Entre História e Memória: O livro do Êxodo nas memórias culturais israelitas

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Entre História e Memória O livro do Êxodo nas memórias culturais israelitas

Curso O Mundo da Bíblia Geografia, História e Cultura Aluno: Ricardo Gomes

Universidade Católica Portuguesa 2016

Índice 1.

Introdução ............................................................................................................................ 3

2.

Metodologia ......................................................................................................................... 5

3.

Memória Cultural e Historiografia.................................................................................... 6

4.

Contextualização Espácio-Cultural ................................................................................... 7

5.

A Cultural Oral e os Hábitos dos Escribas ..................................................................... 10 5.1 A escrita no mundo da Bíblia ......................................................................................... 14 5.2 Os estilos literários das culturas orais ........................................................................... 16

6.

O Papel da Memória na Cultura dos Escribas ............................................................... 17 6.1

Os Modos de Produção Textual ............................................................................... 23

6.1.1

A Transcrição ........................................................................................................ 24

6.1.2

A Invenção ............................................................................................................. 25

6.1.3

A Compilação......................................................................................................... 27

6.1.4

A Expansão ............................................................................................................ 29

6.1.5

A Adaptação........................................................................................................... 31

6.1.6

A Integração........................................................................................................... 32

6.2

Os Escribas Egípcios ................................................................................................. 32

6.3 Os Escribas Israelitas ...................................................................................................... 36 6.4 Os autores do Êxodo: os escribas sacerdotais ............................................................... 46 7

A Memória do Êxodo ........................................................................................................ 53 7.1 A Essência da Memória .................................................................................................. 54 7.2 Possíveis memórias dos escribas egípcios ...................................................................... 55

8. A reapropriação do tema do Êxodo em Gálatas 5:18 ........................................................ 57 Referências Bibliográficas ........................................................................................................ 60

1. Introdução

O livro do Êxodo é o espaço das memórias nas suas diversas narrativas onde encontramos os veículos da memória do povo israelita, momentos narrados que definem a sua identidade. Estas memórias partilham também aquilo que de mais profundo e interior existe no humano, aquilo que é sonho que existe no homem: o seu desejo. O desejo em si acarreta, na sua substância, a liberdade do movimento expressa na narrativa do Êxodo, se tratarmos esta história por mito, não estamos a falar do mito num senso positivista de ‘história não apurada’; antes falamos do sentido simbólico que envolve as personagens e a narrativa, mais abrangentes que a própria vida. Este trabalho caminhará entre a história e a memória deste evento singular que é o ponto central da antiga religião israelita. É na sua evocação do passado mítico, que incide no ato de recordar expresso nos seus textos, que somos iniciados na profundidade desta narrativa. O povo judeu formou uma comunidade de memória, memória esta que transcendeu as fronteiras geográficas e temporais, focando-se na manutenção de uma identidade judaica distinta, em torno dos ciclos eternos sagrados do tempo santo. Esta identidade judaica carateriza-se no seu núcleo pela herança textual sagrada que é lida em voz alta a cada sétimo dia, no Shabat, em ciclos eternos sagrados de um tempo santo. Estes ciclos eternos sagrados, de leitura pública da Torá, foram instituídos com o propósito de consolidar esta memória comunitária em dias santos de repouso permanentes e recorrentes, que expressam um calendário sagrado de liberdade segundo os ciclos bíblicos dos Shabatot e os sete festivais ou dias santos fixados pelo Eterno de Israel1 (Levítico 23). Todos os membros da comunidade judaica viviam e vivem de acordo com um calendário sagrado judaico tradicional que comemorava o Shabat semanal e os sete momentos anuais designados pelo Eterno. Estes membros ensinavam aos seus filhos que eles também pertenciam à “casa de Jacó e aos filhos de Israel”; falavam sobre a antiga história de libertação da escravidão e de troca da maldade humana pela justiça divina que é contada no Livro do Êxodo. Estes filhos sabiam que eram responsáveis pela continuidade do povo

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Elior. R. (2014) A expressão da liberdade humana no misticismo judaico em WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.6 n.2 (jul-dez) Pp.49

judeu desde o passado antigo, quando uma aliança eterna de liberdade foi estabelecida entre Deus e o povo de Israel. A aliança consiste numa responsabilidade, em hebraico ahrayut deriva da palavra aher2 “outras pessoas”, a condição prévia da responsabilidade de cada um pela continuidade comunitária. Isto consistia em viver segundo a lei divina, que formava a aliança entre a tradição religiosa fundada na liberdade expressa pelos escravos libertos em dias e anos séptuplos e sagrados de liberdade, aquando do Shabat, Ano Sabático e Jubileus. Pelo conhecimento da lei divina eterna através dos ciclos permanentes de liturgia pública e estudos contínuos, pela verdade conforme escrita nas suas escrituras e interpretada pelos rabinos; e pela justiça conforme ordenada na Bíblia Hebraica e interpretada pela Halakhah. Nesta breve reflexão constatamos que o povo judeu, em todos os lugares se afirmou como uma nação antiga que sempre consagrou a liberdade e o conhecimento defendidos pela lei divina, no âmbito da justiça social e da igualdade, desde aquela época na antiguidade em que foi libertado por Deus da crueldade da servidão humana e da escravidão no Egito. A base de toda esta comunidade o ponto convergente entre todas estas gerações desde os tempos imemoriais até à atualidade é a memória do Êxodo na Bíblia Hebraica e no coração do judeu. Neste trabalho iremos estudar a narrativa do Êxodo de um ponto de vista histórico, tendo em conta que essa narrativa não é um relato histórico em concreto, mas antes a história de múltiplas memórias recolhidas acerca deste evento. Contextualizando o processo como as memórias foram tratadas pelos escribas hebreus ao longo dos séculos, iremos explorar a tradição oral e o papel preponderante da memória no seu desenvolvimento. No Livro de Êxodo analisamos memórias escritas por escribas num contexto bastante distante do evento relatado. Em acrescento serão desvelados alguns textos que podem ser o ponto de partida para a busca da memória egípcia do mesmo evento narrado pelos escribas hebreus, contextualizando historicamente o espaço que poderá ter produzido tais memórias e o espaço que produziu os textos interpretativos da tradição oral.

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Elior. R. (2014) A expressão da liberdade humana no misticismo judaico em WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.6 n.2 (jul-dez) Pp.51

2. Metodologia

Neste trabalho abordaremos a narrativa do Êxodo como uma produção da memória cultural entendida como mnemohistória3 na qual a memória histórica, o folclore e o engenho literário convergem. Sendo assim um inquérito transdisciplinar, que situa a memória cultural do Êxodo numa dialética entre a memória histórica e a perceção étnica dos seus autores. As memórias do império egípcio em Canaã transformadas na memória da libertação israelita do jugo egípcio, sendo a base desta narrativa a transição política do espaço geográfico do Egito e Canaã. Situamos as raízes da mnemohistória do Êxodo na transição da Idade do Bronze tardia4 que foi narrada como um mito étnico das origens. As sensibilidades mais antigas deste mito étnico expressam-se no cântico do mar, que transmuta a memória do colapso egípcio num cântico do Guerreiro Divino, onde Iahweh é rei e o faraó é o caos derrotado. O papel da mnemohistória não é confirmar ou desacreditar os eventos do Êxodo, não sendo essa a intenção do nosso trabalho. Antes tem como objetivo traçar a história da memória cultural, inquirindo como é que as memórias foram constituídas, como é que mudaram ao longo do tempo e como é que foram mobilizadas, contestadas e transformadas pelos vários agentes e grupos. A história e a memória têm algo em comum como forças que se sustentam possuem uma dupla significância a história foi a experiência coletiva dos homens e a elaboração intelectual dessa experiência. A memória é por um lado a realidade registada e por outro a evocação desse registo. A diferença entre história e memória é ténue, a recolha de memórias é indispensável ao historiador sendo próprio da história não se limitar a esta recolha. O destino da memória é ditado pela história vivenciada, o ritmo das vivências preserva-a ou descarta-a, cada época concebe-a de acordo com o seu próprio perfil.

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Ao contrário da história, a mnemohistória não se ocupa do passado como tal mas apenas com o passado como é recordado. Lendo as várias linhas de história contada, as várias redes de intertextualidade, atenta para a diacronia das continuidades e descontinuidades da leitura do passado. A mnemohistória não se opõe á história, é antes um dos seus ramos ou subdisciplinas Hendel. R. (2016) The Exodus as Cultural Memory: Egyptian Bondage and the Song of the Sea in T.E. Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Trandisciplinary Perspective Pp.66 4 Hendel. R. (2016) The Exodus as Cultural Memory: Egyptian Bondage and the Song of the Sea in T.E. Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Trandisciplinary Perspectivel Pp.65

O livro do Êxodo será abordado neste trabalho como uma memória bíblica, uma compilação de um conjunto de diferentes memórias provenientes da tradição oral que foram sendo reinventadas e reconstruídas no presente daqueles que as escreveram. Isto porque a memória histórica é reconstruída pelo presente e estimulada pela vivência daquele que se relembra. Certas seleções são feitas sobre aquilo que será lembrado e aquilo que será esquecido. A memória é sempre seletiva. Metodologicamente podemos falar de uma história da memória ou história cultural, em que a ênfase da temática é colocada na forma como a história foi recordada ao longo dos tempos. Sendo a memória em concreto o alvo do estudo, a sua história procura responder às seguintes questões: Quem recordou? De que forma foi recordada? E como foi recontada esta memória? O contexto originário da memória do Êxodo na tradição oral é indispensável para compreendermos todas as suas ressonâncias e ecos ao longo da literatura bíblica.

3. Memória Cultural e Historiografia

A partir do relato da Bíblia Hebraica a memória nacional judaica começou há três milénios e meio, conforme narrado no Livro do Êxodo, onde a palavra “nação” ou “povo”, ‘am’, é mencionada pela primeira vez. O contexto histórico é constantemente recordado na tradição judaica. Moisés exige do Faraó, o poderoso rei do Egito que escravizou os judeus por muitos anos: “Deixa o meu povo partir, para que me façam uma festa no deserto.”5 Como Cícero escreveu “a história é a vida da memória”6, a história judaica começou como uma história de escravidão. A memória que escolheu como sua foi a escravidão e a atrocidade humana, a injustiça e a crueldade como principal ponto de partida para despoletar na celebração da liberdade humana. Os judeus celebram a festa da Liberdade, conhecida como Pessach7 ou o festival da Libertação – HaggaHerut, todos os anos, em todas as comunidades judaicas espalhadas pelo mundo, nos últimos três milénios. Este feriado foi estabelecido para lembrar o

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Êxodo 5:1c De oratore, ii. 36 7 Páscoa 6

passado antigo em que os judeus foram escravos no Egito; Relatado detalhadamente nos primeiros 15 capítulos de Êxodo e recontado depois na Haggadah8. Esta memória aparece frequentemente na cultura judaica e na Bíblia, onde Deus aparece como libertador do povo israelita escravizado: “Eu sou o Eterno teu Deus, que te tirei do Egito, da casa dos escravos”9. A Bíblia estabelece a ligação entre Deus, o libertador e o seu povo libertado, fundamentado no conceito de aliança eterna. Nesta tradição Deus é mencionado com gratidão como o eterno libertador da servidão no Egito. Os escravos hebreus, gratos de terem sido libertos da servidão humana no Egito, aceitaram voluntariamente uma lei divina e uma justiça sagrada que promulgava a igualdade em lugar da soberania, da crueldade e da escravidão. A sua lei divina e eterna é fundamentada em ciclos séptuplos de liberdade, estabelecida na aliança do Sinai no feriado de sete semanas e alianças conhecido como Shevuo’t/Shavuo’t10. Conforme está escrito em Êxodo 20:7-10, foi promulgada sete semanas após o êxodo do Egito (Êxodo 1-20). Esta aliança foi preservada em duas tábuas de pedra no Santo dos Santos, na arca do deserto (Êxodo 25:16-22).

4. Contextualização Espácio-Cultural

Uma vez que procuramos a história do passado recordado é de extrema importância contextualizar todo o cenário que terá originado estas memórias. A primeira questão que se coloca é se de facto existe algum evento histórico nas fontes existentes que nos permita esboçar o cenário ideológico do Êxodo? O período histórico que melhor ressoa nesta narrativa foi o governo opressor do Faraó e a escravidão dos antepassados na terra de Canaã. Como já foi sugerido por outros autores11 é possível que a história do Êxodo derive pelo menos em parte das memórias cananitas da opressão egípcia durante o Império Egípcio da Idade do Bronze Tardia, quando Canaã era uma província do Egipto. 8

A Haggadah é um livro dedicado à história da Pessach escrito nos primeiros séculos do primeiro milénio, é um guia para a refeição cerimonial familiar do feriado no qual a liberdade humanadivina é celebrada com as crianças, em poesia e prosa, ao mesmo tempo em que se condena a subjugação à servidão humana sobre qualquer pretexto. 9 Êxodo 20:2 10 Elior. R. (2014) A expressão da liberdade humana no misticismo judaico em WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.6 n.2 (jul-dez) Pp.54 11 Hendel. R. (2001) The Exodus In Biblical Memory. JBL 120/4 Pp.601-622

Estas são as memórias que podem ter sido partilhadas por muitos segmentos da população do Antigo Israel, é plausível que muitas pessoas neste período histórico tenham escapado à escravidão egípcia. Os nomes egípcios de Moisés e Fineias testemunham a origem egípcia de algumas linhagens levitas. Para a história do Êxodo se enraizar no Antigo Israel foi necessário referir-se a um passado recordado pelos colonos que não emigraram do Egito. Quando a narrativa deixa o nome do faraó em branco, a memória da opressão egípcia, por parte do faraó, estendiase a todos os que sentiram essa opressão faraónica em qualquer momento do passado recordado. Esta extensão de referências estende-se amplamente em toda a Canaã durante o Império Egípcio da Idade do Bronze Tardia. Esta memória serviu como base para a construção da identidade coletiva israelita com as suas fronteiras étnicas12. Podemos aferir que as fronteiras culturais do Antigo Israel foram, em parte, construídas pela disseminação de histórias sobre a libertação de Israel da escravidão do antigo Egito e o nascimento de um povo livre numa terra prometida. A nível cultural é importante notarmos o facto que mesmo os colonos israelitas que nunca foram escravos do Egito pudessem participar facilmente nesta memória narrativa, uma vez que o Egito foi suserano de Canaã durante vários séculos anteriormente (1500 c.a – 1150 b.c.e.). O governo do Egito durante este período foi duro, tendo inclusive incluído a exportação regular de cananitas para o Egito, para servirem como escravos. Com o crescente domínio da brutalidade egípcia em Canaã a memória da libertação para a liberdade teve ressonâncias profundas no drama da história do Êxodo. Ao adotarem esta história como sua os aldeãos nas terras altas tornaram-se israelitas, e uma multidão mista cristalizou a sua identidade coletiva como o povo de Iahweh. As fontes históricas atestam este argumento, demonstrando que muitos cananitas durante o período do reinado egípcio foram escravos no Egito. Alguns eram prisioneiros de guerra, outros eram enviados como tributos por parte dos reis cananitas e outros eram vendidos para a escravatura. Por vezes várias residências cananitas eram relocalizadas de forma forçada para o Egito. Todos os setores da sociedade cananita estavam familiarizados com o governo opressivo do faraó e muitos conheciam aqueles que foram levados para a escravatura.

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Hendel. R. (2016) The Exodus as Cultural Memory: Egyptian Bondage and the Song of the Sea in T.E. Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Trandisciplinary Perspective Pp.66

A ideologia da escravatura para o faraó em conjunto com a proliferação da escravatura cananita no Egito foram uma parte formativa desta memória cultural. De acordo com a ideologia imperial egípcia, a província de Canaã era a propriedade privada do Faraó, todos os seus habitantes eram seus escravos desde os reis aos camponeses. As cartas de Amarna são uma importante evidência histórica para esta ideologia política, na dicção estereotipada destas cartas, um governante cananita proclama a sua servidão ao Faraó: [T]o the king, the sun, my lord: [Mess]age of ‘Abdi-Asratu, your [s]lave, the dirt under your feet. I fall at the feet of the king, my lord, seven times and seven times. As I am a slave of the king and a dog of his house, I guard all Amurru for the king, my lord13. Say [to the ki]ng, my lord and my [Su]n: Message of Biridiya, the loyal slave of the king. I fall at the feet of the king, my lord and my Sun, seven times and sevens times. May the king, my lord, take cognizance of his slave and his City14.

Notemos que na última frase Biridiya pede a faraó que o reconheça como seu escravo e a sua cidade. Faraó era o mestre e as pessoas de Canaã eram a sua propriedade. Um rei da Babilónia define bastante bem esta relação numa carta que escreveu ao faraó: “[C]anaan is your country, and [its] king[s are your slaves]”15 O governo faraónico expressava-se militarmente e discursivamente como o faraó proclama numa carta ao rei cananita de Gezer: “Amun has indeed put the Upper Land, the Lower Land, where the sun sets, under the feet of the king”16. A metáfora do faraó a esmagar os cativos cananitas torna-se literal num par de sandálias provenientes da tumba de Tutankhamun, que retratam cativos de Canaã e da Núbia nas suas solas

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(EA 60; Moran 1992: 131-132) citado em Hendel. R. (2016) The Exodus as Cultural Memory: Egyptian Bondage and the Song of the Sea in T.E. Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Trandisciplinary Perspective Pp.66 14 (EA 365; Moran 1192:363) citado em Hendel. R. (2016) The Exodus as Cultural Memory: Egyptian Bondage and the Song of the Sea in T.E. Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Trandisciplinary Perspective Pp.66 15 (EA 8; Moran 1992:16) citado em Hendel. R. (2016) The Exodus as Cultural Memory: Egyptian Bondage and the Song of the Sea in T.E. Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Trandisciplinary Perspective Pp.66 16 (EA 369; Moran 1992: 366) citado em Hendel. R. (2016) The Exodus as Cultural Memory: Egyptian Bondage and the Song of the Sea in T.E. Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Trandisciplinary Perspective Pp.66

Como podemos observar na imagem, em cada passo, o faraó pisa os cativos estrangeiros; estes cativos que estão debaixo dos pés do faraó são as provinciais imperiais, na Terra Alta e na Terra Baixa. Todos os povos estrangeiros subjugados são escravos do faraó, mesmo quando estão na sua própria terra. Esta era a ideologia do império, que foi transmitida por vários meios de comunicação – discursos, imagens, arquitetura, entre outros – aos cananitas cativos. Estes cananitas “cativos” incluem todos os cananitas que trabalhavam para o faraó no Egito e em Canaã. De acordo com as cartas de Amarna e outras evidências, os faraós tinham vastas explorações agrícolas no vale de Jezreel. Estes trabalhadores realizavam o seu trabalho agrícola vigiados por soldados egípcios, como demonstra uma carta do rei de Megido a faraó: “Only I am cultivating in Sunama, and only I am furnishing corvée workers…Only I (by myself) furnish corvée workers. From Yapu [Joppa] they come, from [my] resources here, and from Nuribta.”17 Em suma, podemos entender que a descrição bíblica negativa do Egito como a “casa da servidão” reflete a realidade egípcia do Reino Novo.

5. A Cultural Oral e os Hábitos dos Escribas

A narrativa do Êxodo surgiu no contexto de uma cultura oral, sendo assim necessário uma leitura histórica da perceção destes autores e das audiências dos seus textos. Não é na autenticidade autoral dos documentos nem na sua data de composição que podemos aferir a sua historicidade. É sim, adequado contextualizar historicamente o processo de produção e transmissão destas fontes. Podemos assim ler a narrativa do Êxodo a partir dos vários mundos que a produziram, os mundos históricos dos escribas de Israel. 17

(EA 365; Moran 1992: 363) citado em Hendel. R. (2016) The Exodus as Cultural Memory: Egyptian Bondage and the Song of the Sea in T.E. Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Trandisciplinary Perspective Pp. 67

Quem foram os escribas do Êxodo? Podemos historicamente reconstruir os seus métodos, práticas e crenças? A história de Israel mais concretamente a narrativa do Êxodo, começa com os seus autores os escribas de Israel. É fascinante pensarmos como é que uma cultura oral como a de Israel conseguiu deixar ao mundo um legado literário que tem inspirado gerações ao longo dos séculos. Este legado literário foi criado e produzido por uma elite profissional, uma cultura escriba ligada ao templo de Jerusalém18. Iremos, numa breve análise, apresentar os conceitos de autoria no mundo antigo e as condições de produção textual, notando que eram bastante diferentes daqueles que hoje tomamos como referência para a nossa realidade. Os estudos modernos preocupam-se com a autenticidade dos textos e também com os autores a quem os textos são atribuídos. Procurar separar a verdade do mito torna-se uma tarefa exaustiva e pouco produtiva no âmbito histórico, principalmente se abordarmos estes textos num prisma moderno, não tendo em conta o prisma daqueles que o escreveram. Começando por discutir a noção de autoria nos tempos bíblicos, sabemos que na Idade Média a principal função da academia, em todos os grandes centros de aprendizagem da Europa, era a transmissão e a perpetuação de um corpo de conhecimento antigo, não existindo espaço para a inovação. Este corpo literário, composto pelas grandes obras clássicas dos gregos e romanos assim como pelos clássicos teológicos da Igreja, era tratado com grande estima nestes centros de aprendizagem. Com o surgir das ciências naturais e o criticismo histórico do século dezasseis, todo este sistema começou a ser desafiado. Desde esse momento até ao tempo atual a inovação e a nova verdade não são mais baseadas na antiga tradição “canónica”19. Foi no final do século dezoito, através do século dezanove que surgiu o grande florescer deste novo espirito de “carisma académico”20. Caraterizado não por uma mera transmissão da tradição antiga, mas por trabalhos que refletiam criatividade, originalidade e individualidade, a pessoa do autor estava naquele trabalho. Estes tornaram-se na nossa cultura os atributos principais para falarmos de autoria, todos os autores e artistas estão sujeitos a esta perspetiva romancista. Com estes ideais em mente muitos trabalhos da antiguidade foram julgados e avaliados dentro destes parâmetros para ver se 18

Seters. J. V, (2007) Scribal Cultural and the Making of the Hebrew Bible, London: Harvard University Press Pp.1 19 Seters, J. V. (2007). Author or Redactor? The Journal of Hebrew Scriptures, Pp. 2 20 Clark, W. (2006). Academic Charisma and the Origins of the Research University. Chicago: University of Chicago Press

correspondiam a estas ideias. Surge aqui então o problema na abordagem das fontes literárias da antiguidade, mais concretamente as do Antigo Israel. Na antiguidade os leitores preocupavam-se com a autoridade dos livros, esse era o enfoque, não a autenticidade mas a autoridade que provinha da antiguidade dos nomes a quem a obra era atribuída. O autor de uma obra da antiguidade era um escriba anónimo, treinado e financiado por uma instituição social. A conceção, que surge na Era Romântica de autor, é completamente anacrónica à ideia de autor ou redator no contexto bíblico de autoria. A essência da maior parte da obra dos autores da antiguidade baseava-se na coleção reunida de tradições orais. Estes escribas preservavam estes escritos, dando uma forma familiar aos textos que hoje encontramos na Bíblia hebraica. Esta forma tem um sentido de coesão e continuidade, especialmente em relação às representações do passado21. A literatura da Bíblia hebraica é anónima, nos tempos da sua redação o texto era tudo o que importava, o elemento essencial, sendo considerado a fonte de verdade e sabedoria22. Para propósitos de análise o trabalho literário anónimo não é necessariamente diferente de um trabalho redigido por um autor conhecido. A ausência de um “nome” autêntico não torna a escrita diferente no seu modo de composição, de um trabalho de autoria verificável. Pode porém afetar a receção do trabalho e a sua interpretação. Os escribas redigiam trabalhos literários pseudónimos com o objetivo de influenciar a sua receção. Tomemos como exemplo o livro de Deuteronómio, apesar do seu autor ou (autores) permanecerem desconhecidos para nós, o livro tem a reputação de ser as palavras escritas de Moisés23, de forma a reivindicar maior autoridade. Como acima referi a autoridade das obras literárias baseavase na antiguidade dos seus “autores”, os nomes a quem a obra era atribuída. A noção de autor como artista individual é um legado do movimento romântico24; esta ideia é tão familiar que tem sido aplicada aos ‘autores’ bíblicos. Outra questão importante no tratamento das fontes literárias é a noção de Bíblia: a bíblia é um livro, ou um conjunto de livros? Esta questão é importante uma vez que o livro é uma invenção helenística; antes desse período, existiam pergaminhos, rolos e placas uniformes. As primeiras escrituras foram escritas em placas e pergaminhos, a condição 21

Existe uma continuidade e coesão no sentido em que estes escribas usaram os materiais tradicionais para criarem novas composições, que pudessem dirigir-se às questões do seu tempo. Eles não eram somente editores ou redatores, eram acima de tudo escritores Seters, J. V. (2007). Author or Redactor? The Journal of Hebrew Scriptures, p. 7). 22 Seters, J. V. (2007). Author or Redactor? The Journal of Hebrew Scriptures, Pp. 5) 23 “Além do Jordão, na terra de Moabe, Moisés se pôs a explicar a lei e disse:” Deuteronómio 1:5 24 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press. Pp. 27)

da produção escrita era limitada, uma vez que os custos de produção eram extremamente elevados. Estas escrituras eram compilações de tradições orais; livros como Levítico, Salmos ou Provérbios são exemplos perfeitos disto. Tratam-se de compilações de regras, rituais, liturgias, cânticos e orações. Estas unidades literárias separadas são unidas por um género literário, um protagonista ou um possível autor. Os livros da bíblia não foram escritos com o propósito de serem lidos como unidades, antes eram arquivos de tradições25. Existe outro aspeto na escrita do antigo Israel que ilustra o facto de que os livros da bíblia não podem ser vistos como livros no sentido moderno da palavra. O formato dos nossos livros remonta ao códice, inventado na antiguidade tardia. Em 300 E.C. o códice tornou-se tão comum como o pergaminho e foi ganhando predominância sobre os pergaminhos que começaram a diminuir. As edições modernas da bíblia estão não forma de um livro, mas no período do Segundo Templo, a bíblia era uma coleção de pergaminhos e não um códice. Mesmo que pensemos que isso é irrelevante uma vez que se trata apenas de uma configuração física, a nível de análise histórica levantam-se três observações importantes26: (1) Os escribas eram treinados para escrever frases a partir da memória, antes de as colocarem no papiro. O pergaminho servia de repositório para um texto completo. (2) O uso de pergaminhos de papiro como material de escrita tinha várias consequências para o seu conteúdo escrito. Primeiramente a questão do espaço para o texto, se o texto excedesse o espaço era necessário outro pergaminho. Por isso hoje temos os dois livros de Samuel, Crónicas e Reis na bíblia, o mesmo acontece no inverso com outros livros. Os escribas por propósitos económicos escreviam um grande número de composições mais pequenas num pergaminho. Temos o exemplo dos doze profetas menores. Estes exemplos de divisão e combinação ilustram alguns dos procedimentos dos escribas que estão por detrás de outros livros da bíblia. (3) Um pergaminho não é um livro, para nós os livros não são apenas trabalhos de entretenimento, instrução e meditação, são também obras de referência. Nós académicos precisamos de citar as obras de referência dos assuntos que estamos a tratar, apresentando um autor, título e página. Um pergaminho dificilmente serviria como fonte de referência ou citação, o pergaminho servia como um espaço onde o texto era depositado, para uso

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Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 16. 26 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 21-23

diário, em que as pessoas consultavam as suas memórias. Portanto como foi referido a diferença na apresentação dos textos afeta o modo de escrever, editar e compor, acima de tudo afeta e influencia a maneira como o leitor lê o texto. Muitas das observações feitas às fontes transportam consigo a suposição de que cada livro deve ser analisado como um todo, num plano mais abrangente, que se reflete em todas as escrituras “canónicas”. De facto o que existia eram pergaminhos, consultados para exposição oral, não uma bíblia canonizada em formato moderno. Para iniciarmos então a nossa breve análise da narrativa do Êxodo iremos explorar as raízes da árvore, não nos fixando nos seus ramos. A historiografia das fontes escritas que formam a Bíblia Hebraica encontra-se na história dos escribas por detrás da Bíblia.

5.1 A escrita no mundo da Bíblia

O mundo bíblico era constituído por povos de tradição oral, contudo podemos considerar estas sociedades, como no caso do antigo Israel, de sociedades literatas. Podemos definir literacia como a capacidade de ler ou escrever a um número de níveis diferentes 27. Na antiguidade as sociedades podiam ser literatas, porque usavam a palavra escrita nalgumas das suas funções vitais, apesar da maioria da população não saber ler nem escrever. Uma sociedade oral não necessita de literacia para as suas atividades, a memória e a comunicação oral realizam as mesmas funções que a escrita e a leitura têm numa sociedade literata. Existem vários indícios de atividade escrita na sociedade israelita, sendo que os registos mais antigos remontam à Idade do Bronze28. A literacia era reservada a grupos de elite, escribas e sacerdotes, assim como alguns funcionários de cargos administrativos. A maioria da população não sabia ler nem escrever, os textos eram escritos predominantemente para serem apresentados oralmente. O verbo nativo “ler” em hebraico ( ‫[ ָאָ רק‬qara]) significa ler em voz alta, declamar, proclamar. Este verbo reflete a maneira como os textos eram utilizados. Os documentos escritos eram lidos em voz alta, tanto em público como em privado29. Em Israel as composições escritas não eram produzidas para a leitura privada. Os textos escritos

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Macdonald, M. C. (2005). Literacy in an Oral Environment. Em P. Bienkowski, C. Mee, & E. Slater, Writing and Ancient Near Eastern Society. New York: t&t Clark International. Pp. 49 28 Rollston, C. A. (2006). Scribal Education in Ancient Israel: The Old Hebrew Epigraphic Evidence. BASOR, Pp. 1 29 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 12

chegavam à sua audiência através da entrega oral dum orador; se os profetas escreviam ou tinham um escriba que escrevesse a sua mensagem, esta alcançava a sua audiência através de leituras públicas30. O profeta Habacuque recebeu a ordem de escrever a sua profecia de modo a que um arauto pudesse espalhar a sua mensagem: “Escreve a visão, e torna-se bem legível sobre tábuas, para que a possa ler quem passa correndo.” Habacuque 2:2 Na sua publicação recente, Susana Niditch concluiu que a escrita israelita situava-se num contexto oral31. Existia uma interação entre literacia e oralidade nas culturas da antiguidade, a autora apresentou quatro modelos para a “génesis da Bíblia Hebraica”: (1) A declamação oral é ditada a um escriba que preserva o texto num arquivo, criando assim um registo fixo daquele evento. (2) A cristalização lenta das tradições literárias pan-israelitas que através de muitas exibições públicas ao longo dos séculos de contos e épicos pan-israelitas para audiências com certas expetativas e suposições sobre a identidade do grupo compartilhado. Mais tarde neste processo os escribas escreveram estas histórias partilhadas. (3) Surge nesta etapa uma imitação escrita do estilo literário oral, criando-se assim porções da tradição. (4) Por fim nesta etapa existe já a produção de um texto escrito retirado de outros textos escritos, por um escriba hábil que edita ou reformula o texto de acordo com a visão da identidade israelita que o seu grupo perceciona. As composições escritas tendo por base fontes escritas, nesta fase inicial, nunca deixaram em Israel de serem influenciadas por uma mentalidade “oral”. Por exemplo o livro de Crónicas é baseado em Samuel e Reis, mas não os desloca ou substitui como seria de esperar numa cultura de mentalidade literária. Hoje, por exemplo, ao escrevermos um trabalho historiográfico, temos a tendência de substituir ou deslocar para áreas mais periféricas as historiografias que consideramos incompletas. A mentalidade oral era diferente da nossa nesse aspeto, os escribas do antigo Israel não copiavam apenas os textos palavra por palavra. Eles preservavam o significado dos textos para o período de 30

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press. Pp.13 31 Nidcht, S. (1996) Oral World and Written Word: Ancient Israelite Literature. Louisville: Westminster/John Knox

vigência das suas comunidades, da mesma forma que os cantores de épicos cantavam os seus textos, trazendo dinamismo para as suas comunidades. Neste sentido o escriba israelita não era um mero copista mas também um executante da palavra oral32.

5.2 Os estilos literários das culturas orais As culturas orais possuem estilos literários bastante específicos – no caso de Israel ou da Babilónia por exemplo os textos eram uma extensão das apresentações orais. A entrega oral dos textos determinava o seu estilo, mesmo que a origem do texto fosse apenas escrita e não oral33. Encontramos nestes textos várias caraterísticas estilísticas do género oral tais como o ritmo, a repetição, epítetos de ações e frases padrão. As narrativas consistem em episódios relacionados mas relativamente independentes entre si. Temos por exemplo o caso das histórias em Génesis e o Épico de Gilgamesh. Encontramos também os textos de exortação que são semelhantes na Babilónia e em Israel, onde as instruções morais preservadas na forma oral, de provérbios ou observações sucintas, foram colecionadas em unidades literárias maiores. Podemos ainda acrescentar que a escrita não foi apenas utilizada, nestas culturais orais, para a apresentação oral mas também foi concebida para arquivar informação. Os textos escritos eram utilizados para “consulta” sendo assim compilações usadas para serem citadas e relembradas, como por exemplo os códigos legislativos34. Os livros legislativos e os manuais da antiguidade são compilações de leis, rituais, hinos e orações como as que encontramos em Levítico ou Provérbios35. Nas culturais orais onde a transmissão oral dominava a comunicação, não havia lugar para os livros. Uma das primeiras observações históricas é o facto de nestas culturas o custo da produção de um livro envolver duas facetas: primeiramente o trabalho empregue na produção textual e em segundo lugar a natureza dos materiais de escrita. Os livros eram escritos à mão, sendo um processo trabalhoso e de elevados custos, e os materiais de escrita tinham também um custo elevado. Por isso os livros não se encontravam ao

32

Raymond F. Person, J. (1998). The Ancient Israelite Scribe As Performer. Journal of Biblical

Literature, Pp. 602 33

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 14 34 As leis de Hamurabi 35 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 15-16

alcance do leitor individual comum, enquanto os livros foram raros a literacia não foi muito incentivada36. Os livros eram assim propriedade das classes sociais mais abastadas, que possuíam manuscritos e formas de aprendizagem. Os escribas judeus usavam couro, papiro ou pergaminhos como material de escrita, estes pergaminhos eram mais dispendiosos que as tábuas cuneiformes. O material mais económico era o papiro, apesar da prática de reciclagem dos pergaminhos escritos indicar que nenhum destes materiais era propriamente económico. Estima-se que o custo de um pergaminho de papiro na antiguidade tenha sido equivalente a uma ou duas semanas de salário de um trabalhador normal. Os custos do material de escrita eram superiores aos custos da escrita37.

6. O Papel da Memória na Cultura dos Escribas

A nossa reflexão sobre a cultura oral e os hábitos dos escribas hebreus é uma tentativa de recuperar o processo pelo qual os antigos escribas hebreus escreveram e reviram narrativas com o Êxodo na Bíblia Hebraica. Até aqui temos estudado os contextos históricos da escrita e as exigências da tecnologia dos pergaminhos, por exemplo a sua durabilidade. Neste seguimento o papel da memória, que por sua vez se insere num âmbito cognitivo, é agora alvo da nossa reflexão acerca da composição e revisão textual, algo que já foi designado por “tecnologia cognitiva”38 O processo de educação ou enculturação não era, necessariamente, na antiguidade um treino numa “escola”, no sentido moderno do termo, com um professor profissional e num edifício específico para o efeito. No contexto do antigo Israel o ambiente educacional era mais familiar ou pseudo familiar, onde o “pai” ensinava os seus filhos (ou estudantes que eram vistos como filhos) a antiga tradição. Num sentido mais amplo as “elites” não eram apenas educadas pelos profissionais do texto como os “escribas”, mas também por profissionais da classe sacerdotal, governamental, altas patentes militares e burocracia como outras elites. O ponto principal da produção textual e do processo de receção no contexto educacional e de enculturação não era tanto para rever e gravar textos em tábuas, papiros ou

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Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 17) 37 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 19) 38 Termo utilizado pelo autor David Carr no seu ensaio Torah on the Heart: Literary Jewish Textuality Within Its Ancient Near Eastern Context (Carr, 2005)

pergaminhos. Mas para “gravar” os textos, palavra por palavra, nas mentes da geração seguinte. A forma de literacia antiga era aprendida, mas todo o processo ultrapassava as dimensões do mero aprendizado de letras e palavras. Era a apropriação de um vocabulário de episódios inteiro, linhas poéticas, temas narrativos e valores implícitos. As cópias escritas dos textos serviam como um propósito subsidiário neste sistema, como símbolos numinosos da reverenciada tradição antiga, como auxiliares de aprendizagem e pontos de referência para garantir o desempenho oral preciso39. Esta noção é importante para compreendermos como é que os escribas recriavam os textos bíblicos, já foi referido que a Bíblia foi formada e usada num contexto oral-escrito. Por um lado os textos bíblicos e textos semelhantes de outras culturas eram “orais” no sentido que eram memorizados e declamados publicamente; por outro lado as cópias escritas destes textos eram utilizados neste processo para ajudar os escribas a interiorizar a tradição textual e verificarem se a apresentação oral dos textos era a correta. “Filho meu, guarda as minhas palavras e entesoura contigo os meus mandamentos observa os meus mandamentos e vive; guarda a minha lei como a menina dos teus olhos. Ata-os aos teus dedos, escreve-os na tábua do teu coração” Provérbios 7:1-3 O modelo de textualidade pelo meio da educação oral-escrita correlaciona-se com os dados históricos disponíveis dentro e fora da Bíblia Hebraica. Verifica-se que existiu um processo de socialização de elites através de um processo de internalização oral-escrita de textos antigos, a mente desempenhou um papel fundamental nas culturas orais. Quer seja pela memória, quer seja pela recomposição dos textos que memorizou, qualquer sistema de educação textual no Antigo Israel prioriza esta vertente particular. O foco da oralidade e da literacia no uso de textos como os da Bíblia era cognitiva e social, apesar de termos registos históricos da exposição de textos em contextos específicos para audiências mais abrangentes. Como por exemplo a leitura da Torá por Esdras, o grande contexto da transmissão e da revisão ao longo do tempo foi o processo de internalização dos textos, palavra por palavra, no contexto educativo da antiguidade. Será útil referir o sistema egípcio que neste aspeto se aproxima bastante de Israel, desempenhando um papel importante na emergência da textualidade israelita antiga.

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Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp. 18

Como é evidente na apropriação israelita dos termos, para instrumentos de escrita, números egípcios e o modo egípcio de escrita da direita para a esquerda40. É interessante a citação proveniente do sistema egípcio que pode ter sido a fonte do verso de Provérbios acima referido: “You are, of course, a skilled scribe at the head of his fellows, and the teaching of every book is incised on your heart”41. Outros testemunhos de uma educação oral-escrita podem ser acrescentados ao nosso estudo na Instrução de Merikare: “Do not kill one whose excellences you know, with whom you once chanted the writings” ou a conclusão da Instrução de Ptah-Hotep que menciona: “Memory of [the teaching’s maxims] will not depart from the mouths of humankind, because of the perfection of their verses”42.

Estas passagens sugerem que o processo educativo oral-escrito focava-se na interiorização e na socialização das gerações jovens para cargos de elite. A literatura educacional egípcia, inclusive, exorta a memorização dos ensinamentos dos textos escritos43. As cópias práticas dos textos instrutivos egípcios incluem geralmente marcações vermelhas para ajudar na recitação e sinterização de blocos memorizáveis. A própria palavra egípcia “ler”, sdy, significa “ler em voz alta”, apontando para a interrelação da escrita e oralidade no processo de interiorização da educação 44. A publicação em 1923 do livro egípcio Instrução de Amenemope e a sua análise com Provérbios 22:1724 apresenta o único exemplo existente da antiga literatura aforística do Oriente Próximo. É material que certamente foi usado para ensinar os escribas egípcios e podemos pela comparação aferir que o material em Provérbios foi usado também para instruir os escribas hebreus. Farei apenas uma breve menção:

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Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp. 20 41 Citado em Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press., Pp. 20 42 Parkinson, 1997, p. 51 43 Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp. 21 44 Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp. 21

“Incline your ear and hear my words, and direct your hear to my knowledge; for it will be pleasant if you keep them in your belly, that they may all be secure on your lips.”45 Comparemos com Provérbios 22:17-18: “Inclina o teu ouvido e ouve as palavras dos sábios, e aplica o teu coração ao meu conhecimento. Porque será coisa suave, se os guardares no teu peito, se estiverem todos eles prontos nos teus lábios” Em ambas as passagens o exórdio inicia-se com o ato de “ouvir”, “inclinar o ouvido” às palavras dos sábios. A expressão na versão de amemonepe, que ensina “marca as minhas palavras no caixão da tua barriga” (3:13), é importante para detetarmos o seu significado no texto bíblico e na instrução dos escribas. O homem reúne os seus pensamentos no seu ventre, esta noção egípcia da função do ventre encontra-se em Provérbios 18:8; 20:27,30 e 26:22. O “caixão do ventre” é uma metáfora baseada numa prática egípcia, em que o armazenamento de rolos de papiro era feito num tipo especial de caixa46. A noção do ventre reter as palavras aparece também em Job 15:2 e 32:18-19, mas são os lábios que têm a função de segurar os pensamentos que estão armazenados no ventre. O sábio ao falar iria citar esses ensinamentos “armazenados” no ventre e elaborar o seu discurso em conformidade com os princípios da tradição que aprendeu. O conceito de sabedoria no livro de Provérbios foi crescendo em estágio47, não sendo apenas um género literário, mas um processo. Uma dialética em que pensadores de diferentes épocas meditaram sobre as ideias que haviam aprendido dos seus antepassados, formando-as de novas maneiras; nesta dialética os novos conceitos não anulam nem deslocam os antigos, antes ampliam-nos e enriquecem-nos, testemunhando todo o processo histórico do papel da memória na textualidade hebraica48. Na Bíblia Hebraica temos na maioria dos casos referências a uma educação “pai-filho” em que o “escrever” e o “guardar” no coração a Torá eram a essência desse processo

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The Amenemope Collection traduzida em Fox, M. V. (2009). Proverbs 10-31. New Haven & London: Yale University Press., Pp. 707 46 Fox, M. V. (2009). Proverbs 10-31. New Haven & London: Yale University Press, Pp. 707 47 O primeiro estágio aparece em Provérbios 10-29 (Partes II-V), as “coleções antigas”; o segundo estágio aparece em Provérbios 1-9 (Parte I), as dez lições e o prólogo; o terceiro estágio aparece em Provérbios 1-9 (Parte I), os cinco interlúdios 48 Fox, M. V. (2009). Proverbs 10-31. New Haven & London: Yale University Press, p. 922

educativo. Textos como Deuteronómio 6:-6-9 e 11:18-21, e textos que falam do selar a Torá nos corações dos filhos/alunos em Isaías 8:16-18 e 30:9-11 fazem muitas vezes referência à memorização. Os temas e imagens simbólicas nas narrativas também não devem ser despercebidos, temos a promessa em Jeremias que Deus iria escrever uma nova aliança no coração de Israel (Jeremias 31:33-34). O profeta Ezequiel é retratado a comer um pergaminho, isto é uma imagem de sinterização de uma mensagem escrita (Ezequiel 2:9-3:3), assim como a menção da Torá de Deus ser escrita nas partes mais íntimas do salmista no salmo 40:9. Todos estes discursos são reflexos de uma educação oral-escrita, verificamos a ênfase na tradição bíblica do “escutar” como prioridade relativamente ao “ler” ou “escrever” os textos bíblicos. Esta ênfase no “escutar” e no “falar” remete-nos a um contexto simbólico em que os estudantes escreviam os textos da tradição antiga “nos seus corações” depois de os “escutarem” e de os interiorizarem49. Desta reflexão, do ponto de vista histórico, interessa perceber qual foi o papel da memória na transmissão das fontes escritas da narrativa do Êxodo. Os textos memorizados e apresentados oralmente exibem um tipo diferente de variação de tradições escritas que são transmitidos exclusivamente através da cópia manual. Estas tradições tardias mostram variações que eram geralmente resultado de erros visuais dos copistas – variantes gráficas50. Os estudos realizados em manuscritos mais antigos como por exemplo o texto de Homero51 exibem outro tipo de variações, que apontam para um processo adaptativo de atualização livre da tradição, que acaba por ser dinâmica e não uma mera cópia reproduzida. Estes indicadores preservaram nos registos escritos dos versos homéricos um processo de memorização e recitação. Existem diferentes tipos de variantes textuais entre os textos memorizados e declamados e as tradições escritas. Verificam-se casos de adaptação, em vez de cópia destas tradições, surge assim entre os escribas uma tradição livre de melhorarem e adaptarem o texto.

49

Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp. 23 50 Como por exemplo saltarem uma linha, confundirem letras entre outros. 51 Estudo realizado por Milmam Parry em The Making of Homeric Verse: The Collected papers of Milman Parry. Ed. By Adam Parry. Oxford: Clarendon Press citado em Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp. 25

Estes indicadores podem ser identificados nos versos de Homero ou nos da Bíblia52, apontando-nos para um processo de recitação e memorização. Dentro desta realidade histórica, nos materiais textuais antigos como o épico de Homero ou a Bíblia, devemos lidar com uma mistura de dinâmicas orais e escritas. Ao serem reproduzidos, estes textos são muitas das vezes escritos de memória apresentando assim a substituição de alguns termos e adaptações radicais da tradição; designa-se este fenómeno de variações de memória. A linguista israelita Tamar Zeui53 encontrou vários exemplos nos livros de Samuel, Reis e Crónicas, variações nos verbos ativos ou passivos são utilizados para expressar conteúdos semelhantes. Estes e outros casos envolvem a variação sintática que não aparenta estar ligada a alterações na língua hebraica ou a diferenças no conteúdo semântico. Tão pouco representam as mudanças comuns que ocorrem num ambiente focado exclusivamente na cópia gráfica dos textos54. São antes exemplos pesquisados pelo linguista sem qualquer investimento aparente em qualquer modelo, para a criação desta literatura de transformações cognitivas, que ocorrem nos textos transmitidos em parte através da memória. Verifica-se também uma tendência expansionista da tradição textual antiga, na literatura do Antigo Israel, onde a datação dos documentos é bastante debatida. Mas alguns dos casos de expansão documental mais verificáveis são: os manuscritos do Pentateuco proto samaritano, 4QRP, e as versões longas do livro de Ester e Daniel, provavelmente a tradição de Jeremias. A tradição de Samuel e Reis em Crónicas, foi abreviada não expandindo assim a sua tradição percursora. A terceira marca das variações da memória é a harmonização, geralmente a harmonização de uma parte de um dado texto com outra seção literária que o escriba entendia fazer parte do mesmo texto. As tradições do pergaminho do templo e do pergaminho proto samaritano são harmonizações de várias leis bíblicas55. Estas variações de memória permitem-nos historicamente “imaginar” o escriba na sua sala de trabalho a compilar um pergaminho. No caso do Pentateuco os escribas ao reproduzirem as tradições lidaram com este fenómeno (as discrepâncias), combinando e harmonizando as diversas tradições 52

Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp. 30 53 Citada em Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp. 30 54 Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp. 30 55 Tygay, J. (1985). Conflation as a Redactional Technique. Em J. Tygay, Empirical Models for Biblical Criticism Philadelphia: University of Pennsylvania Press, Pp. 61-83

divergentes. Por vezes, e como se verifica, este processo leva à contração das tradições, contradizendo a tendência escriba de preservar e expandir as tradições. Estas harmonizações envolviam aquilo que pode ser entendido como “híper memorização” da tradição, onde diferentes partes da tradição eram consideradas santas e assim não era permitido contradizerem-se. Em suma podemos concluir que a mente estava no centro da interface oral-escrita, o foco estava em esculpir as tradições culturais mais preciosas no interior dos escribas56. Neste contexto as cópias dos textos serviam como pontos de referência sólidos para a recitação e memorização da tradição. Quando olhamos para o funcionamento de textos chave como a narrativa do Êxodo no mundo antigo, a questão não passa por saber como é que estas narrativas foram registadas em papiro. Mas como é que estes meios escritos eram parte de um projeto cultural de incisão de tradições religiosas e culturais – palavra por palavra – na mente das pessoas. Os escribas possuíam assim a memória destas narrativas dentro da sua tradição religiosa e é na expressão livre dessa memória que se compilaram as várias tradições da narrativa do Êxodo.

6.1 Os Modos de Produção Textual Tendo em conta o contexto histórico da escrita israelita e do papel da memória na textualidade hebraica, será útil examinarmos os vários modos de produção textual, usados pelos antigos escribas, exibidos na Bíblia Hebraica. Como acima foi referido o escriba não era apenas um copista, mas também um compositor que dava aos seus trabalhos uma certa forma e estrutura determinando as palavras e a terminologia dos textos. A transmissão da tradição textual para as gerações posteriores era uma responsabilidade dos estudantes da arte escriba ao copiar os textos clássicos. O envolvimento dos escribas na produção literária excedia o papel do mero copista, como demonstramos acima, o escriba tinha um papel ativo na formação e na transformação da tradição57. Podemos distinguir seis formas de produção textual por parte dos escribas:

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Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press. Writing on the Tablet of the Heart Pp. 6 57 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 110

(1) a transcrição do conhecimento oral; (2) a invenção de textos novos; (3) compilação do conhecimento existente, seja oral ou escrito; (4) expansão de um texto herdado; (5) adaptação de um texto existente para uma nova audiência e (6) integração de documentos individuais numa composição mais compreensiva. A transição entre estes vários modos e técnicas de produção textual encontra-se presente em vários textos antigos, da Bíblia, da Babilónia ou do Egito58.

6.1.1

A Transcrição

Neste método o escriba transcrevia um texto que lhe tinha sido ditado, sendo por isso um texto de fonte oral, ele copiava pelo “ouvir” e não por “ver”. Encontramos a imagem de modelo de produção textual nas fontes bíblicas do Livro de Jeremias, em que o escriba Baruque regista os oráculos que lhe são ditados por Jeremias. “Então Jeremias chamou a Baruque, filho de Nerias; e escreveu Baruque, no rolo dum livro, enquanto Jeremias lhas ditava, todas as palavras que o Senhor lhe havia falado” Jeremias 36:4

Nesta descrição o escriba regista fielmente o que o ouve sem acrescentar ou omitir uma única palavra, ele apenas transforma um artefacto oral num texto escrito59. Este fenómeno de produção textual através do ditado é comum no mundo antigo, existem outras referências por exemplo numa carta da Mesopotâmia encontrada no arquivo real da cidade de Mari. Onde se descreve um profeta a perguntar a um oficial real por um “escriba discreto” que “possa escrever-lhe uma mensagem do deus Samas para o rei”60. Não podemos apurar se a história do escriba Baruque é ou não fictícia, mas o fenómeno de um profeta ditar algo a um escriba não é uma fantasia literária. A partir deste relato nota-se que o escriba assume um papel invisível no texto que escreve por ditado, de qualquer forma a transformação do discurso em escritura não consistia apenas num registo 58

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 110 59 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 110 60 Publicado em Letters to the King of Mari: A New Translation, with Historical Introduction, Notes, and Commentary, Mesopotamian Civilizations 12 (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2003) citado em Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 111

mecânico do discurso oral. Ao tornar a palavra anunciada em escrita, o escriba adaptava o discurso às convenções do género escrito narrativo; no contexto do Antigo Médio Oriente o género mais comum usado nas transcrições era a carta. Como já foi referido o nível modesto de literacia na social, levava os correspondentes a usarem o trabalho dos escribas. Estas cartas continham algumas marcas do trabalho escriba; resumindo podemos afirmar que o escriba mesmo no desempenho de papéis mais instrumentais como registar um ditado, impõe o seu estilo, linguagem e ideias sobre o texto. Historicamente os escribas são secretários e transcritores, não fonógrafos na sua escrita, eles moldam o material que lhes chega por via da tradição oral. Se a maior parte da Bíblia Hebraica remonta à tradição oral, desde as narrativas patriarcais, os oráculos dos profetas, as leis sacerdotais às genealogias e provérbios. O único acesso contemporâneo que temos a esta tradição passa pela sua transcrição61.

6.1.2

A Invenção

A transcrição e a invenção são dois modos de produção textual onde não se verifica uma extensão do texto anterior por parte do escriba. Tanto na transcrição como na invenção o escriba produz um texto original, o escriba que transcreve transforma a tradição oral em palavra escrita. O escriba que inventa compõe um texto da sua própria autoria, em ambos os casos estes escribas produzem as fontes escritas das quais todos os outros modos de produção textual dependem62. Como nenhum texto da Bíblia Hebraica é, numa primeira instância, uma invenção explícita de um escriba, farei uma breve alusão a um exemplo da literatura do Antigo Médio Oriente, indo depois ao encontro de certas especificidades textuais bíblicas. Uma composição famosa elaborada por um escriba é a Teodiceia Babilónica63 , em que este poema identifica que Saggil-Kinam-ubbib como o seu autor. De acordo com a tradição este homem foi um académico que serviu na corte de Nabucodonosor I (1125-1104) e Adad-apla-iddina (1068-1047). Treinado como exorcista, o autor deste poema compôs um diálogo entre dois académicos; podemos

61

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 115 62 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 115 63 Tradução publicada por Wilfred G. Lambert, Babylonian Wisdom Literature (Oxford: Clarendon, 1960), 63-91 citado em Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 115

considerar o elo tradicional entre a sabedoria e a arte escriba como realidades retratadas nas duas personagens desta Teodiceia. Naturalmente podemos assumir que se trata de uma representação da cultura escriba, as caraterísticas desta composição em forma de diálogo, focam o contexto escriba. A partir da especificidade deste texto babilónico podemos sugerir que algumas composições literárias acrósticas do corpo bíblico são invenções escribas. Este argumento sugerido por Toorn defende que estas composições literárias podem ser totalmente apreciadas apenas por pessoas que conhecem o modo correto de ler estes textos64. Neste âmbito estamos perante acrósticos bíblicos, produtos da cultura escriba, para a instrução e o entretenimento dos escribas e dos seus aprendizes. Um exemplo de uma composição escriba em forma acróstica é o louvor da mulher virtuosa em Provérbios 31:10-31, isto porque combina a técnica acróstica com ensinos de sabedoria. A admoestação “filhos”65 na acróstica do salmo 34:11 “Vinde, filhos, ouvime; eu vos ensinarei o temor do Senhor.” é outra indicação que acrósticos foram usados num contexto educacional66. Reunindo as evidências até aqui mencionadas: o uso de acrósticos na literatura, o conhecimento específico da cultura escriba e por sua vez o uso de fontes escritas para redigir textos originais, são os indicadores necessários para identificar este modo de produção textual. O livro de Job apresenta-se na forma de um diálogo com ênfase no tema da teodiceia, assemelhando-se ao primeiro exemplo aqui referido da Teodiceia Babilónica. Para além destes traços gerais o livro exibe um vocabulário raro e um conhecimento específico acerca de certos fenómenos naturais, sendo um diálogo entre escribas. Claramente o texto demonstra a influência de listas de compêndios usadas em escolas de escribas67. Outras composições sapienciais como o livro de Eclesiastes68 e o livro de Ben Sirá são invenções escribas, Eclesiastes cita inúmeros provérbios e identificou o escriba no seu pós-escrito (Eclesiastes 12:9-10). No caso de Ben Sirá o autor refere-se a si próprio como o professor de uma escola (Ben Sirá 50:27; 51:23). Outra composição bíblica baseada em fontes escritas anteriores é o livro de Crónicas; o seu autor (ou autores) são anónimos e o seu discurso enfatiza duas coisas: o tempo e o facto 64

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 116 65 Que sabemos referir-se a alunos num contexto de aprendizagem. 66 Soll, W. M. (1988). Babylonian and Biblical Acrostics. Biblica, 305-323 67 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 116 68 Uma das características que enquadra Eclesiastes como uma composição escriba é a citação de provérbios, isto porque usa material existente noutras fontes escritas.

de a sua obra ser um trabalho historiográfico estudado. Ao longo do livro existem referências a inúmeras fontes escritas, algumas conhecidas outras perdidas, em grande medida estas referências são uma demonstração de uma aprendizagem ampla. Resumindo quando a invenção é o modo de produção textual, o escriba que escrevia agia como um autor. Contudo se o escriba permanecia anónimo, era porque não pensava em si como um autor no sentido moderno do termo. Ele praticava a arte da produção literária utilizando as técnicas e ferramentas que adquiriu na sua educação escriba. Como foi referido anteriormente a transcrição e a invenção são as fontes primárias dos textos bíblicos, em que a invenção é o modo de produção textual proeminente na literatura sapiencial, historiografia e os salmos.

6.1.3

A Compilação

Outra forma de redigir livros era a arte escriba da compilação; será apropriado, neste modo de produção textual, falar do livro de Provérbios. Provérbios 25:1 introduz vários provérbios com as seguintes palavras: “Também estes são provérbios de Salomão, os quais transcreveram os homens de Ezequias, rei de Judá”. Este excerto menciona a transcrição que testemunha a formação de uma coleção escrita ou compilação. A compilação pode englobar elementos da tradição oral ou textual, no primeiro caso envolve uma transcrição, no segundo dirige-se apenas à criação de uma série. A essência da compilação de textos por parte dos escribas em ambos os casos é uma justaposição. Tendo por lógica uma perspetiva aditiva e agregadora, no lugar de uma perspetiva subordinativa e analítica69. O livro de Provérbios apresenta-se como “Provérbios de Salomão” (Provérbios 1:1, 10:1, 25:1), “Palavras do Sábio” (Provérbios 22:17, 24:23), as “Palavras de Agur filho de Jaqué” (Provérbios 30:1) e as “Palavras de Lemuel, rei de Massá” (Provérbios 31:1). Esta coleção foi um trabalho escriba porque compilar era uma técnica escriba clássica de composição, os escribas redigiram e formaram o livro de Provérbios ao colecionarem vários ditos e apresentando-os em séries de compilações escritas. No antigo Médio Oriente a compilação era um modo de produção escriba bastante comum, presente numa grande variedade de textos70. As listas lexicais podem ser consideradas

69

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 119 70 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 119

como o primeiro nível da arte escriba da compilação, poucas listas hebraicas sobrevivem em fragmentos. Sendo no entanto suficientes como evidência da prática de listagem entre os escribas hebreus, algumas listas de fenómenos naturais são aludidas em hinos. Como em Job 38, Salmos 148, Ben Sirá 43 e a versão de Daniel 3:52-90 na Septuaginta71. A especificidade destas passagens deve-se ao facto dos seus autores não as terem copiado ou inventado, estes escribas utilizaram um formato de lista e até um esboço substancial de uma lista existente como meio de elevar o seu louvor ao divino. Estas listas a um nível mais sofisticado são listas de observações, em vez de palavras ou nomes, o escriba lista fenómenos como as várias configurações de entranhas de animais72. É importante aprofundarmos a ligação existente entre listas enciclopédicas de oráculos interpretados na Babilónia, com a anatomia dos animais. Isto porque nas crenças da Babilónia os deuses escreviam os seus desígnios nas entranhas dos animais, e as listas de oráculos assemelham-se a listas de sinais cuneiformes, onde o escriba recolhia os sinais escritos pelos deuses73. Existem várias listas de oráculos desde a astrologia até formas particulares do comportamento humano; à primeira vista este tipo de compilações não faz parte da Bíblia. Mas isto não indica que os escribas hebreus não tivessem casos compilados como um modo de produção textual. Temos assim o caso das coleções primitivas de leis, como as que estão preservadas no código da aliança (Êxodo 21:1-22:16), estas coleções formalmente assemelham-se às listas de oráculos da Babilónia. Isto porque todos as entradas de uma lista de oráculos consiste em duas partes: a prótase que é a descrição da situação ameaçadora e depois a explicação do seu significado, que neste contexto seria um decreto divino. As leis bíblicas casuísticas74 apresentam a mesma estrutura, após a definição de uma cláusula legal na prótase, a consequência é o veredito correspondente, uma maldição que também é o decreto divino. Em ambos os casos, os oráculos e as leis, são uma junção de casos históricos e hipotéticos. Os escribas na Babilónia que recolhiam oráculos, na sua ânsia de completarem as listas observavam sinais da sua própria invenção75. Esta observação é importante uma vez que como no caso dos oráculos 71

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 120 72 73

No caso especifico dos manuais babilónicos

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 121 74 Ver o caso de Êxodo 21:26-28 75 Morrow, W. S. (2000). Mesopotamian Scribal Techniques and Deuteronomic Composition: Notes on Deuteronomy and the Hermeneutics of Legal Innovation. Em E. Otto, M. Arneth, & R. Achenbach, Zeitschrift fur die altorientalische Rechtsgeschichte. Wiesbaden Taunusstrasse: Harrassowitz . Pp. 308

cuneiformes, muitos dos casos e vereditos bíblicos são invenções escribas, porque a compilação leva à invenção. As leis sacerdotais por exemplo podem ser vistas como compilações de instruções separadas, a palavra hebraica para uma instrução sacerdotal é torá; sob circunstâncias normais a “não perecerá a lei do sacerdote” (Jeremias 18:18; comparar com Ezequiel 7:26). Pelas passagens em questão a instrução do sacerdote era casuística, aquele que buscava instrução dirigia-se ao sacerdote perguntando uma questão específica e recebia uma resposta específica (os exemplos de Ageu 2:11-13 e Malaquias 2:67). O livro de Levítico é uma compilação deste tipo de instruções sacerdotais, as várias “leis” são marcadas por pós-escritos: “Esta é a lei sobre os animais e as aves, e sobre toda criatura vivente que se move nas águas e toda criatura que se arrasta sobre a terra;” Levítico 11:46 “Esta será a lei do leproso no dia da sua purificação: será levado ao sacerdote,…” Levítico 14:2 Para sinalizar o fim da compilação o escriba acrescentava este pós-escrito dizendo: “são esses os estatutos, os preceitos e as leis que o Senhor firmou…no monte Sinai, por intermédio de Moisés” (Levítico 26:46). O livro é uma compilação escriba de tôrôt, endossado com uma origem divina e atribuído a Moisés76.

6.1.4

A Expansão

A expansão ocorria quando um escriba expandia um documento existente com adições suas, exceto no caso de anotações e rabiscos nas margens, geralmente referidas como comentários ou explicações, as expansões exigiam a preparação de uma nova cópia do texto. O formato de uma tábua cuneiforme ou um pergaminho hebraico não tornavam possível a expansão textual, a não ser que o escriba escrevesse o texto inteiro, pois não podia incorporar material novo no manuscrito existente77. Anteriormente referimos o papel dinâmico da variação da memória na produção textual, o papel desta variação

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Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 123 77 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 125

implicou certas expansões textuais. Neste caso concreto de modo de produção textual, farei a distinção entre a expansão que ocorre num contexto de uma nova edição do texto existente e o processo comum da reprodução de um manuscrito base, pela memória. Iremos abordar a expansão textual neste caso como atividade no contexto de uma nova edição; este fenómeno parece-nos surpreendente porque contrasta com a veneração que os escribas tinham pela tradição escrita. Será necessário situarmo-nos num plano concreto da cultura escriba, a expansão era de facto uma infração no código de conduta do escriba, se o virmos como um copista fiel dos manuscritos. Nesta situação o escriba é um editor, a expansão é um fenómeno bem atestado no contexto de novas edições, e como editor o escriba tem liberdade para fazer aquilo que seria proibido ao escriba copista78. Por um lado devemos ter em conta que o fenómeno de expansão intratextual situa-se numa dinâmica da tradição oral dos mestres que era assimilada no texto escrito. Situamos a origem das expansões textuais nas explicações que os professores oralmente transmitiam aos seus alunos, acerca dos textos. O fenómeno da produção textual ocorria em paralelo ao fenómeno da cultura oral e da transmissão dos seus conhecimentos. O fenómeno que atesta esta realidade é a Torá Oral judaica, a Torá “através do canal da boca”, sebbe’al peh que na tradição rabínica é escrita ao lado da Torá escrita. A noção da literatura tradicional ser uma herança que os escribas transmitiram de forma inalterável ao longo dos séculos, não faz jus às transformações e ao crescimento da tradição escrita, estas mudanças refletem historicamente uma tradição oral viva, contínua lado a lado com a transmissão escrita. Mencionaremos apenas o caso do texto do profeta Jeremias, em que a tradução grega de Jeremias na Septuaginta tem um tamanho reduzido, relativamente ao texto que se encontra na Bíblia Hebraica. O arranjo do seu material difere consideravelmente do texto hebraico, a descoberta do fragmento 4QJer, que é uma versão hebraica de Jeremias é semelhante à versão grega da septuaginta. Discordando com a versão que está no texto massorético da Bíblia Hebraica, por esse motivo alguns académicos concluem que a tradução grega antecede o texto hebraico massorético79. Comparativamente com a versão grega e o fragmento 4QJer, a versão de Jeremias no texto massorético representa uma expansão em várias maneiras. Especifica a profissão de Baruque (Jeremias 36:26; 36:32), explica o cenário topográfico dos acontecimentos

78

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 126 79 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 131

(Jeremias 37:17; 41:1), enfatiza a cronologia (Jeremias 28:1) e clarifica o significado das descrições acrescentado detalhes (Jeremias 36:6; 41:2; 41:7). No caso específico de Jeremias 33:14-26, o escriba que elaborou esta seção do texto deu-lhe um toque especial enfatizando o papel central da dinastia da Casa de Davi e os sacerdotes Levitas (33:1718; 33:22; 33:26). A perspetiva é pós-exílica, uma vez que a expansão textual contempla a restauração da monarquia e do sacerdócio dentro do mesmo pensamento que os oráculos do profeta Zacarias (3-4; 6:9-13).

6.1.5

A Adaptação

O modelo de produção textual de adaptação é semelhante ao modelo de compilação porque ambos dependem de material escrito. O escriba que transcreve ou o escriba que inventa não têm um texto escrito para produzirem o seu, mas o escriba que adapta necessita de um texto anterior. Este escriba usava o texto como um modelo para o seu próprio texto, em vez de escrever o texto ele reescrevia o texto existente. A adaptação poderia assumir diversas formas, desde a tradução de uma linguagem para outra; esta tradução linguística podia transformar o texto substancialmente conforme fosse adaptado a uma audiência com diferentes vínculos religiosos. A adaptação também poderia resultar numa versão variante do texto ou numa forma de repensar um texto clássico, atualizando assim a tradição escrita. Um caso estudado neste contexto é o salmo 20, em concreto a descoberta80 de uma bênção aramaica que corresponde, quase por inteiro palavra por palavra, ao salmo 20. O texto aramaico remonta a um texto originalmente fenício, indicado pelos nomes divinos Bethel e Baal Shamayn e a menção de Zafon como a montanha sagrada. De acordo com Karel Van Der Toorn, a semelhança entre este texto aramaico e o salmo 20 explica-se se assumirmos que ambos são revisões do mesmo texto original fenício. O original está perdido, mas o paralelismo entre o texto hebraico e aramaico conseguem reconstruir o original fenício. Nesta suposição que o salmo aramaico é uma tradução original fenícia, as adaptações realizadas pelo escriba judeu que escreveu o salmo 20 são claras. Houve

80

A descoberta em 1980 na Ameherts collection of the Pierpont Morgan Library em Nova Iorque do Demotic papyrus, citada em Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 134

uma substituição do nome, “Baal” que foi substituído por “Javé”e o nome “Zafon” por “Sião”81 6.1.6

A Integração

Podemos aqui referir que a atividade editorial baseada em fontes textuais é algo notório na Bíblia Hebraica. A partir de dois documentos, o escriba hebreu podia adotar várias estratégias para torná-los num único documento. Se ele optasse por preservar os dois documentos intactos ele agregaria as várias partes dos textos dando-lhes uma nova configuração. Outra forma de integração baseava-se na escolha de um documento base, como texto mestre e ecleticamente usar um segundo documento como seu suplemento. Do ponto de vista histórico é importante colocarmos a seguinte questão: porque é que os escribas estavam a compilar diferentes versões textuais da tradição oral? Ao que parece os escribas que editaram a narrativa bíblica do dilúvio ou a Torá, aspiravam produzir um documento que tinha o apoio de diferentes comunidades textuais. Ao escreverem um documento integrado com diferentes ideias e perspetivas, os escribas criaram uma herança textual nacional que transcendia qualquer divisão anterior a esse evento.

6.2 Os Escribas Egípcios

Em busca de possíveis tradições narrativas paralelas na cultura dos escribas egípcios torna-se necessário contextualizar as dinâmicas do seu ambiente cultural e literário, captando assim alguns temas nucleares da narrativa do Êxodo. A literacia era no Antigo Egito uma marca de elite, a proporção de população egípcia que podia ler e escrever era cerca de cinco por cento, restringindo-se largamente à aristocracia82. Os dignatários, clérigos, oficiais e qualquer pessoa que desempenhasse um papel na administração real enviava os seus filhos para a escola ou para um tutor. A alfabetização que correu em famílias, assim como em escritórios de escribas era quase sempre hereditária. A relação típica de ensino era modelada pelo laço entre pai e filho, que ainda que meramente retórico continua a refletir a questão da importância que era

81

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 134 82 Janseen, R. M. (1990). Growing Up in Ancient Egypt. London: The Rubicon Press, Pp. 67-68

dada ao nascimento e à família para se ter acesso a educação formal83. Devido a uma série de mudanças sociais no tempo que precedeu o Novo Reino, o privilégio da educação escriba tornou-se acessível para a maioria das camadas da população84. Durante o período do Novo Reino (1550-1100 a.e.c.) o território egípcio expandiu-se e a burocracia aumentou em tamanho, as escolas proliferaram. Muitas das escolas estavam também localizadas nos templos, a instrução elementar durava cerca de quatro a cinco anos85. Depois de uma introdução aos princípios da escrita, os estudantes usavam um manual conhecido como Kemyt “compendium” que continha exercícios em fórmulas epistolares, um modelo de uma carta e vários tipos de frases adequadas 86. As listas lexicográficas tinham na educação do Egito o mesmo propósito que as listas cuneiformes de plantas, pedras e deuses tinham para os escribas da Mesopotâmia. Uma educação básica em geografia, aritmética e geometria também faziam parte do currículo87. Vários dos pupilos com a formação base continuavam a sua educação estudando alguns dos textos de sabedoria clássicos e as várias instruções. As instruções conhecidas em egípcio por sb3yt (convencionalmente vocalizado sboyet), consiste em conselhos e ditos exemplificando a importância dos provérbios e outros textos de sabedoria no currículo escriba egípcio88. As composições eram cantadas e memorizadas, os estudantes faziam cópias tendo por base a memória; após quatro anos, quando a primeira fase do currículo terminava os estudantes podiam considerar-se escribas89. O título profissional geralmente assegurava-lhes uma posição na administração real, o seu conhecimento de escrita não se estendia para os hieróglifos. A escrita clássica era usada para as inscrições monumentais e textos antigos. O escriba comum não ia para lá da mestria de uma escrita hierática mais simples que era suficiente para as tarefas administrativas90. Os estudantes que pretendiam 83

Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp. 66 84 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 67 85

Williams, R. J. (1990). The Sage in Egyptian Literature. Em J. G. Gammie, & L. G. Perdue, The Sage in Israel and the Ancient Near East . Winona Lake: IN: Eisenbrauns. Pp.22 86 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 68 87 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 68 88 Williams, R. J. (1972). Scribal Training in Ancient Egypt. JAOS , Pp. 215 89 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 68 90 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 69

adquirir mestria nos hieróglifos tinham que continuar a sua educação por um longo período de tempo. O currículo avançado que incluía a aprendizagem de uma das profissões que poderiam ser exercidas após este treino literário e académico. Profissões como médico ou sacerdote poderia ter uma formação de doze anos91. O conhecimento especializado adquirido por estes estudantes era baseado na exposição extensiva aos textos mais técnicos92. Para os alunos que entravam para o sacerdócio93 reunido no local de instrução designado “Casa da Vida” (pr-‘nh)94. Este termo refere-se a um lugar próximo do templo onde se reuniam o corpo de académicos e os especialistas. A Casa da Vida Egípcia era mais do que uma escola de escrita, era um lugar de doutores, astrónomos, matemáticos e escultores que trabalhavam e colaboravam em atividades destinadas a promover o bemestar da terra95. Por ser um centro de aprendizagem e vida intelectual, a Casa da Vida é comparada à universidade da europa pré-moderna. O paralelismo é feito no sentido que muitos dos trabalhos académicos e religiosos originados na Casa da Vida eram copiados lá para propósitos de ensino e investigação96. Sobre a supervisão do “professor da Casa da Vida”, o estudante escriba segue o programa de estudos avançados. O treino transformava os escribas em académicos, os pergaminhos desempenharam um papel crucial durante os seus estudos e mais tardiamente nas suas profissões97. Normalmente a Casa da Vida ficaria situada próxima de uma biblioteca ou teria a sua própria; o termo egípcio que se traduz por biblioteca significa literalmente “casa dos pergaminhos”98. O termo pode referir-se a um arquivo ou a uma biblioteca, como no caso das bibliotecas dos templos da Mesopotâmia, onde costuma utilizar-se o termo neutro “coleção textual”. Estas coleções incluem rituais, cânticos cúlticos, mitos, astrologia, astronomia e exorcismos, assim como manuais de medicina e literatura funerária. A Casa da Vida era uma plataforma privilegiada para a discussão académica e diálogo filosófico. Os “escribas

91

Janseen, R. M. (1990). Growing Up in Ancient Egypt. London: The Rubicon Press, Pp. 69 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 69 93 Que neste contexto abrangia várias profissões todas de certa forma ligadas ao templo. 94 Gardiner, A. H. (1938). The House of Life. Journal of Egyptian Archeology, 157-179. 95 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 69 96 Gardiner, A. H. (1938). The House of Life. Journal of Egyptian Archeology, Pp. 176 97 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 69 98 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 70 92

da Casa da Vida” eram um sinónimo dos “homens instruídos” (rh-ht), a sua cultura como tal baseou-se nos textos clássicos da literatura e na academia99. A existência de uma classe de sacerdotes conhecida por sacerdotes - instrutores100 em egípcio (hry-hbt) apresenta-nos a relação entre literacia e sacerdócio. Qual seria o papel do sacerdócio na formação e na transmissão da cultura escrita no Antigo Egito? Sabemos que a Casa da Vida era uma instituição do templo, isto poderá levar-nos a supor que os sacerdotes transmitiam a tradição escrita. De qualquer forma é necessário estabelecermos alguns pressupostos sobre o sacerdócio egípcio, o sacerdócio era um corpo hierárquico composto por três níveis101. A classe mais baixa dos sacerdotes designava-se w’b – sacerdotes, “os puros”, que cantavam coros serviçais no santuário. A maioria destes homens eram iletrados, os sacerdotes – instrutores constituem a classe média, para eles a literacia era um pré-requisito. Eles recitavam feitiços e realizavam rituais nas cerimónias do templo e ritos funerários; na Bíblia Hebraica são mencionados como os “magos do Egito” (hartummê misraym, Êxodo 7:9, 22)102. Nos murais os sacerdotes-instrutores são geralmente representados a segurarem ou a lerem um pergaminho de papiro, acima deles na hierarquia estavam os “servos de Deus”. Geralmente referidos na literatura secundária, pela designação grega como “profetas”103, o único grupo no sacerdócio que pode ser considerado guardião da escrita sagrada foi o dos sacerdotes-instrutores104. O conhecido profeta do reino Médio Neferti era um sacerdote-instrutor105 em consonância com o facto de que os sacerdotes-instrutores são documentados por anunciar vereditos de oráculos que tomam lugar em festivais106. O chefe sacerdote-instrutor (hry-hbt hry-tp) era responsável por verificar se a recitação correta dos textos estava a ser feita, a investigação exegética era uma das suas funções. 99

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press. Pp. 70 100 Apropriei-me do termo em inglês Lector-priest empregue pelo autor Karel Van Der Toorn 101 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 70 102 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 70 103 Na opinião do autor Karel Van Der Toorn o termo “profeta” pode ser enganador porque estes homens não se assemelham aos profetas bíblicos. Isto porque existiam quatro classes diferentes de “profetas” Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 71 104 Lichtheim, 1973, Pp. 80 105 Mencionado em (Lichtheim, 1973-80) 1:140, onde Neferti é chamado: “a great lector-priest of Bastet…, a citizen with capable arm, a scribe with wxcellent fingers. 106 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 71

Os escribas treinados academicamente foram fundamentais na composição de novos textos, este é o ponto fundamental para a nossa investigação. Uma vez que a nossa procura pelos escribas por detrás da Bíblia Hebraica acarreta não tanto uma investigação de indivíduos, mas a caracterização de uma classe social específica.

6.3 Os Escribas Israelitas

No esforço de contextualizarmos os autores da narrativa do Êxodo prosseguiremos a uma breve descrição do mundo cultural dos escribas hebreus. O primeiro registo documentado que temos sobre como é que a Bíblia Hebraica foi usada, insere-se na sua utilização nos contextos educacionais. As primeiras sinagogas eram utilizadas como instituições de ensino e a Bíblia era usada como ferramenta sagrada de instrução e enculturação dos jovens judeus107. 0s estudantes aprendiam a recitar e a entender os textos bíblicos, aprendendo hebreu e memorizando a Torá, os Salmos e porções dos Profetas. Estas práticas de leitura, aprendizagem e memorização das escrituras faz-se presente ainda hoje no seio das comunidades judaicas. Se definirmos uma lista das pessoas que escreviam no Antigo Israel, todos os escritos e leitores na Bíblia Hebraica eram oficiais de algum tipo: escribas, reis, sacerdotes e outros burocratas. Especialmente se atentarmos para as monarquias de David e Salomão, estes especialistas literatos foram importantes no comércio internacional, na projeção de construções, censos e outros projetos de grande escala. A escrita era a ferramenta organizacional fundamental para a administração real, por isso as narrativas credíveis acerca da monarquia israelita mencionam escribas profissionais. Na lista de oficiais do rei David encontramos o cargo de soper hammelek (“escriba” ou “escriba do rei”) entre os membros da sua corte108. Os escribas do rei David são nomeados como Saraías (2 Samuel 8:17) Siva (2 Samuel 20:25), Elioref e Aías (1 Reis 4:3) e Susa (1 Crónicas 18:16). A principal dificuldade em reconstruirmos uma análise para o escriba israelita como aquela que conseguimos realizar para o escriba egípcio, é apenas uma. Temos poucos artefactos escritos da Palestina Pré-Helenista, o conhecimento que temos dos escribas das

107

Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp.111 108 Carr, D. M. (2005). Writing on the Tablet of the Heart: Origins of Scripture and Literature. New York: Oxford University Press, Pp.116

outras civilizações deve-se aos registos que eles nos deixaram. O clima da Palestina teve um efeito corrosivo nos materiais utilizados pelos escribas hebreus, apenas algumas inscrições foram preservadas. Sabemos que o principal legado dos escribas hebreus é a Bíblia Hebraica, no entanto os manuscritos mais antigos que temos ao nosso dispor são da metade do segundo século a.e.c. (Qumran)109. A Bíblia como a conhecemos é literatura canónica, os textos passaram por um grande processo de seleção e edição. As evidências históricas de escribas hebreus são indiretas e adaptadas a outras necessidades para além das do historiador110. Apesar das várias dificuldades no uso da Bíblia Hebraica como um meio para investigar os escribas hebreus, dificilmente existem opções melhores disponíveis. Para além da evidência comparativa, e as descobertas epigráficas que iluminam certos aspetos da prática dos escribas, a maior fonte de informação continua a ser a Bíblia Hebraica. Como metodologia para este procedimento será importante procurar no texto bíblico os dados que nos forneçam informação sobre a identidade dos escribas hebreus. O seu lugar na sociedade e as instituições a que pertenciam, eles estavam afiliados com o templo. Para compreendermos o seu quadro mental devemos identificar os dados relativos ao sistema de educação escriba em Israel, reconstruindo o seu currículo. Num sistema religioso que era cada vez mais baseado na autoridade de textos escritos, os poucos privilegiados que tinham acesso a esses textos mantinham uma posição de poder e prestigio111. Partimos do pressuposto que qualquer cultura oral necessitou de um grupo profissional capacitado para escrever e preservar todos os registos escritos. É raro claro está encontrarmos uma referência direta aos escribas como escritores de textos na Bíblia. Quando a Bíblia mencionada um escritor, refere-se geralmente a Deus ou a um profeta. Nas duas ocasiões em que a Bíblia menciona os escribas como escritores de textos bíblicos aparece no Livro do Profeta Jeremias e são textos que merecem toda a nossa atenção. Começando então por explorar as evidências bíblicas, um oráculo atribuído ao profeta Jeremias descreve-nos os escribas como sábios que têm prestígio por causa dos textos religiosos que escrevem:

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Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 75 110 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 76 111 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 76

“Como podeis dizer: «Somos sábios, a lei do Senhor está connosco»? Isso é verdade! Mas eis que a falsa pena dos escribas a converteu em mentira. Os sábios serão confundidos, ficarão consternados e cobertos de vergonha, por terem rejeitado a palavra do Senhor. Afinal que sabedoria há neles?” Jeremias 8:8-9 Primeiramente pela referência da “pena” do escriba, claramente a lei aqui referida é um documento escrito. O autor deste versículo considera que esta lei é uma mentira (seqer) e nega a sua inspiração divina. Este oráculo demonstra-nos uma certa polémica entre diferentes versões de uma lei escrita, se esta tinha ou não legitimidade. O mais importante é que os escribas que são responsáveis por esta lei não eram apenas copistas de um texto, eram também compositores do texto. Temos outra referência no relato de Baruque em Jeremias 36:17-18: “E disseram a Baruque: Declara-nos agora como escreveste todas estas palavras. Ele as ditava? E disse-lhes Baruque: Sim, da sua boca ele me ditava todas estas palavras, e eu com tinta as escrevia no livro.”

A ênfase numa transcrição literal legitima a coleção de profecias atribuída a Jeremias, o preconceito teológico deste relato alerta-nos para a possibilidade de o escriba ter produzido mais do que uma mera transcrição112. O termo que estas duas passagens utilizam para escriba é soper (por vezes escrito sôper), com o plural soperîm. Para encontrarmos os escribas por detrás da Bíblia Hebraica devemos naturalmente começar pelo estudo da sua palavra hebraica. De acordo com a obra Hebrew and Aramaic Lexicon by Koehler, Baumgartner, and Stamm, a palavra hebraica soper tem quatro significados: (1) Scribe, secretary; (2) royal oficial, secretary of state; (3) secretary for Jewish affairs; (4) scholar of scripture. Irei agora basear a minha reflexão acerca desta palavra no estudo realizado pelo autor Karel Van Der Toorn113. A palavra soper primeiramente denota o escriba como um artesão da escrita associado a instrumentos como a “pena” (‘et, Salmo 45:2; Jeremias 112

Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 77 113 Comentário das quatro definições acima citadas com observações e estudos por parte do autor na sua obra Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press

8:8), o “tinteiro de escrivão” (qeset, Ezequiel 9:2-3). Ele normalmente escreve com tinta114 num pergaminho (megillâ, Jeremias 36:2), onde dispõe o seu texto em colunas (delet, delatôt no plural, Jeremias 36:23). O uso mais antigo do termo soper na Bíblia Hebraica está sempre associado à corte real, Seraías era “escrivão” na corte do rei David (2 Samuel 8:17), os seus filhos Eliorete e Aías eram “escribas de Salomão (1 Reis 4:3). Sebna era o “escriba” de Ezequias (2 Reis 18:18), Elisama era o “escriba” do rei Jeoiaquim (Jeremias 36:10) e Jônatas era “escriba” do rei Zedequias (Jeremias 37:15). A partir destas referências entendemos que estes homens não eram escribas comuns, mas oficiais de instâncias superiores. Sebna por exemplo é referido como administrador real (‘aser ‘al-habbayit)115, ao aplicarmos o termo soper a estes homens estamos a descrever um cargo ou função politica e administrativa (Toorn K. V., 2009, p. 78). Na sociedade israelita eles ocupavam uma posição de destaque, superior à de um escriba comum ou até de à de um professor. A sua posição assemelha-se ao “escritor de cartas do Faraó”, que era o administrador do secretariado real, sendo responsável pelas correspondências domésticas e externas do rei (Mettinger, 1971, pp. 45-48). A partir das referências bíblicas constatamos que as atividades dos escribas reais estavam relacionadas com encontros diplomáticos (2 Reis 18:17-37); consulta com conselheiros políticos (2 Reis 19:1-7) e a gestão dos fundos do Templo (2 Reis 12:10-16; 22:3-7). O ato da escrita propriamente dita parece ter sido menos relevante nas suas tarefas116. O terceiro significado para soper, definido como “secretário dos assuntos judaicos”, atesta-se apenas em Esdras117. A versão hebraica do título de Esdras afasta-se do significado aramaico, tornando-se antes “era escriba hábil na lei de Moisés”118 Esdras era um estudioso em vez de funcionário. Um paralelo aramaico para a expressão soper mahîr é spr hkym wmhyr esta expressão ocorre na história de Aquibar, um romance do século 5 a.e.c. Que qualifica Aquibar como um “sábio e escriba perito”, Esdras também era um escriba “sábio” de acordo com Esdras 7:25 “…a sabedoria

“…e eu com tinta as escrevia no livro” Jeremias 36:18b Isaías 22:15 116 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 78 117 Conforme Karel Von Der Toorn comenta (Toorn K. V., 2009, p. 79), o estudo clássico do livro de Esdras realizado por Hans Heinrich Shaeder distingue o título aramaico Sapra’, encontrado em Esdras 7:12,21 e a sua interpretação hebraica em Esdras 7:6,11. Na nomenclatura do governa Persa, um escriba é um membro de alta patente na burocracia persa. No caso de Esdras este seria um escribra com responsabilidade especial pelos assuntos judaicos, sendo autorizado a financiar a reconstrução do Templo de Jerusalém com os fundos do tesouro real (Esdras 7:21-22). 118 Esdras 7:6 (soper mahîr betôrat Moseh) 114 115

do teu Deus, que possuis, constitui magistrados e juízes…” e Esdras 7:14 “…a lei do teu Deus, a qual está na tua mão”. Tanto Esdras como Aquibar eram estudiosos peritos e não apenas meros escribas. A área de especialização “académica” se é que posso usar o termo de Esdras era a torá escrita. A torá é a sua sabedoria, na interpretação hebraica do estatuto de Esdras como “escriba”, Esdras é um académico da torá119. A investigação académica tem permitido o acesso a várias evidências epigráficas importantes no decurso de apurarmos melhor a realidade histórica dos escribas hebreus. Apesar das escrituras hebraicas terem-nos fornecido um quadro geral informativo bastante razoável e na seção seguinte ainda prestarem mais informações quanto ao sistema de ensino. O suplemento do estudo comparativo da cultura escriba de outras civilizações e a análise dos dados epigráficos são elementos necessários. As questões de literacia e os debates em torno de quem no Israel da Idade do Ferro podia ler e escrever deve ter em consideração várias formas de evidência. Várias evidências de escrita e leitura que remetem às fases primitivas de Israel têm vindo a ser descobertas. Muitas destas evidências apontam para uma diversidade de textos no período monárquico israelita, motivos não administrativos para a literacia, escolas de escribas e níveis de literacia120. Uma das evidências mais significativas em termos de descoberta epigráfica foi o abecedário de Tel Zayt. É um abecedário do 10 século a.e.c. a este texto podemos ainda acrescentar o calendário de Gezer e outras quatro inscrições hebraicas do 10 século. Os textos hebraicos de Tel ‘ Amal, Tel Batash, Beth Shemesh e Rehob foram publicados entre 1991 e 2003. Apesar destas descobertas de textos hebraicos mais antigos, continuam a ser poucos em relação às centras de inscrições encontradas no reino de Judá e de Israel, dos séculos finais (oitavo, sétimo e sexto)121. Um estudo realizado por Alan R. Millard122 procurou identificar o fenómeno do número de textos preservados no mundo cuneiforme da antiga Síria e Mesopotâmia. Nas suas conclusões ele identificou certas flutuações no número de tábuas preservadas durante a história das maiores cidades e civilizações do mundo antigo. Como a Terceira Dinastia de ur, o período Larsa, a Primeira Dinastia da Babilónia, Mari, Ugarit, o Período Médio Assírio e a era Neo-Babilónica. Em todos estes casos, é possível chegar-se a um consenso geral de que quando um lugar é ocupado

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Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 79 120 Hess, 2009, Pp. 1 121 Hess, 2009, Pp. 2 122 Alan R. Millard, “Only Fragments from the Past: The Role of Accident in Our Knowledge if the Ancient Near East,” in Writing and Ancient Near Easter Society

continuamente por longos períodos de tempo, os textos que são descobertos irão pertencer ao último século da sua ocupação. Podendo não haver textos do período inicial antes da ocupação, portanto a escassez de documentos dos períodos mais antigos da monarquia em Israel não é algo incomum123. Os vestígios que chegaram aos tempos modernos estão preservados em tábuas cuneiformes, o fenómeno da raridade de documentos explicado pelas ocupações sucessivas não é um fenómeno exclusivo do Antigo Israel mas encontrado noutros espaços físicos e temporais em períodos anteriores e contemporâneos ao antigo Israel. Várias inscrições monumentais do período da Idade do Ferro foram achados em várias nações vizinhas de Israel e Judá: tais como a estela Mesha Moabita, a estela Aramaica de Tel Dan, e o texto neo-filisteu de Tel Miqne. Em Jerusalém a inscrição do túnel de Siloé é uma grande inscrição monumental124. As questões epigráficas estão diretamente relacionados com o sistema educacional dos escribas, isto porque a proficiência em escrever alfabetos não é alcançada facilmente. Será necessário fazer uma recolha razoável de algumas fontes epigráficas que provam historicamente uma elite especializada de escribas em Israel e consequentemente um sistema de ensino para os formar. A questão da existência de “escolas” no Antigo Israel levanta várias dificuldades iniciais do ponto de vista histórico. É portanto fulcral adotar uma metodologia multidisciplinar para esta questão especifica, que envolva algumas áreas especificas e presentes nas antigas evidências hebraicas: (1) paleografia; (2) ortografia; (3) numerais hieráticos. Baseado nestes elementos é possível argumentar que uma educação escriba formal e padronizada era uma componente da antiga sociedade israelita durante a Idade do Ferro II. Tem sido dada atenção à forma de como o antigo sistema alfabético de escrita era aprendido, o registo epigráfico do hebreu antigo reflete uma sofisticação profunda. Assim como consistência na produção de materiais escritos sendo os dados do antigo hebreu consistentes com a presença de um mecanismo para a educação formal e padronizada das elites de escribas no antigo Israel125. A paleografia é baseada nas evidências existentes mais antigas e mais puras, como a morfologia das letras de uma sequência de escrita, o tamanho relativo das letras e o ambiente das letras (a proximidade horizontal e vertical da posição das letras). A relação das letras com a linha de escrita, determinações relativas a semelhanças e diferenças entras as várias

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Hess, 2009, p. 2 Hess, 2009, p. 4 125 Rollston, C. A. (2006). Scribal Education in Ancient Israel: The Old Hebrew Epigraphic Evidence . BASOR, Pp. 48 124

componentes das séries de escrita, como as lapidares e as cursivas. Assim como as questões referentes aos meios e instrumentos de escrita (tinta na cerâmica, esculpida em pedra). E o desenvolvimento diacrónico e as variações sincrónicas dentro de uma sequência escrita incluindo coisas como as inovações da escrita e as suas preservações126. A antiga escrita hebraica apresenta uma uniformidade básica entre a escrita cursiva semiformal usada em tinta na cerâmica e a escrita semiformal cravada em superfícies de pedra. Os antigos selos hebraicos têm uma escrita cursiva formal, sendo esta mais conservadora em termos tipológicos. Quando os especialistas fazem uma análise paleográfica devem segundo Christopher A. Rollston, ter em consideração a presença do cursivo formal e do cursivo semiformal. As conclusões do seu estudo demonstram uma

certa continuidade entre a escrita cursiva semiformal (por exemplo os vários conjuntos de inscrições por incisão) e a escrita cursiva formal. Sendo claro que a escrita cursiva formal de selos (também por incisão) exibe certas diferenças em relação à escrita semiformal127. Figura_ Rollston, 2006, p.58

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Rollston, C. A. (2006). Scribal Education in Ancient Israel: The Old Hebrew Epigraphic Evidence . BASOR, Pp. 50 127 Rollston, C. A. (2006). Scribal Education in Ancient Israel: The Old Hebrew Epigraphic Evidence . BASOR, Pp. 53

As antigas escritas hebraicas refletem claros desenvolvimentos durante o oitavo até ao sexto século, e estes desenvolvimentos podem ser discernidos e descritos de maneira empírica. Além disso, a antiga escrita hebraica de um horizonte cronológico específico também reflete a consistência sincrónica (com variação modesta dentro de determinados parâmetros). O antigo registo epigráfico hebraico reflete a consistência sincrónica e um certo desenvolvimento diacrónico, aspetos significativos, porque exigem um mecanismo formal e padronizado de educação escriba128. Outro aspeto importante de mencionar é a ortografia, os escribas hebreus eram treinados no conhecimento de certas práticas convencionais referentes à relação espacial das letras. Isto demonstra que os escribas hebreus eram meticulosos com a sua morfologia e a posição das letras que escreviam. Para além disso eram meticulosos em manter a relação espacial convencional entre as letras, isto resulta de um treino curricular especializado na produção de textos escritos129. Esta análise paleográfica vai de encontro a alguns argumentos que consideram não ter sido necessário qualquer educação formal em Israel, uma vez que a sua escrita era simples e facilmente transmitida em pouco tempo. O que de facto se afere é que a evidência epigráfica da antiga escrita hebraica demonstra uma produção consistente e sofisticada de morfologia e posição das letras, padronizada em certos horizontes específicos. Reunindo assim alguma argumentação face à possível existência de uma realidade educativa e padronizada das formas da antiga escrita hebraica é necessário tentarmos reconstruir esse sistema de ensino. A definição e a delimitação de “escolas israelitas” tem sido uma componente problemática na discussão da educação no antigo espaço israelita. Pelas evidências paleográficas existentes é difícil concluir que existiam um sistema educacional público acessível às massas populacionais. Existia antes um mecanismo facilitado e orquestrado de forma formal e padronizada para a educação escriba no antigo Israel 130. A compreensão das mentalidades, tradições e valores dos escribas da Bíblia Hebraica jaz na maneira como estes foram treinados. A educação escriba não era apenas um meio de aprendizagens técnica mas também tinha uma componente de formas de pensamento e ética profissional. A educação dos escribas em Israel não passava necessariamente pela

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Rollston, C. A. (2006). Scribal Education in Ancient Israel: The Old Hebrew Epigraphic Evidence . BASOR, Pp. 58 129 Rollston, C. A. (2006). Scribal Education in Ancient Israel: The Old Hebrew Epigraphic Evidence . BASOR, Pp. 59 130 Rollston, C. A. (2006). Scribal Education in Ancient Israel: The Old Hebrew Epigraphic Evidence . BASOR, Pp. 50

dependência de um edifício que possa ser identificado como uma escola, mas numa relação professor-estudante. Nesta relação o mestre transmitia ao discípulo as habilidades escribas baseadas num currículo. Este programa de estudo pode ser distinguido da simples aquisição de literacia para tarefas simples como contabilidade e tarefas administrativas. As evidências epigráficas sugerem que existia um treino para o escriba em toda a Palestina, mas a formação de escribas “especialistas e sábios” exigia um programa de estudos providenciado apenas pela escola do templo131. O treino oficial escriba pode ter sido na maioria dos casos uma experiência entre professor e aluno, especialmente porque a profissão escriba tendencialmente ocorria em família e o pai seria naturalmente o professor do seu filho. De qualquer forma alguns textos mostram alunos a referirem-se aos seus professores no plural (Salmos 119:99; Provérbios 5:12-14, melammedîm, môrîm). Os estudantes sentavam-se aos pés dos seus mestres, como os discípulos de Eliseu sentavam-se diante dele (2 Reis 4:38; 6:1) os anciãos no exilio sentavam-se diante do profeta Ezequiel (Ezequiel 8:1) e Paulo também recebeu instrução aos pés de Gamaliel (Atos 22:3). Apesar de em nenhum destes três casos acima referidos mencionar a instrução escriba, os exemplos ilustram a configuração de uma situação de aprendizagem e ensino132. Um profeta anónimo do da metade do século 6 a.e.c. retrata uma situação típica de uma sala de aula para explicar a fonte dos seus oráculos: “O Senhor Deus me deu a língua dos instruídos para que eu saiba sustentar com uma palavra o que está cansado; ele desperta-me todas as manhãs; desperta-me o ouvido para que eu ouça como discípulo.” Isaías 50:4

Neste caso o profeta compara a inspiração da palavra falada por Deus com a instrução diária do professor. O professor fala o texto primeiro, e os seus “alunos” (limmûdîm) repetem o texto a seguir para o poderem escrever. A “escola” pode ter sido um fenómeno desconhecido antes do período helenista (Bem Sirá 51:23, é a primeira menção para “escola”, bêt midras), mas os escribas recebiam treino formal ao longo dos séculos. O nosso acesso histórico a um currículo israelita é bastante reduzido. As descobertas

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Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 97 132 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 97

textuais feitas neste âmbito que foram interpretadas como exercícios escolares para os escribas israelitas, são também suscetíveis a outras interpretações. Deparamo-nos aqui com um trabalho de reconstrução do currículo israelita envolvido numa certa atividade especulativa133. Para podermos estabelecer as hipóteses mais viáveis dos clássicos presentes no currículo escriba hebreu devemos observar a biblioteca de Qumran. Os livros mais copiados nesta biblioteca são o livro de Deuteronómio, os Salmos e o profeta Isaías, esta estatística foi comentada por Eugene Ulrich que referiu ser interessante serem estes os três livros mais frequentemente citados no Novo Testamento134. Outras possibilidades que fundamentam o papel central de Deuteronómio, Isaías e Salmos no currículo escriba encontram-se na assinatura levítica na redação final destes livros. O papel dos levitas nos capítulos finais de Deuteronómio é particularmente proeminente, os levitas são aqueles que mantêm a Torá como guardiões e intérpretes (Deuteronómio 31:9-13, 24-26). O saltério na sua forma canónica é também uma compilação de cariz levita135, encontramos a menção à “Casa de Levi” num salmo exterior às cinco coleções (Salmo 135:20) como algo significativo, assim como a ênfase no estudo da Torá na introdução do saltério (Salmo 1:2). A redação levita é menos óbvia no Livro de Isaías, no capítulo final encontramos uma referência aos Levitas, em concreto uma promessa que Deus iria reuni-los em Jerusalém, chamando-os das várias nações (Isaías 66:32). Esta profecia demonstra a redação escatológica levita no Livro de Isaías136. A educação escriba no Período Persa estava nas mãos Levitas, o papel levítico na formação de Deuteronómio, Isaías e Salmos é uma evidência que corrobora o uso destes livros no treinamento dos escribas. A seleção destes textos presumivelmente baseou-se na sua antiguidade e autoridade, em parte na sua utilidade como ferramentas para os escribas e os professores. Os escribas ensinavam a Torá ao povo, o Livro de Deuteronómio providenciava-lhes o texto de uso. Os escribas assistiam os fiéis nos seus deveres devocionais, incluindo a recitação de orações e a composição por escrito de cantos de ações de graça, o Livro de Salmos era o manual para estes liturgistas. O Livro de Isaías ensinava os escribas formas de construir o passado, o

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Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 98 134 Ulrich, E. (1999). The Dead Sea Scrolls and the Origins of the Bible. Michigan: Leiden: Brill, Pp. 19 135 Smith, M. S. (1991). The Levitical Compilation of the Psalter. ZAW, 258-263. 136 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 102

presente e o futuro, dando-lhes um meio interpretativo de lidarem com a história e as suas vicissitudes137. O escriba no seu treino estudava os clássicos através da “imersão” no texto, as citações, alusões e afinidades estilísticas com os clássicos na “literatura secundária”, como os escritos não canónicos de Qumran, os pseudepígrafos e o Novo Testamento, trazem um conhecimento profundo da tradição escrita. Os estudantes cantavam os textos, copiavam-nos por ditados e comprometiam-se a memorizá-los, era um processo de enculturação através da memorização. O salmo 119 era material de exercício para estudantes do ensino fundamental, transmite a imagem de um escriba a murmurar o texto da Torá. A instrução nos clássicos não era apenas neste contexto de educação escriba uma questão de memorização. Os professores explicavam o significado dos textos aos seus alunos, se os escribas conseguiam elucidar o sentido das escrituras (sekel, Neemias 8:8; hebîn, Daniel 11:33), eles recebiam treino exegético138. Encontramos rastos desta tradição nalguns textos bíblicos por exemplo em Neemias 8:13-18 temos uma regra haláquica sobre os vários tipos de ramos que podem ser utilizados para construírem cabanas na festa dos tabernáculos. Uma profecia dada pelo profeta Ageu (2:11-13) contém um comentário a uma pergunta sobre as regras de pureza e contágio. Em suma a escrita no Antigo Israel não estava restringida apenas aos escribas oficiais mas estava completamente entrelaçada com as estruturas sociais nos mundos narrativos e poéticos da Bíblia Hebraica. Será importante especificarmos a nossa investigação nos “autores” da narrativa do Êxodo, identificados como escribas sacerdotais.

6.4 Os autores do Êxodo: os escribas sacerdotais A história relatada na bíblia hebraica teve no seu sentido uma direção mais teológica e política do que propriamente histórica. A imagem mais antiga que temos de Israel no seu período pré-exilico e mais remoto139 foi profundamente influenciada, pela releitura e redação das tradições feita no seu período pós-exilico140. A Bíblia Hebraica como chegou

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Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 103 138 Toorn, K. V. (2009). Scribal Culture and the Making of the Hebrew Bible. Massachusetts: Harvard University Press, Pp. 103 139 A Era dos patriarcas e dos juízes. 140 Soggin, J. A. (1997). Nueva Historial de Israel. Bilbao: Editoral Desclée de Brouwer, S.A, Pp. 50

até nós, é em grande medida um produto próprio do pensamento e da obra do período pós-exilico de Israel. Contudo não se pode tratar este corpo literário de forma simples, afirmando apenas a existência de uma ideologia na criação desta obra literária. Apesar das diversas opiniões divergentes no mundo académico acerca da composição do Pentateuco, podemos assinalar alguns pontos de consenso em que os académicos concordam: o Pentateuco é um texto composto; é um produto do primeiro milénio. A composição do Pentateuco não pode ser explicada sem partirmos do pressuposto que existiram várias “fontes” literárias, documentos independentes utilizados na composição do texto. E entre as diversas fontes encontra-se uma camada textual menos controversa de identificar, a fonte P141. Na fonte P temos evidências que o êxodo é um segundo ato na história da fundação de Israel, sendo que a tradição do êxodo acerca da fundação de Israel é independe das tradições da origem de Israel encontradas em Génesis. No Pentateuco temos assim duas tradições literárias diferentes acerca da fundação de Israel. Para determinarmos a relação entre o mundo da narrativa do Êxodo e o mundo dos seus narradores temos que identificar os elementos que aparecem na história que não podem ser explicados de forma completamente satisfatória dentro da narrativa. Antes parecem ressoar com o contexto histórico e cultural do autor. Ao abordarmos a narrativa do Êxodo desta perspetiva, devemos ter em conta esta diferença: a narrativa da história do Êxodo desenrola-se na segunda metade do segundo milénio. Mais precisamente no ano de 2666 de acordo com a cronologia do texto bíblico, que são 480 anos antes da dedicação do templo de Salomão (1 Reis 6:1). Na história do êxodo encontramos elementos que indicam uma localização histórica específica dos eventos, o “faraó” mantem-se anónimo e os 430 anos de opressão israelita no Egito parecem servir como contrapartida para os 430 anos da monarquia em Israel e Judá. O mundo dos narradores do Êxodo não é idêntico ao mundo da narrativa. Será seguro afirmar que não podemos relacionar o mundo da narrativa com o mundo dos narradores em termos simplesmente alegóricos. Por exemplo associar o motivo da opressão e do trabalho forçado no Egito como uma projeção das práticas Neo assírias durante o cativeiro. Ou assegurarmos que o êxodo do Egito é uma camuflagem do êxodo da Babilónia. Contudo é possível aferir que cada texto literário desenvolve o seu próprio

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A fonte sacerdotal P do inglês priestly.

universo fictício que inclui vários elementos indispensáveis e que um mito fundador como a história do êxodo trabalhou e reconfigurou um conjunto complexo de memórias e tradições. Sendo assim um texto aglutinador de várias memórias e tradições remotas reconstruído ao longo do tempo composto por memórias históricas da sua própria narrativa e influências contemporâneas do mundo dos seus narradores. A versão sacerdotal da história do Êxodo inclui elementos básicos como a opressão dos israelitas no Egito, a comissão de Moisés e a sua luta com os feiticeiros do Egito. A instituição da páscoa, a partida israelita do Egito e a morte do faraó e do seu exército no mar. O documento sacerdotal apresenta os inícios de Israel não em termos históricos mas em termos de um mito fundador. Iremos agora apontar alguns elementos textuais na narrativa de P142 que poderão dar acesso ao mundo específico histórico dos seus narradores. O primeiro é a posição anti egípcia na narrativa e a sua ênfase na violência divina contra os egípcios, aparece de forma mais significativa em êxodo 14:28a, uma das declarações finais da descrição da travessia do mar. “As águas voltaram e cobriram os carros e cavaleiros de todo o exército de Faraó, e os haviam seguido no mar; e não escapou um só deles.”

Os egípcios foram enterrados no mar após os israelitas terem atravessado o mar, a descrição específica disto revela o seu significado para P: a redação de êxodo 14 mostra claramente que a salvação de Israel e a destruição do Egito em P não são baseados num ato arbitrário de Deus. Ambos os elementos são atividades criadoras como fica claro em êxodo 14:22: “os israelitas entraram pelo meio do mar em seco; e as águas formaram como um muro à sua direita e à sua esquerda.” Nesta travessia os Israelitas foram pelo meio do mar em seco em hebreu: ‫שה‬ ָׁ֑ ָּ ‫ַּביַּ ָּב‬

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Schmid, K. (2016) Distinguishing the World of the Exodus Narrative from the World of its Narrators: The Question of the Priestly Exodus Account in Its Historical Setting in T.E.Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Transdisciplinary Perspective, Pp. 335

O termo aparece apenas mais uma vez no documento sacerdotal em Génesis 1:9 no relato da criação: “Deus disse Que as águas que estão sob o céu se reúnam num só lugar e que apareça o continente.” No milagre da travessia do mar acontece algo semelhante ao terceiro dia da criação: o chão seco pode ser visto. O documento sacerdotal pretende aparentemente moldar a apresentação deste milagre no mesmo molde que a atividade criadora de Deus durante os primeiros dias da criação. A redação de êxodo 14:28a também mostra uma filiação semelhante com a atividade criadora de Deus no início da história do mundo: “As águas voltaram e cobriram os carros e cavaleiros de todo o exército de Faraó, e os haviam seguido no mar; e não escapou um só deles.” Dentro da narrativa sacerdotal encontramos semelhanças literárias com o episódio do dilúvio em que a terra foi coberta pelas suas águas em Génesis 7:19-20: “As águas subiram cada vez mais sobre a terra e as mais altas montanhas que estão sob todo o céu foram cobertas. As águas subiram quinze côvados mais alto, cobrindo as montanhas” Detetamos aqui um argumento teológico subjacente a esta temática, a destruição do exército egípcio no mar é equivalente à erradicação das criaturas iniquas durante o dilúvio. Aniquilar o exército egípcio é assim outro elemento do estabelecimento da ordem mundial criada por Deus. Compilando estes diferentes elementos da narrativa é agora possível desenvolver uma reflexão sobre o contexto cultural dos escribas da fonte P. Ao analisarmos a narrativa do êxodo deparamo-nos com uma questão importante, porque é que P visiona paz política, cultural e religiosa para todo o mundo antigo conhecido exceto para o Egito? Vários estudos recentes143 demonstraram que a história intelectual do Antigo Israel e Judá foi influenciada de forma bastante notória pelas ideologias imperiais dos Assírios, Babilónios, Persas e por vezes até os Gregos. A fonte P parece por exemplo responder as conceções básicas da cosmovisão persa e a sua teologia politica, a principal de todas sendo uma organização bem ordenada e pacífica do mundo em nações. Cada nação habitava na sua terra com a sua própria linguagem e cultura, isto reflete-se na Tábua das nações em Génesis 10 outra produção de P. 143

Citados em Schmid, K. (2016) Distinguishing the World of the Exodus Narrative from the World of its Narrators: The Question of the Priestly Exodus Account in Its Historical Setting in T.E.Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Transdisciplinary Perspective, Pp.337

A ideologia política da tábua das nações é semelhante á ideologia do Império Persa que estava estruturado em diferentes nações, encontramos o mesmo princípio organizativo na inscrição de Behistun. As inscrições imperiais declaravam que cada nação pertencia a sua região específica e tinha a sua identidade cultural específica. Esta estrutura resultava da vontade da divindade criadora. O retrato do Egito em P como a nação que precisa de ser domada num mundo bem organizado e disciplinado, sugere que P anteceda 525 BCE, a data em que o Egito foi conquistado pela Pérsia. P parece assim refletir a ordem mundial pacífica do Império Persa que inclui todo o mundo antigo exceto o Egito. Não é Moisés mas sim Deus que lidera Israel para fora do Egito, o objetivo do êxodo não é a conquista da terra mas a morada de Deus no meio do seu povo, êxodo 29:46: “E eles saberão que eu sou Iahweh o seu Deus que os fez sair do país do Egito para habitar no meio deles, eu, Iahweh seu Deus”. P retrata Moisés como um agente de Deus cuja função principal é estabelecer um santuário. Esta possivelmente foi a forma como os autores sacerdotais perceberam os reis persas do seu tempo. Eles também eram comissionados por Deus e a sua tarefa era reconstruirem o templo. Outras informações históricas sobre a fonte P são debatidas pelos especialistas, parte-se do pressuposto que esta fonte existiu durante os exílios do antigo Israel. A fonte P foi composta não muito tempo depois da destruição de Jerusalém e do primeiro templo em 587 a.e.c. baseando-se em tradições antigas, os sacerdotes escribas procuraram fornecer uma resposta teológica. À tragédia do fim do reino e o exílio do povo para a Babilónia, assim esta antologia sacerdotal enfatiza o tabernáculo. Um santuário móvel utilizado no deserto (Êxodo 25-31; 35-40), relembrando o povo que Deus já estivera uma vez presente em Israel na adoração fora da terra prometida e sem o templo de Jerusalém. Ao darem relevo à circuncisão e ao sabbath, duas práticas que podiam ser praticas independentemente da localização geográfica em que se estivesse. P apontou um caminho para a emergência da identidade judaica afastada de um estado-nação. Podemos afirmar em linhas gerais que o trabalho literário da tradição sacerdotal foi fundacional para o desenvolvimento do judaísmo da diáspora144. A tradição sacerdotal tem um vocabulário 144

Bailey, L. R. (20 de Abril de 2016). The Oxford Study Bible. Obtido de Oxford Biblical Studies Online: http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/book/obso-9780195290004/obso9780195290004div1-91

específico, frases típicas e particularidades estilísticas, o interesse religioso pelo culto e a ênfase colocada sobre "Aarão e os seus filhos”. Como iremos notar esta fonte divide a história em eras, etapas significativas para a compreensão da identidade israelita. Como foi referido esta tradição formou-se no tempo do exílio e no exílio da Babilónia, tendo sido baseada em tradições antigas e sagradas, transmitidas nos círculos sacerdotais. A data desta fonte no século 5 a.e.c. torna esta a mais recente da torá, tendo uma grande importância na composição da Torá, fixada no exílio ou logo depois do exílio, foi a base literária onde se inseriu o resto do material145. Analisando alguns aspetos literários desta fonte começaremos pelo documento base sacerdotal que é uma narração histórica contínua. Começa na narração da criação (Génesis 1:1-2:4a), tendo como ponto central a criação do homem segundo o plano de Deus que culmina com o sábado divino, depois de Deus afirmar que tudo era muito bom. A genealogia em Génesis 5 descreve-nos o dilúvio universal e com isso a aliança de Deus com a humanidade. Uma nova genealogia (Génesis 11:10) introduz a história dos patriarcas, que só em Génesis 17 e 23 se prolonga. Em Génesis 17 a aliança de Deus com Abrão começa uma nova época que se distingue da criação e do dilúvio, porque agora Deus revela-se como El-Shadai (Génesis 17:1). O tema central de P é a história de Moisés que como a dos patriarcas carateriza-se pelo nome 'ElShaddai, a de Moisés distingue-se pela revelação do nome Javé (Êxodo 6:2) Dos prodígios realizados no Egito e a libertação do povo, Moisés leva Israel ao Sinai onde Javé manifesta a sua vontade, e a sua glória desce numa nuvem e enche o tabernáculo santo. A fonte P omite uma narrativa de conquista da terra prometida concluindo de uma forma bastante simbólica, Moisés deve contemplar a terra prometida sabendo que não poderá entrar nesse lugar, ele deve olhar não só com o olhar ansioso mas também com uma certa fé. Acreditando que a promessa ainda subsiste e que já desponta uma nova geração, na qual Deus realizará a sua promessa. Estes serão os israelitas que obedecerão e porão em prática o que Javé ordenou a Moisés (Dt 34:9)146. Para compreendermos a conclusão da fonte P relativamente ao facto de Moisés não poder entrar na terra prometida, é necessário considerar que P formou-se no exílio. A situação do exilio claramente influenciou a conceção de P.

145

Shreiner, J. (2004). Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Teológica, Pp. 297 146 Shreiner, J. (2004). Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Teológica, Pp. 299

A ênfase colocada no sabbath reside no facto de que este não é apenas um mandamento do Sinai, mas é algo que se fundamenta na criação. É o gesto do repouso divino, a bênção e a santificação deste dia receberam em P um destaque especial. O sábado é assim um sinal do começo do mundo, na perspetiva cosmológica de P. A origem de Israel em P é assinalada pela Aliança com Abraão, que se simboliza no ato da circuncisão. Apesar dos egípcios praticarem o mesmo rito147 este rito era importante para os judeus do exilio porque os distinguia do ambiente pagão que os cercava. Além disso são atos independentes do templo e, por isso, possíveis no exilio, somente nestas circunstâncias os escribas conseguiram amadurecer teologicamente e definir o seu caráter de sinal148. Fazendo agora uma releitura do ponto de vista literário, o escriba sacerdotal (P) iniciou provavelmente a sua produção textual no período de reconstrução em Judá no final do século 5 a.e.c. Expandindo e modificando a antiga história de J, adicionou como prólogo, uma cosmologia que incluiu as origens humanas, animais, vegetais e de todo o cosmos. Esta criação do cosmos é realizada por meio de palavras proferidas pela divindade durante um período de seis dias149. Quando esta ordem é estabelecida e confirmada como “boa”, o sétimo dia é consagrado como o dia santo de repouso, que imita o descanso do criador. Os pormenores importantes deste relato cosmológico é que o escriba de P desmitologiza e racionaliza os típicos relatos da criação. Assim dividir as águas do abismo já não é matar o monstro demoníaco, a palavra que reforça a “terra” para esta gerar o seu fruto é uma reflexão que substitui a grande deusa mãe. O sol e a lua que “governam” o dia e a noite tornam-se em P grandes luminárias em vez de deuses, assim o princípio do céu e da terra segue uma sucessão de eventos racionalizados que se conformam com a teologia monoteísta de P. O prólogo de P relata-nos a história universal começando por nos contar como é que aconteceu a criação do próprio tempo. Quando a criação da luz tornou possível a realidade do primeiro dia, esta criação do tempo começou a ser usada como medida temporal para o resto dos dias da criação. A principal função dos corpos celestes é neste contexto regularem os tempos, as estações, meses e anos. Os dias sagrados como sabbath são reconhecidos como parte desta ordem cósmica e a história como cronologia

147

Coogan, M. D. (2012). A Brief Introduction To The Old Testament Third Edition. New York: Oxford University Press, Pp. 70 148 Shreiner, J. (2004). Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Teológica, Pp. 299 149 Seters, J. V. (2011). The Oxford History of Historical Writing. Pxford: Oxford University Press, Pp. 86

é entendida como um aspeto da ordem cósmica dos eventos. Estas crenças e conceções legitimam e elevam o papel dos sacerdotes como guardiões desta ordem cósmica. Este relato da criação tem assim bastantes diferenças do relato da criação anterior redigido pela fonte J (Génesis 2:4b-3:24) tanto na apresentação como na ordem dos atos individuais da criação. A grande adição que P faz à Torá está relacionada com os assuntos concernentes à adoração no templo, leis de pureza, sacrifícios e regulamentos dos festivais. Isto relaciona-se diretamente com os cultos sacerdotais no período do Segundo Templo. A “tenda do encontro” em J é uma tenda meramente oracular onde Moisés recebia as suas revelações, não são mencionados sacerdotes nem cultos, apenas Josué é associado à tenda150. Contrastando com a “tenda do encontro” de J, o tabernáculo na fonte P é um elaborado santuário portátil com um grande sacerdócio, práticas sacrificiais e liturgia. Que formam no seu todo o centro da vida social de Israel, a compreensão constitucional do povo é revista por P como uma “teocracia”. Em que existe um líder secular e um sumo-sacerdote, no início Moisés é preeminente em relação a Aarão, o sumo-sacerdote. Isto porque ele recebe a revelação de todo o sistema, mas depois de Moisés os seus sucessores, como Josué, devem assumir direções provenientes do sumosacerdote.

7 A Memória do Êxodo

A memória histórica do Êxodo foi transposta para algo mais permanente: uma narrativa de origens étnicas. Entre a memória traumática do Império Egípcio e a sua coalescência para uma história de origens étnicas, as memórias transfiguraram-se. Mais notoriamente, a casa da servidão restringiu-se à terra do Egito e o reinado egípcio na terra de Canaã foi esquecido. Este esquecimento foi estratégico, em grande parte porque permitiu recontar a narrativa de outra forma. Os antepassados são apresentados como o grupo que se deslocou para o Egito por causa da fome, justamente para de lá retornarem como um povo constituído. A restrição geográfica à casa do Egito permite à narrativa criar uma fronteira étnica entre os hebreus e os cananitas 151, a relação entre os filhos de Israel e os cananitas necessitou de um reforço, de uma intensificação do mito do

150

Seters, J. V. (2011). The Oxford History of Historical Writing. Pxford: Oxford University Press, Pp. 88 151 Hendel. R. (2016) The Exodus as Cultural Memory: Egyptian Bondage and the Song of the Sea in T.E. Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Trandisciplinary Perspective Pp.68

Êxodo, que resultou na crença de que o povo de Israel foi criado no Egito e recebeu a sua lei e cultura no deserto. Esta é a deslocação espacial em que o êxodo do Egito se torna o espaço narrativo onde é possível forjar-se um povo novo, que entra em Canaã com caraterísticas externas e étnicas claramente delineadas. Através dos processos estratégicos da memória cultural, Israel projetou as suas origens para o “exterior” de forma a construir uma identidade distintiva no “interior”. Este movimento do exterior para o interior é também a continuação das migrações ancestrais e das promessas divinas nas narrativas patriarcais.

7.1 A Essência da Memória

A narrativa do Êxodo assinala um elo de ligação na fonte P (Êxodo 6:2-8) e na fonte E (Êxodo 3:6-10). Esta relação intertextual cria uma narrativa legitimadora dupla, em que a promessa da terra prometida aos antepassados é concretizada pelo movimento de retorno à terra como uma consequência do Êxodo152. O Êxodo, como memória cultural, constrói a passagem da escravidão para a liberdade, um escape da casa da servidão para uma nova vida na terra prometida. O rito de passagem simbólico tem dimensões narrativas, ideológicas, religiosas e históricas. Na sua essência a “fuga do Egito” torna-se uma viagem que simultaneamente é uma metáfora para a transformação em povo distinto e nova política. Moisés disse ao povo: “Lembrai-vos deste dia, em que saístes do Egito, da casa da escravidão; pois com mão forte Iahweh vos tirou de lá; e, por isso, não comereis pão fermentado. Hoje é o mês de Abib, e estais saindo”. Êxodo 13:3 O contexto doméstico da recitação da história do Êxodo é realçado pela camada editorial: “Naquele dia, assim falarás a teu filho: ‘Eis o que um memorial entre os teus olhos, para que a lei de Iahweh esteja na tua boca; pois Iahweh te tirou do Egito com mão forte. Observarás esta lei no tempo determinado, de ano em ano.” Êxodo 13:8 Nesta passagem as poéticas da memória tornaram ‘este dia’ em ‘naquele dia’ isto é o dia dos ritos da páscoa (Êxodo 13:3)

152

Hendel. R. (2016) The Exodus as Cultural Memory: Egyptian Bondage and the Song of the Sea in T.E. Levy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Trandisciplinary Perspective Pp.69

A memória cultural abre-se a revisões de forma a tornar-se relevante para o presente, sendo assim mobilizada e reimaginada no Antigo Israel. As representações do Êxodo na Bíblia Hebraica são testemunhos não de história mas de memória cultural. A versão presente do passado é construída a partir das versões antecedentes, a memória coletiva envolve uma dialética histórica entre as versões atuais e passadas do passado recordado. Esta é assim a essência do Êxodo, um passado eterno sempre recordado no presente e no futuro.

7.2 Possíveis memórias dos escribas egípcios

A busca por vestígios da memória cultural da narrativa do Êxodo nos documentos dos escribas egípcios levou a identificação de 30 antigos textos egípcios que continham elementos paralelos a narrativa do Êxodo. Estes textos foram identificados por 56 egiptólogos e arqueólogos153. Desde 1844 vários paralelos com a narrativa do Êxodo foram encontramos em dúzias de textos egípcios sendo publicados na literatura por egiptólogos, arqueólogos e biblistas. Os textos egípcios incluem os seguintes títulos: the Destruction of Manking, Admonitions of Ipuwer, the Tale of Two Brothers, the Sehel 7- Year Famine Stela e a Rosetta Stone. Nestes textos aparecem vários eventos paralelos à narrativa do Êxodo iremos dar particular atenção ao texto da Rosetta Stone. O académico britânico Henry Brown foi o primeiro a encontrar uma alusão à rebelião primitiva da humanidade na Rosetta Stone154 identificando estes eventos com a revolta bíblica dos israelitas no Êxodo. A Rosetta Stone foi gravada por Ptolomeu V Epifânio 196 BC enquanto ele lutava com uma rebelião interna e uma ameaça externa. Ptolomeu evocou à memória a revolta primitiva no seu texto monumental da Rosetta Stone como um evento que não se poderia repetir.

153

Sparks. B. C. (2016) Egyptian Texts relating to the Exodus: Discussions of Exodus Parallels in the Egyptology Literature in T.E.Leavy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Transdisciplinary Perspective Pp. 259 154 Sparks. B. C. (2016) Egyptian Texts relating to the Exodus: Discussions of Exodus Parallels in the Egyptology Literature in T.E.Leavy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Transdisciplinary Perspective Pp.266

No texto da Destruição da Humanidade os egiptólogos identificaram um evento singular designado por “revolta primitiva” ou a “rebelião da humanidade” em Heliópolis este tema foi identificado em mais textos egípcios. O tema central da revolta é o desafio colocado ao deus sol Rá como faraó do Egito representada por povos não egípcios no norte do Egito com a sua fuga e perseguições armadas consequentes. A revolta primitiva desenrola-se através de uma série de eventos semelhantes do êxodo, eventos que estabelecem um paralelismo de uma sequência de eventos no livro do Êxodo na mesma forma geral apresentada no texto bíblico. O andamento geral destes textos compõe-se da seguinte forma: uma praga de sangue, uma praga de pele que quase mata o faraó, uma escuridão fora do normal que aprisiona o exército com o faraó no palácio real. E uma perseguição armada à população estrangeira fugitiva da área de Heliópolis. Apophis nas montanhas do Sinai, a falha do exército em massacrar os fugitivos e a morte implícita dos primogénitos do Egito e do seu exército no oceano celestial.

É na literatura apocalítica egípcia que encontramos os elementos mais significativos associados à formação da tradição do êxodo. O autor David Frankfurter155 identificou vários motivos literários nesta tradição

clássica

egípcia

de

desastre que se manteve fixa e constante desde o Reino Médio do Egito até à era romana. Tornandose uma tipologia idealizada de caos arcaico resultante da perda de um poderoso governante divino como o faraó. Na figura de lado temos uma cena retratada de soldados afogados no livro real do submundo de Amduat de 1500 BC situado na tumba de Amenhotep II KV 35, 1450 BC.

8. A reapropriação do tema do Êxodo em Gálatas 5:18 Ao longo deste trabalho tem-se trabalhado as memórias e as tradições subjacentes à tradição da narrativa do Êxodo, procurando identificar os vários meios pelos quais estas memórias foram trabalhadas e reconfiguradas no cerne da mensagem bíblica. Nas conclusões deste mesmo projeto achou-se pertinente desenvolver uma reflexão sobre a influência que este fio narrativo de tradição repleto de memórias e releituras da história teve sobre o pensamento do apóstolo Paulo. Nomeadamente sobre o seu pensamento teológico concebido e desenvolvido no pano de fundo da história do Êxodo.

155

Sparks. B. C. (2016) Egyptian Texts relating to the Exodus: Discussions of Exodus Parallels in the Egyptology Literature in T.E.Leavy et al. (eds.), Israel’s Exodus in Transdisciplinary Perspective Pp.273

O argumento que apresentamos nesta linha de pensamento conforme a investigação do autor William N. Wilder156 consiste na preposição de que a narrativa do êxodo encontrase por detrás da argumentação de Paulo em Gálatas 4:1-7 e Gálatas 5-6. Na sua narrativa aos gálatas Paulo usou todos os seus recursos retóricos e teológicos que tinha ao seu dispor. A narrativa do Êxodo como iremos ver é a base para o entendimento que Paulo tinha do evangelho. Lê-se um eco em particular da história do Êxodo em gálatas 5:18: “Mas se vos deixais guiar pelo Espírito, não estais debaixo da Lei.” Aqui Paulo numa mudança retórica provocadora suporta a sua oposição do Espírito e da carne (gálatas 5:16-17) contrastando as esferas do Espírito e da lei. Esta linguagem em gálatas 5:18 é moldada por dois eventos centrais associados com o Êxodo: a redenção dos israelitas do Egito e a sua subsequente direção através da nuvem teofânica pelo deserto. O ser “guiado pelo Espírito” é uma alusão à experiência israelita de terem sido guiados pela nuvem, enquanto “estar debaixo da lei” é paradoxalmente equivalente à escravidão dos israelitas no Egito. O jugo judeu “debaixo da lei” descreve uma condição temporária em efeito até ao advento da fé, “antes que chegasse a fé, nós eramos guardados sob a tutela da Lei para a fé que haveria de se revelar” (gálatas 3:23). Aqui Paulo personifica a “fé” apresentando-a como uma figura redentora dentro da narrativa de um novo êxodo. Como tal é um substituto para Cristo até um dado momento, que em Gálatas irá assumir este papel (gálatas 3:19; 4:4). Assim como o jugo dos israelitas sob os egípcios durou até à vinda de Moisés, o jugo dos judeus “sob a lei” durou até à vinda da “fé”. Outra indicação que Paulo pretendia relacionar a experiência judaica “debaixo da lei” ao jugo do Egito é a associação próxima entre emancipação e adoção divina. Logo após a afirmação de que “chegada porém, a fé, não estamos mais sob pedagogo” (gálatas 3:25) Paulo refere a adoção dos gentios através da fé em Jesus Cristo. De faco a adoção dos gentios é usada como argumento para a noção que os judeus não estão mais sob o pedagogo: “vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus” (gálatas 3:26). Aqui como em gálatas 4:5-6, temos a ideia de que os gentios participaram no destino escatológico de Israel através da sua incorporação em Cristo. Assim a sua união completa com o Israel escatológico em que os gentios foram adotados (3:26) é uma evidência que

156

Wilder. W. N. (2001) Echoes of the Exodus Narrative in the Context and Background of Galatians 5:18. New York: Peter Lang Publishing Pp.75

os judeus abandonaram o jugo semelhante ao jugo egípcio da lei de forma a tornarem-se filhos de Deus no segundo êxodo (gálatas 3:25). Ambas as componentes da adoção e libertação estão associadas ao grande esforço de Paulo em demonstrar como é que os cristãos são a “semente de Abraão” e seus herdeiros da promessa “em Cristo”. O segundo êxodo, do mesmo modo que o primeiro, é o meio pelo qual Deus cumpre a sua promessa a Abraão trazendo o seu povo do cativeiro (Génesis 15:13-14) para ser o seu Deus (Génesis 17:7-8). Assim a sua argumentação evoca as promessas patriarcais no contexto do êxodo no qual estas promessas são cumpridas. Em gálatas 3 o argumento move-se da promessa abraâmica para o seu cumprimento no êxodo em Cristo. Gálatas 4 explora em detalhe o significado da promessa cumprido no êxodo em Cristo e o significado da filiação do êxodo.

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