico também baixo para padrões espanhóis da época. Mas, dada a ausência de dinamismo, nessa área em que pequenas propriedades estagnadas tinham grande importância, até mesmo o evolver demográfico ali notado foi demasiado para as possibilidades de absorção9. Não restava, para alguns, outra alternativa a não ser migrar em direção a locais que oferecessem possibilidades inexistentes na terra natal.

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SILVA, Francisco Bento da. “Homens e mulheres em fronteiras: criminalidade e sociabilidades na Amazônia em princípios do século XX, um estudo de caso”. Trabalho apresentado no I Colóquio de Linguística Aplicada, Rio Branco, 2010. 6 HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a Madeira-Mamoré e a modernidade na Selva. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 7 FERREIRA, Manuel Rodrigues. A ferrovia do Diabo. São Paulo: Melhoramentos, 1987, P. 212. 8 SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980; BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: formação social e cultural. 3ª edição. Manaus: Editora Valer, 2009. 9 PÉREZ MONEDA, Vicente. La modernización demográfica, 1800-1930. In SÁNCHEZ-ALBORNOZ, Nicolas (comp.). La modernización económica de España. Madrid: Alianza, 1985, p. 35.

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Esse jovem galego, que mais tarde se autodenomina um “Juan Nadie”, talvez almejasse encontrar para além da sua terra natal marcada por conflitos políticos e crise econômica, algo que lhe faltava em seu berço de origem. Tudo que sabemos dele está na obra intitulada De la Amazonia ao infinito, seu único livro, talvez derivado de um diário com suas memórias ou apenas um relato tardio de lembranças atravessadas pelas idiossincrasias da retroatividade imaginativa. É um livro que segundo ele “describe la vida de un emigrante de princípios deste siglo”, que “describe a fondo lo que há observado en seis años en la nunca bien conocida region del Amazonas” e que a sua narrativa comporta uma “fidelidad descriptiva de los hechos”. Percebe-se nessa passagem seu intuito reiterado de “descrever”, como se almejasse contar e expor de forma minuciosa aquilo que vivenciou e lembra. É uma obra que intenciona respaldo, pois diz que vai “fondo em la realidad” da Amazônia, segundo o próprio Benigno Bouzas, que em tom de crítica se contrapõem – nos seus dizeres - àqueles que escreveram sobre a Amazônia sem conhecê-la que nem ele. Homens que ele assegura não terem passado mais que alguns meses na região, viajando de forma confortável em primeira classe de embarcações e gozando de muitas comodidades. O seu “sedentarismo” de alguns anos na região marcaria então o contraponto às visões ligeiras e apressadas de “viajantes” que mal palmilharam as terras dos altos rios amazônicos. Seu trânsito entre dois mundos começa quando ele embarca em Vigo em um navio a vapor de nome Clement, no mês de abril de 1908 em direção ao Alto Amazonas. Contava com 15 anos incompletos quando deixou a pequena cidade de Pontevedra, na região da Galícia, Espanha. Nessa sua jornada de desterro meio voluntário, ele nos conta que partiu de sua terra natal acompanhado por três vizinhos mais velhos que ele, sendo que um desses era seu primo. Percebe-se que nesse caso temos uma jornada planejada, orientada por laços de parentesco e proximidades que os impeliam para um lugar pré-determinado e onde já viviam outros parentes e conterrâneos. Para Benigno Cortizo Bouzas foi muito provavelmente sua primeira viagem para além da sua aldeia e é o momento em que trava os primeiros contatos com “estranhos”, algo que já acontece no embarque quando ele afirmar que no navio iam muitos imigrantes “balcânicos y turcos”, que vestiam “sayo” (túnicas) e que, às suas vistas, “parecian soldados de Herodes”. Uma dessas famílias de “turcos” eram sefarditas provindos da cidade de Esmirna, que Benigno Bouzas diz ter desembarcado em Belém do Pará. Através de sua narrativa percebemos que o navio em que viajou era uma das muitas embarcações a fazer com frequência essa rota de comércio e de gentes interligando a Europa e as principais cidades da Amazônia brasileira, Belém e Manaus. O vapor Clement teria saído do porto Havre (França),

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passando por Vigo e Lisboa. Na capital lusitana ele presencia o navio sendo carregado com outros aviamentos para as praças de Belém, Manaus e Iquitos (Peru). Eram basicamente produtos de consumo como batatas, vinhos e azeites, segundo a narrativa do jovem espanhol. De forma ligeira, percebemos como algumas cidades amazônicas se articulavam nesse comércio mundial de trocas econômicas, sociais e identitárias que transitavam por rios e mares ligando a Amazônia diretamente à Europa. O homem e o tempo: mapeando o contexto espanhol e as ideias de Benigno Cortizo Bouzas Após essa breve apresentação do nosso autor-narrador, deve-se notar que faz-se necessário procurar dar conta de migrantes através da caracterização de suas regiões ou países de origem. Em vista de processos que vão do trauma do deslocamento geográfico ao impacto das condições vigentes na área de destino, a grande complexidade de seus relatos não pode ser reduzida a uma simples permanência. No entanto, além do fato singelo de que aspectos da vida pré-migração continuam influindo, algumas especificidades de Benigno Cortizo Bouzas devem ser ressaltadas. Chama a atenção a circunstância de após décadas de residência no Brasil ter publicado seu relato pessoal em Espanhol, embora, e isso é notável, tenha escrito em Castelhano 10 . Cabe aqui concordar com a assertiva de que longe de casa, a língua converte-se em metáfora da pátria11. Além do mais, seu relato feito em solo brasileiro contem referências importantes ao que se passou na Península Ibérica após a sua travessia do oceano rumo ao Brasil. Por fim, regressou à Espanha por duas vezes e viveu no Brasil até falecer. A Espanha já está invocada, por assim dizer, na hora em que Benigno Bouzas se apresenta no livro. Ele era um republicano e, na introdução, por exemplo, oferece a obra a Abraham Lincoln, George Clemenceau e ao escritor e presidente da Segunda República espanhola, Maria Azanha. Diz se inspirar em Bernard Shaw e afirma ser leitor de Schopenhauer, Dumas, Zola e do poeta e jornalista português Guerra Junqueiro. Mas também dedica o livro às memórias de “Jayme de Coock, de La Perouse, de Hernán de Magallanes y Francisco Pizarro”, exemplos de “tenacidad y perseverancia” que o estimularam a enfrentar as enfermidades e os elementos amazônicos, de modo que se embaralham as temporalidades na hora dele apresentar-se. Buscava, portanto, uma referência dupla, como indivíduo montado em liberdades republicanas e modernas superpostas a gigantes do passado ibérico e da 10

Segundo seu filho Alonso Bouzas, a escrita em língua pátria foi porque Benigno Cortizo Bouzas não dominava o português mesmo depois de anos morando no Brasil. Mas outras possibilidades podem ser pensadas a priori, como talvez a intenção de escrever para seus compatriotas e não para o público do Brasil. E ainda, podemos pensar que a língua configura-se como uma permanência, um elo de ligação entre o expatriado e sua terra natal diante dos males da ausência que afetam muitos expatriados. 11 QUEIROZ, M. J. Os males da ausência, ou a literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, p. 57.

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conquista das Américas e do mundo. Compunha, de saída, uma espécie trágica de individualismo12, uma capacidade de mesclar indicações de registros diversos que nos atiram na direção de qualquer uma das ideias de especificidade ibérica, mediterrânica, ou espanhola13. É evidentemente difícil aceitar sem reservas o relativo atavismo embutido no que Wiarda diz do corporativismo. Em todo caso, não custa observar que o próprio Benigno Bouzas manejava alguma espécie de teoria selvagem a respeito dos “países latinos” ao comentar a fala de um jovem vitimado por policiais no Rio de Janeiro. Por ocasião de estado de sítio provocado pela Revolta da Vacina ocorrida no Rio em 1904, ele foi sumariamente enviado para a Amazônia14. O comentário de Cortizo Bouzas é o seguinte: “És siempre así en todas las partes, y en los países latinos con mas frecuencia: los militares hacen las revoltas; el pueblo anónimo sufre las consecuencias”15. Os adeptos da tese do corporativismo talvez também julgassem característica a maneira como Benigno Bouzas descreveu os conflitos políticos e intelectuais na Espanha que ele visitou. Seu relato sobre as disputas políticas e intelectuais na Espanha da I Guerra Mundial apontava para quase uma equidistância dele, Benigno Bouzas, tanto em relação aos “ultra conservadores” quanto frente aos “demoliberales”. Essa equidistância podia dever-se a uma posição de quase estrangeiro na Galícia, que então visitava, mas também à circunstância de seu próprio ecletismo lhe permitir encontrar fundamento para quase tudo. O que podemos enfatizar em cada posição política sua era o modo como elas se exprimiam em germanofilia e francofilia, não parecendo ele encontrar muita crença dentro de cada uma. Além disso, mais que o conteúdo de cada projeto, impressionou-o o fato de que as “discusiones y controvesias eran constantes, pero nunca pasaba de eso. En aquél tiempo se respetaban las ideas de cada 12

Unamuno escreveu: “Yo soy el centro de mi universo, el centro del universo [...]. De qué le sirve al hombre ganar el mundo todo si pierde su alma? (Mat. XVI, 26). Egoísmo decís? Nada hay más universal que lo individual, pues lo que es de cada uno lo es de todos”. UNAMUNO, Miguel de. Del sentimiento trágico de la vida en los hombres y en los pueblos. 2ª ed., Madrid: Espasa-Calpe, 1980, p. 61. 13 WIARDA, H. J. The political sociology of a concept: corporatism and the “distinct tradition. In: The Americas. v. 66, n. 1, 2009. Esse estranho individualismo espanhol se manifestava de outras e surpreendentes formas. Segundo Menendez y Pelayo, um autor como Pi i Margall, importante liderança republicana tida por radical durante o último terço do século XIX, avaliara em meados do século XIX que a crença na imortalidade da alma tornava “el hombre insolidario con la humanidad en el tiempo” [ênfases do original]. Ver MENÉNDEZ Y PELAYO, M. Historia de los heterodoxos españoles VI: Heterodoxia en el siglo XIX. Madrid: La Editorial Católica, 1978, p. 357. Sobre o republicanismo espanhol, ver PENCHE, J. Republicanismo en España y Portugal (1876-1890/1): una perspectiva comparada. In: História. Revista da FLUP. IV série, v. 1, 2011. Ver também o consenso extremamente favorável a restrições da franquia eleitoral, unindo conservadores e liberais em BALLBÉ, M. Orden público y militarismo en la España constitucional (1812-1983). Madrid: Alianza, 1983, p. 247. 14 Sobre isso, ver SILVA, Francisco Bento da. Acre, a pátria dos proscritos: prisões e desterros para as regiões do Acre em 1904 e 1910. Tese de doutorado em História. Curitiba/UFPR, 2010. 15 BOUZAS, op. cit., p. 58.

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uno [...]. Además la Constitución y el Rey eran una garantía para todos” 16. Um elemento comunitário garantia liberdades, além de preservar o tecido social. Pode-se pensar igualmente em uma conjuntura difícil na Península Ibérica. Linz refere-se a uma substituição, a partir de 1898, do “oportunismo crítico-progresista” de meados do século XIX por um “pesimismo historicista y estético que ponía en duda la esencia de España como cultura singular” 17 . Durante o último quarto do século XIX, o principal dilema dos intelectuais modernizadores espanhóis era o de apagar a “diferença imperial”, modernizando o “imperialismo” no mesmo passo que apresentavam ideias de “regeneração” nacional18. A conflitividade da sociedade espanhola no período pode ser aquilatada levando em conta que especialistas puderam sugerir com segurança, considerando o século XIX em seu conjunto, ter havido paralelos com as esgarçadas condições latino-americanas. Cerutti e Valdaliso indicaram, nessa ordem das semelhanças, e para além de reformas liberais (também de sua parte produtoras de conflitos), instabilidade política e institucional, lutas civis, crescente influência militar, combate duradouro ente conservadores e liberais (com os primeiros frequentemente aliados a chefes militares e às vezes com a igreja católica), permanentes déficits orçamentários, dificuldades para a conclusão das mudanças liberais e, por fim, tendência ao acordo entre conservadores modernizantes e liberais moderados19. A instabilidade pode ser monitorada por intermédio das oscilações da regulação do sufrágio: sufrágio universal masculino antes da implantação da Primeira República (1873-1874), sufrágio restringido sob a monarquia restaurada e novamente alistamento masculino universal de 1890 até a eleição municipal de 1931, que instaurou a Segunda República20.

Um espanhol na Amazônia: deslocamentos, memórias e representações

A primeira impressão sobre a região amazônica descrita por Cortizo Bouzas ocorreu por contraste com as paisagens que lhe eram familiares da sua Galícia natal, pois ao entrar na foz do Amazonas ele descreveu assim o que vê: “uma paisaje violentamente triste para quien 16

Idem, p. 66. Mas é de se notar a ressalva que neste passo fazia em relação a 1936, “mancha negra” que ninguém podia antecipar. 17 LINZ, Juan. Cinco siglos de historia española: cuantificación y comparación. In LANDES, David et al. Las dimensiones del pasado. Madrid: Alianza, 1974, p. 222. Pode-se lembrar Unamuno: a vida “es contrarracional y opuesta al pensamiento claro. Las determinaciones de valor, no sólo no son nunca racionalizables, son antirracionales”. UNAMUNO, op. cit., p. 75. 18 JOHNSON, C. B. (Re)writing the empire: the Philippines and Filipinos in the Hispanic cultural Field, 18801898. Dissertation (Doctor of Philosophy), Graduate School of the University of Texas at Austin, 2004, p. 4-160. 19 CERUTTI, Mario; VALDALISO, Jesús María. Monterrey y Bilbao (1870/1914): empresariado, industria y desarrollo regional en la periferia. In História Econômica & História de Empresas. Vol. VII, n. 1, 2004, p. 49. 20 LINZ, op. cit., p. 232.

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había vivido em montañas altaneras, coronadas de nieve”. Isso aconteceu pouco antes dele chegar à porta de entrada da Amazônia, a cidade de Belém, onde muitos dos passageiros desembarcaram e outros aproveitaram para brevemente se por em terra, como o próprio galego de Pontevedra e seus amigos que saem para almoçarem num restaurante de um conterrâneo ibérico que ali encontram próximo a região portuária belenense. Três dias depois dessa passagem por Belém a embarcação em que viajava Benigno Cortizo Bouzas chegou a Manaus, onde ele e os demais passageiros com destino à região da EFMM permaneceram por doze dias a espera de outro barco para levá-los através do rio Madeira até Porto Velho ou Santo Antônio21. A última parte da viagem demorou oito dias desde Manaus até Santo Antônio, localidade em que já moravam três irmãos e um primo desse jovem espanhol migrante. Dos três que viajaram com ele, Benigno conta que dois morreram de malária nas duas semanas iniciais após a chegada naquela vila já mal afamada pelas mortes causadas por doenças endêmicas22. O outro, temeroso e assombrado, logo partiu de volta para Manaus, de onde pretendia retornar à Espanha, mas morreu também de malária mesmo antes de chegar à capital amazonense. Nessa dupla fuga sem porto seguro, a morte abreviou o deslocamento forçado desse e de muitos outros migrantes marcados pelos infortúnios ao sair e ao chegar. Era a expressão sintomática de pessoas deslocadas, já sem lugar. O decantado axioma da Amazônia como Inferno verde talvez fizesse sentido para esses recém-chegados dizimados ou afetados pelas doenças tropicais, para muitos deles mortais. Em busca de um lugar, Benigno Bouzas diz que foi trabalhar em um hotel onde se hospedava gente de todas as nacionalidades imaginadas. Hotel é uma maneira lisonjeira de falar, pois segundo seu relato existiam apenas armadores de redes onde as pessoas pagavam para atá-las e dormir apenas durante a noite. Sobre a diversidade de nacionalidades ali presentes ele aponta que migraram para trabalhar na EFMM muitos cubanos, panamenhos e outros caribenhos que já haviam trabalhado nas obras de construção do Canal do Panamá (1904-1914). Contudo, ele realça o caráter e os modos distintos dessas pessoas adventícias ali também recém-chegadas e expatriadas como ele: “lo que habia de más podrido en Cuba, Panamá, Jamaica y otras islas del Caribe fué a dar alli con sus costillas”23. 21

Foi feito o que na Amazônia é chamado de baldeação, que neste caso significou trocar de navio e embarcar em outro de menor calado e mais adequado à navegação fluvial para percorrer um trecho de aproximadamente 900 milhas. Porto Velho e Santo Antônio eram à época vilas próximas uma da outra, distantes cerca de 07Km, a primeira em território amazonense e a outra em território mato-grossense. 22 Em junho de 1910 o médico sanitarista Osvaldo Cruz foi contratado pela empresa norte-americana MadeiraMamoré Railway Company para tentar debelar as mortes frequentes que afetam os trabalhadores da EFMM. Ao chegar naquela localidade, Osvaldo Cruz assim a descreve: “creio que no inferno não há região análoga”. Apud FRAGA, Clementino. Vida e obra de Osvaldo Cruz. Rio de Janeiro: José Olympo, 1972, p. 110. 23 BOUZAS, op. cit., p. 32.

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Seu trabalho no aludido hotel lhe permitia ver e ter múltiplos contatos e relações sociais das mais diversas, como o fato dele realçar que as brigas por mulheres e a homossexualidade eram frequentíssimas naquela localidade cheia de adventícios e, à sua maneira, portadora de uma espécie de cosmopolitismo. A escassez de mulheres, no seu entender, parece ser a explicação para os dois casos citados quando ele afirma que as poucas mulheres que ali existiam eram prostitutas vindas do Pará e Manaus. Mas conta que também chegavam prostitutas bolivianas vindas de Guayaramerin24 (cidade boliviana na fronteira com o Brasil), além de casos de roubos e assassinatos bastante frequentes. Eram cadinhos de gentes de origens diversas vivendo em múltiplas fronteiras: sejam elas simbólicas, físicas, geográficas, comportamentais ou de caráter. Esse tipo de experiência amazônica tinha uma história muito comprida. Lockhart e Schwartz realçaram que, nas fronteiras da expansão ibérica nas Américas, por contraste com o que chamaram de áreas centrais, a grande mobilidade e dispersão das comunidades indígenas geravam pequenos números de migrantes espanhóis e portugueses na região. Além disso, diante das dificuldades de conquista e governo daqueles grupos nativos, esse conjunto de migrantes como que se trancava em fortins, vilas e cidades25. O mesmo arranjo humano e ambiental, no entanto, produzia grande mobilidade e encontros inusitados entre pessoas provenientes dos mais diversos tipos de origem e com os mais variados projetos históricosociais26. Para exemplificar, à época de Benigno Bouzas, outro viajante, Osório Duque-Estrada, professor de História do Brasil no Colégio Pedro II e autor da letra do hino nacional brasileiro, visitou o norte do país (as impressões foram publicadas em 1909). Talvez tenha observado a existência de uma ou outra árvore ou pessoa. Não se sabe. Incríveis mesmo pareceram-lhe seis quadros que viu no palácio do governo paraense: a Conquista do 24

Cidade boliviana de fronteira, separada pelo rio Mamoré de sua epônima brasileira chamada Guajará-Mirim, ponto final da EFMM. 25 Ver, entre outros, LOCKHART, James; SCHWARTZ, Stuart B. America Latina en la Edad Moderna. Madrid: Akal, 1992, pp. 255-262. 26 “Pelo alto”, um militar português escrevia no início do século XIX sobre diversas cerimônias de afirmação do domínio ibérico que passavam por uma “hidra” elitista. Em 1637, por exemplo, subitamente chegou a Belém, vinda de Quito, gente ligada aos franciscanos e claramente envolvida nas estratégias de manutenção do domínio espanhol (ver BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compêndio das eras da província do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará, 1969, pp. 43-4). Em circunstâncias muito próximas, mas já na quadra da Restauração, Jaques Vandiquier passava por Belém, vindo de Saint-Christopher em um navio holandês. Estava a caminho da Europa a fim de servir os Bragança (BAENA, op. cit., pp. 53-54). Trata-se de exemplos do envolvimento da aparentemente isolada Belém em diversos passos da grande política ibérica. “Por baixo”, havia as conhecidas “hidras” populares. As histórias de quilombolas, da proliferação de mocambos e de seus contatos com indígenas e com as Guianas mostram-nos sobejamente. Ver GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos. São Paulo: UNESP/Polis, 2005. A referência às “hidras” adapta a este estudo a abordagem de LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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Amazonas e Virginia, de Parreiras; um sombrio Falquejadores, de Calixto; Fiandeira, de Carlos de Azevedo e Phtysico, de Corrêa Faria27. De fato, fora ao Pará a fim de ver a Leda, de Ticiano, que Fernando de Castro Paes Barreto adquirira localmente a um marinheiro (!), mas acabou vendo igualmente uma Venus; as Batalhas Púnicas, de Taunay; uma Florista, de Whidhopff, muito oportuna para quem viaja pela região, uma Paisagem Fluminense, “duas inexcedíveis naturezas mortas de Bouvier” (mortíssimas), uma Ovelha, uma “bela marinha, de Lettellier” e um São Pedro, de Reni, para além de um retorno ao profundo reino das sombras capitaneado por uma Caçada Real de Velasquez e uma Diana, de Rubens 28 . De passagem, o dono da coleção, Paes Barreto, havia sido um abolicionista de certa expressão durante os anos 1880, no Recife, e considerava a arte elemento fundamental para educação da mocidade, especialmente em um sentido industrial 29 . Aliás, em lugar de admirar o Falquejador do palácio do governo bastava abrir a janela, pois o governo do estado, Paes Barreto e o próprio Duque-Estrada pareciam concordar que o Pará estava entre os poucos lugares do Brasil a conterem “os elementos necessários para a construção de carruagens de luxo”30. Voltando a Benigno Bouzas, que labutava no mesmo período bem a ocidente na mesma Amazônia em local não tão idílico quanto o descrito por Duque-Estrada, depois de trabalhar no único hotel para onde aportavam todos que chegavam naquela pequena vila, ele afirma que logo foi contratado pela EFMM (acampamento 12) e ali passou a ganhar o dobro do salário anterior. Foi então designado para o cargo de ajudante médico, cuja função consistia em levar remédios do acampamento para os locais onde estava aquela babel de trabalhadores migrantes nesse aludido trecho da linha férrea. Fazia o serviço se deslocando montado em uma mula e armado de um revólver. Lidar com aqueles trabalhadores migrantes e “podridos” parecia ser algo baseado em muito na autoridade da força e da capacidade de dissuasão. É a partir daí que ele fala da falta de “salubridad en la region” 31, já decantada por muitos contemporâneos que palmilharam aquela vila e seu entorno. Ao se inserir no meio de médicos teria o jovem espanhol incorporado o discurso da equipe sanitária da EFMM? É a primeira vez em que ele fala das condições de salubridade de Santo Antônio do Madeira. Sobre a natureza amazônica, Benigno repete o que muitos antes e depois dele já tinham descrito com ênfase: a de uma profunda monotonia que a paisagem da região acometia 27

DUQUE-ESTRADA, Osório. O norte (impressões de viagem) – com uma carta de Euclydes da Cunha. Porto: Livraria Chardron, 1909, p. 33. 28 Idem, pp. 32-37. 29 Idem, p. 42 e ss. 30 Idem, p. 73. 31 BOUZAS. op. cit., p. 42.

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o migrante de outras paragens. Diz ele que desde Porto Velho até Guajará Mirim a paisagem não mudava, predominava só o verde escuro da selva, nada de flores ou variação do ambiente natural, avultando em demasia apenas rios de águas turvas, lagos pantanosos, mosquitos, piuns, carapanãs e lama. Seria a expressão da natureza bruta em seus excessos contrastando com ambientes “domados” e idílicos de suas nostalgias natais. Sobre a presença de índios diz que não viu nenhum selvagem, só alguns “meios” civilizados que moravam em choças na beira dos rios, preguiçosos e que “parecen provenir de uma raza muy primitiva” 32 . Descontadas as idiossincrasias temporais, fica clara a percepção de um descompasso, senão cultural, efetivamente evolutivo entre as “raças”. Ele ainda descreve a fauna e a flora e vai mostrando ao leitor as curiosidades da selva amazônica com seus mosquitos, cipós, macacos, cobras, peixes elétricos, jacarés e outras particularidades que seu olhar revela e percebe. É exemplar a sua narrativa sobre o fato de matar um macaco, pois recorda que ao vê-lo morrendo o animal tinha uns “ojos de dulzura”. E indaga em tom professoral e cientificista: “me recorde de Haeckel e Darwin: será que realmente descendemos de esos símios?”33. A “raza primitiva” e a teoria da evolução das espécies parecem explicar-lhe os descompassos cultural e natural que ele presencia em suas andanças em terras desconhecidas da Amazônia. Depois de trabalhar na EFMM Benigno Cortizo Bouzas diz que foi chamado pelos seus irmãos para cuidar de uma pequena propriedade rural que eles tinham nos arredores de Santo Antônio. Isso ocorreu porque seus irmãos iam visitar a Espanha e precisavam deixar a propriedade com alguém até retornarem ao Alto Madeira. Nessa propriedade ele conta que “se llevava uma vida menos expuestas a peligros y alli pasé unos dos años llevando productos granjeros en piragua a los mercados de Porto Velho y Santo Antônio”34. Percebemos nessa passagem que desde a sua chegada Benigno não foi se juntar aos irmãos, levava uma vida de labuta e de sociabilidades que nos parecem bastante distanciada e independente em relação à parentela ali também residente. Longe de rusgas fraternais, talvez intencionasse “fazer-se” por conta própria sem se vincular ao trabalho rural e familiar. Foi nesse período em que estava tomando conta da granja, que Benigno Bouzas assistiu em abril de 1911 o desembarque dos desterrados da Revolta da Chibata (1910), ocorrida na cidade do Rio de Janeiro. Tinha então de dezessete para dezoito anos de idade, quando testemunha a chegada do navio Satélite abarrotado de proscritos e indesejados da

32

Idem, p. 46. Ibidem. 34 Idem, p. 55. 33

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capital da república para ali serem exilados 35 . Os “podridos” da República brasileira juntavam-se aos “podridos” de outras nacionalidades. Somente em julho do ano seguinte seus irmãos regressam a Santo Antônio e é então a vez de Benigno retornar à sua terra natal para tentar curar ou minorar os males da ausência36 que lhe acompanhavam desde a saída de sua Espanha. Essa afetação nostálgica37 aparece quando ele diz ter chorado e rezado ao avistar novamente as montanhas de sua Galícia natal que não via havia tempo. Na sua narrativa memorialística ele nos conta que ao chegar de surpresa à casa de sua mãe, que não esperava pela sua chegada, ele passa a ter contato com a realidade política e social deixada para trás havia 04 anos. São resumidamente narrativas das rusgas que ele passou a ter com autoridades eclesiásticas locais, que o viam como leitor de autores banidos pela igreja e por defender bandeiras ideológicas abominadas pelo clero e pela sociedade conservadora local. Em suma, ele aponta que o viam como uma espécie de livre pensador que questionava os pilares em que se assentava aquela sociedade que parece vê-lo em seu breve retorno como um estranho, tornando-se um estrangeiro em sua própria aldeia. Isso se exprimia em que conta ter sido impedido de ser padrinho em um batizado na igreja local, pois o padre alegou que ele era leitor do poeta, deputado e jornalista português Guerra Junqueiro (1850/1923), um declarado republicano que lutou contra a monarquia portuguesa naquele mesmo período. Benigno, que era também um republicano confesso, conta que junto a amigos cantava em alguns momentos o hino A Marselhesa em público para provocar algumas pessoas na cidade onde nasceu. A sua volta coincide com o início da I Guerra, onde ele declara que na sua vila natal abertamente passou a apoiar os Aliados e a exaltar a entrada dos EUA no conflito. Suas posições, vistas ali talvez como quixotescas, levam ele a se distinguir nas escolhas ideológicas e políticas da maioria da população de sua Pontevedra natal ao afirmar que aquela sociedade era formada em grande medida por pessoas ignorantes e supersticiosas. Não suportando mais os “seus” conterrâneos e não sendo muito provavelmente suportado pela maioria deles, em princípio de maio de 1915 ele partiu novamente de Vigo para voltar a Santo Antônio do Madeira. Parecia nesse momento já ser um apátrida, um homem sem lugar e ao

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Ver SILVA, 2010, op. cit. No século XVII o médico teuto-suiço Johannes Hofer defendeu uma tese sobre o que ele “diagnosticou” como depressão nostálgica, que afetava de fisiologicamente pessoas transplantadas de regiões altas para regiões baixas (montanha - planície). Cf.: QUEIROZ, op. cit. 37 Palavra composta derivada de dois radicais nóstos (regresso) e álgos (dor física ou moral). Na França chamada de maladie du pays e mal del corazón, na Espanha. Cf.: ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. “O banzo e outros males: o pathos dos negros escravos na memória de Oliveira Mendes”, pp. 346-361. Revista Latinoamericana de psicopatologia fundamental, volume 10, nº 02, junio de 2007. 36

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mesmo tempo em trânsito entre dois mundos que não o completavam. Esse trânsito não era só espacial, mas também de valores e de ideias que ele trazia consigo nesse vai e vem. Sua segunda viagem à Amazônia se deu no vapor Anthony, da mesma companhia inglesa em que fizera o mesmo trajeto sete anos antes. Passou novamente por Portugal no dia em que se inicia a chamada Revolta de 14 de Maio, em Lisboa, ocasião em que um grupo de civis e militares se rebela contra o governo do general Pimenta de Castro e uma junta constitucional assume o governo português após vitoria dos rebeldes. Conta que desceu na capital lusa por algumas horas, pois era portador de documentos particulares e precisava entregá-los ao seu destinatário. Nesse trajeto entre o porto e o endereço a que se dirigia viu a cidade quase deserta, com muitos homens armados nas ruas: soldados, franco-atiradores e pessoas mortas. Devido essa situação política, Benigno Bouzas atesta que o navio no qual viajava não fez o costumeiro trabalho de carga e descarga diante da conflagração civil e por isso ficaram quatro dias parados no porto lisboeta a espera da volta à normalidade. Seu senso político38 aponta na sua narrativa que os espanhóis em Portugal naquele momento eram vistos pelos republicanos rebeldes portugueses com desconfiança, pois a Espanha tinha declarado apoio ao governo de Portugal, inclusive com o envio de uma esquadra naval que chegou até a boca do rio Tejo. Mesmo com o perigo da guerra e o medo de ataques de submarinos, assevera que a viajem até Manaus transcorreu sem incidentes, mas o medo era algo permanente entre os poucos passageiros que tiveram coragem/necessidade de atravessar o Atlântico durante o primeiro conflito mundial. Novamente desembarca em Manaus, local de onde demorou oito dias até a região da EFMM a bordo do gaiola Rio Machado. Neste momento da narrativa em que ele chega ao seu destino final, Benigno Bouzas procura informar ao leitor da irreversível decadência da borracha brasileira no mercado internacional e diz que em Santo Antônio do Madeira sobrava gente e faltava trabalho 39 . Nesse seu regresso de decadência econômica regional, conta o espanhol que foi trabalhar fazendo dormentes (traviésas) para a companhia EFMM, que também já enfrentava seu ocaso de modernidade fugaz nas selvas amazônicas. O trabalho de Benigno, como ele mesmo relata, consistia em retirar madeiras na floresta para repor as peças estragadas ao longo da ferrovia. 38

Impossível saber se tais análises/informações foram escritas em uma espécie de diário ou vieram à tona anos depois no momento da feitura do livro de memórias do autor. 39 Após 1912 a borracha produzida na Amazônia a partir da exploração de árvores nativas decai em participação no mercado internacional. A Inglaterra passa a produzir borracha natural no sudeste asiático através do cultivo de seringueiras oriundas de sementes nativas da Amazônia transplantadas e melhoradas geneticamente. Cf.: JACKSON, Joe. O ladrão no fim do mundo: como um inglês roubou 70 mil sementes de seringueiras e acabou com o monopólio do Brasil sobre a borracha. Rio de janeiro: Objetiva, 2011.

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Mas essa jornada de lenhador avulso não lhe trouxe nada de consistente financeiramente, pois após algum tempo ele abandona a selva e vai em direção a Porto Velho, para trabalhar numa carpintaria de um português cujo salário, segundo ele, não “daba ni para pagarle a el la comida”40, mas como ele mesmo atesta, não havia outra coisa a se fazer em Porto Velho. Nesta cidade ele recorda que foi preso ao se envolver em uma briga que teria sido provocada por um bêbado que queria lhe bater, mas logo foi solto por intervenção do médico Joaquim Tanajura, um conhecido Benigno Bouzas desde a primeira estada deste naquelas paragens. Após esse incidente com a polícia, foi convidado por dois conterrâneos de nomes Alejandro Menendez y Ambrósio e Antônio Calixto Sanabria, já em meados de novembro de 1915, para subir via fluvial cerca de 200 km de Porto Velho para tentar a sorte explorando ouro de aluvião no igarapé Boa Hora. A aventura se mostra um fracasso total e o regresso às decadentes vilas de Santo Antônio e Porto Velho torna-se a única alternativa para eles. Sem dinheiro e com os três irmãos e dois primos já falecidos em terras amazônicas, Benigno é o único herdeiro dos bens dos Bouzas. E, diante da situação de penúria, resolve tentar vender a canoa e ao mesmo tempo a granja, mas sem sucesso devido a crise econômica aguda pela qual passava a região. Passa então a trabalhar com outro conhecido seu transportando madeira pelo rio homônimo para serrarias em Porto Velho em uma embarcação alugada da decadente firma boliviana Suarez y Hermanos, já abalada há muito pela crise da borracha nativa e dos negócios a ela atrelados. Contudo, a empreitada dura pouco tempo também, pois para Benigno tratava-se de negócio sacrificante e perigoso, em virtude de a retirada da madeira acontecer próximo às cachoeiras do caudaloso rio Madeira. O desditoso espanhol finalmente consegue vender sua canoa, compra roupas novas e vai atrás de trabalho na firma do comerciante boliviano Fidel Baca, da supracitada casa comercial Suarez y Hermanos. Não logra êxito, pois Don Fidel alegou ir mal dos negócios e logo depois desse encontro Benigno diz que ele faleceu e a firma outrora marca de solidez e pujança foi liquidada. Após chegar a Manaus foi procurar a firma Corbacho & Cia., uma antiga casa comercial onde ele e seus irmãos faziam compras que eram entregues em Santo Antônio pelos gaiolas que faziam essa rota regularmente. Pediu então ao proprietário da loja um empréstimo e ofereceu como garantia a granja Vila Esperanza. O proprietário, chamado Manuel Corbacho, também espanhol, consta não ter aceitado fazer negócios com Benigno nessas

40

BOUZAS, op. cit., p. 84.

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condições. Foi então quando um desconhecido espanhol chamado Serafim Cisneros que, segundo atesta Benigno, havia escutado boas referencias dele, lhe emprestou quinhentos mil réis para que ele seguisse viagem41. Com este dinheiro ele conseguiu zarpar em direção a Salvador (BA) e ali encontrar-se com conhecidos e parentes, que havia tempo não mantinha contatos. Na capital baiana teria trabalhado por um tempo numa casa comercial de onde logo saiu e, após contrair outro empréstimo em condições não detalhadas, rumou para o interior da Bahia, precisamente para Vila Nova da Rainha (atual Senhor do Bonfim). Ali entrou em sociedade numa exploração de manganês em uma mina chamada Grota da Gia. E como era ainda o período da I Guerra, conta que toda a produção era vendida para uma empresa norte-americana. Com o fim da Guerra Benigno Bouzas diz que cessaram os pedidos norte-americanos em outubro de 1918. Mas uma vez, o fim da demanda de um produto extrativo pelo mercado mundial, leva o espanhol a mudar de atividade e de lugar. Ele afirma que vendeu tudo que tinha e se mudou novamente para Salvador. Na sua segunda passagem por Salvador começou a trabalhar na área de exportação/importação, conta que viajava muito em função do seu novo trabalho, principalmente pela América do Sul. Do ponto de vista financeiro, foi quando a deusa Fortuna começou a lhe sorrir, como deixa transparecer sem muitos detalhes. Isso possibilita que em 1922 ele retorne outra vez à sua Espanha natal, onde se envolve no processo eleitoral apoiando na sua cidade um candidato liberal e republicano. O opositor era, nas palavras dele, conservador e apoiado pela igreja. Descreve as eleições como algo viciado e fraudulento, tendo até mortos e ausentes votando. Benigno Bouzas retorna outra vez ao Brasil, mas não especifica a data desse regresso. Após esse breve relato há um salto temporal na narrativa e já no fim do livro ele conta que em 1939 comprou uma fazenda chamada Carnaúba, a 27 km de Recife (PE). Foi neste local que ele disse ter escrito o livro e onde passou a viver. Conta que ali plantava laranja e vivia feliz e que sua vida de comerciante ia bem, sem reclamações. Há ainda uma parte chamada Apuntes (pp. 131/140), onde o autor faz comentários curtos sobre várias temáticas. São espécies de aforismos acerca de assuntos como: guerra, cidades, mulheres, feminismo (critica-o) e a Bíblia. Não era ateu ou excessivamente materialista, mas diz que o livro sagrado dos cristãos está cheio de parábolas e fantasias, por isso bastava acreditar em Deus. Prega contra a luta armada e fala que no futuro imagina existir

41

BOUZAS, op. cit., p. 118.

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no mundo somente uma moeda, uma língua e um governo. Afirma que deveria se ensinar as crianças a não aceitarem a guerra. Pensa numa espécie de programa escolar universal para isso. Defende a construção de uma estrada desde Pernambuco até Lima, no Peru. E por fim, diz que o defeito da democracia é servir de apoio para todo aspirante de ditador.

Considerações finais

Por imposição das circunstâncias, Benigno Bouzas tornou-se um proscrito político de sua pátria, não podendo voltar à sua terra natal diante da situação do entre guerras e da Espanha mergulhada no franquismo das décadas seguintes. Um republicano de ideias vistas como liberais, como era o caso dele, não se adaptaria a tal cenário, embora seu ecletismo fosse profundamente afim às condições espanholas do período. Em terra estrangeira, como era sua condição no Brasil, era imperioso calar-se42. Mas isso não significa que o transplantado tenha passado a viver em paz consigo mesmo. Sua crônica é um autorretrato de suas andanças e de seus pensamentos, um mergulho em questões ligadas a momentos políticos e sociais cuja prosa retrospectiva fez com que se debruçasse sobre sua vida individual e sobre o mundo que o cercava. “E como memorialista se expõe, pois é agente e paciente da história. E assina a história: na sua visão de história” 43 em que se coloca como ator e expectador dos acontecimentos. De forma singular, também não traça sua árvore genealógica em sua narrativa. Mas temos a escrita marcada pela cronologia, que não é apenas a do calendário, mas acima de tudo uma cronologia da memória. Ela nos faz acompanhar suas errâncias, percalços e ideais nesse transitar entre a Amazônia/Brasil e a Espanha. Tendo em mente as limitações e particularidades abordadas no presente artigo, acreditamos que a obra Del Amazonia al infinito possibilita desdobramentos para outras interpretações e enfoques, sejam eles literários e/ou historiográficos. Obras memorialistas são fontes importantes para ampliar o debate e o conhecimento sobre como homens no passado imaginaram a si mesmos e o tempo em que viveram.

42

Seu filho Alonso Bouzas, conta que durante o Estado Novo (1937-1945) seu pai foi preso por suas posições políticas que contrastavam com o regime implantado no Brasil. 43 QUEIROZ, Maria José de. Refrações no tempo: tempo histórico, tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 114.

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Referências

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