Entre estética e controle: o(s) ordenamento(s) dos espaços públicos urbanos

June 4, 2017 | Autor: Maria Isabel Rocha | Categoria: Urbanismo e Ordenamento do Territorio, Brasil, Pacificação, Design De Espaços Públicos
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Entre estética e controle: o(s) ordenamento(s) dos espaços públicos urbanos Eixo temático 2: Produção Contemporânea do Espaço, Projetos de Urbanismo e a (Des)Construção do Comum

Maria Isabel Costa Menezes da Rocha Doutoranda do PPG-AU FAUFBA1 Estágio cientifico no CRESSON ENSAG2 [email protected]

RESUMO O artigo busca entender o processo de “ordenamento” dos espaços públicos urbanos de maneira a contextualizá-lo no Urbanismo atual, cujas palavras de ordem são Planejamento Estratégico e Segurança, e cujo efeito é a espetacularização urbana. Para tanto, é importante investigar a nomenclatura utilizada para se referir a este “ordenamento”, levando em conta os discursos de ordem urbana, mas também do desejo de pacificação da vida nos espaços públicos. O processo – ou o conjunto de processos (enjeux): ordenamento, pacificação, espetacularização, entre outros – muitas vezes se utiliza de outros nomes para referir-se. Nosso trabalho investiga então a natureza (objetivos) das atuais transformações urbanísticas, sobretudo no caso brasileiro, especialmente na cidade de Salvador, a partir dos termos utilizados pelo Urbanismo e/ou pelos gestores de cidades, com base no caráter utópico das ideias que guiam essas transformações. Neste sentido, o trabalho busca referências históricas de ordenamentos urbanos, relacionando-os com os discursos atuais do Planejamento Estratégico em geral, e os novos discursos securitários e higienistas em particular. Finalmente, propõe um diálogo e uma evolução do assunto a partir das manifestações recentes que ocuparam as ruas do Brasil, bem como da noção de espaços outros (heterotopias) enquanto lugares reais da vida em sociedade.

PALAVRAS-CHAVE Ordenamentos; pacificação; espaços públicos; manifestações; Brasil.

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Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia. Sob a orientação da Profa. Dra. Paola Berenstein Jacques. 2 Centre de recherche sur l'espace sonore et l'environnement urbain da Ecole d’Architecture de Grenoble. Sob a orientação da Dra. Rachel Thomas. Estágio com bolsa da CAPES – PDSE.

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Entre estética e controle: o(s) ordenamento(s) dos espaços públicos urbanos

Prólogo O texto que se segue busca tensionar a noção de pacificação em relação aos espaços públicos urbanos da atualidade. Para tanto, partimos do termo urbanístico mais comumente utilizado para se referir à requalificação (revitalização, renovação, reestruturação, reurbanização, entre tantos outros re-s) da cidade, ou seja, ordenamento (ou reordenamento). Buscamos na história do urbanismo, indícios de que os ordenamentos urbanos eram e ainda são baseados em – além da necessidade de dar fluidez ao trânsito, favorecer a circulação – um desejo de segurança fomentado por uma classe média cada vez mais generalizada. Para tanto, faz-se necessário um dispositivo, este que traduzimos aqui como pacificação. Interrogamos então, com base na percepção da utopia (enquanto negação ou inverso de sociedade), esses ordenamentos urbanos, especialmente os atuais, decorrentes do planejamento estratégico; da necessidade de consenso e do apelo ao securitário. Finalmente, enxergamos uma possibilidade de abertura do campo urbanístico aos “espaços outros”, como um desvio ao que Foucault chamou heterotopias, lugares da vida real, e espaços da experiência cotidiana e/ou efêmera, muitas vezes escondidos, negados, combatidos devido à necessidade de ordem, estética e controle urbanos.

Por uma neutralização das classes perigosas: que nome para o processo? O assunto do tratamento urbanístico dos espaços públicos gira atualmente em torno de discursos sobre a qualidade estética, ambiental e/ou sanitária, sobre o conforto e segurança dos usuários. De uma maneira geral, muitos autores chamam este discurso de higienista, ou do novo higienismo. Este novo higienismo se basearia não somente na salubridade do ambiente urbano e a saúde de seus habitantes, mas também (quiçá principalmente) em uma “necessidade” de limpeza social. Esta necessidade é alimentada tanto pelo desejo de qualidade estética, quanto de salubridade e principalmente, de segurança pública. Tomamos então o discurso sobre o securitário. A segurança pública muitas vezes é entendida como limpeza social, visto a “necessidade” de se controlar as “classes perigosas”, senão exclui-las. Segundo Manuel Delgado, as classe perigosas são “aquellas que el nuevo higienismo social, como el del siglo XIX, clama por ver neutralizadas, expulsadas o sometidas a toda costa” (Delgado, 2005). No Brasil, um termo muito utilizado atualmente para se referir ao controle das classes perigosas é a pacificação, relacionada ao contexto da chamada urbanização das favelas, visto que o poder público alega que só pode ocupar esse tipo de área, entrar nesse tipo de território na forma de serviços, se o mesmo estiver devidamente pacificado. Diz-se que o programa de pacificação de favelas visa à retomada de territórios ocupados por traficantes e milicianos, para “recuperar a cidadania” nas

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comunidades. A pacificação pretende então resolver o problema em três frentes: ‘retomando’ os territórios, expulsando os grupos criminosos e integrando as comunidades à cidade. 1 Neste ultimo ponto, vê-se a valorização imobiliária do entorno como uma consequência positiva da pacificação, sem levar em conta o perigo de “expulsão” dos próprios moradores devido ao aumento do custo de vida e habitação. Quanto aos dois primeiros pontos, trata-se do que o próprio programa chama de ocupação da favela pela polícia, quando geralmente acontecem conflitos armados entre a tropa de choque e o crime organizado em meio ao espaço da favela. Apenas depois deste confronto inicial – com a morte ou prisão dos principais traficantes (entre outras pessoas) – uma unidade de polícia pacificadora (UPP) é instalada no local, caracterizando uma (re) conquista do território da favela, pelo poder público. Quanto ao termo ocupação, ele é usado com frequência como sinônimo ou efeito da pacificação – nos diversos contextos de pacificação, seja das favelas pelas UPPs, seja das tribos indígenas, seja dos espaços públicos – sempre com um apelo militarista. Desde a pacificação dos povos indígenas havia fundamentalmente um interesse econômico no território onde eles se encontravam e do qual sobreviviam. Até hoje podemos observar esse interesse nos processos de pacificação de favelas e de outros espaços urbanos. Neste processo de tomada ou “conquista” (remetendo-nos à colonização) de territórios visa-se igualmente a neutralização, expulsão, enfim, submissão a todo custo de grupos de habitantes – no caso de grupos indígenas, normalmente, não criminosos – e inclusive chegando-se ao extermínio. Sabemos, portanto, que a prática de “retomada de territórios” e a “expulsão de grupos de habitantes” criminosos ou não, acontece também em outras áreas da cidade, não somente em favelas, quando se propõe a “revitalização” notadamente de espaços públicos com uma certa visibilidade. Vemos então, um termo bem atual no campo do urbanismo. Revitalização tratarse-ia de uma forma ou estagio da pacificação, agora aplicada a areas da cidade formal? Os projetos de “revitalização” se inserem francamente na lógica do Planejamento Estratégico Urbano – herdado do planejamento estratégico das empresas, mas também com uma referência, menos explícita, aos planos estratégicos militares – cujo modelo foi elaborado na cidade de Barcelona no inicio da década de 90, e cujo objetivo é transformar os espaços da cidade em atrativos, para explora-los enquanto marcas na indústria do turismo e no mercado de cidades. Assim, atraem certas camadas da sociedade – a elite (que no Brasil o renegou durante séculos de história) e a classe média em geral – e têm como consequência a expulsão de outras camadas, devido à especulação imobiliária e ao aumento do custo de vida. A higienização passa a ocorrer tanto no sentido físico (salubridade e estética) quanto no sentido social (gentrificação2). No tocante a essa classe média generalizada, autores como Laurent Matthey e Olivier Walther (2005), consideram que o desejo de distinção de uma nova classe média em ascensão está no seio do que eles chamam Novo Higienismo, ao lado de um “consumo ostensivo”. Os dois elementos – “distinção de uma classe social em ascensão” e “consumo ostensivo” – seriam geradores de um conjunto de práticas sociais, das quais se constitui o Novo Higienismo. 1

Governo do Rio de Janeiro, site exclusivo sobre as Unidades de Policia Pacificadora, do programa de pacificação de favelas, que trata da ocupação e controle pela policia dessas regiões especificas da cidade. www.upprj.com Consultado em 08/07/2013. 2 Enobrecimento de uma área urbana, com a retirada dos moradores/ usuários originais, geralmente os menos favorecidos.

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Neste sentido, o “modelo Barcelona” é criticado especialmente por se tratar de um plano de desenvolvimento fundamentado no consenso social, como se tratasse de uma classe unica, uma comunidade e não uma sociedade, já que a imagem da cidade deve ser (ou parecer) produto de um consenso – todos os seus habitantes devem se identificar com esta imagem. Para tanto, objetiva-se a eliminação do conflito, próprio ao convívio em sociedade, a partir da promoção de um espírito cívico. O civismo concebe a vida social como um colossal proscênio de e para o consenso, no qual cidadãos livres e iguais concordam em conviver de maneira amavel, cumprindo um conunto de preceitos abstratos de boa conduta. O cenário preferido desse limbo é um espaço público não menos ideal de uma classe média universal dedicada ao exercício das boas práticas de civilidade. Nesse espaço modélico, não se prevê a possibilidade de que irrompa [exploda] o conflito, posto que na rua e na praça se pressupõe a realização da utopia de uma superação absoluta das diferenças de classe e das contradições sociais por meio da aceitação comum de um saber se comportar que nos torna iguais.3 (Delgado, 2005.[tradução livre])

A frustração do modelo Barcelona, segundo Delgado, é frequentemente atribuída ao crescimento das chamadas “classes perigosas” (as classes excluidas da estratégia), bem como de uma classe média desejosa de distinção, em vista disso, tem-se um apelo cada vez mais forte e ao securitário. No Brasil, a relação entre classe média em escensão e apelo ao securitário, foi analisada pela filosofa Marilena Chauí. Com as políticas sociais recentes, diz-se que houve o crescimento da classe média brasileira. Segundo Chauí, tratar-se-ia de uma nova classe trabalhadora, que se encontra confrontada e confundida com os anseios e discursos da classe dominante. Fragmentada, perpassada pelo individualismo competitivo, desprovida de um referencial social e econômico sólido e claro, a classe média tende a alimentar o imaginário da ordem e da segurança porque, em decorrência de sua fragmentação e de sua instabilidade, seu imaginário é povoado por um sonho e por um pesadelo: seu sonho é tornar-se parte da classe dominante; seu pesadelo é tornar-se proletária. Para que o sonho se realize e o pesadelo não se concretize, é preciso ordem e segurança. (CHAUI, 2013. p. 131)

Além disso, ela considera que a democratização do espaço público se encontra ameaçada pela hegemonia política e econômica do neoliberalismo4 e sobretudo pela estrutura autoritária e hierarquizada da nossa sociedade. O poder público dos estados e municípios brasileiros vê nestas características socioeconômicas e nesse imaginário de ordem e de segurança a justificativa para se promover a pacificação (a começar pelas favelas) no intuito de mitigar o conflito no espaço público. Nos desenvolvimentos atuais de planificações e ordenamentos urbanos dos espaços públicos, “El civismo concibe la vida social como un colosal proscenio de y para el consenso, en que ciudadanos libres e iguales acuerdan convivir amablemente cumpliendo un conjunto de preceptos abstractos de buena conducta. El escenario predilecto de ese limbo es un espacio público no menos ideal, en que una clase media universal se dedica al ejercicio de las buenas prácticas de urbanidad. En ese espacio modélico no se prevé la posibilidad de que irrumpa el conflicto, puesto que en la calle y la plaza se presupone la realización de la utopía de una superación absoluta de las diferencias de clase y las contradicciones sociales por la vía de la aceptación común de un saber comportarse que iguala.” (DELGADO, 2005.) 4 Atualmente, ela considera que estamos há dez anos em um período de políticas contrárias ao neoliberalismo. 3

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o espaço é, portanto “restaurado em torno de projetos essencialmente securitários e mercantis” (Thomas et alli, 2010). Tanto o aspecto securitário (do controle pela polícia), quanto o aspecto mercantil (do controle pelo mercado) poderiam caracterizar esta “restauração” enquanto uma ocupação do território e, portanto, uma forma de privatização, coerente com o desejo de distinção de classe – inclusive no sentido de privar uma parte da sociedade do espaço público restaurado (securitário) e do espaço privado enquanto propriedade (mercantilizada). Aí se encontra a utopia da logica dos novos “ordenamentos” urbanos: implementar uma ordem artificial, alheia ao contexto sócio-econômico, à pluralidade humana de cada cidade, e às possibilidades de partilha sensível (Rancière) do espaço urbano fundada na regulação natural entre os individuos. Para tanto, faz-se necessario uma pacificação, justificada pela urgência em ocupar uma área no sentido de dominá-la, condicioná-la a um novo conjunto de normas ou de estratégias. Poderiamos considerar a existência de um dispositivo – “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.” (Agamben, 2005) – formado por discursos, medidas de segurança, estruturas arquitetônicas e urbanas, etc. Nisto, o Planejamento Estratégico seria complementar ao (novo) higienismo que, segundo Matthey e Walther, parte do que Foucault chamou de “biopoder” (1976 [1994]); um forma de regulação que tange todos os aspectos da vida, com base em um discurso construído pelos indivíduos de uma sociedade, com base no poder (classe) dominante, através de intersubjetividades. O biopoder incita este discurso à generalização, não o reprime e, por outro lado, abandona e tende a reprimir o discurso alternativo. Ele se apoia em um discurso generalizado para regular, controlar toda uma sociedade. Ao lado disto têm-se e necessidade de medidas de segurança, e de formas de organização da sociedade no espaço da cidade. Tem-se então um dispositivo de pacificação, cujos elementos se confundem quando da transformação efetiva do espaço urbano de uma maneira geral: física, cognitiva e social. Esta transformação é objeto do trabalho sobre os aspectos sensíveis do espaço público, baseado na sua experimentação. Na prática, temos diversas nomenclaturas para nos referir a um mesmo fenômeno, ou dispositivo, nos deteremos então no entendimento do que seria de fato uma pacificação dos espaços públicos, com base nos discursos e desejos atuais de ordem urbana, sem negligenciar as heranças históricas da questão do “ordenamento” das cidades.

Desde os primórdios (do urbanismo) até hoje em dia: o desejo de ordem estética e social Ao longo da história, o desejo de controle social foi “traduzido” em controle do território urbano em seus aspectos mais tangíveis, no intuito implícito de comunicar o poder e/ou o discurso dominante, através de obras públicas de arquitetura e urbanismo. Segundo Lewis Mumford, sobre a cidade através da história, podemos observar que muita coisa permanece deste discurso de ordem urbana baseada em noções de estética e em uma preocupação com as “fachadas”. Um dos exemplos é ja na a Grécia da época helenística:

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A cidade tinha deixado de ser o lugar de uma ação dramática onde cada cidadão tinha seu papel, sua réplica a transmitir; ela se torna uma espécie de arena, onde a equipe do poder apresentava pomposamente seu espetáculo; e os edifícios implacavelmente alinhados em duas filas paralelas ao longo das avenidas não eram mais que a bela fachada de um regime fundado na força militar e nos métodos de exploração.5 (MUMFORD, 1964, p. 254-255. Grifos nossos. [tradução livre])

Mais tarde, no período barroco europeu, o mesmo autor observa a abertura de largas avenidas destinadas especialmente ao espetáculo do poder: os desfiles militares. Para tanto, era importante observar ao mesmo tempo a boa largura da avenida e o seu alinhamento, pois quem pretende governar pela força, algumas formas de traçados urbanos tornam-se indispensáveis (Ibid.). Neste sentido, é importante notar o surgimento de uma preocupação em se garantir a fluidez da circulação (primeiramente dos desfiles e operações militares) através de avenidas mais largas, e um interesse cada vez maior em aumentar a velocidade desta circulação: “Sob tal patronato, os projetos dos urbanistas se confundiam com aqueles da classe dominante e não levavam em conta o interesse geral do povo. (…) Visando antes de tudo a eficácia e não conhecendo outros princípios além daqueles de uma certa estética, esses urbanistas ignoravam quaisquer estruturas sociais da cidade ; buscando aumentar a velocidade de circulação, eles não percebiam que comprometiam as possibilidades de encontro e a cooperação social.”6 (Ibid. p. 490-491. [tradução livre] Grifos nossos.)

A questão de “comprometer as possibilidades de encontro e cooperação social” também está presente na história, sem, no entanto, ser vista como problema pelos gestores urbanos. Os interesses destes continuam a se confundir com aqueles da classe dominante e, portanto, privados. Atualmente, eles tendem à obediência das leis de mercado e aliam-se aos interesses privados das corporações, incluindo-se ai as organizações promotoras dos eventos esportivos internacionais – FIFA, COI e afins. Podemos fazer um paralelo aqui com o que acontecia na Grécia helenística, onde a cidade era transformada para que a equipe do poder apresentasse seu espetáculo. Essa transformação ocorria fisicamente, com a abertura de largas avenidas e construção de prédios desproporcionais à cidade, mas também em termos do ambiente7 que se formava, visto o controle (repressão) pelas forças armadas, a ideia de espetaculo e “fachada” – visando esconder todo tipo de atividade social que não condissesse com o novo modelo de cidade – e a necessidade de circulação (cada vez mais) rápida. “La cité avait cessé d’être le lieu d’une action dramatique où chaque citoyen avait son rôle, sa réplique, à faire passer; elle devint une sorte d’arène, où l’équipe du pouvoir présentait pompeusement son spectacle; et les bâtiments implacablement alignés en deux rangées parallèles le long des avenues n’étaient plus que la belle façade d’un régime fondé sur la force militaire et les méthodes d’exploitation.” (MUMFORD, 1964, p. 254-255.) 6 “Sous un tel patronage, le conceptions des urbanistes se confondaient avec celles de la classe dominante et ne tenaient aucun compte de l’intérêt général des populations. (…) Visant avant tout à l’efficacité et ne connaissant d’autres principes que ceux d’une certaine esthétique, ces urbanistes ignoraient tout des structures sociales de la cité; en cherchant à accroître la vitesse de circulation, ils ne se rendaient pas compte qu’ils compromettaient les possibilités de rencontre et la coopération sociale” (Ibid. p. 490-491.) 7 O termo mais adequado aqui seria ambiência, entendida como a soma de fatores – auditivos, olfativos, táteis, mas também cognitivos, subjetivos, etc. – que compõem o ambiente, influenciando direta ou indiretamente na conduta/ postura dos seus usuários. Sobre este tema, destaca-se o Congresso Internacional sobre Ambiências: o primeiro “Faire une ambiance”, realizado em Grenoble, França, em 2008; e o segundo “Ambiances en acte(s)”, realizado em Montréal, Canada, em 2012. 5

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Vemos naquela época, a presença militar no espaço público, para “comunicar” o seu poder, estabelecendo um discurso dominante, e para garantir a ordem na cidade, como o dispositivo de que falamos anteriormente. A questão das fachadas também já se mostra um esboço do higienismo que viria a surgir depois, bem como a necessidade de regulação (pacificação) dos conflitos entre classes sociais. Um pouco mais recentemente, com a revolução industrial, vieram as constatações e os constantes agravamentos dos problemas da habitação operária – nova classe que logo se tornou a mais importante em número na cidade. Os pensadores mais conhecidos, como Considérant, Engels ou Marx, escreveram seus manifestos contra as condições de vida do proletariado, a exploração da mão-de-obra inclusive de crianças e a crescente diferença social. Na época da revolução industrial, a humanidade conheceu a divisão – cada vez mais forte – da sociedade em classes sociais; era o começo da luta de classes, segundo Marx e Engels. De maneira simplificada, passava a existir na cidade duas grandes classes: o proletariado e a burguesia. Mas, em um primeiro momento, o crescimento exacerbado das cidades comprometia também as condições de vida da burguesia. Os imóveis relacionados à burguesia constituíam uma versão, que se queria luxuosa, da habitação da classe proletária. (…) Os burgueses passavam a ser encasernados como os proletários. E estas duas populações tinham medo uma da outra. Para superar seu próprio medo, a burguesia construiu em todas as cidades industriais da Inglaterra em primeiro lugar, em seguida, em Paris, sob o Segundo Império, outros quartéis destinados a um exército (ou, como os Estados Unidos, de 1870 a 1890, uma milícia), que era, como observou Mumford, um'' verdadeiro exército de ocupação”.8 (RAGON, 1990. Pag. 28. [tradução livre])

Com esta citação, vemos os primeiros indícios de um desejo de se promover uma pacificação entre as duas classes que se tinham um medo recíproco. Hoje em dia, ainda temos “burgueses encasernados” em seus condomínios fechados e igualmente isolados (da cidade e da sociedade) em seus carros e demais serviços privados. O que evidencia o desejo de distinção de classe (burguesa e pequeno-burguesa) e juntamente a “necessidade” de segurança. Tal necessidade é levada em conta pelo poder público, que ainda hoje responde à demanda de uma elite e se confunde com esta. Neste sentido, a questão da circulação, por exemplo, tem permeado as decisões e os investimentos do poder e do capital público ao longo dos séculos. Na Europa do século XVIII, a circulação adquire o carater de problema urbano devido à supressão das muralhas, que possibilitava o acesso ao espaço urbano a todo tipo de população, assim como possibilitava o próprio desenvolvimento das cidades. Convinha “organizar a circulação eliminando o que era perigoso nela, separar a boa circulação da má, maximixar a boa circulação diminuindo a má” (Foucault, 1978). O intuito de aumentar a velocidade da circulação fazendo prevalecer o uso do automovel privado, fez com que as cidades passassem por muitas transformações ao longo do tempo. Uma destas cidades “reformadas” que também serviu de exemplo mundial durante certo período (e ainda hoje?) é a cidade de Paris. “Les immeubles de rapport bourgeois constituaient une version, qui se voulait luxueuse de l’habitation des prolétaires. (...) Les bourgeois commerçaient à être encasernés comme les prolétaires. Et ces deux populations se faisant réciproquement peur, afin de surmonter sa propre peur la bourgeoisie fit construire dans toutes les villes industrielles d'Angleterre d’abord, puis à Paris sous le Second Empire, d’autres casernes destinées à une armée (ou comme aux États-Unis, de 1870 à 1890, à une milice) qui constituait, comme le souligne Munford, une « véritable armée d’occupation ».” (RAGON, 1990. Pag.28) 8

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As intervenções urbanísticas de Haussmann na Paris do Segundo Império, entre 1852 e 1870, são consideradas por alguns autores como o modelo de “destruição criadora”9. Duas questões se faziam mais gritantes: a salubridade publica e a habitação social. Ambas a solucionar dentro de um apelo higienista, que se dizia preocupado com as condições de vida das classes mais pobres. De maneira geral, visava-se “libera os fluxos”, seja de agua, ventilação, seja o fluxo de pessoas ou da economia. No entanto, há uma outra questão pouco explorada; nesta mesma época, as operações urbanas de Haussmann, também tinham um objetivo de ordem publica e de controle social; “objetivo de pacificar territorios cronicamente turbulentos” (Delgado, 2007.). Dai a destruição das “habitações insalubres” e a abertura de grandes avenidas, com ângulos de visão estratégicos (sobretudo no sentido bélico, visto que possibilitava tiros à longa distância e o controle da multidão), condizente também com a abertura de quartéis (e quartéis de trabalho), citada anteriormente. Certamente, apenas o controle continuo do conjunto do ambiente da cidade, em geral, e dos fluxos e circulações em particular, seria a solução para a manutenção do poder dominante. Os exemplos historicos neste sentido ecoam até hoje quando da necessidade de novos ordenamentos urbanos.

Alguma coisa está fora da (nova) ordem: sobre as novas secretarias de ordem pública Dentro da logica das modernizações das cidades dos séculos XIX e XX – época das reformas de Haussmann em Paris e de Pereira Passos no Rio de Janeiro (seguindo o exemplo do primeiro), só para citar alguns exemplos mais populares – os ordenamentos urbanos atuais também rejeitam as asperezas sociais em todas as suas formas. Tudo o que estiver fora dos padrões deve ser reformado ou excluído com base no desejo de utopia, sobretudo se estiver em locais de grande visibilidade, ou estratégicos, desconsiderando as possibilidades de encontro e cooperação social, as heterotopias10 existentes no espaço público urbano, ou seja os lugares, modos de regulação entre os individuos e ajustamentos reais da vida. Esse tipo de reforma também se encontra no dipositivo que chamamos de pacificação. Embora o termo não seja oficialmente utilizado pelos gestores urbanos (e seus aliados) em relação ao urbanismo, visamos aqui entender como e porquê esta pacificação também é aplicada aos espaços públicos urbanos “formais”, e não somente àqueles das favelas ou aos territórios indígenas, caracterizando-se um “ordenamento” urbano ou, antes, um dispositivo para tal ordenamento. Tomaremos, para tal averiguação, o caso das grandes cidades brasileiras, especialmente a cidade de Salvador, uma das capitais a sediar os jogos da Copa do Mundo de futebol em 2014 e onde teve recém criada a Secretaria Municipal de Ordem Pública (inicio de 2013, com a nova gestão municipal). Sobre o papel desta nova secretaria, primeiramente, buscamos o conceito de ordem pública, segundo o regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares do Brasil, aprovado pelo Decreto n. 88.777/1983: 9

Termo citado por Manuel Delgado em La ciudad mentirosa (2007, p. 54-55). “esses espaços diferentes, esses outros lugares” (Foucault, 1984)

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Ordem Pública – Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum. (Presidência da Republica, 1983.11 Grifos nossos.)

Vemos dentro da própria definição acima apresentada uma relação com a pacificação no sentido de tornar pacífico o convívio social. Tomando o significado de pacificação apresentado pelo dicionário, temos: Restituir a paz; acalmar; apaziguar. s.f. Restabelecimento da paz e da ordem em um país, em uma sociedade etc.; Fig. Apaziguamento. (Dic. Aurélio) – Ação de pacificar, trazer a um estado de paz (um país, um povo). Reestabelecer a ordem; reduzir a rebelião em (país). Tornar calmo. (do francês, Dic. Le Robert). No entanto, segundo muitos filósofos e teóricos do urbano, uma sociedade apaziguada não é desejável, pois tende a ser submissa, por não estar desperta, inquieta. A filósofa Hannah Arendt considera que nunca a sociabilidade humana pode (nem deve) ser apaziguada, visto que o conflito é próprio do convívio entre (pontos de vista) diferentes. Para ela, a riqueza do “mundo comum”, que é o espaço público, está no “fato de que todos vêem e ouvem de ângulos diferentes”. Enquanto que na vida privada, as pessoas são “privadas de ver e ouvir os outros e privados de ser vistos e ouvidos por eles”. (ARENDT, 1958, p. 67) Além do emprego como sinônimo de pacificação, o termo apaziguar, ou apaziguamento12, também é usado, especialmente em francês (apaiser ou apaisement), para se referir a uma redução da velocidade, sendo amplamente empregado no contexto de políticas publicas que beneficiam as mobilidades mais lentas, os ditos modos suaves (modes doux). Voltamos então, a partir do conceito de pacificação, à questão da circulação em meio urbano, desta vez, o seu sinônimo indica uma forma de favorecer as possibilidades de encontro, cooperação social e partilha do sensível, adquirindo assim quase o sentido inverso da pacificação. No caso do Brasil, este sentido do apaziguamento ainda é muito pouco desenvolvido. Algumas das grandes cidades brasileiras apresentam hoje uma Secretaria Municipal de Ordem Pública, com vistas a este “restabelecimento da ordem”, sendo aquela do Rio de Janeiro uma das mais conhecidas (atuantes?). Segundo o site da Secretaria Municipal da Ordem Pública carioca (criada em 2009), existe um plano estratégico13 exclusivamente de combate à desordem urbana – “situações que banem as pessoas e os bons princípios das ruas, contribuindo para a degeneração, desocupação desses logradouros e a redução das atividades econômicas” (SEOP, Prefeitura do Rio). Para tanto, a Seop passou a implementar à partir de 2011, unidades de policiamento que 11

Decreto n 88.777, de 30 de setembro de 1983 Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D88777.htm 12 Uma discursão completementar sobre os termos pacificação, apaziguamento e assepsia (social) pode ser encontrada na pesquisa “os enigmas sensíveis das mobilidades urbanas contemporâneas” – MUSE – coordenada por Rachel Thomas (laboratório CRESSON), em parceria com diversos laboratórios, entre eles, o Laboratório Urbano (PPG-AU UFBA). 13 Prefeitura do Rio, Secretaria Especial da Ordem Pública. Mais informações no site da Seop: www.rio.rj.gov.br/web/seop

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garantam a patrulha continua de algumas áreas bem definidas da cidade – as Unidades de Ordem Pública. Vemos ai claramente uma referência às Unidades de Polícia Pacificadora implementadas em algumas favelas cariocas. O patrulhamento das UOPs atua dentro de perímetros bem definidos da cidade do Rio de Janeiro – segundo o divulgado na pagina internet da secretaria – normalmente áreas de interesse turístico e/ou de habitação da elite carioca (como Copacabana, Ipanema e Leblon). O combate à desordem, carro chefe da secretaria, se confunde com a pacificação, no sentido do desejo de ver neutralizadas ou expulsas as chamadas classes perigosas. Notamos a emergência de “ilhas pacificadas”, regiões da cidade que estão em ordem, sob controle, ao mesmo tempo em que existem regiões em que esta mesma ordem não está assegurada pela polícia. Nos perguntamos se também neste caso se trata de uma ocupação de território, como na favela, ou se trata de uma operação para a manutenção do poder dominante, quer dizer, a proteção (de fato) do bem estar apenas das populações consideradas economicamente relevantes – moradores e turistas presentes nestas zonas. A questão que fica é: proteção contra o que, ou contra quem? E no caso das UPPs, também estariam protegendo o bem estar dos moradores das favelas? O dispositivo da pacificação (incluindo-se o combate à desordem), se mostra no Brasil ainda dependente aos limites fisicos, uma necessidade de se demarcar os territorios de interesse e do controle visando o espetaculo e/ou a utopia urbana. Vemos uma permanência do que Foucault chama sociedades disciplinares, devido ao fato de atuarem em meios confinados, estabelecendo, desta forma, um dentro e um fora, “é assim que os primeiros teóricos modernos da sociedade, de Hobbes a Rousseau, compreendiam a ordem civil como um espaço limitado e interior que se opõe à ordem exterior da natureza, ou que dela se distingue.” (Hardt, 2000, p. 358). Isto evidencia a diferenciação de uma ordem articifial (do dentro) em relação à ordem natural (do fora). O problema urbanistico pode estar na descontinuidade e na segregação destes espaços em relação ao conjunto da cidade, o que podemos experimentar também na cidade de Salvador14. Ainda que não seja anunciada a implantação de UOPs, como no Rio de Janeiro, percebemos a diferenciação de lugares em relação à sua apropriação a partir da experimentação do espaço urbano, sobretudo quando da realização de percursos urbanos que traspassam ou tangem diversos lugares da cidade. O nivel de apropriação – natural ou artificial – é percebido como elemento transformador do espaço público em sua ambiência. Percebemos assim os diferentes niveis de apropriação – mais ou menos público ou mais ou menos privatizado – ou regulação do espaço de forma a podermos relacionar o público com o fora e, portanto, com o político (Ibid.). Enquanto que o dentro é produto do desejo de segurança de uma sociedade cada vez mais despolitizada (Ortega, 2001). Sabendo-se que a cidade de Salvador figura na lista das cidades mas violentas do Brasil 15 (e do mundo, com base na taxa de homicídios/ano), a Secretaria Municipal de Ordem Pública – SEMOP – foi criada em 2013 sobretudo com o apelo à Segurança urbana e a prevenção à 14

A primeira missão da pesquisa MUSE se deu na cidade de Salvador da Bahia, com a experimentação de espaços que passaram por algum processo de pacificação urbana, associado a uma revitalização. Nós pudemos observar, já neste primeiro tempo, os eixos de fluxos que permeiam esses espaços, bem como o seu entorno, para poder nos interrogar sobre o jogo de ambiências que gerem a cidade. Diversas questões foram colocadas durante uma oficina intitulada “Conflito e Partilha no Espaço Público”, relacionada à pesquisa. 15 CEBELA – Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos : Mapa da Violência. (mapadaviolencia.org.br)

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violência, com a figura da Guarda Municipal16 em primeiro plano. Vemos especialmente nas determinações da Guarda Municipal uma forte presença da necessidade de regulação/ controle do espaço público urbano – inclusive das vias de trânsito, enquanto espaços públicos que são – no que é chamado manutenção da ordem. É também de responsabilidade da Guarda contribuir para “o convívio social, civilizado e fraterno” em meio urbano, o que caracteriza a necessidade de urbanidade, qualidade fundamental do espaço da cidade, que faz parte também, mas que vai além das questões do urbanismo e da segurança urbana. Sobre este aspecto, Isaac Joseph (1998) considera que os “procedimentos de apaziguamento” (“procédures d’apaisement”) estão no seio da noção de urbanidade e são fabricados pelos próprios cidadãos a partir da prática do convívio em meio público; poderíamos dizer que trata-se de subjetividades que servem para orientar a nossa conduta em sociedade. Em contrapartida, encontram-se os “processos de pacificação” que, para nós, evidenciam um ordenamento artificial, uma imposição e não uma construção social, no entanto, eles são fundamentados no discurso de segurança. Este que, por sua vez, é construido a partir de subjetividades e desejos de uma classe dominante, adotados ou absorvidos por uma classe média generalizada (pequeno-burguesa desejosa de se tornar burguesia). Embora, não se trate de uma secretaria ligada diretamente às questões do urbanismo, ela apresenta foco nos aspectos gerais do ambiente urbano, objetivando, entende-se, garantir a paz (mitigar o conflito) nos espaços de uso coletivo. Um dos seus focos incorpora também a ocupação indevida do espaço público, notadamente pelo comércio informal. Propõe, então, o Ordenamento, licenciamento e fiscalização de espaços públicos e comércio informal. É interessante notar o foco dado sobre a presença de vendedores ambulantes como obstáculos à circulação de pedestres, enquanto que um dos principais fatores de obstrução das passagens, inclusive do pedestre, é a presença de carros estacionados em espaço público, e inclusive sobre calçadas. Embora a Secretaria de Ordem Pública também tenha como objetivo o ordenamento dos espaços públicos e, através da Guarda Municipal, a disciplina no trânsito, o assunto do trânsito urbano, especialmente de pedestres e demais modos suaves, é muito raramente tocado por esta secretaria e pela prefeitura em geral. Sobre este ponto, podemos citar a situação das calçadas soteropolitanas, consideradas por uma pesquisa publicada pelo Portal Mobilize17 em abril de 2012, entre as piores calçadas do Brasil: “entre as cinco piores calçadas do levantamento, quatro delas estão em Salvador”. Isto mostra que as preocupações da Ordem Pública urbana não envolvem outros aspectos igualmente importantes para o bom funcionamento, estética e, portanto imagem da cidade. No citado estudo, as calçadas principais de acesso ao estádio Fonte Nova foram consideradas péssimas. Um ano depois (abril de 2013), o mesmo Portal divulga “melhorias nas calçadas e acessos à Arena Fonte Nova”. O que nos permite notar a atenção dada exclusivamente a um empreendimento para um evento temporário; os acessos (calçadas) para este único ponto como sendo “mobilidade urbana de entorno” e, por isso, consideradas mais importantes (visíveis?) que as demais calçadas da cidade. Este tipo de obra de mobilidade é visto atualmente em todas as cidades-sede da Copa do Mundo de futebol, ao lado de outras 16

Susprev. Disponível em: http://www.segurancaurbana.salvador.ba.gov.br/ Mobilize Brasil é o primeiro portal brasileiro de conteúdo exclusivo sobre Mobilidade Urbana Sustentável. mobilize.org.br 17

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“adaptações” urbanas, como por exemplo a implantação de uma UOP na região do entorno imediato ao Maracanã, no Rio. Este conjunto de obras concentradas evidencia o contraste entre o desejo de utopia e a realidade das heterotopias publicas (em uma ramificação do conceito de Foucault) – lugares abertos onde se deixam habitar as formas e regulações humanas em desacordo com o discurso dominante ou à norma exigida, espaço político, o fora. Este tipo de obra também é bem condizente com o que declarou publicamente a secretária de Ordem Pública, antes mesmo de assumir o cargo: “Enfrentamos dificuldades inclusive na estética da cidade. Precisamos realizar um trabalho de maquiagem para receber [os visitantes]... Mas não só para isso, mas também tornar a cidade boa para quem mora aqui. Esse que é o objetivo principal”18. Fica claro que é importante, para os gestores urbanos, realizar um trabalho de “fachadas” para tornar a cidade agradável aos olhos de quem a visita (passar uma boa imagem). Fica clara a importância dada a “ordenar” (limpar, maquiar, pacificar) a cidade, seus pontos estratégicos, para melhor exibi-la. O momento desta exibição internacional, se aproxima: com os jogos da Copa do Mundo de futebol em 2014 e as Olimpíadas em 2016, considera-se que teremos oportunidade de mostrar (comunicar) ao mundo, através das nossas cidades, a imagem (fachada?) de uma nação exemplar – higienizada, bonita e pacificada. A segurança publica já tem dado exemplos de como “pacificar” os espaços públicos, com um discurso baseado, entre outros, na fluidez do trânsito. Os exemplos de pacificação no sentido de “reduzir a rebelião” aconteceram durante as manifestações de junho em todo o país e momento do primeiro destes eventos esportivos – a Copa das Confederações – quando os manifestantes enfrentaram uma grande violência da parte da polícia militar.

Por uma pacificação “Em nome do trânsito”?: notas de conclusão As últimas manifestações que ocorreram no Brasil emergiram de um assunto prático, que faz parte do cotidiano da população: o transporte urbano. De um lado havia os manifestantes que protestavam contra o aumento da tarifa do transporte público, aumento que ocorreu em muitas cidades brasileiras, chegando, em algumas a quase 10%. Do outro lado, sobretudo quando das grandes manifestações que aconteceram na cidade de São Paulo, a partir do dia 10 de junho, havia uma polícia preocupada em liberar a circulação nas principais avenidas do centro da cidade. Liberar a circulação significa expulsar os manifestantes à base da violência de armas “não-letais”19. Ou seja, a polícia agia com brutalidade, seguindo ordens, para manter a ordem publica e “em nome do trânsito” fluido de veículos. Ela expulsava os manifestantes que reinvidicavam, voluntariamente, um transporte público acessível, capaz de garantir o direito de ir e vir em meio urbano, ou seja, “e nome do trânsito” livre de pessoas. Por se tratar do centro de São Paulo, a maior cidade da América Latina, essa repressão é Publicado no Bahia Noticias de 15 de Dezembro de 2012: ‘Precisamos realizar trabalho de maquiagem para receber visitantes’, diz secretária de Neto. (bahianoticias.com.br , site consultado em 08/07/2013) 19 O termo, em si, é questionável, pois, na verdade, se tratam de armamentos menos letais, como bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e sprays de pimenta. 18

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bastante midiatizada, e a justificativa da polícia é simples e claramente elitista, dentro do mesmo discurso de segurança e manutenção da ordem pública: é preciso liberar o trânsito. Nas entrelinhas, por se tratar do contexto do planejamento estratégico e, especialmente, dos jogos internacionais – em outras palavras, da espetacularização urbana – podemos ler: é preciso mostrar ao mundo (para atrair mais visitantes?) que temos o controle da situação e não vamos deixar que a ordem seja ameaçada pela presença dessas “classes perigosas”, sobretudo se elas ocupam as ruas obstruindo a passagem de veículos. A justificativa de “liberar o trânsito” foi bem aceita pela mídia em um primeiro momento. Em um segundo momento, a própria mídia foi atingida pela violência policial no intuito de liberar as vias, ou simplesmente dissolver a manifestação, reduzir a rebelião. O fato de a repressão ter atingido vários jornalistas fez com que a mídia conservadora invertesse seu ponto de vista e até encorajasse novas manifestações nas ruas, “desta vez”, pacíficas, enquadradas no modelo espetacular. Os formadores de opinião midiáticos passam a ser completamente contra a violência policial e também a violência dos manifestantes “vândalos”. Com o apelo midiático (mas ainda com o uso de armas “não-letais” pela polícia), as manifestações cresceram e os manifestantes se diversificaram. A mídia, que buscava passar a imagem de povo pacífico, ordeiro, repudiou a presença de partidos e bandeiras políticas, já que considera mais importante focalizar no consenso – a insatisfação generalizada da população, independente de classes sociais e partidos políticos – e não as diferenças. Fica claro assim o desejo midiatico de supressão da pluralidade, o que caracteriza a “perversão do político” ou a despolitização (Ortega, 2001). A midia pretende, através de um discurso de pacificação, “desrealizar” o lugar e o momento políticos por excelência: o espaço público e a manifestação. Essa mesma mídia, bem como seus seguidores, consideram que o “Brasil acordou”, como se não houvessem manifestações no Brasil há muito tempo. Quando, na verdade, as manifestações de uma classe sem privilégios é que são sempre consideradas (pela mídia) sem importância e, portanto, não divulgadas. Mais uma vez temos o “efeito fachada”, desta vez promovido pelos meios de comunicação de massa. O papel da polícia foi coerente com a intenção da mídia: apaziguar (e despolitizar) as manifestações. Segundo Juliette Volcler, o uso das armas ditas “não-letais” também tem uma função de pacificar (neutralizar) e também apresenta uma relação com o discurso da mídia: Três características da “não-letalidade”: o objetivo de neutralizar, antes que de matar, a porosidade entre operações de guerra e operações de manutenção da ordem ou humanitárias e o fato de levar em consideração a imprensa e a opinião publica na gestão do conflito.20 (Volcler, 2012, p. 133. [tradução livre])

Com as tecnologias “não-letais”, consideradas totalizantes por Volcler, pretende-se romper o coletivo e levar cada um à sua individualidade, visto que o coletivo é instável, preocupa, é uma ameaça a ser controlada (Ibid.). A urgência do dispositivo de pacificação se torna clara “Trois caractéristiques de la ‘non-letalité’: l’objectif de neutraliser plutôt que de tuer, la porosité entre opérations de guerre et opérations de maintien de l’ordre ou humanitaires, et la prise en compte des médias et de l’opinion publique dans la gestion du conflit” (Volcler, 2012. p. 133) 20

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com o inicio da Copa das Confederações, quando fica proibido aproximar-se dos locais dos jogos no intuito de manifestar. Isto é coerente com as operações urbanas de entorno, citadas anteriormente, que definem um perimetro de interesse, estratégico devido à maior visibilidade e, portanto, pode-se dizer, privatizado para atender aos interesses de um grupo. Desta forma, o espaço público do entorno é controlado sob ordens da FIFA, de forma a não comprometer a apresentação do seu “espetáculo”. Visando controlar o coletivo, a polícia e a mídia atuaram de maneira totalizante21. As causas sociais, que são de fato as mais urgentes, continuam sem importância para uma elite conservadora que continua no poder desde a “fundação do Brasil”, no entanto, a agitação de contra-poderes22 preocupa esta elite pois adquire força para desestabilizar a ordem dominante. Neste momento, algumas verdades vêm à tona à respeito da pacificação, como o que disse o ex-capitão da tropa de choque do Rio de Janeiro, Rodrigo Pimentel, em uma entrevista para o telejornal RJ TV 1ª edição de 18 de junho de 2013 : “Fuzil deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em comunidades e favelas. Não é uma arma para se utilizar em área urbana”23. Neste sentido, no espaço público formal, a pacificação é feita com armas “nãoletais” enquanto que para entrar em uma favela, os policiais agem fortemente armados24. Desta forma, a pacificação desce do morro e ganha a cidade com vistas a se tornar uma passivização25, ou apassivação, da vida no espaço público, onde só quem tem direito à expressão é a equipe do poder assim como os espaços públicos tendem a ser “revitalizados” com base nos anseios de uma classe dominante. Além disso tudo, existe uma crise de representatividade que emerge com as manifestações que vêm ocupando as ruas em um movimento originalmente de esquerda – como todos os que são fundamentados nas causas sociais – mas que atraíram a atenção para o conjunto das causas do descontentamento brasileiro. A manifestação, por não ter lideres e ser apartidária, soube acolher um grande público de novos manifestantes que não gostam de “rótulos”26, muitos dos quais nunca tiveram interesse pelas questões de política – sabendo-se que a própria palavra política já soa pejorativa no contexto popular brasileiro. Mostra-se assim a potencialidade do espaço público das cidades brasileiras, capaz de acolher os diferentes indivíduos igualmente. O #vemprarua que se espalhou pelas redes sociais mostra que a possibilidade de se construir (revelar) heterotopias é mais tangível e urgente (e latente) que a “necessidade” de uma utopia baseada no consenso e no espetáculo. 21

Para guiar o pensamento e o comportamento do povo a midia atuava com base em palavras de ordem vazias “contra a corrupção e pela paz” – vazias porque não há quem se mostre a favor da corrupção e contra a paz – que se misturavam às reinvindicações mais objetivas e populares e corrompiam o carater político das manifestações. 22 Conforme definido em Foucault (1979) “Contra-poderes no sentido estrito, isto é, que colocam o direito pelo avesso, com a significação profundamente subversiva de que somos nós o verdadeiro poder, que somos nós que repomos as coisas no seu lugar, que é o mundo tal como está constituído que está pelo avesso.” 23 Publicado originalmente no site Observatório de Favelas. 24 Prova disto, esta o caso que ocorreu no complexo da Maré, no Rio, logo apos uma manifestação (24 de junho de 2013), onde foram mortas em torno de 10 pessoas, sendo uma delas um policial e duas oficialmente consideradas inocentes, as demais foram consideradas envolvidas no trafico de drogas. 25 Referente a Passivo: adj. Que sofre ou recebe uma ação sem reagir a ela. Não atuante, inerte, que não participa. 26 A exemplo de cartazes com dizeres: “Esquerda? Direita? Eu quero é ir em frente!”

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Quanto à suposta necessidade de pacificação, vemos a emergência de uma outra noção, também empregada muitas vezes como sinônimo de pacificação, mas com poder de subverter esta ideia original: ocupação. O mesmo termo é utilizado corriqueiramente no contexto das secretarias de Ordem públicas, no julgamento das ditas ocupações irregulares ou indevidas do espaço público, e lá, o termo ganha o sentido de quase privatização de partes do espaço público que são ocupadas, melhor dizer apropriadas. O potencial de subversão se encontra, então, na universalidade do termo ocupar/ocupação, no sentido de apreender um espaço. O mesmo foi empregado no grande movimento de origem norte-americana Occupy27 (occupy.com): um movimento de protesto internacional contra a desigualdade social e econômica. As pessoas que ocuparam as ruas “contra a passividade” tiveram geralmente, como resposta primeira do poder público, a tentativa de tirá-los de lá. Aqui, ocupação ganha um outro sentido, o da manifestação social, do ato efêmero de protesto, frequentemente em espaços públicos e/ou simbólicos. O caráter político é o mesmo, relacionado ao do “ir para as ruas” cotidianamente. Vê-se, portanto o potencial político contido no ato ocupar o espaço público no sentido de habitá-lo cotidianamente com o próprio corpo, utiliza-lo simplesmente; apreendê-lo, ainda que de maneira efêmera, com os sentidos. Com a ocupação das ruas pelos manifestantes, subvertendo-se o comportamento normal e o funcionamento habitual dos espaços de circulação, percebemos a possibilidade e até mesmo a necessidade (política) de se fazer presente no espaço público em geral e nos espaços públicos de circulação em particular. O que Marc Augé chamou de não-lugares – os lugares de passagem – passam a ser tidos (e ter sentido) como heterolugares ou como as heterotopias, segundo Foucault. A experiência do/no espaço público urbano mostra a possibilidade de encontro e cooperação social, de uma construção (política e coletiva) de “procedimentos de apaziguamento”, antes da necessidade de se instaurar um “processo de pacificação” (artificial) anti-político, baseado na segurança e controle dos usuarios. Vimos que o controle e o ordenamento das ruas, enquanto meios de circulação têm sido um grande desafio para os gestores urbanos ao longo da história, antes mesmo da definição de meio, como conceito. “Os dispositivos de segurança trabalham, criam, organizam, planejam um meio antes mesmo da noção ter sido formada e isolada.” (Foucault, 1978) “O que é um meio? É o que é necessario para explicar a ação à distância de um corpo sobre outro.” (Ibid.) A ação de um corpo com influência sobre outro corpo diferente é um ação política, da mesma forma que a ação de um dispositivo (de segurança, ordem ou pacificação) também visam influenciar no aspecto político da vida, na relação entre as pessoas e destas com o proprio meio. É importante reafirmar a questão da circulação que se encontra no seio da noção de meio, através do qual se comunicam pessoas e lugares e, meio que é antes o proprio lugar.

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Seu objetivo principal é exigir que as relações econômicas e políticas em todas as sociedades sejam menos hierarquizadas e mais bem distribuídas. Os grupos locais de manifestantes geralmente têm diferentes focos, mas as preocupações primordiais do movimento concernem a alegação de que grandes corporações globais e o sistema financeiro global controlam o mundo inteiro de maneira instável, beneficiando desproporcionalmente uma minoria e enfraquecendo a democracia.

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