ENTRE FATOS E VERSÕES: O PAPEL DOS \" DISCURSOS DE MEM ÓRIA \" NA (RE)CONSTRUÇÃO DA MEM ÓRIA DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA (1936-1939) 1
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ENTRE FATOS E VERSÕES: O PAPEL DOS “DISCURSOS DE MEM ÓRIA” NA (RE)CONSTRUÇÃO DA MEM ÓRIA DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA (1936-1939)1 Matheus Cardoso da Silva* Resumo: Este trabalho visa investigar o papel dos discursos memorialísticos individuais no processo de (re)contrução da memória coletiva da Guerra Civil espanhola e da (re)escritura de sua história, como parte do processo de recuperação da memória social espanhola soterrada sobre os escombros da ditadura do general Francisco Franco e dos efeitos do chamado Pacto del Olvido. Palavras-chave: Guerra Civil espanhola, memória social, memória individual e coletiva Abstract: This paper aims to investigate the role of individual words of memory in the process of (re) construction of collective memory of the Spanish Civil War and the (re) writing of its history as part of the recovery of social memory buried on the Spanish debris of the dictatorship of General Francisco Franco and the effects of the so-called Pact of Forgetting. Keywords: Spanish Civil War, social memory, individual and collective memory Muitos ouviram em remotas penínsulas, Em adormentadas planícies, em bizarras ilhas de pescadores, No coração apodrecido das cidades, Ouviramno e migraram como gaivotas ou como o pólen das flores. Agarraramse como ímãs aos longos comboios que sacudiam Através das terras injustas, através da noite, através dos túneis alpinos; Flutuaram sobre os oceanos; vieram oferecer as suas vidas. Espanha, T.S. Eliot.
Em 1977, a Espanha iniciou o processo de reabertura democrática de seu Estado depois de 48 anos sob o regime franquista, instituído logo após a derrota da Frente Popular do Governo Republicano na Guerra Civil espanhola, em 1939. Concomitantemente ao longo processo de reconstrução da democracia na Espanha, e respondendo ao apelo de suas novas forças que se constituíam junto aos organismos de direitos humanos, iniciouse também um longo processo de (re)construção da memória coletiva da sociedade espanhola, na luta contra o chamado Pacto del Olvido, instituído na constituição de 1978, como forma de equilibrar as dissonantes forças políticas na *
Mestrando em História Social, no Departamento de História, da Universidade de São Paulo. Bolsista de mestrado do CNPq.
Anais Eletrônicos. [CD-ROM]. Rio de Janeiro. UERJ. Setembro de 2009
construção do Estado democrático espanhol. A “história oficial”, erigida pelo franquismo, cujo processo tomou a forma de um projeto institucional de construção de uma memória oficial, através da censura e da repressão, e de maneira mais efetiva através da edução formal de crianças e jovens, com livros didáticos onde apenas a versão oficial existia, aos poucos vem sendo desconstruído pelo revisionismo historiográfico. Eventos como a Guerra Civil espanhola (193639), cuja memória fora uma das mais extirpadas durante o regime, para assumir a condição de “evento fundador” do Estado franquista, detém até hoje, papel fundamental nesse processo. Grande parte de sua história (e de sua memória) porém, apenas pode ser recuperada, devido ao longo processo de censura, através do relato dos muitos participantes que ali se engajaram, vindos de toda parte do mundo, para a luta contra o fascismo. Estas “testemunhas oculares”, puderam não apenas presenciar os inúmeros eventos e controvérsias que cercaram a derrocada da Frente Popular, como também puderam transmitilos, através de suas memórias pessoais, para as gerações futuras, construindo assim um contra ponto ao discurso oficial do Estado. Relatos famosos como os de Ernest Hemingway, George Orwell, Pablo Neruda, e do brasileiro José Gay da Cunha, todos participantes ativos no conflito, puderam, ao mesmo tempo, manter viva a memória da República em sua luta contra Franco, e se constituir como uma rica fonte para o processo de (re)contrução da memória da Guerra anos mais tarde. Memória versus história: a batalha contra a “história oficial” e o esquecimento Ao longo do século XX, a memória assumiu papel fundamental no processo de construção do conhecimento histórico. Especialmente, depois da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, o “testemunho” dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas se transformaram numa grande fonte na (re)escritura de suas histórias individuais e para a história coletiva dos sobreviventes, e em um paradigma decisivo para a historiografia da segunda metade do século XX, ao mesmo tempo que um contraponto à história oficial que negou por diversas vezes os horrores do nazismo. Ao mesmo tempo, diante dessa retomada da memória como caminho para a escrita da história, outra questão fundamental para a historiografia no século XX, foi a concomitante ´´reconsideração`` da função da narrativa diante do processo de construção do conhecimento histórico. Então “excluída” diante da formalidade cientificista da história positivista, a narrativa ressurge também no século XX, como caminho possível para a construção do conhecimento histórico. Ambas questões que estão imbricadas na perspectiva que o “testemunho” oferece à historiografia. No século XX, contudo, o grande problema epistemológico que emerge diante da relevância da memória para a historiografia, é sua função política nos Estados e nas sociedades. E a experiência autoritária e totalitária, é sem dúvida, a mais emblemática nestes processos.2. É largamente conhecida e estudada o papel que, por exemplo, as Anais Eletrônicos. [CD-ROM]. Rio de Janeiro. UERJ. Setembro de 2009
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várias formas de censura desempenharam como mecanismo institucional de construção de um discurso monológico nos regimes autoritários3. Ou, o papel da propaganda política na construção de um arcabouço simbólico e iconográfico de referências para a coletividade. Ou ainda, o papel dos meios de comunicação de massa – o rádio, o jornal, o cinema – na ´´homogeinização`` ideológica das consciências individuais, sobre um conjunto comum de referências simbólicas4. Disputas que, inevitavelmente, tomam como campo de batalha o universo simbólico da sociedade – ou, todos aquelas referências que, no espaço publico, atribuem significado coletivo a imaginação social 5 (Bazcko, 1985). Paralelamente, a apropriação de conceitos como ´´amnésia social`` e ´´esquecimetno`` (ambos emprestados da psicologia), tem significado para esta historiografia, a ampliação do campo interpretativo em relação aos diversos mecanismo de dominação das esferas publico e privadas das sociedades. Com isso, as reflexões sobre a função da memória – principalmente da memória individual, tal qual nos apresenta Ecléa Bosi (1987)6 – e sua permanência como ´´contrapoder``, emergem também como fundamental para a compreensão da sua função como resistência às diversas formas autoritárias de dominação e controle social. Vários autores tem contribuído imensamente neste campo. A obra de Walter Benjamin, por exemplo, contribuiu decisivamente para a reconsideração da memória diante da escritura da história,e, consequentemente, em sua função como resistência aos ditames da história oficial. Nas ´´Teses sobre o conceito de História`` (1940), assim como em inúmeros outros textos, Benjamin inaugura uma nova perspectiva critica em relação a tradição epistemológica alemã, e a historiografia do século XIX. Sob uma ótica marcada pela ascensão nazista na Alemanha, em 1933, Benjamin construirá uma perspectiva que confrontará as noções de tempo histórico (enquanto linear e homogêneo) da historiografia positivista, e na qual fundamentara sua ´´teoria da história`` (SeligmannSilva, 2003; Gagnebin, 1994). Em sua obra, a memória assume posição central em sua escrita da história (SeligmannSilva, 2003), diante de sua concepção do ´´tempo histórico`` como catástrofe (ibid.:391), o qual ´´fragmenta`` a suposta linearidade temporal em múltiplas camadas. Neste sentido, Benjamin transforma como fundamental também a função da narrativa: é ela, diante da ´´reconstrução`` que define o trabalho do historiador, que vai permitir a recomposição do discurso historiográfico através da reunião desses vários fragmentos.7 Em Benjamim a memória (antes subjugada pelo historicismo, que via na historiografia o único caminho possível de acesso ao passado) é então retomada como caminho possível para a escritura da história. Ele transforma assim, a memória, ao mesmo tempo, num contraponto à ´´história oficial`` (simbolizada na tradição historiografica alemã) e, no caminho mais viável para a construção de uma história “totalizante” (no sentido de englobar todos os atores envolvidos em seu processo dialético) Na França também, as ciências humanas, já no final do século XIX e nas primeiras décadas do XX, vão ´´re admitir`` a função da memória para a construção historiográfica. Na sociologia, Maurice Halbwachs, contribuirá com suas reflexões sobre as relações entre memória individual e memória coletiva, e com sua negativa da independência Anais Eletrônicos. [CD-ROM]. Rio de Janeiro. UERJ. Setembro de 2009
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da primeira diante da segunda. Mais tarde, na segunda geração dos Annales. Jacque Le Goff (1996), vai identificar a multiplicidade de relações que se estabelecem entre o discurso histórico e a memória, em sua multiplicidade de formas, ao longo da história humana. Relações que culminam, no século XX, na reapropriação do discurso memorialístico, desde as vanguardas artísticas até os Estados, que o transforma em arma de coesão política.8 Pierre Nora (1997), seguindo os passos da tradição historiográfica annalista, vai contribuir com a organização de um grande trabalho de esforço coletivo na década de 1980 9, onde o papel da memória é definitivamente estabelecido como central para a historiografia contemporânea. A conceitualização dos ´´lugares de memória``, vai considerar as funções ´´sociais`` da memória como mecanismo de afirmação dos vários grupos sociais nos Estados contemporâneos. Nora também identificará um processo de ´´produção em massa`` de ´´discursos de memória`` (aqui, ´´discursos`` no plural), como característica das tensões sociais contemporâneas. Outra tese fundamental na análise de Nora será sua ideia da ampliação dos lugares onde essas memórias são produzidas: não mais apenas nos museus ou academias – lugares de construção do conhecimento institucional. Mas, diante da difusão da sociedade de massas e da emergências de novos atores políticosociais, na imprensa, na televisão, na publicidade, além de outras organizações políticas como sindicatos, movimentos populares, estudantis, etc. Em todos estes novos espaços discursivos, cada memória produzida ali representa as aspirações de um grupo específico, no processo de reafirmação (e muitas vezes, de construção mesma) de suas identidades individuais e coletivas 10, antes subjugadas na totalidade desigual do Estado. Estes discursos de memória assumem também uma posição de contraponto ao conhecimento institucional produzido pelos órgãos oficiais do Estado, na tentativa de homogenizar as desigualdades da sociedade através da unificação totalizante que o conceito de “nação” representa. Os “discursos” da memória individual: a força do testemunho na luta pela recuperação da memória coletiva da Guerra Civil na Espanha Uma das marcas mais emblemáticas que a Guerra Civil espanhola (19361937) guardou perante a história, foi a solidariedade internacional dos muitos homens e mulheres que se engajaram na luta contra o fascismo e o levante militar comandado pelo general Francisco Franco. Sem o apoio internacional de outros países, além da URSS, que optaram por uma política de nãointervenção diante do assalto que o Governo Republicano sofreu pela insurreição militar falangista, a Frente Popular organizada para a defesa da Republica, se constituiu na ultima força de combate ao fascismo. Entre aqueles que se engajaram nessa luta, diversos artistas e intelectuais, contribuíram, não apenas com seus esforços militares no front, mas com sua criatividade e seus relatos, para manter viva a memória da Republica e da luta contra o fascismo. Outra característica que cerca ate os dias de hoje a Guerra Civil espanhola, foi estabelecida no período Anais Eletrônicos. [CD-ROM]. Rio de Janeiro. UERJ. Setembro de 2009
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posterior os fim do conflito. A partir de 1939, já com a vitória das forças fascistas assegurada, instaurase o longo regime do franquismo, e sua política de Estado ditatorial e repressiva. Inevitavelmente, com a vitória de Franco, a história transformouse na grande arma de manipulação da sociedade espanhola, nos quase 50 anos da ditadura franquista, empreendida através de um programa institucional de reconstrução continua da história e da memória coletiva da sociedade, inclusive dos eventos que cercaram a Guerra Civil, que assumiu a função mítica de evento fundador do Estado franquista diante das novas gerações que não vivenciaram os horrores do conflito. Os efeitos dessa ação seriam devastadores para as gerações futuras, como a historiografia das últimas décadas tem demonstrado, num esforço por recuperar parte da história contemporânea espanhola vitimada, mesmo depois da reabertura democrática do Estado espanhol, em 1977, pelo chamado Pacto del Olvido, determinado pela nova constituição de 1978, como forma de aglutinar as forças políticas divergentes num esforço de reconstrução da democracia na Espanha. Contudo, aqueles relatos dos que se engajaram na luta contra o fascismo na Espanha, permaneceram como uma fonte quase intocada dos eventos da Guerra. O testemunho destes voluntários, publicados em diversas partes do mundo, grande parte, em livros de memórias, em muitos aspectos, foram as únicas “fontes” que escaparam da campanha institucional de (re)escritura da história da guerra, empreendida pelo Estado franquista, tendo em vista a própria impossibilidade da permanência de fontes documentais que atestassem de alguma forma os eventos que cercaram o conflito, inclusive as problemáticas e controvérsias políticas que cercaram a própria Frente Popular, composta por uma imensidão de partidos e ideologias diferentes, a maioria delas, rivais entre si. Alguns destes relatos, mais tarde, assumiriam a condição de bestsellers internacionais diante da crítica, como no caso do romance inspirado nas experiências pessoais de Ernest Hemingway, For Whom the Bell tolls, 1940. Mais tarde transformado em filme (1943), também de grande sucesso, o livro narra o engajamento de um engenheiro estadunidense, junto a milicianos anarquistas, com o fim de destruir uma ponte importante para o deslocamento de forças fascistas pelo interior do território espanhol. O livro de Hemingway, cuja maior contribuição fora talvez a de popularizar ainda mais a luta empreendida contra o fascismo na Espanha para o grande público, atesta, por exemplo, o engajamento em massa de voluntários estadunidenses na guerra, muitos deles, assim como ocorrera, por exemplo com voluntários brasileiros, perseguidos em seu próprio país por sua militância socialista.11 Relatos de vivencias pessoais, como as de Hemingway, já famoso escritor e jornalista quando de sua participação na guerra, contribuíram mais tarde para o revisionismo historiográfico 12 fornecendo perspectivas individuais dos acontecimentos. Tais perspectivas se tornam então relevantes para a historiografia do conflito, justamente por se desvincularem das informações oficiais produzidas, tanto pela história oficial da guerra, produzida mais tarde pelo Estado franquista, como durante a própria guerra pelos vários organismos oficiais dos partidos engajados na luta. Anais Eletrônicos. [CD-ROM]. Rio de Janeiro. UERJ. Setembro de 2009
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É notório, na análise cruzada de alguns destes testemunhos, a permanência de algumas questões fundamentais para a compreensão da problemática política e ideológica do conflito. Questões fundamentais na constituição da própria Frente popular e da organização da resistência do Governo Republicano,mas que foram obliteradas das poucas “fontes oficiais” que permanecem diante da construção da história da guerra. Entre outros aspectos poderiam ser destacados, por exemplo, a confusão criada pela quantidade de partidos diferentes que compunham a Frente Popular; a guerra propagandística que emergiu quase como um conflito paralelo à luta contra o fascismo e as forças de Franco; as disputas internas no Governo Republicano, e a cisão entre anarquistas e comunistas, etc. Entre todas estas, a última é sem dúvida, a que mais estabeleceu controvérsias. As disputas entre anarquistas e comunistas, consumada em maio de 1937, com a cassação de inúmeros partidos de nãoorientação soviética, e que não se sujeitavam as deliberações das Brigadas internacionais, se constituiu no evento mais emblemático dentre os que cercaram as disputas ideológicas internas no Governo Republicano,e, para muitos, um dos fatores que contribuíram para a derrota da Frente popular. As ações, que levaram a cabo a prisão e execução de muitos líderes anarquistas e de outros partidos13, todos acusados de traição, foram seguidas de uma campanha internacional de difamação nos veículos de imprensa comunistas pelo mundo, que ajudaram a construir a imagem da dissidência comunista como traidora da causa republicana. Estas disputas no seio da Frente Popular, também ficaram registradas em muitos dos relatos memorialísticos produzidos sobre a guerra. É muito interessante notar, porém, a permanência de uma imagem de confusão e desordem causada pelas milícias anarquistas durante a guerra, em detrimento da organização e “seriedade” das forças e brigadas comunistas.. Uma das imagens que mais chama a atenção, dentre estes relatos memorialísticos, é o do poeta chileno Pablo Neruda, publicado em seu livro de memórias, Confesso que vivi, editado postumamente pela primeira vez em 197414. Neruda, que servia na Espanha, desde 1934, como embaixador do governo chileno, presenciara o início do conflito, que, em suas memórias, ficara marcado pelo assassinato do também poeta espanhol e amigo pessoal Federico Garcia Lorca, em 19 de agosto de 1936. Contudo, Neruda não se engajaria militarmente na guerra, atuando, mesmo assim, como diversos outros intelectuais, como propagandista próRepública, e do qual seu livro España em el corazon, publicado clandestinamente em gráficas republicanas, foi sua maior contribuição na lua contra Franco.15 O que mais nos interessa aqui, porém, era a imagem que permaneceu em suas memórias sobre o conflito e sobre as forças que compunham a Frente popular. Entre elas, a imagem em relação a anarquistas e comunistas, principalmente no período em que esteve em Madri, logo após a deflagração da guerra. Como ele escreve: (...) Os anarquistas pintavam bondes e ônibus, metade vermelha e outra amarela. Com seus cabelos compridos e barbas, colares e pulseiras de balas, protagonizavam o carnaval agônico da Espanha. Vi vários deles calçando sapatos emblemáticos, a metade de couro vermelho e a outra de couro negro, cuja confecção devia
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ter custado muitíssimo trabalho aos sapateiros. E não pensem que era uma festa inofensiva. Cada um levava punhais, pistolas descomunais, rifles e carabinas. Em geral ficavam nas portas principais dos edifícios em grupos que fumavam e cuspiam, fazendo ostentação de seu armamento. Sua principal preocupação era cobrar os rendimentos aos aterrorizados inquilinos, assim como fazêlos renunciar voluntariamente a seus adornos de valor, anéis e relógios. (Neruda, 1979:141).
E escreve mais a frente: (...)Enquanto esses bandos [anarquistas] pululavam pela noite cega de Madri, os comunistas eram a única força organizada que criava um exército para enfrentar os italianos, os alemães, os mouros e os falangistas. E eram, ao mesmo tempo, a força moral que mantinha a resistência e a luta antifascista. (ibid.: 142).
O que mais interessa aqui nestas duas passagens é justamente a imagem que ambos os grupos passaram a Neruda em Madri. Nas duas, o estereotipo construído durante o conflito e que se seguiram nas décadas posteriores permanece intocado. É claro, que, para Neruda, o menos importante, na reconstrução perpetrada por sua memória individual, era considerar as ações das forças anarquistas ao longo de todo o conflito, ou mesmo contrapor suas lembranças individuais com as informações divulgadas no período enquanto esteve na Espanha. O que ficou marcado para ele, era a imagem da “ordem” e da organização militar das brigadas comunistas na luta contra Franco, em contraposição a sua total inexistência entre anarquistas. Com o decorrer da guerra (e da guerra propagandística engendrada pela máquina comunista soviética), porém, a dissidência política comunista ultrapassa o mero contraponto entre organizados e desorganizados, tal qual nos é apresentado nas memórias de Neruda: o que resultaria desta disputa era a construção de uma imagem desta dissidência como “traidora” da causa republicana, para, por fim, assumirem o rótulo de “trotskistas”, ou aqueles que, como a propaganda oficial soviética argumentava, se constituíam no inimigo maior do proletariado internacional e da causa socialista mundial. Estas disputas internas na Frente Popular ficaram marcadas profundamente nas memórias de George Orwell. Em todos os seus textos, que tem o conflito na Espanha como tema central, especialmente seu livro Homage to Catalonia(1938)16, seus relatos são emblemáticos, já que ele pudera presenciar de maneira “privilegiada” toda a disputa entre comunistas e sua dissidência, já que estava totalmente envolvido quando das ações que culminaram com a cassação do P.O.U.M, em 1937. Sua atuação, primeiro como combatente, e mais tarde como critico, tem, por isso, um grande peso diante da recuperação da memória da guerra. Com a intenção de atuar como correspondente, afim de produzir uma série de artigos sobre o conflito (função para a qual, não conseguiu patrocínio de nenhum jornal), logo em seguida de sua chegada a Barcelona, em 26 de dezembro de 1936, Orwell se alista como combatente, na milicia socialista do P.O.U.M, onde atuaria desde o inicio ao lado dos que compunham a dissidência das forças comunistas, que representavam a grande força bélica de resistência à Franco. Meses mais tarde, logo após sua fuga como clandestino para a França junto com sua esposa
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Eileen, em 23 de junho de 1937, Orwell passaria a atuar como critico ferrenho das ações organizadas pela liderança comunista a frente do governo republicano. Nesta “segunda etapa” de sua participação na guerra, Orwell produziu uma série considerável de artigos, ensaios, resenhas e revisões, sobre o conflito, logo após sua fuga para a França em 1937. Na maioria destes textos, publicados em jornais e revistas da Inglaterra, EUA e França, o foco maior de suas criticas foi aquilo que ele identificou ser o processo de supressão da dissidência comunista na Frente Popular: a perseguição sumária de anarquistas e de todos os outros partidos que não seguiam as determinações soviéticas, através da liderança das Brigadas Internacionais a frente do Governo Republicano. E, mais ainda, toda a campanha de difamação dessa dissidência nos jornais comunistas pelo mundo17. Para Orwell, ficou muito claro, como sua produção crítica atesta18, que tais disputas não apenas minaram as forças de resistência contra Franco, já debilitadas pela falta de apoio de outros países, em detrimento do apoio alemão e italiano ao exército falangista. Mais ainda, a ação de repressão contra anarquistas principalmente, e sua identificação com o que a propaganda comunista intitulava de forças “trotskistas”, empreendia um processo de manipulação da própria história da guerra. Através do discurso oficial soviético, apresentado, principalmente em seus veículos de informação oficiais, Orwell pode identificar uma ação de mãodupla: por um lado, a desqualificação das ações dessa dissidência, tanto quanto de seus agentes; por outro, a legitimação das ações comunistas. Essa duplaação resultante da propaganda oficial soviética, corroborou na construção da imagem das brigadas comunistas como única força capaz (ideológica e militarmente) de confrontar a ascensão fascista na Espanha. Processo que, por exemplo, influenciou diretamente na escritura da história da Guerra Civil, já que desconsiderou por muito tempo o papel fundamental que as milicias anarquistas detiveram em várias regiões da Espanha, principalmente nos primeiros meses após o início da Guerra civil, a frente das forças de defesa do governo republicano. Para Orwell ainda, como ele escreveria em seu último ensaio critico sobre a Guerra Civil, Looking back on the Spanish War, de 1942, as disputas entre comunistas e sua dissidência, influenciaria decisivamente na própria escritura da história da guerra, quase que numa antevisão das ações de repressão engendradas pela ditadura franquista nos anos posteriores: I remember saying once to Arthur Koestler, “History stooped in 1936”, at which he nodded in immediated understanding. We are both thinking of totalitarianism in general, but more particularly of the Spanish civil war. Early in life I had noticed that no event is ever correctly reported ina newspapaer,but in Spain,for the first time, I saw newspaper reports which did not bear any relation to the facts, not even the relationship which is implied in the ordinary lie. I saw great battles reported where there been no fighting, and complete silence where hundreds of men had been killed. I saw troops who had fought bravely denounced as cowards and traitors, and others who had never seen a shot fired hailed as the heroes of a imaginary victories; and I saw newspapers in London retailing these lies and eager intellectuals building emotional superestructures over events that had never happened. I saw, in fact, history being written not in terms of what happened but of what ought to have happened according to various 'party lines` (Orwell, 2001:3512)
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Outro relato que pretendemos aqui analisar, também é emblemático sobre estas questões. Tratase do livro do brasileiro José Gay da Cunha, intitulado Um brasileiro na Guerra Civil espanhola, publicado pela primeira vez em Porto Alegre, em 1946, pela editora Globo.19 Tenente do Exército brasileiro e militante comunista, Cunha se engajou na Revolução constitucionalista de 1935, sendo por isso condenado a 8 anos de prisão e forçado a se exilar em Buenos Aires. Da Argentina, partiu para a Espanha, onde chegou em janeiro de 1938, alistandose, junto a outros brasileiros, nas Brigadas Internacionais, organizadas antes em território francês20. Devido a suas experiências militares anteriores, Cunha recebeu a patente de tenente, e logo passou a liderar um batalhão que combateu no front dos Pirineus. Diferentemente de Orwell, que também se engajou na luta, mas cuja filiação partidária diferia as ações do P.O.U.M, assim como das milícias anarquistas que não aceitavam o tipo de organização imposta pela hierarquia militar, diferia em muitos aspectos das tropas comunistas, Cunha viveu desde sua chegada à Espanha, todo o regime militar de organização hierárquica de um exército, mesmo composto apenas de voluntários. Além disso, sua chegada em 1938, pouco menos de um ano antes da derrocada final da Frente Popular, a qual ele pode presenciar, antes da desmobilização das Brigadas Internacionais, sem dúvida, não lhe permitiram apreender toda a problemática política que cercou as disputas internas do Governo republicano. Mesmo assim, suas memórias apresentam uma perspectiva crítica bastante apurada, inclusive em relação às diversas falhas no comando comunista e na organização das próprias Brigadas Internacionais. Contudo o aspecto que nos permite cruzar suas memórias às de Neruda e Orwell, é também a apreensão das disputas entre anarquistas e comunistas. Como Cunha registra em seu livro, pareceulhe óbvio todo o ódio que cercava a relação entre os dois grupos, levado ao ponto de não importar a luta contra Franco. Cunha relata, por exemplo, uma série de sabotagens, deserções e inclusive assassinatos de oficiais por soldados anarquistas que compunham as tropas Brigadistas, em plena ação militar no front. Uma passagem de seu livro é emblemática. Cunha relata o depoimento de um de seus comandados no batalhão que lutava no front dos Pirineus – um jovem anarco sindicalista – que lhe confirma as ações de sabotagem organizadas pelas lideranças anarquistas às tropas comunistas: [Teodoro] – Vou lhe explicar [numa conversa que tivera com Cunha, logo após um assalto a posições fascistas no front]. Nós, os anarquistas de Espanha, estamos divididos entre a F.A.I [Federacion Anarquista Ibérica] e a C. N. T [Confederacion Nacional de Trabajo]. Nós, os da Confederação de Trabalho, somos anarco sindicalistas e aceitamos a organização sindical, como útil e necessária para a administração coletiva. Os anarquistas da FAI não aceitam o sindicalismo e lutam contra toda e qualquer organização de Estado. Nos últimos dias, antes da ofensiva de hoje recebemos instruções da direção da FAI de liquidar todos os oficiais comunistas e os anarquistas que continuassem aceitando as consignas da Frente Popular de organizar um verdadeiro exército, para lutar contra Franco. Devíamos continuar com a organização das milícias independentes. Houve uma grande discussão e nós, os da CNT, fomos vencidos. Reunimonos de novo, desta vez somente os sindicalistas, e resolvemos defender por todos os meios possíveis os oficiais e sargentos, durante o combate de hoje. Aqueles homens que estavam sempre a seu lado, formavam uma autodefesa, que nós organizamos para que os homens da FAI não o matassem pelas costas, durante a ofensiva.” (Cunha, 1896:127)
E Cunha escreve adiante: (…) A célebre quintacoluna era uma realidade assustadora. Cada espanhol tinha no seu íntimo individualista
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e irredutível um pouquinho de quintacolunismo. Era necessário esquecer e perdoar os erros do passado, e na Espanha não havia esquecimento nem perdão. Seria preciso pensar somente na destruição do inimigo e na Espanha Republicana, mas cada facção da Frente Popular procurava destruir a outra. Nas Frentes de batalha se atenuava muito tudo isso, mas aquela ofensiva de Baladrero trazia um saldo trágico desses ódios que nunca se apagavam. Os anarquistas não poderiam perdoar, jamais, a duas forças da Espanha Republicana: os católicos e os comunistas. Aos católicos não perdoavam porque representavam, para eles, a Espanha da inquisição e, aos comunistas, não poderiam perdoar o que eles consideravam uma infâmia contra a dignidade do indivíduo, que era a organziação de um exército e um governo na Espanha da Frente Popular.” (ibid: 129)
Para Cunha, como suas memórias atentam, as disputas entre anarquistas e comunistas pareciam resultar de um rancor meramente ideológico. Porém, o que ele certamente desconhecia, devido as diversas circunstâncias que cercaram sua vinda para a Espanha e seu engajamento nas Brigadas internacionais, foram todos os eventos anteriores de violência entre os dois grupos, os quais a obra de Orwell, por exemplo, atestam. Em 1938, com a Frente Popular cada vez mais debilitada pela falta de apoio internacional – o que resultava em inúmeros problemas logísticos às tropas republicanas – a liderança comunista a frente do exército republicano já estava consolidada, enquanto grande parte da dissidência comunista já havia sido suprimida de maneira violenta, meses antes. Em detrimento das diferentes perspectivas partidárioideológica de todos estes relatos, concebidos em momentos diferentes dos acontecimentos da guerra, o que nos motiva, contudo, aos considerarmos suas possibilidades enquanto fonte historiográfica, é justamente a condição da permanência do debate. Ao manter viva a memória dos que combateram à favor da Republica, todos estes testemunhos mantem viva também as problemáticas políticas que cercaram a resistência à Franco. É possível ao historiador, com isso, recuperar partes fundamentais de questões que envolveram a derrota Republicana diante do fascismo. Questões que, inevitavelmente, foram “apagadas” dos anais da história oficial da guerra, tanto pelo franquismo, quanto pelas forças políticas hegemônicas que se empenharam em erigir a sua imagem como a única autorizada e legitima na memória coletiva da guerra perante as gerações futuras. Notas
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Trabalho apresentado no I Simpósio Nacional de História Política, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Porém ainda sim, não são as únicas que se apropriam da memória e da história, tal qual argumenta Nora (op. cit.) haja vista os diversos mecanismos que os Estados democráticos criaram (e criam), como recursos de poder simbólico na aglutinação do Estado nacional SARLO, Beatriz. “Literatura y autoritarismo”. In MASSUH, Gabriela, org. Formas no políticas del autoritarismo. Buenos Aires: Goethe Institut, 1991 Todos, mecanismos do que Pierre Bourdieu classificou como a ´´violência simbólica`` que permeia as lutas pelo poder nas sociedades. Por isso, este processo tornase impossível de ser atribuído apenas aos regimes autoritários. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 1989. BACZKO, Bronislaw. “Imaginação social”. In. Enciclopdia Einaudi. Vol. 5. Vila da Maia: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. PP.33396. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: EDUSP, 1987. SELIGMANNSILVA, Márcio. “Catástrofe, história e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a escritura da memória.” In. SELIGMANNSILVA, M. (org). História, memória, literatura. Campinas: UNICAMP, 2003. pp.387415. GAGNEBIN, JeanMarie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. LE GOFF,Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão, 4. ed. Campinas: UNICAMP, 1996 NORA, Pierre. “Entre memóire et históire, la problématique des lieux”. In. NORA, Pierre (org.) Le lieux de memóire. Tome I (La Republic). Paris: Galllimard, 1984. 0 Tal qual argumenta Michael Pollak. “Memória e identidade social”. Estudos históricos, vol.5, nº.10. Rio de Janeiro, 1992. 1 Estes voluntários constituíram também uma das mais famosas organizações militares da Frente Popular: a “Brigada Lincoln”, constituída como um braço das Brigadas Internacionais comunistas, durante a luta contra Franco. 2 Inclusive de pesquisas efetuadas fora da Espanha, o que denota o grande interesse que esses relatos despertaram. Ver por exemplo, MESSINA, Giselle Beiguelman. Hemingway e a republica : por quem os sinos dobram? São Paulo: Universidade de São Paulo, 1991. Tese de doutorado 3 E emblemático, por exemplo, o caso do P.O.U.M (Partido Obrero de Unificacion Marxista), cassado, após os eventos de maio de 1937, em Barcelona, acusado de traição, espionagem e “quintacolunismo” à favor de Franco. Seu líder, Andres Nin, foi preso e executado por forças comunistas ainda em 1937, o que se seguiu a uma perseguição sumária de todos os seus membros. O caso do P.O.U.M ficou famoso, em grande parte, devido aos relatos de George Orwell, que se engajou na guerra como militante do partido. Foi justamente pela perseguição empreendida após a queda na ilegalidade do partido que ele junto com sua esposa, precisou fugir para a França, em junho de 1937. 4 NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. Memórias. Trad. Olga Savary. São Paulo: Círculo do livro, 1979. 5 SKREPETZ, Inês. “Pablo Neruda: o intelectual diante do poder”. Luminária, v. 1, n. 9, 2008.pp.1726. 6 No Brasil, este texto recebeu várias traduções. A última delas, incluem outros textos então inéditos para o público brasileiro: Lutando na Espanha, homenagem à Catalunha, recordando a guerra civil espanhola e outros escritos. São Paulo: Editora Globo, 2006 7 Orwell produziu largamente entre os anos de 1937 e 1942, tendo a Guerra na Espanha como seu tema central. Em todos estes textos – a maioria publicados em jornais e revistas dos EUA, Inglaterra e França – e, posteriormente reunidos em coleções de sua obra de nãoficção, sua crítica às ações de repressão comunistas contra outros integrantes da frente Popular, são notórias, e grande fonte para a historiografia da guerra. Textos já que tivemos a oportunidade de analisar em outro trabalho, SILVA, Matheus C. “Memórias de uma guerra perdida: memória, identidade e imprensa na critica orwelliana a repercussão da Guerra Civil espanhola, 19361937.” In: XIX Encontro Regional da ANPUH, Seção São Paulo. São Paulo, Universidade de São Paulo, 8 a 12 de setembro 2008. disponível em http://www.anpuhsp.org.br/ 8 Ver, por exemplo, a coleção Orwell in Spain. Org. Peter Davinson. London: Penguin books, 2001 – que reúne todos os textos de Orwell sobre a Guerra Civil espanhola, retirados da The Complete Works of George Orwell. Org. Peter Davinson. London: Secker and Warburg. vol. 110, 1986; vol.1120, 1998. 9 CUNHA, José G. Um brasileiro na Guerra Civil espanhol. São Paulo: Editora Alfaomega, 1986 0 Sobre as participações de voluntários brasileiros na Guerra Civil espanhola ver os textos: ALMEIDA, Paulo R. “Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: combatentes na luta contra o fascismo”. Revista de Sociologia e Política, n. 12: 3566, JUN. 1999; e, MEIHY, J. C. Sebe Bom. “O Brasil no contexto da Guerra Civil Espanhola.”. Olho da História: revista de história contemporânea, n.2, junho 1996, Salvador (BA). s/p. Disponível em http://www.oolhodahistoria.ufba.br/02meihy.html.
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