Entre impressos e mantras: o movimento Hare Krishna nos jornais do Recife (1974-1984)

May 23, 2017 | Autor: Leon Carvalho | Categoria: New Religious Movements, Hare Krishna, ISKCON, História das religiões e religiosidades
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Descrição do Produto

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Organização

Prof. Dr Carlos André Cavalcanti – UFPB Profª Drª Ana Paula Cavalcanti – UFPB Ma Tatiane Ribeiro de Lima

João Pessoa 2015

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COOREDENAÇÃO

Carlos André Cavalcanti

João Pessoa 2015 4

Anais Iv Videlicet Congresso Internacional Imaginário Ciências e História das Religiões Diversidade: A Deusa Mãe da terra Brasílis ISBN: 987-85-237-1088-0

Editora da UFPB João Pessoa 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA Reitora Vice-Reitor MARGARETH DE FÁTIMA FORMIGA MELO DINIZ EDUARDO RAMALHO RABENHORST

EDITORA DA UFPB

Diretora IZABEL FRANÇA DE LIMA

Supervisão de Editoração

ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JÚNIOR

Supervisão de Produção

JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO

COMISSÃO CIENTÍFICA Prof. Dr. Carlos André Cavalcanti ( UFBP) Prof. Dr Thiago Aquino(UFPB) Profa. Dra. Maria Eunice Simões (UFPB) Prof. Dra. Maria Lúcia Abaurre (UFPB) Dr. Marcos Alan (UFPB)

Os artigos e suas revisões são de responsabilidade dos autores. EDITORA DA UFPB Cidade Universitária, Campus I –s/n João Pessoa – PB CEP 58.051-97 editora.ufpb.br [email protected] Fone: (83) 321

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FT 1 (SITEMAS SIMBÓLICOS, ABORDÁGENS FILOSÓFICAS E IMAGINÁRIO)

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BACHELARD: Os espaços imaginários

Gabriel Kafure da Rocha

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Resumo:

O espaço é o lugar onde se abre a fenomenologia da imaginação. Nesse sentido, os fenômenos são uma união entre aquilo que é dado pela aparência das coisas e aquilo que é integrado pela imaginação. Nesse sentido, Bachelard retrata uma ontologia baseada nos espaços, diferente de boa parte dos ontologistas modernos que estavam mais preocupados com o tempo. Bachelard reduz o tempo em instantes para, com isso, abrir espaço para instantes de rupturas, que tragam novidades que gerem devires ou devaneios. Logo, os elementos, o inteior e exterior, a casa e seus objetos são fundamentais para entender o imaginário em Bachelard.

Palavras-chave: Bachelard, espaço, imaginário, ontologia

Considerações iniciais

A compreensão de Bachelard do homem e do mundo é regida pela abstração científica e pelo domínio poético. Essas modalidades contrárias, traduzidas como diurnas e diuturnas, são opostas e complementares, desse ponto de vista, a filosofia bachelardiana pode ser considerada diuturna. Sensível as polaridades, o filósofo entende que a dimensão onírica do cosmos pode ser traduzida como o imaginário que engloba espacialmente a natureza, os campos, o cosmos e toda a exterioridade. Segundo o Prof. Wunenburger,

Bachelard busca acima de tudo, nutrir seus sonhos que destacam fenômenos naturais (uma lareira, um rio que flui), ou se maravilhar com as mágicas paisagens e obras humanas [...]. Ainda assim, o sonho não se limita a uma expansão da percepção por uma fantasia espacial. A poética da presença das coisas também tece todos os tamanhos e feitos da memória, enriquecida por aquilo que teria de apresentar as memórias do passado. O espaço adquire, assim, suas propriedades dos sonhos

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Doutorando no Programa de Doutorado Integrado UFPB-UFRN-UFPE, Prof. do Instituto Federal do Sertão Pernambucano.

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materiais, formas e movimentos do exterior, mas também imagens e 2 memórias arcaicas da infância que povoam a memória.

O universo se revela por meio dos objetos, pelo desvelar de tudo no Todo, essa manifestação é muitas vezes impactante e o ser humano tem que se defender, resistir, se abrigar em sua casa. Ao invés de ser jogado ou lançado no mundo, o homem é um ser abrigado. O seu ser no mundo é então o ser na matéria. Antes então de falar mais diretamente da subjetividade desses espaços imaginários, é interessante perceber quatro elementos espaciais que compõe a materialidade do seu imaginário; o rio, o céu, os refúgios e a casa. Esses aspectos serão tratados em conjunto logo a seguir.

Espaços naturais imaginários

A figura poética do rio é justamente ligada ao elemento água, ela revela as experiências campestres de Bachelard, por ter nascido numa vila no interior da França, por isso, esse espaço material e íntimo mostra a natureza mesma se congratula. O rio é um lugar em que Bachelard se encontra com ele mesmo e medita sobre o destino da vida. O céu, na noite escura, representa a própria empatia simbólica, é parte dos fenômenos aéreos, que dentro de uma psicologia ascensional, tem como característica a verticalidade. A elevação e a profundidade estão presentes nessa verticalidade como uma realidade íntima. O céu azul, as constelações, as nuvens, a névoa e a árvore aérea, são figuras evocadas pelo imaginário bachelardiano como expansão do espaço celeste. Um espaço que tem característica de ser por si, desmaterializado, e por isso mostra uma fusão da imagem com um mínimo de substância. E isso é, por si só, uma das principais características do imaginário, pois o mundo se mostra como representação. É como um sopro poético, uma respiração do próprio ser. Os refúgios, em Bachelard, podem ser traduzidos como os domínios espaciais da terra, sua intimidade é o das profundezas e sua descrição é a da gruta. Um lugar primitivo em que o ser humano tem uma abertura do elemento da terra. É um dos primeiros lugares em que ele habita, é ancestral, primordial e natural e nos convida a uma reconcliliação com a alma da terra. Bachelard sugere que os refúgios são como ventres, um retorno a mãe terra na vontade de proteção primordial. Os refúgios sugerem então o valor da cada, da habitação como manifestação do elemento fogo. Pois é na casa que o elemento fogo se expande como própria manifestação 2

WUNENBUERGER, Jean-Jacques. Gaston Bachelard – poétique des images. Paris: Mimesis, 2012. P. 67.

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material do imaginário. O fogo foi o que permitiu aos homens primitivos sonhar, descansar sem se preocupar com ataques de animais. Por isso Bachelard dedica um livro a A chama de uma vela como justamente o operador de imagens do devaneio. A chama purifica e isola do sonhador. Bachelard chama de fogo vivo, a experiência que ilumina a noite do imaginário. Nessa casa do ser, iluminada pela chama da vela, que o ser humano começa o trabalho de interiorizar a potência do cosmos. Com essa constatação da importância dos elementos para os espaços imaginários, agora resta entender como funciona a estrutura interior e exterior do imaginário em Bachelard.

O imaginário do dentro e do fora

A metafísica completa mencionado por Bachelard no texto inaugural das nossas reflexões não pedem apenas para abranger a consciência e a inconsciente, mas também, e sobretudo, para deixar o dentro e fora dos 3 privilégios de seus respectivos valores. (Lamy, p. 166)

O interior e o exterior são espaços que se comunicam numa dialética do sim e do não. Com o interior e o exterior, o investigador em filosofia poderá pensar o ser e o não-ser como uma metafísica mais profunda da própria subjetividade. Ele quer fixar o ser em sua interioridade, mas se confronta entre o seu ser e o Ser do mundo, e enxerga a grande contradição fenomenológica desses espaços na sua imaginação. Por esse motivo, o Ser do espaço parece inconcebível, pois ele é fruto de uma geometria íntima, de modo que esse Ser, só é, na medida em que habita o espaço, sendo sentido e tocado. Por isso também, Bachelard considera que é preciso pensar com as mãos e critica a ocularidade, pois como seria possível conhecer o que habita o espaço, dentro de seu aspecto noturno e escuro como é o espaço imaginário? Logo, é preciso tatear a imagem do espaço com essa fenomenologia se ocupa da oposição entre interior e exterior em uma relação que pode vir a ser uma exageração, por isso, antes de reduzir fenomenológicamente, é preciso experimentar o entre ser dessa relação. Bachelard considera que a fenomenologia por si só é uma instrumentação da imagem, a fenomenotécnica seria a abertura para uma análise mais científica dos espaços que vão do racional ao real, da criação de fenômenos pela ciência e que podem ser descritos pela linguagem bachelardiana. Do aclaramento, redução e exageração se traduzem uma psicanálise e psicologia do ser. Esses aspectos inquietam, pois sua espacialidade chega a ser sufocante. Por quê? Ora, o exterior é vertiginoso, assim, é preciso uma saída dele, a que Bachelard chama de porta. A porta é a possibilidade de abertura para o cosmos, visto que é nela que está a 3

LAMY, Julien. Le berceau de la maison » : la critique bachelardienne de l’« etre jete dans le monde. IN: Ideação: Revista do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Filosóficas da Universidade Estadual de Feira de Santana - Feira de Santana - v. 1, n. 1 n.25 (2), Jan./Jun. 2012. P. 166.

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possibilidade de entrada e saída do devaneio, desse devir entre o ser e o não ser: "Mas é o mesmo ser, aquele que abra uma porta e aquele que a fecha?"4. E para que direção vai essa porta do ser? Para a solitude ou para a multidão? Essa porta para a interioridade é a ligação também com a exterioridade: "De que plenitude de um interior ramificado está a substância do ser? O exterior a chama? O exterior não é uma antiga intimidade perdida na sombra da memória?"5. Bachelard tenta com essa fenomenologia eliminar a oposição entre interior e exterior, pois nela não há mais medida de evidência, pois, assim, o espaço exterior passa a ser meditado na interioridade. Nesse sentido, o espaço não é mais vivido geométricamente, visto que dá lugar à vivência imaginária. Nesse sentido, a consciência6 do espaço é feita pela memória, mas essa, por ser temporal, se dá "nessa perspectiva, [em que] a realidade dentro e fora do homem é fundamentalmente temporal" 7. A maneira como o indivíduo transforma o exterior em interior é a maneira como ele habita o mundo, pois a relação temporal de Bachelard é feita de sucessão de instantes, então, o espaço é a única continuidade material que serve de análise à alma humana. O espaço é o lugar onde se abre a fenomenologia da imaginação. Nesse sentido, os fenômenos são uma união entre aquilo que é dado pela aparência das coisas e aquilo que é integrado pela imaginação. Nessa fenomenologia, o filósofo está disposto a analisar as pequenas coisas, a microfísica do espaço, da maneira como a natureza e o homem desenvolvem suas cascas ou casas, tais como a concha, o ninho, os cantos da casa (sotão, porão, quartos, portas, janelas, armários e gavetas). É preciso analisar essas imagens no espaço enquanto materialidade, como eles mostram seu preenchimento que é a própria superficialidade da aparência do exterior, a terra e suas construções.

A habitação como espacialidade do imaginário

Ao refletir sobre os aspectos ontológicos e subjetivos do espaço imaginário e sua relação com o ser e o não-ser, o entendimento do imaginário em Bachelard se dá como a morada ou a casa. Para o filósofo, a casa é uma manifestação do próprio cosmos, talvez por sua perspectiva materialista, a casa é um ser privilegiado na constituição da subjetividade. 4

BACHELARD, A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993b.1993, p. 343. Ibid., p. 347. 6 A consciência, para Bachelard, é transubjetividade e “Só a fenomenologia — isto é, a consideração do início da imagem numa consciência individual — pode ajudar-nos a reconstituir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem” Ibid, p. 3. 5

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PAIVA, Rita. Gaston Bachelard: a imaginação na ciência, na poética e na sociologia. São Paulo: Anablume, 2005. p. 121. [grifos meus]

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Nesse caminho, da casa e seu terreno espacial se delineia a inter-relação entre objetividade e subjetividade. Habitar esse espaço é aderir o percurso da intimidade sobre si mesma, como o indivíduo vive, sobrevive e se abriga no não-eu que são os abrigos naturais e as casas. Em A terra e os devaneios do repouso, Bachelard nos fornece uma imagem concreta do espaço de uma intimidade material, da primitividade da casa que vai das cavernas até a relação entre casa natal e onírica. O habitar onírico é mais do que habitar na lembrança ou na memória. A casa natal é a nossa construção pessoal, da infância à maturidade. A casa onírica é a gruta e o labirinto. Nelas está a "isomorfia das imagens do repouso"8. Bachelard evoca filósofos como Thoreau para demonstrar a casa onírica como essa vontade de habitar a natureza, de ter a sua casa na árvore. Lugar para repousar. Essa é a casa. Ela pode ser fenomenologicamente um reflexo de um assento, que vai se tornando complexo, se alargando em espaços até virar uma morada. A casa é a diferença entre a dialética do nômade e a do autóctone. É nessa dialética que o devaneio ganha a sua mobilidade domiciliar, visto que é na intimidade da casa que o indivíduo constrói o reino do seu ser. A casa onírica seria o quarto escondido na casa, mais especificamente, o quarto dos fundos, o mausóleu onde ficam as lembranças esquecidas e sublimadas no inconsciente, que acordam durante a noite e vagam para o sonhador. Por mais que a casa seja a sede da instituição da família, nos sonhos vive-se sobretudo a sós. A casa é a célula primeira. O seu telhado é o lado consciente que recebe a luz do sol e o seu porão ou quarto dos fundos é o insconsciente. Por isso, nessa distinção entre casa onírica e natal, ambas, no fundo, são uma casa só, com suas partes que se complementam. Segundo Bachelard, "Uma casa sem sotão, é uma casa onde se sublima mal, uma casa sem porão é uma morada sem arquétipos"9. Não é à toa, que desde os gregos, a palavra Ethos, tem, entre seus significados, a morada. Pelo seu caráter edificado, a casa precisa de uma escada, com seus graus e degraus para que haja uma topografia ou topoanálise. A topoanálise bachelardiana consiste em estudar os espaços físicos que se alojam no homem, visto que é o estudo da alma como morada humana. Tendo em mente esses lugares físicos da vida íntima, essa casa é o cenário de um espaço de tranquilidade, onde se dá uma topofília. A topofília consiste, num âmbito expansivo, em ocupar os espaços abandonados, tais como aqueles recalcados no inconsciente. Nessa fenomenologia, o indivíduo perde o medo, como uma que criança tinha medo do porão: "porão e sotão podem ser detectores de infelicidades imaginárias, dessas infelicidades que muitas vezes marcam, para o resto da vida, um inconsciente"10. É preciso, então, a chama de uma vela para descer ao porão, para lá buscar o vinho fresco, por exemplo, e conhecer ali a raiz da casa que brota na terra. Quando Bachelard se refere a chama da vela, evocando o elemento do fogo, refere-se também ao próprio devaneio, uma espécie de meditação sobre as formas da sombra e sobre a luz da vela. A própria ideia da lâmpada é como uma florescência do devaneio, visto que o calor e o fogo iluminam a casa com a luz da consciência. Essa vela, que ora se acende ora se apaga, é a própria meditação sobre a vida e a morte. É, por isso, a exaltação de dois mundos em 8

BACHELARD. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1990. p. 78. Ibid., p. 82. 10 Ibid., p. 83. 9

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união por meio de uma chama. A vela ilumina os objetos poéticos da casa, a luz que protege os habitantes da casa na noite cria a consciência familiar. A lâmpada à noite antecede a possibilidade da escuridão onírica do sonho e a casa se situa no limiar entre esses dois mundos. "A casa iluminada é como uma estrela no meio da floresta"11, visto que ela é a clareira do viajante perdido. Sua luz das fenestras mostra a janela como um olho aberto: é a moldura das visões de mundo. Uma fenomenologia da janela revela justamente o processo de interiorização do exterior. Se é feita de vidro, demonstra a transparência da visão. Numa topoanálise, a janela demonstra a condição humana de cada indivíduo com a perspectiva ou o horizonte em que se encontra o seu ser. Se o lebenswelt é o mundo que ele enxerga, nada como ter um bom horizonte sob a sua janela, pois nele se revela a possibilidade de habitar a natureza em sua variedade. Bachelard sugere três mundos examinados pela visão de mundo fenomenológica: Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt, respectivamente, mundo ambiental, inter-humano e pessoal. Para cada um desses mundos há uma espécie de poesia. Na primeira, há uma poesia cósmica e elemental: elas geram uma felicidade demiúrgica da criação do mundo pela sua ontologia pessoal; na segunda, o mitwelt é considerado um sóciodrama e; na terceira, o Eigenwelt um psicodrama. Essa dramaticidade, segundo Bachelard, exigiria um livro inteiro para discutir esses conflitos mundanos da daseinanálise. Esses diferentes aspectos existenciais, permitem retomar o curso da existência de cada individuo por meio de suas relações com o mundo. Seria talvez quando como se sai da casa, ou talvez quando se sai do quarto. Pois esse sair, não quer dizer sair da solitude, mas entender que numa mesma casa habitam outros seres, materiais, outros individuos. Desse modo, na casa, janelas e portas constituem a exteriorioridade fenomenológica, porão e sótão, a estruturação desse espaço. Restaria, em vista disso, uma análise mais minunciosa ou miniaturista desse espaço da interioridade. Sobre essa questão, Bachelard indica que a miniatura é o espaço onde os valores se condensam e se enriquecem. O que somos nós além de miniaturas nesse imenso universo? Bachelard se refere inicialmente a miniaturas literárias, como objeto fenomenológico. O poeta vigoroso deve ter uma capacidade de minituarizar às imagens para mostrar o grandioso. Esse paradoxo está no poeta do universo, Anaximandro, que diz que em tudo há uma porção de tudo. Essa relação da qual deriva a ideia de ato e potência, como bem examinada por Dagognet, relata o pensamento bachelardiano como:

A ideia de universo apresenta-se como antítese da ideia de objeto. [...] quanto mais enfraquece a minha atitude de objetividade, maior é o mundo. O universo é o infinito da minha desatenção. [...] Dito de outra forma, o eu penso o mundo põe-me fora do mundo. Pelo contrário, meditem no axioma do filósofo do universo: tudo está em tudo. Escutem-no cantar, como um poeta, o seu Einfühlung entre as formas e as luzes, as exalações e os perfumes. Vejam-no na sua atitude paradoxal: é abrindo os braços imensos 12 que ele abraça o mundo.

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Ibid., p. 89. DAGOGNET, François. Bachelard. Lisboa: Edições 70, 1980., p. 68.

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É nesse universo sentir-com (Einfühlung) que está o espaço que cabe todos os espaços e, por isso, a revolução da abstração bachelardiana propõe a necessidade de formar espaços mais complexos e apropriados para abrigar os objetos filosóficos, oníricos, estéticos e ontológicos.

Considerações Finais

Tempo e espaço, depois de Kant, aparecem como condições de nosso pensar. A obra bachelardiana parece tributária desse apriori histórico. Percorre, alternadamente, dois espaços, aparentemente estranhos um ao 13 outro: o do conceito e o da imagem.

A partir dessa investigação fenomenológica dos espaços, entre conceitos e imagens, foi buscado o entendimento do lugar do repouso, seja na interioridade, seja na habitação, prevê a possibilidade da matéria sustentar a forma do imaginário como um interesse que o universo sensível está em potência dentro da matéria imaginada. É o que Bachelard dirá que “trata-se realmente de um Ultracosmos e de um Ultramicrocosmos.”14, levando as infinitas potências a capacidade de espacializar o preenchimento de tudo. A matéria vibra e o repouso é uma vibração feliz, pois é justamente o que faz permanência no espaço, opondo-se ao durar no tempo. É aí que o tempo se comprime no espaço, intensificando o valor energético do espaço. E assim, o espaço vai ganhando sentido, quando o ser encontra seu abrigo. “É aí que Todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa”.15 Nesse sentido, há quem considere o repouso involutivo, pois em sua metafísica assume um debruçar sobre si mesmo, como um refúgio subterrâneo onde está a própria essência onde repousa o ser. Há aí uma verticalidade na qual não contam mais as ideias, mas sim as imagens. É na profundidade desse movimento que se encontra a harmonia com o cosmos, uma sensação de bem-estar e repouso. “Parece que a dialética da intimidade e do Universo é especificada pelas impressões do ser oculto que vê o mundo na moldura da janela”.16 Para finalizar, é importante relembrar que todos esses espaços, manifestados pela linguagem ainda se multiplicam muito mais pelas imagens do inconsciente, dos mitos, das 13

TERNES, José. Tempo de Lautréamont. Goiânia: Edições Ricochete, 2014. p. 110.

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BACHELARD. A terra e os devaneios do repouso. Martins Fontes, 1990, p.3. Idem. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. P. 200. 16 Idem. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 90. 15

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memórias. Bachelard sugere algumas estruturas de seus devaneios, contudo, as projeções se renovam constantemente sob os signos da linguagem poética, é nesse aspecto que está a chave da estetização e da criação de devires do devaneio. Ainda segundo Wunenburger, Pelo olhar poético o homem adere ao mundo, faz uma matriz de bem-estar e felicidade de estar. Os espaços de dentro e de fora, refletidos no espelho, levam a um júbilo tranquilo que nos traz de volta para nós, trazendo-nos de 17 volta às imagens profundas e imemoriais.

Assim, o imaginário poético não tem privilégio sobre a linguagem, mas é o mundo que enriquece o devaneio, a linguagem permite a dialética entre interior e exterior, demonstrando como espaço e tempo são uma espécie de irmãos que se desconhecem. É o poeta quem pode dar ritmo a essa dualidade contribuindo para o conhecimento do mundo íntimo, como espaço de expressão da experiência subjetiva e solitária, em contraste com o espaço objetivo e demarcado da ciência. Pela poética, há a aproximação da ideia ontológica do espaço, como um a posteriori necessário para a ciência, por uma filosofia digna de todas as descobertas, desde o micro até o macro universo de dimensões imaginárias.

Referências

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WUNENBUERGER, Jean-Jacques. Gaston Bachelard – poétique des images. Paris: Mimesis, 2012. p. 69.

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BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

______. A poética do Espaço. 2. ed. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

DAGOGNET, François. Bachelard. Tradução de Alberto Campos. Lisboa: Edições 70, 1980.

LAMY, Julien. Le berceau de la maison » : la critique bachelardienne de l’« etre jete dans le monde. IN: Ideação: Revista do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Filosóficas da Universidade Estadual de Feira de Santana - Feira de Santana - v. 1, n. 1 n.25 (2), Jan./Jun. 2012

PAIVA, Rita. Gaston Bachelard: a imaginação na ciência, na poética e na sociologia. São Paulo: Anablume, 2005.

TERNES, José (Org.) ; ALMEIDA, F. F. (Org.) ; WERNECK, M. (Org.) ; OLIVEIRA, N. (Org.) ; BORGES, L. A. C. (Org.) ; BULCAO, M. (Org.). Tempo de Lautréamont. Goiânia: Edições Ricochete, 2014.

WUNENBUERGER, Jean-Jacques. Gaston Bachelard – poétique des images. Paris: Mimesis, 2012

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A Diversidade Religiosa e sua Expansão Territorial no Uso e Apropriação do Espaço Urbano no Bairro do Pina-Recife/PE Maria Vanessa Nunes do Carmo Jacquelane Bezerra dos Santos

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RESUMO: O espaço da religião no Brasil vem gradativamente passando por um processo dinâmico, onde distintas formas de expressões religiosas surgem no contexto urbano. Em Recife, é possível perceber esse crescimento de novos espaços religiosos, principalmente em áreas de comunidades carentes. Este estudo buscou identificar as territorialidades (uso e apropriação) existentes em dez núcleos religiosos, inseridas na ZEIS Pina/Encanta Moça no bairro do Pina-Recife/PE, ou seja, diante da diversidade foram selecionados os que mais expressam práticas territoriais de apropriação e uso desse espaço urbano. Considerando o aspecto do hoje, em uma fotografia das transformações do ambiente das práticas religiosas, mostrando que essa diversidade é convertida em um processo de demarcação de territórios, ocasionando uma reconstrução do espaço urbano. Além disso, a transformação temporária a partir dos eventos realizados por essas práticas. A metodologia adotada consistiu em quatro etapas: delimitação da área de estudo; levantamentos bibliográfico, documental e cartográfico; pesquisa de campo e o tratamento dos dados. Por meio da execução das etapas, foi possível identificar e delimitar os locais de práticas religiosas através de técnicas de geoprocessamento. A delimitação da área baseou-se em dados primários, num espaço amostral de 54 núcleos religiosos, em que dez destacaram no que concerne à territorialidade religiosa e à sua relação com a apropriação do espaço, objeto deste estudo. A pesquisa de campo foi realizada in loco, com a participação das atividades religiosas e de entrevista semiestruturada. Os dados foram tratados por mapas temáticos e transcrição das entrevistas balizando os seus discursos. Diante disso, constatou-se a existência de um embate ideológico materializado na forma de como essas religiões se apropriam do espaço físico, ainda que implícito, demonstrando as diferentes faces religiosas e as suas relações espaciais se reconfigurando através das mudanças urbanas.

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Mestranda em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP Graduada em Licenciatura em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Bolsista da CAPES. E-mail: [email protected] 19 Mestranda em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Graduada em Bacharelado e Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. E-mail: [email protected]

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Palavras-chave: Geoprocessamento

Territorialidade

Religiosa.

Diversidade

Religiosa.

Introdução A presente pesquisa tem como objeto de estudo as estratégias territoriais religiosas no fator do uso e apropriação do espaço urbano no bairro do Pina – Recife/PE. Revendo que esse espaço urbano, em sua essência congrega materialidades e imaterialidades, o que pressupõe ações e relações que envolvem os agentes e os autores sociais que o produzem e o consomem, criando-o e recriando-o conforme suas práticas. Para fins de compreensão da dinâmica urbana, é preciso, antes de tudo, tomar os agentes sociais na produção do espaço urbano como referência de análise, uma vez que seus interesses, suas escalas de ação determinam processos que, materializados no espaço definem e redefinem a configuração da cidade. A pesquisa adota como objeto empírico o bairro do Pina na zonal sul do Recife, na qual compreendem as comunidades da Areinha, Beira Rio, Bode e Encanta Moça, inseridas em Zona de Interesses Social (ZEIS), devido a rica diversidade religiosa, com destaque para alguns núcleos religiosos. Onde Salientamse que as estratégias territoriais destes núcleos destacados, advêm de uma territorialidade religiosa, que segundo Rosendhal (2008), define como “o conjunto de práticas desenvolvidas por instituições ou grupos religiosos, no sentido de controlar um dado território religioso. É uma ação para manter a existência, legitimar a fé e a sua reprodução ao longo da história” (p.57). Esse controle e a própria reprodução de espaços religiosos advêm da territorialidade religiosa adquirida através das realizações de várias práticas religiosas para a busca de novos adeptos, no uso e apropriação dos espaços e claro na própria afirmação da sua crença. Diante da complexa dinamicidade do espaço urbano estudado, a razão da escolha deste recorte espacial fundamenta-se, por um lado, sobre a importância histórica de diversas formas de religiosidade na formação da sua territorialidade, e

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por outro lado, a sua complexidade sócio espacial e das transformações do uso e apropriação dessas áreas, através da dinâmica religiosa. Referente à composição da cidade do Recife encontram-se as comunidades no bairro do Pina, onde a marca expressiva da religiosidade no bairro esteve sempre ligada à sua história e se tornou um identificador de sua população, desde a chegada dos jesuítas e a vinda dos negros para a região costeira do Nordeste brasileiro. Atualmente, encontra-se nessa área cerca de mais de 54 núcleos religiosos, segundo banco de dados referente ao mapeamento realizado em 2014, pela pesquisadora.

1.Território e territorialidade: Um esboço de articulação para o uso do espaço urbano Para o desenvolvimento deste trabalho, tornou-se fundamental tecer breves considerações sobre o conceito de território, uma vez que oferece à comunidade uma melhor discussão a respeito do planejamento, gestão ou ordenamento de um dado recorte territorial, diante das estratégias religiosas, em geral diz respeito a um determinado espaço urbano. Isso posto, foi analisado o conceito da territorialidade, ressaltando as estratégias territoriais de apropriação e uso dos espaços a partir dos núcleos religiosos no bairro do Pina.

1.1 A Multiplicidade do território e o foco territorial religioso Qualquer pesquisador, a fim de organizar seus dados de forma a perceber relações entre eles, precisa empregar conceitos (SELLTIZ, et al. 1967). Desta forma, objetivando melhor fundamentar a discussão neste trabalho sobre as múltiplas dimensões do território e foco territorial religioso, sem, no entanto, preocupar-se em esgotar o uso do conceito ou delimitá-lo a uma área específica da ciência geográfica, pretende-se apontar algumas reflexões sobre o tema para nos orientar sobre a representação que os atores podem fazer do espaço onde vivem, bem como entender como distintos territórios podem se apresentar num mesmo espaço geográfico e o demostrar o fator religioso como modelo territorial, do qual será o contexto do estudo. Entende-se que o espaço físico é a base para a construção do território (RAFFESTIN, 1993), e sua formulação é produzida por uma série de relações que o indivíduo ou grupos de indivíduos mantêm entre si e com a natureza. Assim, 19

tomando como base a noção de espaço, o suíço Claude Raffestin (1993, p.143) esclarece que o território é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço,

concreta

ou

abstratamente

(por

exemplo,

pela

representação), o ator territorializa o espaço.

Para este autor, o território pode ser reproduzido pela representação que o ator faz do espaço. Assim, é por meio desta representação que distintos territórios se apresentam num mesmo espaço geográfico e através do uso de mapas podemos representar e interpretar graficamente as espacialidades presentes nesses territórios. Embora seja um conceito amplamente debatido pela Geografia, o emprego do termo território nos estudos científicos teve sua origem nas ciências naturais, mais precisamente na Biologia e na Zoologia, a partir dos estudos ligados à Etologia (TERRA, 2009), e a partir disso foi difundido para outras ciências. Terra (2009, p. 21) em consonância com os argumentos de Haesbaert (2004) esclarece que o conceito de território é muito amplo e tem várias interpretações, dependendo da área da ciência que o conceitua. A Geografia dá maior ênfase à materialidade do território. A Ciência Política leva em consideração as relações de poder ligadas à concepção de Estado. A Economia o concebe como um fator locacional ou base de produção. A antropologia enfatiza a dimensão simbólica através das sociedades. A sociologia através da sua participação nas relações sociais, e a Psicologia através da identidade pessoal até a escala do indivíduo (HAESBAERT, 2004, p. 37).

Além disso, Haesbaert (2002, p. 93) acrescenta que “todo grupo se define essencialmente pelas ligações que estabelece no tempo, tecendo seus laços de identidade na história e no espaço, apropriando-se de um território (concreto e/ou simbólico), onde se distribuem os marcos que orientam suas práticas sociais”. O ponto comum entre as diferentes concepções de território é que ele está mais inserido em uma dimensão política e cultural do espaço do que numa dimensão econômica, apesar de que, na perspectiva naturalista, os recursos para a

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sobrevivência humana podem ser interpretados como fundamento da definição de território numa função mais econômica (HAESBAERT, 2002). Com base nas múltiplas dimensões de território apresentadas, Terra (2009) afirma que diversas áreas do conhecimento têm adotado o conceito em seus estudos e análises, de um lado, na retomada deste enquanto dimensão política do espaço, de outro, gerando confusões conceituais quanto a sua empregabilidade. Neste trabalho, por sua vez, o conceito de território analisado será utilizado na temática religiosa, por meio da identidade territorial e, consequentemente, da territorialidade, podendo-se diferenciar os territórios específicos no urbano. Como exemplo, esses territórios das religiões. A principal autora que será trabalhada é Zeny Rosendahl, do qual segundo afirma que, referindo aos territórios demarcados, onde o acesso é controlado e dentro dos quais a autoridade é exercida por um profissional religioso. O território religioso constitui-se, assim, dotado de estruturas específicas, incluindo um modo de distribuição espacial e de gestão de espaço (ROSENDAHL, 2005, p.12933). Sendo assim, parte-se do pressuposto de que todo território religioso é demarcado e obedece a uma lógica de funcionamento, percebe-se que há agentes religiosos que o controlam, o organizam, e, sobretudo instituem um poder. Assim, ao apreender a organização territorial do sagrado no bairro do Pina por meio do mapeamento do território religioso, percebem-se as tensões, os conflitos entre as comunidades religiosas pelo domínio da hierocracia. A organização do território religioso, portanto, nos mostra as dimensões políticas e religiosas do espaço. Desse modo, reconhecemos que o território religioso se desenvolve a partir de experiências expressivas, pois a experiência territorial das religiosidades é uma projeção de vivências, isto é, é uma expressão da condição humana ou das relações humanas no cotidiano. A hierocracia (poder do sagrado) em relação ao poder religioso no bairro se manifesta espacialmente por uma organização territorial religiosa e essa, por sua vez, está submetida a ela. Sendo às estratégias usadas pelas instituições religiosas, a fim de manter o controle sobre seus membros. Rosendahl (2005) nos remete que: São múltiplas as estratégias interligando religião e território, e a dimensão política do sagrado objetiva investigar as normas e formas adotadas pelas instituições religiosas a fim de assegurar a vivência

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da fé e a vigilância dos fiéis, afirmando assim sua identidade religiosa (p.12930).

Desta forma, o importante acerca do conceito de território religioso com o objetivo proposto por esta pesquisa é compreender a organização dada ao espaço físico apropriados pelos núcleos religiosos e seus agentes e como os atores sociais se referem às distintas formas de relação entre esses usos apropriações e os componentes presentes na configuração do espaço urbano.

1.2. Territorialidade religiosa Inicialmente o conceito de territorialidade foi usado com o sentido etológico, demarcação de territórios de animais. Durante muito tempo, houve uma transferência analógica desse conceito para as ciências humanas, resultando em uma experiência “perigosa e esterilizante”. Raffestin (1987, p.263) propõe uma “territorialidade humana” afirmando que o ser humano “é um animal semiológico cuja territorialidade é condicionada por linguagens, códigos e sistemas de sinais. O procedimento do homem, de alguma forma, está na “constituição linguística do mundo” (1987, p.264). Raffestin (1987) argumenta, ainda, que os naturalistas não levam em conta apenas o espaço em que o animal não pode escapar; já o homem, por sua vez, pode escapar da cultura que é uma série de atos de comunicação. Nesse sentido, a territorialidade humana pode ser definida como “o conjunto das relações mantidas pelo homem; como ele pertence a uma sociedade, com exterioridade e alteridade através de mediadores ou instrumentos” (p.267). Para a principal autora do conceito estudado, Rosendahl define a territorialidade religiosa “como uma estratégia de poder e manutenção independente do tamanho da área a ser dominada ou do caráter meramente quantitativo do agente dominador” (2005, p.12934). Deve ser reconhecida, portanto, como uma estratégia de controle. Torna-se importante compreender o fenômeno religioso neste contexto, isto é, interpretar a “poderosa estratégia geográfica de controle de pessoas e coisas sobre territórios que a religião se estrutura enquanto instituição, criando territórios seus” (ROSENDAHL, [1996: 56], apud ROSENDAHL, 2005, p.12934).

A autora prossegue dizendo que 22

Territorialidade religiosa, por sua vez, significa o conjunto de práticas desenvolvido por instituições ou grupos no sentido de controlar um dado território, onde o efeito do poder do sagrado reflete uma identidade de fé e um sentimento de propriedade mútuo. A territorialidade é fortalecida pelas experiências religiosas coletivas ou individuais que o grupo mantém no lugar sagrado e nos itinerários que constituem seu território. (p.12934)

Ainda sobre a territorialidade religiosa Rosendahl (2003) afirma que esta “engloba, ao mesmo tempo as relações que o grupo mantém com o lugar sagrado (fixo) e os itinerários que constituem seu território” (p.195). Diante disto, baseiam-se na apropriação religiosa de dados fragmentados do espaço urbano, ressaltando-se o equilíbrio entre diferentes religiões ou a procura por conquista de um mesmo espaço por cada uma delas. Com estas estratégias de controle de pessoas e lugares, a religião se firma como instituição e atende a demanda do sagrado, buscando novos territórios sagrados e sua apropriação para um maior pleito de fieis. Atualmente, a territorialidade religiosa é evidenciada no cotidiano das cidades. Não é difícil identificar certos territórios religiosos em meio à paisagem urbana, como é o caso da Igreja Católica. Os templos possuem símbolos que nos permitem identificar tais espaços como territórios daquela religião. A própria arquitetura das igrejas, o crucifixo no ponto mais alto dos templos, são exemplos de símbolos, através dos quais podemos identificar a existência da religião no local, sem que seja necessária qualquer placa de identificação. Ressaltando-se que a territorialidade religiosa esteve presente desde os primórdios da religiosidade com a busca de novos domínios, neste processo, o conceito de territorialidade tem se colocado como um elemento central nas estratégias dos usos e na apropriação do espaço urbano. É nesta trama territorial que as comunidades religiosas constituem-se para promover as experiências ditas de “mapeamento participativo” e “cartografia social”, a despeito de definir as áreas de busca de novos territórios religiosos e também o olhar dos não adeptos. Assim, temos uma base conceitual para o estudo de uma territorialidade religiosa que se manifesta em espaços sagrados e não sagrados no urbano, por meio de uma gestão de religiosos e leigos. As territorialidades, a constituição de um território religioso por uma comunidade não-religiosa, e as relações com a sociedade externa, religiosa e não-religiosa, provenientes deste controle do território, serão 23

assuntos de grande interesse, tal qual, a possível formação de um “território civilreligioso”, ou talvez um “um território civil-sacralizado”.

2. Caracterização da área de estudo No bairro do Pina estão inseridas as comunidades da Areinha, Beira Rio, Bode e Encanta moça, o referido é um bairro popular, que está situado na zona sul do Recife e tem como limites: ao norte, Brasília Teimosa e o porto do Recife; ao sul, Boa Viagem, ao leste, o Oceano Atlântico e a oeste, a Bacia do Pina (Figura 1). Figura 1 – Localização da área de estudo, bairro do Pina.

Fonte: Carmo, 2014. 3. Urbanização do Bairro

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O bairro do Pina surgiu numa ilhota. Tendo a origem do seu nome devido a um grande comerciante chamado André Gomes Pina proprietário de grande parte das terras, este fato proporcionou o nome do bairro (SILVA, 2008a). Existiam seis ilhas: a ilha do Bode, da qual fazia parte à comunidade do Bode, a ilha da Raposa, a ilha do Nogueira, a ilha do Pina- conhecida também como Lazareto, a das Cobras e a ilha do Felipe. Contudo, conta-se que a comunidade da Areinha era um areal, um banco de areia semisubmerso, com alguns poços e o Istmo da Encanta moça, da qual se originaria a comunidade da Encanta moça. O bairro do Pina configurou-se: “A paisagem singular que se edificou ao longo da linha da costa desde o século XVI permanecendo quase inalterada até a segunda metade do século XX, paisagem furta-cor, matizada de verdes, brancos e azuis, materializava todo um processo histórico de povoamento e ocupação do litoral. Sob a aparência de território do vazio, de terras sem dono sem lei, escondiam-se

formas

particulares

de

exploração

econômica,

de

propriedade e posse do espaço litorâneo, há muito solidificada. Formas essas que criaram condições para a existência de camadas sociais ligadas à pequena lavoura e à pesca: jangadeiros, pescadores livres e escravos, sitiantes e rendeiros, proprietários de terra, de currais de peixes e embarcações” (ARAÚJO, s/d).

A história do bairro e de suas comunidades não vem apenas de ilhas e terras cercadas por denso manguezal, mas sim a história de localidades nas quais o fator marcante é a ocupação dessas terras, habitadas pelos colonizadores portugueses, invasores holandeses e pelos negros trazidos da África. Ressalta-se que, neste Figura 2 – Bairro do Pina em processo de Figura 3 – Bairro do Pina em continua urbanização. urbanização.

25 Fonte: amabv.hpg.ig.com.br, acessado em 27/01/2010.

bairro, afrodescendência é um traço facilmente perceptível. O povo que reside hoje nestas comunidades fez-se a partir da territorialidade, dos espaços de vida criados em torno da necessidade de moradia, e buscou incessantemente os seus direitos a cidadania diante das mudanças urbanas configurando-se uma nova paisagem (Figuras 2 e 3).

Com a urbanização vieram o caráter de luta e a resistência do povo do Pina na construção de uma forma digna de se fazer cidadão recifense. Para essa cidadania, faz-se necessário a posse da terra regularizada. Em 1979 pessoas da comunidade se organizaram e fundaram a União dos Moradores do Pina, onde a luta era pela posse da terra e pelo melhoria das condições de moradia. Assim nascia o Projeto Pina que foi subtido para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) órgão responsável pela aprovação e financiamento deste projeto e execução das obras pela Prefeitura da Cidade do Recife. Diante do Projeto Pina, o bairro passou por grandes transformações em infraestrutura. Em 1983, pelas forças das pressões exercidas foi proposta a modificação da Lei de Uso e Ocupação do solo inserindo-se então às ZEIS. Estas modificações, no Plano de Regularização de Zonas Especiais de Interesse Social PREZEIS, da cidade do Recife, só foram implantado em 1987, logo, a Lei Municipal n.º 1.494 de 1987, que instituiu as Zonas Especiais de Interesse Social (Figura 8), tornou-se um instrumento jurídico urbanístico que viabilizaria a urbanização e regularização fundiária das áreas. Com o prazo garantio-se assim a permanência das populações de toda a Brasília Teimosa e de parte do Pina compreendendo a área do Encanta Moça, Comunidade do Bode e parte do Beira Rio. 4. Apropriação e Uso pela Religiosidade A marca expressiva da religiosidade no bairro do Pina esteve sempre ligada à sua história e se tornou um identificador de sua população desde a chegada dos 26

jesuítas e a vinda dos negros para a região costeira do Nordeste brasileiro. Os primeiros sinais de religião se dão com a chegada dos jesuítas desde 1600, os quais possuíam uma fazenda perto do mar e lá guardavam a imagem de Nossa Senhora do Rosário da Barreta. Por isso, a padroeira do Pina é até hoje, Nossa Senhora do Rosário. Posteriormente, a igreja Matriz do Rosário veio a ser fundada, em 1932, pelo padre José Fernandes que também construiu a capelinha do Menino Jesus na Av. Conselheiro Aguiar, o convento dos Capuchinhos na Areinha, o Patronato da Conceição no Bode e a Igreja da Brasília Teimosa. (SILVA, 2008a). Foi na ocupação pelos afrodescendentes que surgiram traços da sua cultura nas comunidades, sendo uma delas a religião, estabelecendo uma expressão forte da sua resistência e sua identidade. Foi a partir de Maria Fortunata, mais conhecida como “A Baiana do Pina”, que se edificou o terreiro, em 1917, tornando-se um dos maiores terreiros do Recife. Ainda com relação com a religião afro, estas sofreram muita repressão, que dificultou o culto as suas divindades, obrigando seus praticantes a associarem suas divindades com os santos católicos, para exercerem sua fé disfarçadamente, mantendo viva a tradição cultural. Colocando assim, “As lideranças dos Xangôs do Recife perceberam que se tornaria perigoso continuar praticando os toques disfarçados nos ensaios do maracatu” (REAL, 2001, p. 21). Com a diversidade religiosa da comunidade vieram outras fundações em seguidas: os evangélicos eram poucos no Pina, não havia igreja evangélica, a congregação reunia-se na Av. Encanta Moça. Em 1933, cinco famílias decidiram fundar a 1° Igreja Batista do Pina na Rua Eurico Vitrúvio no Bode (SILVA, op. cit.). Em 01 de janeiro de 1947 houve a fundação do Núcleo Espírita Missionários da Luz. Desde então novos centros, igrejas e terreiros continuaram a surgir. Duas representações de núcleos religiosos (Figuras 4 e 5), que fazem parte da história dessas comunidades: Figura 4 – 1ª Igreja Batista Pina, 1933 – Bairro do Pina.

do

Figura 5 – Igreja Matriz do Rosário, 1935 – Bairro do Pina.

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Fonte: Arquivo religioso da 1ª Igreja

Fonte: Arquivo religioso da Igreja

O bairro do Pina possui uma topografia formada por ilhas que podem ser correlacionadas, atualmente com a existência de “ilhas religiosas”. Este bairro desenvolve-se a partir da fundação de novos centros religiosos inseridos nas comunidades Areinha, Bode e Encanta Moça, Beira Rio. Assim, observa-se que a proliferação dessas instituições religiosas como monstra o gráfico a seguir deve-se ao predomínio de algumas crenças religiosas, principalmente o protestantismo com uma porcentagem de 63% (Figura 6). Esta verificação é resultado do mapeamento realizado nas comunidades (Figura 7) no qual foram encontrados 39 núcleos religiosos frutos da diversidade religiosa que impera as manifestações e simbologias diversas. Figura 6 - Distribuição religiosa nas comunidades no Bairro do Pina.

Fonte: Carmo, 2014.

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Figura 7–Localização do bairro do Pina e principais núcleos religiosos inseridos na ZEIS Pina- Encanta Moça e adjacências. .

Fon te: Car mo, 201 4

Por mei o da an ális e das for ma s de uso e apr opr iaç ão dos esp aço s públicos, no bairro, enfatizasse que determinadas parcelas do espaço urbano assumem a função de lugares caracterizados pelos diversos usos ensejados, pelas 29

práticas socioespaciais cotidianas, desde o local da sobrevivência, perpassando o lúdico e a festa, no ambiente de manifestações políticas, comemorativas, cívicas e culturais, bem como, do espaço do protesto e da reivindicação. Enfim, práticas e relações sociais que fazem com que o espaço público continue sendo lugar de multifuncionalidade, para os diversos segmentos sociais da cidade. Nessa perspectiva, analisando o ponto de vista da diversidade de usos, a busca pelo sagrado e a fé limitante dessas crenças religiosas é vista com um recorte de novas conquistas territoriais e ocupacional, vendo o surgimento incessante de novos núcleos, os ditos “Igreja de Garagem20”, no bairro do Pina. Assim, o espaço urbano do bairro do Pina é um produto das ações sociais em que os agentes produzem e consomem o espaço. Essas ações são tão complexas, que Corrêa (1995, p.11) afirma que o mesmo se mantém simultaneamente fragmentado e articulado, reflexo e condicionante social, ainda que suas formas e funções tenham mudado o que ocasionam um constante processo de reorganização espacial.

Considerações Finais A elaboração desse trabalho consistiu na “fotografia” do bairro do Pina do passado ao presente, numa contextualização histórica através da sua religiosidade, as modificações urbanas e pelas práticas religiosas através do uso e apropriação dos espaços urbanos. A contextualização histórica deste trabalho, trouxe elementos que apontam que os primeiros aglomerados urbanos surgiram a partir da motivação religiosa, em diversos períodos no tempo, sob a religiosidade enquanto motivação formadora dos primeiros povoados. No que cerne o cenário atual, uma profunda investigação ocorreu sob o aspecto religioso, no recorte do bairro do Pina na zona sul do Recife, especificamente a ZEIS – Pina/Encanta Moça e Adjacências. Os recursos, disponibilizados pelas novas tecnologias, a exemplo o GPS, possibilitou precisão na construção do mapeamento dos territórios religiosos para 20

São pequenas denominações protestantes, do qual não possuem um identidade institucional difundida, liderados por outrem que, necessariamente, não tem uma formação teológica, tendo-se apenas declarados ungidos, para exercer à atividade. Seu território dito religioso é geralmente irregular, com uma infraestrutura precária (Carmo, 2011).

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análise visual com a construção de modelo de mapas temáticos das práticas de apropriação e uso do espaço urbano pelas religiosidades. A partir do recorte realizado, tento o bairro do Pina e seu perímetro da ZEIS – Pina/Encanta Moça e suas adjacência, foram localizados 54 núcleos religiosos, dentre estes, 10 núcleos se destacaram nas comunidades e adjacência no que concerne à territorialidade religiosa e sua relação com a apropriação do espaço, sendo este o recorte de estudo. Como resultado, observou-se no bairro uma paisagem delineada por uma pluralidade religiosa existente. Entende-se, a partir dessa análise, que as práticas religiosas necessitam de espaço e tempo, e que as territorialidades de diversos agentes se manifestam num mesmo espaço. As atividades religiosas mostram-se numa sobreposição de territórios que sugerem tentativas de controle, que resultam em usos e apropriações de diversas áreas do espaço urbano. Portanto, apreende-se que a sobreposição de territórios torna-se mais intensa quando verifica que estes são erigidos pela apropriação e uso de um dado espaço, ou seja, quando os pertencimentos acarretam o sentido de propriedade. Por fim, conclui-se que da mesma forma como épocas passadas, a dimensão religiosa, as práticas e representações atinentes aos seus grupos, continuam contribuindo para delinear contornos específicos do espaço urbano, mostrando aqui uma fotografia do hoje neste recorte de estudo que foi o bairro do Pina.

Bibliografia ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. As praias e os dias: história social das praias do Recife e Olinda. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 2007. CORREA, Roberto Lobato. Espaço Urbano. São Paulo: Ática,1995. HAESBAERT, R. Des-territorialização e identidade: a rede gaúcha no Nordeste. Niterói: EdUFF. (1997) ________. Territórios Alternativos. Niterói: EDUFF. 2002. RAFFESTIN, Claude. Repères pour une théorie de la territorialité humaine. Cahier/Groupe Réseaux, (7), 263-279. ________. Por uma geografia do poder. Tradução de Maria Cecília França. São Paulo: Ática, 1993

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Geheime Figuren der Rosenkreuzer21: a imagética Rosacruz na corrente esotérica XVIII.

José Carlos de Abreu Amorim22 Mestrando no PPGCR – UFPB [email protected] Resumo Em finais do século XVIII - em 1785 e 1788, é publicado em Altona o Geheime Figuren der Rosenkreuzer aus dem 16 ten und 17 ten jahrhundert, obra cujo imenso capital imagético surge sobre a tutela da Gold-und Rosenkreuzer, a obra é reproduzida inicialmente em dois livros, reunidos posteriormente em um facsímile no ano de 1919. Este último serviu de base para as edições modernas, hoje publicada em vários idiomas. A obra reuni a produção simbólica dos séculos XVI e XVII, rica em trabalhos sobre alquimia, magia, teosofia cristã e rosacrucianismo. Ela é, sem dúvida, um dos documentos mais importantes do esoterismo Rosacruz que, ao lado dos Manifestos Rosacruzes: Fama Fraternitatis, Confessio Fraternitatis e das Bodas químicas de Christian Rosenkreuzer, lançam as bases simbólica deste movimento no século XVII. Este trabalho tem por objetivo perceber as constituintes imagéticas desta obra observando seu estruturalismo figurativo, além das influencias estabelecidas entre ela as demais produções imagéticas do período. Ao mergulharmos na carga simbólica do Geheime Figuren der Rosenkreuzer, notamos um trajeto da imagem enquanto detentora da memória silenciosa, cujos símbolos são sua expressão abstrata. Palavras chaves: símbolos, esoterismo, movimento rosacruz. Introdução Rosacruz termo que a mais de quatro séculos sucinta especulações que circundam o âmbito histórico, filosófico, social e religioso deste movimento que tem 21

Símbolos Secretos dos Rosacruzes dos séculos XVI e XVII, possuindo duas edições em português uma em 1978, monocromática e outra em 2014 colorida. 22 Mestrando no PPGCR – UFPB, membro do Grupo de Pesquisa Videlicet UFPB.

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em terras alemães seu início, o presente trabalho possui como foco a obra Geheime Figuren der Rosenkreuzer aus dem 16 ten und 17 ten jahrhundert, que tornar-se de conhecimento público centro e setenta e um anos após a publicação do primeiro manifesto23, as constituintes do Livro de Altona não poderiam ser percebidos num mesmo contexto se tensões não figurassem entre si colocando a mesma com uma expressão fronteiriça entre o movimento do iluminismo (de cunho racionalista) e uma conscientização de caráter místico e esotérico. O Geheime Figuren der Rosenkreuzer aus dem 16 ten und 17 ten jahrhundert, ao ser expressão de uma forma de pensamento, cujas raízes estão nos sistemas simbólicos da maçonaria, do movimento rosacruz, da teosofia cristã com imbricações no Pietismo alemão com suas nuances do hassidismo assim também como as aproximações da mística judaica através da cabala, do hermetismo “renascentista”, da alquimia e da teosofia. O livro é uma compilação de vários opúsculos e tratados surgidos entre os séculos XVI e XVIII (alguns na íntegra; de outros, excertos extraídos). Segundo Carlos Gilly, bibliotecário da Biblioteca Filosófica Hermética, de Amsterdã, conhecem-se quatro versões dos Geheime figuren der Rosekreuzer, sendo algumas manuscritas e outras impressas. A instituição sob comento possui 5 cópias impressas e 10 cópias manuscritas (SALOMÓ et al, 2012), esta reúne em si, dois tratados de alquimia impressos, um em 1621 – “A Era de Ouro Restaurada” assinada por Henricus Madathanus – e em 1625 – “O Tratado Áureo da Pedra Filosofal”, cujo autor intitula-se um Filosofo Desconhecido, estes no livro aqui analisado, estando como segundo e terceiro tratado o primeiro sem título e versando sobre a Virtus e a Potentia alquímica onde o autor do mesmo debruça-se sobre princípios alquímicos da matéria indicando vez ou outra aproximações com a alquimia espiritual, dos três tratado este é o mais extenso da obra os dois últimos tratado são conhecido desde o século XVII, os mesmos aparecem numa tradução latina, nas três edições do Museum Hermeticum, 1625, 1678 e 1749. Podemos encontrar o segundo tratado na sua primeira edição em alemão em 1621, o Tratado Áureo encontra-se impresso no mesmo ano do Museum Hermeticum em 1625. A importância dos Geheime figuren der Rosenkreuzer assemelha-se aos manifestos rosacruzes, esta obra composta por uma gama de imagens e tratados alquímicos, cabalistas e herméticos, possuem em suas páginas confluências que tentaremos nas linhas seguintes evocar. Um dos primeiros pontos é a indicação de que a obra aqui discutida é originária de um antigo manuscrito, este manuscrito ao qual se refere sua folha de rosto do D.O.M.A. onde temos os mesmos títulos e subtítulos– tratado que aparece na Alemanha no século XVIII –, além de outros opúsculos que sugiram nos dois séculos anteriores. Se olhássemos para a nossa história com a mesma curiosidade com que olharmos pela lente de um caleidoscópio, perceberíamos de uma forma ampliada que os vários momentos históricos, que por figurarem em redutos iniciáticos e marginalizados por sua comunicação heterodoxa do sagrado, apresentam uma amorfia que escapa por total aos pesquisadores. Desta feita, podemos elencar uma gama de ideias que propagam-se desde o renascimento até o século das luzes, passando pelo furor rosacruz do século XVII, com o surgimento dos Manifestos que anunciam a fraternidade, pela vinda a público da metafisica do sapateiro de Gorlitz,

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O primeiro Manifesto Rosacruz, o Fama Fraternitatis publicado em 1614, seguido do Confessio em 1615 e das Boda químicas de Cristian Rosenkreuzer em 1616, o primeiro do Geheime Figuren aparece em 1785 sendo seguido de um segundo livro em 1788, ambos são reunidos num fac-símile em 1919.

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dos escritos de Michael Maier, Robert Fludd, Paracelso, pelo fluir da postura operativa para a especulativa. Ao nos debruçarmos sobre as pranchas, ricamente ilustradas, com a evocação inicial de ser uma Simples Cartilha de ABC [...] somos conduzidos a pedagogia simbólica daqueles que numa ideia de zelo, ocultam sua lanterna nas dobras do manto24, e utilizam-se de uma linguagem simbólica, que faz uso do emblemas, signos, sinais, sigilos dentre outros recursos imagéticos para perpetuar sua memória. Entendemos que – com relação ao mixórdia que é o movimento rosacruz ao longo destes quatro séculos, o século XVII é caracterizado pela epifania deste movimento onde uma áurea de mistério oculta os Invisíveis25, no século XVIII na corrente que de uma organização mas sistemática temos dois momentos distintos em 1710 Samuel Richter26 publica em Breslau, Die wahrhaffte und vollkommene Beschreibung des philosophischen Steins der Bruderschaft aus dem Orden des Gulden- und Rosenkreutzes Denen Filiis doctrinae zum Besten... 27, na simbólica rosacruz temos neste de texto do pastor de Harmamnsdorf, uma menção a definição que surge em 1630 no prefácio da Arcana totius detecta a collegio Rosiano28 de Petrus Mormius publicada em Leyde, a ilustração da cruz como dourada (gulden), neste ponto uma sutil mudança do mito original do século XVII faz-se notar, a importância da alquimia será uma marca forte do movimento rosacruz deste século, a mesma temática será trabalhada também em Theo-Philosophia teórico-Practica, de Sincerus Renatus publicado em 1711 (EDIGHOFFER, 1987, SABLÈ, 2006). Em anexo ao livro de 1710, Sincerus Renatus colocará cinquenta e dois artigos, que servirão de base para a organização de forma institucionalizada do movimento rosacruz, a grande carga alquímica que se faz presente neste movimento pode indicar uma fusão de movimentos herméticos e alquímicos da Alemanha e da Áustria, não descarta-se a possibilidade que parte da influência filosófica tenha vindo da Orden der Unzertrennlichen29, ao analisarmos este momento histórico chegamos a conclusão que não houve uma instituição organizada – neste momento inicial, ou seja na primeira metade do século XVIII aja vista que a idealização dos textos de Sincerus Renatus ficarão esquecidos meio século, as mesmas possuem um eco do movimento do XVII, mas com uma estrutura bem definida. Na edição das obras completas de Sincerus Renatus, por volta de 1741, podemos perceber que o autor segue algumas das proposituras do Círculo de Tubingen30, no texto há uma ênfase na regeneração considerando a alquimia (na

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Referência ao Eremita carta VIII do Tarô. Referência ao enfoque dado pelo Professor Tobias Churton em sua obra “Os invisíveis – A História da Rosa-cruz”, cuja a alusão situa-se em uma autoproclamação nos Cartazes fixados em Paris em 1623. 26 Samuel Richter era pastor em Hartmamnsdorf, na Silésia, estudou no Halle, dizia-se discípulo de Paracelso e Jacob Boehme, utilizando-se do pseudônimo de Sincerus Renatus (SABLÈ, 2006, p. 244-245). 27 A descrição verdadeira e completa da pedra filosofal da Irmandade da cruz dourada e da cruz rosa (vermelha), aqui abreviamos o título pois o mesmo é demasiado longo. 28 O autor relata que quando regressava da Espanha encontrara um homem idoso chamado Federico Rosa, este personagem havia fundado uma sociedade secreta denominada Rosa-Cruz de Ouro e que compreendia três membros apenas (SABLÈ, 2006, p. 243) 29 Ordem dos inseparáveis. 30 Grupo criado por volta de 1613 em torno de Johann Valentin Andreae, por instigação de seu amigo Wilhem von Wense. Compreendia 24 pessoas que se interessavam por Cabala, Alquimia, Mística Cristã, entes outros elementos do esoterismo. Dentre alguns nomes podemos destacar os de Tobias 25

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sua parte operativa – transmutação dos metais) como uma vocação secundaria, e que suas doutrinas teosóficas não devem ser lidas com os olhos da razão, mas com os do espírito, e seguindo a linha de Paracelso, no que concerne a Signatura, assinatura ou Deus manifestando-se através da natureza como a alma se manifesta através do corpo, esta propositura está em oposição ao espírito da Aufklärung, Sincerus Renatus desfruta de um considerável sucesso com os intelectuais europeus da segunda metade do século XVIII, as marcas em seus textos do Pietismo e sua mística particular permeadas com a Teosofia Cristã, e em profundo diálogo com o hermetismo e a alquimia, lhe concederão um lugar na nova roupagem que o movimento rosacruz receberá na segunda metade do século XVIII, mas uma coisa é clara não há aqui mas uma inclinação para uma “religião universal” de mãos dadas com a ciência, mas sim a aproximação da aristocracia, da pompa e da circunstância. A partir de cerca de 1750, uma "tradição rosacruz" que de agora em diante passou a ser oposição ao racionalismo – seguindo uma onda presente em certos círculos maçônicos, neste ponto a profusão de ritos que terão em comum (além dos graus simbólicos) um grau nomeadamente rosacruz ou filósofo desconhecido 31, organizará uma religião com uma hierarquia arcana32 com conotações de uma igreja interior Na Alemanha em 1751 uma nova edição de Conrad Orvius's Occulta Philosophia (publicado pela primeira vez em 1737), é levada a cabo por Johann Ludolph ab Indagine, médico, em 1761, um membro da "Assembleia de Praga" teve um Aureum Vellus, seu Iunioratus Fratrum Rosae Crucis publicado, contendo os estatutos, rituais e uma lista de membro de uma "Sociedade do Ouro e Rosa-Cruz" (EDIGHOFFER, 1987, CHURTON, 2005- 2009, GEFFARTH, 2007, SABLÈ, 2006). Mas em parte este documento repete textualmente o trabalho publicado por Hermann Fictuld33 em 1749 (FAIVRE, 1972, p. 76-88). É por volta de 1763, na Alemanha, que encontramos indícios da criação de uma instituição rosacruz – com hierarquia, sede, todo o aparato institucional, a Gold- und Rosenkreuzer terá o médico de Sulzbach, Bernhard Joseph von Schleis Lowenfeld (1731-1800), como um dos seus primeiros líderes sob o pseudônimo Phoebron (GEFFARTH, 2007). Em 1782 o barão von Ecker und Eckhofen, publica de um panfleto sob o título Der Rosenkreuzer em seine Blosse (O Rosacruz em sua nudez), gerando uma tensão entre estre e Phoebron que no mesmo ano lança seu livro Der im Lichte der Wahrheit strahlende Rosenkreuzer (A radiante Rosacruz na Luz da Verdade), texto que reafirma uma origem tradicional e antiga atribuindo ao rosacruzes um conhecimento oriundo dos patriarcas, transmitidos aos membros realizados (GEFFARTH, 2007, FAIVRE 1972).

Hess, Cristovão Besold, Johann Arndt, historiadores como Tobias Churton, Èric Sablé, Roland Edigloffer veem neste grupo parte da origem do Movimento rosacruz. 31 Terminologia que possua algumas bifurcações, uma referência ao alquimista que desenvolve sua obra em segredo e paciência – filósofos é sinônimo de alquimista e concepções esotéricas desta arte, mas também será uma alusão aos Superiores Desconhecidos, figuras enigmáticas que “geriam”, “conduziam” o destino dos homens e dos iniciados, uma outra acepção é o título do último grau da Ordem Martinista – desenvolvida a partir do Martinezismo de Martinez de Pasqually. 32 Termo desenvolvido em: Religion und arkane Hierarchie – Der Order der Gold-und Rosenkreuzer als Geheime Kirche im 18. Jahrhundert, tese de doutorado do Professor Renko D. Geffarth, da Universidade de Wuttemberg e editada pela Brill em 2007, na Aries Books Series. 33 Pseudônimo de Johann Heinrich Schmidt

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1 Hermetismo e alquimia no Geheime Figuren der Rosenkreuzer É na Itália, na época em que os textos platônicos começam a ser traduzidos para o latim e a língua vernácula da época, que Marsillo Ficino, na Villa Careggi, interrompe a tradução do filósofo ateniense para se dedicar à tradução do que ficou conhecido a época como Corpus Hermeticum, pode-se conjecturar que neste evento histórico ocorre o divisor de águas no que se refere à entrada, de forma mais abrangente, de obras e conhecimento vindos do Oriente Próximo. Nesta nova empreitada, a Ficino junta-se Pico della Mirandola, ambos tornando-se referência nos encontros entre a cabala renascentista de “cores” cristãs e o hermetismo. Pode-se ainda perguntar: o que tem a ver hermetismo do século III a.C. a III d.C. com os fragmentos de “Pranchas Pictóricas” surgidas nos séculos XVI e XVII? Como elementos de diferentes tradições aproximam-se uma das outras para compor a simbólica deste período, o movimento rosacruz atua neste contexto como catalisador, apresenta-se como um leitmotiv que influenciará boa parte dos eruditos da época, com a tradução do Corpus Hermeticum a Europa trava contato com uma proposta filosófica distinta da aristotélica, uma nova forma de perceber a ciência apresenta-se. Isso influenciará definitivamente os pensadores europeus, em especial os alemães que receberam esta influência através da Itália e da Inglaterra. Figura 1– A Filosofia hermética – recorte In Os Símbolos Secretos dos Rosacuzes dos séculos XVI e XVII.

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Fonte: ECKHARDT. J. D. A. Os Símbolos Secretos dos Rosacuzes dos séculos XVI e XVII. Curitiba: Diffusion Rosicrucienne, 2014.

A relação estabelecida entre o que configura-se como um hermetismo, aqui cabe ressaltar que não figura nos Geheime Figuren der Rosenkreuzer textos do Corpus Hermeticum, o que podemos encontrar é as ideias hermética vinculadas a alquimia, a aspectos cosmogônicos e cosmológicos, além da influência na Altona duas imagens evocam pra si uma motivação hermética a Die hermetische Philosophie (Da filosofia Hermética), figura 1 que não encontramos reproduções anteriores desta imagens – partes dos Geheime Figuren der Rosenkreuzer aparecem em diferentes compilações entre os séculos XVI e XVIII, o que nos leva a crer que sua concepção é contemporânea a organização dos mesmos, na figura 3 temos a Tabula Smaragdina Hermetis que aparece pela primeira vez em Paris no ano de 1624 na obra L’Azoth, ou le moyen de faire l’or caché des philosophes 34, de Basilio Valentin. A figura 1 apresenta a origem da natureza, valendo-se de uma combinação de símbolos, com aproximações entre o hermetismo e a Arte Regia. Nesta imagem, 34

Publicada no anos seguintes ao surgimentos dos cartazes em Paris, que anunciavam a presença do Invisíveis naquela cidade.

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a Prima Matéria é composta e/ou representada por cinco compostos iconográficos: uma mão saída de uma nuvem que verte água (orvalho celeste), uma cabeça angelical soprando um vento do oeste, uma pequena parte de terra que sustenta um girassol, que na composição em questão sugere uma orientação geográfica já que o mesmo volta-se para o sol, representado na sequencia seguinte, a faixa de terra ainda abriga quatro dragões. Temos então água, ar, terra e fogo, quatro elementos básicos na natureza e na alquimia, mas nesta imagem temos também a Pedra-Imã trazendo o magnetismo natural como quinto elemento, o texto traz a seguinte definição: “Atraio a todos os que buscam a Deus e a verdade; apenas eles acharão a Arte35. Eu sou a Pedra-Ímã do amor divino; atraindo os homens de férrea rigidez ao caminho da verdade” (ECKHARDT, 2014, p. 23). Na sequência da imagem, temos o sol e a lua, cada um iluminando, respectivamente, uma rosa e um lírio, cujas raízes compartilham simbolicamente a Fons Miraculorum, representada por um triângulo com o vértice para baixo, onde do ângulo inferior é vertido o Succus Lunae & Solis em forma de vapores, que como o texto enfoca Os dois vapores ou fumos são as raízes da Arte. No interior destes fumos há vários símbolos alquímicos; três em especial nos prende a atenção: são enxofre, mercúrio e sal, dispostos de forma triangular com a mesma orientação do triangulo acima. Não faremos aqui uma descrição dos elementos alquímicos envolvidos, mas reproduziremos abaixo parte do texto presente nesta imagem: A Prima Matéria deriva do Fiat, o Verbo, da Criação. E este Verbo vem do Pai, que é Criador de todas as coisas, e o Espírito irradia de ambos. Esta é a vida de Deus dando ar. Então, também o ar traz à vida tudo o que está dentro dos elementos. O fogo tudo aquece, a água refresca, delicia e satura todas as coisas. E a nitrosa terra, maternalmente, tudo nutre e sustenta; o ar nasceu do fogo, e por sua vez faz queimar o fogo, para que possa viver, mas ar na forma de água é alimento para o fogo, e o fogo queima e torna-se esse elemento. Água e orvalho do selo, o graxo, gordo orvalho do solo, a terra guardiã do sal nitroso o alimenta. Pois o útero da terra é o sal nitroso e sulfúrico da natureza, a boa coisa que Deus criou neste mundo visível. O mesmo Sal-Mãe dos elementos é a água nitrosa, aluminosa e espiritual gumósica, Ө terra ou cristal, que tem a Natureza em seu ventre, um Filho do Sol, e uma Filha da Lua. É uma hermafrodita nascido do vento, uma fênix vivendo em fogo, um pelicano, reavivando seus queridos filhos com seu próprio sangue; o jovem Ícaro afogado na água cuja nutriz é a terra, cuja mãe é o vento, cujo o pai é o fogo, a água sua aia e bebida, uma pedra e nenhuma pedra, uma água e nenhuma água, e, no entanto, uma pedra de poder vivo e uma água de potência viva; um enxofre, um mercúrio, um sal, oculto profundamente na Natureza, e que jamais foi visto nem conhecido por um tolo. (ECKHARDT, 2014, p. 23)

As referências ao caldo primordial, os vapores e sumos que figuram na parte de baixo da figura, e à função dos elementos alquímicos nele. As recomendações desta “receita” é que devemos orar e laborar com paciência, pois como o texto afirma: “Sou a umidade que tudo preserva na natureza e a faz viver; passo dos planos superiores aos inferiores; sou o orvalho celestial e a riqueza da terra”. Este tratado opta pela via úmida da Grande Obra, na realização da Arte Régia dois caminhos podem ser perseguido pelo Filósofo: a via seca e a via úmida, a primeiro tendo o fogo por artífice central, imprime ao processo um ritmo mais intenso; na via úmida, a água e a terra têm a função de homogeneização dos compostos.

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Arte aqui refere-se à Alquimia, também definida como Arte Real, ou Arte Régia.

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Podemos, partindo de uma estruturalismo figurativo, neste campo as estruturas antropológicas do imaginário, fornece-nos através da isotopia estabelecida por Gilbert Durand uma forma de percepção da organização da imagem no seu composto simbólico, a figura evoca enquanto um passo a passo alquímico, conduz a transmutação pela via úmida, onde a gestação dos elementos dar-se em contato com a terra, e esta é o agente principal, neste processo de homogeneização (DURAND, 2002, p. 281-293). As proposituras simbólicas constelam no regime noturno da imagem 36, estas referências evidenciam-se tanto no texto quanto na composição da imagem, apesar de termos uma organização de cima para baixo, com os eflúvio vindo do alto, das esferas divinas, note-se que o sol e a lua estão em um planos intermediário, colocados abaixo dos quatro elementos (terra, água, ar e fogo), o processo consolida-se na terra que figura aqui como nutriz e acolhedora, o texto que descreve as relações dos compostos liga o sal – enquanto um arquétipo, na mesma relevância que o enxofre e o mercúrio, à “Terra mãe e gumósica”, as diversas aproximação entre os símbolos alquímicos, a psique humana e a simbólica permitiu que através de uma hermenêutica pautada na analogia pudéssemos por exemplo ter o símbolos alquímico do sal (um círculo ou uma forma ovoide cortada na horizontal), ser a mesma representação gráfica da letra grega teta, última letra do alfabeto grego e que possui ligações com a terra. É verdadeiro, certo e sem falsidade que o que quer que esteja embaixo é como o que está acima; e o que se encontra acima é como o que está embaixo, para cumprir-se a Obra maravilhosa. Como todas as coisas são derivadas da Única Coisa, pela vontade e pela palavra d’Aquele Único que a criou em Sua Mente, assim também tudo deve a sua existência a esta Unidade, pela ordem da Natureza, e tudo pode ser aperfeiçoado pela Harmonia com aquela Mente. Seu Pai é o Sol; sua Mãe é a Lua; o Vento a leva em seu ventre; e sua nutriz é a Terra. Esta Coisa é o Pai de todas as coisas perfeitas do Mundo. Seu poder é o mais perfeito. Quando tiver sido transformada em Terra, separa tu Terra do Fogo, o sutil do grosseiro, mas com cuidado e com grande judiciosidade e habilidade. Ela ascende da Terra ao Céu e novamente desce, renascida na Terra, desse modo tomando para si o poder do Superior e do Inferior. Assim, o esplendor de todo o mundo será teu, e toda a treva de ti fugirá. Este é o mais de todos os poderes, a Força de todas as forças, pois sobrepuja todas as coisas sutis e pode penetrar tudo o que é sólido. Pois assim foi o mundo criado, e raras combinações e maravilhas de muitas espécies são obradas. Portanto, sou chamado HERMES TRISMEGISTUS, por ter dominado as Três Partes da Sabedoria de todo Mundo. O que tenho a dizer sobre a ObraMestra da Arte Alquímica, a Obra Solar, aqui está dito. (ECKHARDT, 2014, p. 27)

Acima temos o texto da Tábua de Esmeralda conforme a versão que está no Geheime Figuren. Figura 2 - Tabula Smaragdina Hermetis In Os Símbolos Secretos dos Rosacruzes dos séculos XVI e XVII.

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A este respeito ver DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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Fonte:. Os Símbolos Secretos dos Rosacuzes dos séculos XVI e XVII. Curitiba: Diffusion Rosicrucienne, ECKHARDT. J. D. A 2014.

A segunda imagem que possuem uma declaração explicita de vinculação com o hermetismo, a qual representamos na figura 2, esta ilustração acompanha uma versão do texto da Tábua de Esmeralda acompanhada do acróstico o VITRIOL de Basilio Valentin37. Num longo poema explanatório, encontramos a descrição da imagem, uma referência aos três escudos que possuem na sua heráldica a águia, a estrela e o leão tendo acima da estrela de sete pontas um orbe imperial, símbolo de autoridade e poder, a terra e o cosmo manifesto estão disposto um da cada lado da estrela, no anel exterior podemos ver a sete letras (VITRIOL), formando o acróstico sobre os quais já nos referimos, o autor do Poema atribui a cada escudo um elemento alquímico: Sal, Suphur e Mercurium, assim também como traz toda uma justificativa das cores dos animais, das disposições das esferas, o do significado das sete letras, algo que gostaríamos de destacar é que este acróstico figurará até a atualidade como ornamento da câmara de reflexão de alguns ritos maçônicos, tentaremos no segundo capítulo deste trabalho elencar os elementos simbólicos que unem os movimentos através de símbolos e imagens afins. A alquimia vinda do mundo mulçumano e ao chegar na Europa recebe imediatamente colorações cristãs, nos forneceu um capital de imagens incomparáveis, a atualização mitológica que liga os deuses ferreiros e os 37

Emblema que acompanha o texto da Tábua de Esmeralda, cujo acróstico significa “Visita Interiora Terrae Rectificando Invenies Occultum Lapidem”; surge pela primeira na obra “L’Azoth”, ou Le moyen de faire l’or caché des philosophes, Paris, 1624. (AROLA, 2008)

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mineradores aos alquimistas, ambos confluindo para revelar/transmutar a natureza38. Após a publicação dos manifestos rosacruzes, e na direção a pretensa bussola dos mesmos indicou, começou a ser pavimentado por autores e obras que versavam principalmente sobre a alquimia, dos manifestos rosacruzes o que traz uma vinculação direta é as Bodas químicas, os demais não tem este tema como elemento central. Antes da primeira edição do Fama, já circulava na Alemanha, publicada em 1602 o Amphitheatrum sapientiae aertenae, cujo autor se oculta sob o véu do hierônimo Heinrich Khunrath; de acordo com Yates, este livro pode ser considerado um elo entre a filosofia de John Dee – expressa na obra Monas hieroglyphica, publicada em 1564 – que combina a cabala, a alquimia e a matemática de uma forma que quem a lesse teria uma visão unívoca do mundo, discernindo em seus contornos a natureza e mais além disso, o divino expresso na mesma, e o pensamento rosacruz presente nos manifestos, a grande historiadora inglesa ao indicar que o movimento rosacruz foi forjado por influência direta de Giordano Bruno e John Dee limita o campo de observação, não levando-se em conta outras variantes presentes na equação, por exemplo a influência judaica e paracelsista, as motivações que levaram a confecções dos manifestos ainda sucinta algumas especulações, fato é que neste trabalho não intentamos responder a tais questões, mas em nossa bibliografia pode-se encontrar alguns dos trabalhos mais recentes sobre o tema. O Amphitheatrum traz em seu conteúdo elementos da cabala, da alquimia e da magia, que visam explicitar a relação entre o macrocosmo e o microcosmo (YATES, 1983, p. 62), o que também figura no manifestos rosacruzes e nas páginas dos Geheime figuren der Rosenkreuzer; propor um conhecimento que conduza a humanidade a um novo patamar filosófico parece ser uma preocupação corrente entre os autores desta época. Ele indica algns dos temas que figurarão nos manifestos rosacruzes, de acordo com a Yates, em especial na Fama. Yates acredita que o termo Anfiteatro deve estar presente no título enquanto uma alusão à memória e não podemos deixar de lembrar que os símbolos possuem a característica particular de serem a memória silenciosa que figura nas matizes da hierohistória, a representação visual da reforma de pensamento. A obra de Kunrath merece um estudo à parte, pois sua riqueza imagética não cabe nas poucas linhas que dispomos para a ela nos referimos a mesma, em trabalhos futuros desejamos retomar este tema. 2 Jacob Boehme – A aurora da Teosofia Cristã Ao lado do hermetismo e da cabala a teosofia cristã possui um peso igual na influência simbólica dos Geheime figuren der Rosenkreuzer – ao no referimos aqui a teosofia, utilizamo-nos do termo conforme o mesmo é reconhecido e pesquisado pelos estudiosos do campo do esoterismo, no século XVI o sapateiro de Görlitz Jacob Boehme (1575-1624), o personagem mais representativo da Teosofia Cristã, sua proposição de união com a Sophia (sabedoria), vai de encontro com a ortodoxia luterana. Suas ideias vem a público em 1612 com a publicação de seu livro Die Morgenröte im aufgang (Aurora Nascente), uma visão privilegiada da divindade é um 38

Sobre este tema sugerimos a leitura de ELIADE, Mircea. Ferreiros e Alquimistas. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1979, além de outros títulos que indicamos em nossa bibliografia.

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dos elementos principais desta teosofia, que percebe a Criação como um todo homogêneo, onde trevas e luz coabitam – Boehme organiza a Criação através de três princípios esta conceituação está em seu livro Beschreibung der Drey Göttliches Wesens (Três Princípios da Essência divina) publicado em 1619. Boehme era luterano não estando alheio ao movimento de crítica ao Luteranismo Ortodoxo, que enfrentava várias críticas, vindas principalmente de Sebastian Franck (1499-1542), Gaspar Schwenckfeld (1489-1561), Valentin Weigel (1533-1588), estes questionamentos darão origem a grupos dissidentes do Protestantismo: Anabatista, Irmão Morávios, Cripto-Calvinistas, Pietistas dentre outros (GOODRICK-CLARKE, 2008, p. 87-90). A obra de Jacob Boehme é em geral acompanhada de diversas gravuras elucidativas de seus conceitos. A maioria foi produzida por Dionysius Andreas Freher e um pequeno grupo de amigos, anos após a morte do Filósofo Teutônico (SOMMERMAN, 2007), destaca-se aqui o seu discípulo J. G. Gichtel (1638-1710)39, que organiza a primeira edição completa das obras de Boehme, profundas experiências místicas o sapateiro de Görlitz, conseguiu discernir os contornos da Criação e assim localizar e/ou alocar – entenda-se locus com o mesmo sentido de centrum – os princípios criativos, o homem, a alma, o céu, o inferno, pelo que, apresenta em seus escritos uma proposta cosmogônica de marcante abrangência simbólica, o que lhe é natural, pois dados os quatro portentosos insights que teve, este sua organização do cosmo irá influenciar sobremaneira os autores dos Geheime figuren der Rosekreuzer, onde várias pranchas são baseadas em conceitos boehmianos, aja vista da influência que este pensador terá nos teósofos do século XVIII será preponderante para uma reação ao racionalismo desta época, seus conceitos serão revisitados por Martinistas, pelos maçons e pelos membros da Gold-und Rosenkreuzer. Para Nicholas Goodrick-Clarke (2008), A cosmologia de Jacob Boehme por estruturar-se através de correspondências entre todas as partes do cosmo, animados por uma natureza viva, o caracteriza como um esoterismo, a partir da criteriologia estabelecida por Antoine Faivre (1994), podemos resumir estas correspondências dos planetas, qualidades e associações dos humores40. O pensamento de Boehme é imprescindível para as concepções cosmogônicas que os compiladores dos Geheime figuren der Rosenkreuzer, sua influência permeia várias das pranchas dentre elas: Imagem figurativa de como dentro deste Mundo, três mundos existem, interpenetrados, a saber: este terreno Mundo do Sol, o Mundo Celestial e o mundo infernal, que se afetam mutuamente. Esta imagem é derivada da única imagem que a pena de Boehme produziu, o Globo Filosófico ou o Olho da Maravilhas da Eternidade41, ainda podemos destacar: A 39

Sua principal obra é Eine Kurze Eronffnung und Anweisung von dreyen Principien und Welten in Menschen, a edição francesa de 1896 foi traduzida como Theosofia Practica, a mesma foi traduzida para o português pela Editora Polar em 2001 – A senda do homem celeste, narrado por um verdadeiro combatente que a percorreu. 40 Humores aqui na concepção da medicina Paracelsista. 41 Podemos encontrar uma reprodução da mesma em As quarentas questões sobre a Alma, editado pela Polar em 2005; este livro publicado pela primeira em 1620, sob o título de Psychologia Vera; as questões que originaram o livro foram propostas pelo Dr. Baltazar Walter, médico de influência paracelsista.

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Árvore do Bom e do Mal Conhecimento, Quadro do Coração Humano na Antiga e na Nova Criatura, a figura sobre o Caos Invisível Incompreensível / o Caos Compreensível e Signat Stella do Tempo. Conceitos que imbricam-se nos textos e imagens que unem em sua simbólica elementos cabalísticos com princípios teosóficos e alquímicos etc. Várias pranchas alinham-se com a teosofia do século XVIII, com as propositura filosófica de Saint-Martin, Karl von Eckarthausen, John Pordage, Johan Kleuker. De influência da teosofia boehmiana, em suas páginas diversas noções e como o mesmo é organizado no século XVIII em cristianismo esotérico tardio, “In fact, modern Christian theosophy representes a synthesis of many other currents, including alchemy, Jewish Kabbalah, chilvary, and the gnostic tradition represented by Eckhart and Tauler” (VERSLUIS, 2007, p. 101), recebendo uma nova ênfase com Karl von Eckarthausen (1752-1803) figura entre os teósofos do século XVIII, autor de Nuvem sobre o Santuário, Algumas palavras sobre mais profundo do Ser e da Perfectibilidade do gênero humano, são algumas de suas obras onde o mesmo desenvolve uma proposta de cristianismo místico – onde elementos da teosofia figuram como determinantes simbólicas. A metafísica de Boehme tornar-se um divisor de águas, pois seus postulados procuram responder a diversas questões sobre o Homem, a Natureza e Deus, de marcante abrangência simbólica, o que lhe é natural42. 3 Cabala transmissão simbólica A cabala, vinda do medievo, recebe no Renascimento uma nova roupagem: além de ser um elemento de resistência cultural, torna-se uma ferramenta de conversão, ao identificar Cristo dentro do corpo doutrinário cabalístico, fundando assim uma cabala cristã, que reúne neoplatonismo, magia, misticismo cristão e termos da cabala teosófica. O misticismo judaico e suas interações com a vida do povo judeu encontra na cabala sua uma maior penetração nos períodos posteriores à diáspora. Sua difusão, além de alicerçar-se numa explicação metafísica do cosmo, serviu-se também de elementos de resistência cultural frente ao isolamento de sua terra; deve-se ter em conta que com a diáspora, instaura-se uma situação totalmente nova, o “povo eleito” encontra-se agora longe da terra destinada a eles por Deus. A cabala na sua estrutura pode ser apreendida enquanto um corpo de especulação basicamente esotérico “seja na sua explicação teosófico-teúrgica dos fundamentos lógicos dos mandamentos ou na tendência extática” de contemplação e utilização dos nomes divinos (IDEL, 2000). Na mística judaica, que se firma na cabala através da árvore cabalística formada por dez sefiras e quatro mundos, podemos ter quatro níveis de interpretação da Torá: peshat (literal), remez (simbolismo das letras e dos números), derash (alegórico, onde se usa a gematria, a temourah e a notarika) e sod (nível 42

É próprio do ser humano refletir sobre suas experiências e usar suas percepções como um material que lhe permite erigir conceitos; assim, a maioria dos místicos elaborou uma teoria sobre sua aventura pessoal. Devido a isso, a filosofia mística ou teologia – comentários do intelecto sobre o processo da intuição espiritual – ladeia o misticismo verdadeiro ou empírico: ela classifica suas informações, critica-as, explica-as e traduz sua visão do supra-sensível em símbolos acessíveis à dialética. (UNDERHILL, 2002, p. 182)

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secreto, por via meditativa), cujas primeiras letras formam o acróstico PaRDeS, “pomar” ou “paraíso”. Quanto à efervescência da cabala cristã, a grande maioria de seus expoentes era de judeus conversos e conhecedores (quase que naturalmente) dos estudos cabalísticos, Pico Della Mirandola (1463-1494) por influência de seu mestre R. Yokhanan Alemano, promove uma aproximação entre temas cabalísticos, neoplatônico e cristãs na Itália renascentista: A partir de 1480, certos intelectuais judeus como R. Yokhanan Alemano, R. David Messer Leon, R. Isaac de Pisa e R. Abraão de Balmes, deram início a uma tentativa notável de interpretar a Cabala de acordo com os conceitos filosóficos difundidos em seu ambiente intelectual. Esta tradução da Cabala numa chave filosófica representava também, implicitamente, uma metamorfose para um sistema de ideias que pudesse ser entendido com facilidade por não-cabalistas, judeus ou cristãos, pressupondo-se que estivessem familiarizados com os tipos de pensamento filosófico empregados nos escritos de autores judeus. O interesse pela Cabala durante o período da Renascença foi compartilhado por judeus e cristãos italianos; ainda que servisse de ponte entre as duas religiões, ela era explorada para atividades missionárias cristãs, fato reconhecido abertamente por Pico della Mirandola. O fato da Cabala ter sido interpretada, em ambos os campos, de acordo com concepções filosóficas significa não só sua adaptação a especulações neoplatônico-herméticas prevalecentes durante aquele período, mas também a redução de sua natureza esotérica. (IDEL, 2000, p. 372)

Moshe Idel (2000) entenderá que quanto mais o processo especulativo da cabala – marcado pelo abandono da tradição oral e pelo enfoque no texto escrito –, ampliou-se a transição do aspecto esotérico para o exotérico. O panorama da cabala no período do Renascimento e suas imbricações no hassidismo alemão e nas abordagens messiânicas dos discípulos de Codovero e de Isaac Luria possui um espectro polissêmico, cuja amplitude estas laudas não ousam abarcar. O exposto acima tenta evocar os aspectos herméticos e filosóficos que orbitam em torno do D.O.M.A, uma parte das imagens que ilustram o Geheime figuren der Rosenkreuzer são as que figuram D.O.M.A. o frontispício deste manuscrito que o professor Julius F. Sachse reproduz em seu livro 43, à expressão DOMA podemos inferir o seguinte acróstico – Deo Optimo Maximo Altissimo44, algo que nos chama atenção nesta sigla é o termo Altissimo, esta terminologia para referir-se a divindade figura também nos cartazes fixados em Paris em 1623, podemos encontrar a sigla presente na Basilica Chimica de Oswald Crowel de 1624, e diretamente nos Geheime figuren der Rosenkreuzer, cuja metafisica judaica, através da simbólica aqui exposta, assume novos campos de abrangência: do símbolo, da alquimia, da astrologia e da imagética (este último, exteriorizando os conceitos teosóficos tornados claros através da árvore sefirótica). No século XVII, a produção literária da cabala cristã alcança com mais força a Alemanha e a Inglaterra e estende-se até a América do Norte. Destaca-se então o hebraísta alemão Christian von Rosenroth (1631-1689), autor de “Kabbala Denudata” (“A Kabbalah desvelada”, 1677-1684), obra que influenciou os círculos místicos e foi a principal fonte do cabalismo cristão ao longo de dois séculos (COUDERT, 1994); um dado curioso é que junto com os pietistas alemães, também aportou na Pensilvânia, Estados Unidos, uma das edições do D.O.M.A., além do 43 44

The Pietists of Provincial Pennsylvania, 1895. Deus Todo-poderoso, o Altíssimo (tradução livre).

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que, dentre os primeiros livros que mandaram imprimir, está uma edição da Kabbala Denudata (SACHSE, 1895). 4 O “Tecido Simbólico” do Geheime Figuren der Rosenkreuzer Os fios que alinharam os diversos tratados desta obra orbitam sobre aspectos inerentes à cosmogonia explicada, dentre outras concepções, numa teosofia hermética, que pode ser apreendida enquanto o desenvolvimento de uma pansofia, cuja confluência imagética permite alinhar a cabala – de caráter judaico cristão, e a alquimia (cristã-magica-hermética) num eixo cristão-esotérico, onde a analogia opera por correspondências simbólica, ligadas a uma natureza viva. Sua proposta, no nosso entender, é servir de ferramenta pedagógica, fornecendo através de suas pranchas instrução – ou instigando debates, esta forma de instrução é muito cara à maçonaria simbólica (graus de aprendiz, companheiro e mestre) de diversos ritos, pois podemos perceber que suas ricas pranchas assemelham-se aos painéis alegóricos que são apresentados nas lojas maçônicas como distintivos de cada grau, uma pedagogia onde os símbolos são os órgãos centrais. É o movimento da Gold-und Rosenkreuzer que institui um sistema de instrução via correio, método que será utilizado por outros movimentos neorosacruzes45 nos séculos XX e XXI 46. O professor Renko Geffarth traz à luz que o estudo privado em casa era uma importante exigência feita aos membros, que poderiam receber orientação para serem recebidos na ordem e promovidos aos graus mais elevados com base no seu trabalho independente (GEFFARTH, 2007). Em 1618, Theophilus Schweighardt, pseudônimo de Daniel Mogling47, publica Speculum sophicum Rhodo-Stauroticum, Das ist: Weilauffige Entdeckung des Collegii und axiomatum von sondern erleuchten Fraternitet Christi-Rosen Creutz; desta obra temos recolhida, pelo organizadores dos Geheime figuren der Rosenkreuzer, apenas uma imagem, a Poculum Pansophiae que está presente no primeiro livro de 1785. Na gravura, o homem é representado em forma de cálice. Vale salientar aqui que a imagem que se tornou mais famosa deste tratado é o Colégio Fraternitatis, e que não consta no livro de Altona. Speculum é claramente um exemplo da literatura rosacruz orientada para uma visão pansofica do macrocosmo e microcosmo, onde magia, cabala e alquimia estão presentes com seu lado profético e sua forte inspiração Pietista (YATES, 1984, p. 131).

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As relações estabelecidas entre os diferentes movimentos rosacruzes desde o século XVII, são marcados ora por aproximações ora por distanciamentos consideráveis, os movimentos do século XVII e XVIII são os que possuem uma maior proximidade, aja vista que no XVII temos o ato Epifânio com o surgimento dos manifestos e da simbólica oriunda dos mesmos e no XVIII com a volta às origens míticas do movimentos constroem-se uma pontes entre estes dois movimento, são se trata aqui de uma linhagem iniciática interrupta – como alguns movimentos evocam, mas sim numa visitação as estruturas simbólicas e imagética do ambientes em que surgem os manifestos através do renascimento das imagens e das motivações do XVII, no movimento constituído no século XX o que percebemos é uma aproximação com a onda orientalizante que impacta o ocidente, com as aproximação dos apectos mitológicos além de um comparativismo, que permeia este movimentos, com um perenialismo, que cria lacunas entre uma perspectiva histórica do esoterismo. 46 Estudo admirável de Renko Geffarth, em alemão, Religion und Arkane hierarchie. Der Orden der Gold- und Rosenkreuzer als Geheime Kirche im 18. Jahrhundert, publicado em Leiden, pela editora Brill, em 2007. 47 De acordo com Yates, o mesmo pode ter figurado como Florentinus de Valentia ou o próprio Andreae (YATES, 1984, p. 130).

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Em 1888, Franz Hartmann publica uma versão reduzida dos Geheime figuren der Rosenkreuzer – Symblos Secret Book 1, em Boston, fazendo ao que parece uma escolha aleatória das imagens, além de traduzir parcialmente o Tratado Áureo. Essa edição traz uma mescla da Teosofia de Blavatsky, com os elementos dos Geheime figuren Rosenkreuzer, numa mitologia comparada conforme nos referimos em nota acima, um dicionário de termos do ocultismo corrente a época. Em 1919, é preparada uma edição fotolitográfica de fac-símile, base para edições modernas da obra. A edição brasileira editada pela Renes em 1978, encomendada pela AMORC, traz as imagens sem o colorido original, mas uma réplica do fac-símile de 1919. Somente em 2014, numa nova edição, produzida também pela AMORC, é que podemos ter em língua portuguesa a versão colorida desta obra. Vale salientar que já existiam edições modernas da mesma, em cores48; tanto a edição de 1978 quanto a de 2014 possuem problemas de tradução e também de reprodução de algumas das pranchas. Altona é onde acontece a impressão dos Geheime figuren der Rosenkreuzer, na fronteira entre Alemanha e Dinamarca, pelo editor J.D.A. Eckhardt, que é tipógrafo de Chistian VII (1749-1808) da Dinamarca, Noruega dos Godos e Vendos e cunhado de Karl von Hesse Cassel (1744-1836). Criado na Dinamarca e casado com Luísa da Dinamarca, sua prima direta, em 1766 torna-se membro da Ordem do Elefante e comandante da Guarda Real. O esoterismo que ora percebemos no rosacrucianismo, exponenciado no Geheime figuren der Rosenkreuzer pela riqueza imagética ali presente, insere-se – partindo do debate da obra, num movimento ampliado, que mescla em sua filosofia um capital iconográfico que representa uma parcela importante dos componentes do imaginário ocidental. Dentro dos recortes temporal e espacial, a imagem, aqui, extravasa seu aspecto de ilustração, atingindo sua real intenção enquanto matizada como um rebuscamento técnico de uma estética esotérica49 orientada para a veiculação de um conhecimento próprio. Esta produção iconográfica intimamente ligada às motivações herméticas, rosacruzes e alquímicas possuem uma dupla pertença, utilizando-se por um lado de uma pedagogia da imagem para transmitir postulados e conceitos que necessitariam de várias laudas através de uma única imagem ou prancha, e num segundo momento o rebuscamento destas imagens instaura uma estética específica do esoterismo ocidental, que como veículo que permite uma interação entre simbolizante e simbolizado utiliza-se do princípio da similitude, o qual gostamos da expressão analogia, onde uma motivação simbólica permite conjecturarmos imagens de um mundo transcende em nossa realidade imediata. Nesta estética não apenas reproduz-se o símbolo enquanto signo, mas num movimento que une a carga simbólica à estética promove-se um estado de arte onde similitude, simetria, metáfora etc. Tornam-se elementos aglutinadores e até catalizadores das apreensões simbólicas. A quem estas imagens destinavam-se, retinham as referências dialéticas do pertencimento social; estes escritos eram em suma destinados a alquimistas, magos, filósofos herméticos e teósofos. Nesta conjuntura, tinha-se um conhecimento estabelecido, para que pudessem estabelecer uma mediação, partindo de uma dialética simbólica firmada na analogia. 48

As edições francesa e alemã, são um exemplo disto. Estética esotérica no nosso entender é a comunicação através de linhas, formas e cores de valores e conhecimentos vinculados a uma transmissão interior presente no esoterismo ocidental, dentro do recorte temporal estabelecido por Antoine Faivre (1994). 49

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Narciso morreu tirando selfie: Revisitação de um mito - A auto exposição nas redes sociais.

José Carlos de Abreu Amorim50 Getulio Salviano Lins de Sá51

Resumo Utilizar estruturas mitológicas como ferramenta de percepção das categorias sociais (Claude Levi-Strauss / Gilbert Durand / Pierre Bourdieu), a exemplo da psicanálise que muito se utiliza do mito de Édipo, Sísifo etc, é o ponto de partida para a análise dos atuais fenômenos sociais. Partindo destes pressupostos, nossa análise que tem por objetivo central perceber a reverberação do mito de Narciso na eclosão imagética dos selfies nas redes sociais (facebook, Fan Page), que numa construção do universo particular do individuo ou numa forma coletiva de um grupo, molda o contexto da realidade social aos ditames de tipologias idealizadas, forjando anacronismo entre o ser e o ter, também entendido como pertencer. O jogo estabelecido entre as ideias de pertencimento, engajadas numa virtualização da vida onde a idealização fornece as ferramentas para tornarmos nossa vida um espetáculo, fluídico numa impermanência constante de imagens (a atualização atrai mais likes), onde as imagens passam por um processo de inflação, nisso um esvaziamento do sentido simbólico, que em nossa percepção assemelha-se ao relato mítico de Narciso que num ato de introvertimento volta-se para a contemplação de si, num fechamento, ao mesmo tempo em que abre-se numa virtualização de sua imagem ideal para si e para os outros.

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Mestrando em Ciências das Religiões - PPGCR – UFPB. Membro do grupo de pesquisa Videlicet – UFPB. [email protected] 51 Graduando em Marketing e Publicidade – FPB. Pós-graduando em Comunicação em Marketing e Mídias Digitais - FPB. [email protected]

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Palavra chaves: mito, rede social, virtualização, sociedade do espetáculo, símbolo.

1 – Introdução O atual sistema de produção e consumo com a sua capacidade de atender as necessidades e os desejos, nos entrega a possibilidade (produto) de “pertencer”, de ser “reconhecido” socialmente como ser humano por meio de uma ferramenta (demanda) que ele mesmo criou: um mundo virtual52 (que possui a virtude, a potência, que não “é” ainda). Para Berger e Luckmann, (2014) Toda atividade humana está sujeira ao hábito, e sobre as origens da institucionalização; [...] o homem ser capaz de produzir um mundo que em seguida experimenta como algo diferente de um produto humano (p. 84) A virtualização53 dos momentos sociais e íntimos vivenciados e a liquidez das relações interpessoais estão para a pós-modernidade como a espetacularização de Guy Debord e o fetichismo da mercadoria de Marx estão para a modernidade. O corpo humano, essa legítima mídia primária, ponto de partida e de chegada, começo e fim de toda e qualquer forma da comunicação, que meio milênio antes, no medievo período pré-renascentismo ocidental era rebaixado à categoria cárcere, prisão da alma e transitório terreno, o farda da alma, na pós-modernidade é elevado à possibilidade de "vida" além do vivido pelo corpo, a vida virtual, projeção imagética de si. A supervalorização da imagem, bem como sua produção inflacionada e a nossa dependência de comunicação através dela privilegia exacerbadamente o sentido da visão, causando prejuízo aos demais sentidos que não podem interagir cognitivamente com uma tela ou totem publicitário, ocasionando não só no consumo exasperado de imagens e ato de ser devorado por elas, mas a fatídica conversão de si em imagem. Se quisermos recorrer estruturalmente a um mito ocidental para elucidar os ditames do fenômeno da “geração selfie”, esse mito seria o mito grego de Narciso, que segundo a narrativa, o encantamento do rapaz pela própria imagem o levou a um trágico fim. O mito está diretamente ligado à estrutura ôntica do homem, dessa forma ele ocupa um papel extremamente importante na condição humana. Ele tende a transcender as tendências contidas na percepção do homem da realidade, fundando a mesma na mescla das inter-relações alicerçantes dos múltiplos universos simbólicos, aliás, podemos empreender um diálogo entre o real e o que convencionou-se simbólico, nesta teia de relações o pensamento mito-simbólico figura como centro da racionalidade. 52

A palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado por sua vez de virtus, forças potencia. Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potencia e não em ato. O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal. (LÉVY, 2014, p. 15) 53 A virtualização pode ser definida como o movimento inverso da atualização. Consiste em uma passagem do atual ao virtual, em uma “elevação à potencia” da entidade considerada. A virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade. (LÉVY, 2014, p. 17)

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As teias de relações estabelecidas pelos grupos sociais, possuem em sua base fragmentos das tensões, cuja estrutura mítica nos fornece uma ideia concisa destes fragmentos, o mito em sua temporalidade cíclica serviu de elemento de analogia para ciências como a psicologia, a antropologia, sua carga simbólica tende a ser atual nas sociedades que possuam uma referencia direta com seus Mitemas 54, nossa cultura atual – apesar das fronteiras diante da virtualização serem inexistentes, possuímos uma base que são melhores compreendidos partindo-se do mundo grego, esse foi o caminho que a psicologia fez, utilizando-se dos relatos gregos para estabelecer as bases dos seus tipos patológicos (Édipo, Jocasta, Ícaro, Prometeu etc).

2 - Mito

O mito possui em suas formas de apreensão uma vocação reveladora do que o homem é, e do que ele poderá ser, nesta ótica ele exercer a função de religador, permitindo ao homem acesso, pela apreensão de sua narrativa, ao transcendente, além disso o mesmo reflete paradigmas sociais específicos, desta feita este trabalho – como já enunciado acima, volta sua atenção para o mito de Narciso. Narciso (em grego Nárkissos) segundo o mito grego Narciso era filho do deus rio (Cefiso) e da ninfa Liríope quando nasceu foi levado ao adivinho Tirésias que vaticinou que o jovem teria longa vida se nunca conhecesse a si mesmo. Ao se tornar adulto Narciso foi objeto de paixão de um grande número de ninfas entre elas a ninfa Eco, que não podia declarar seus sentimentos. A indiferença do belo Narciso em relação ao amor atraiu a atenção da deusa da vingança Nêmesis que fez com que ele fosse beber em uma nascente e visse na água a sua própria imagem refletida da qual se enamorou. Incapaz de sair dali, tornado escravo de sua própria beleza e impelido de admirar-se continuamente foi transformado em uma flor, o narciso (de acordo com Ovídio Metamorfoses III), a flor que leva seu nome é considerada um símbolo da primavera e é associada ao sono à morte e a ressurreição por que parece desaparecer no verão, mas na primavera recobre novamente os campos. Por causa de sua forma que recorda a do lírio, comparece muitas vezes em imagens da Virgem Maria. O narciso tornou-se depois símbolo daquele que ama apenas a si mesmo, esquecendo tudo aquilo que o circunda (“narcisismo”, vaidade mórbida) (BIERDEMANN, 1997, p. 255)

Gilbert Durand pretendendo responder as diversas tensões que percorrem a vida do homem, cuja estrutura mitológica propõem uma “saída” para as mesmas, ele utilizar-se do termo Mitologemas, termo emprestado da psicologia das profundeza de Jung, que podem ser percebidos na sua contingência e no seu excesso, na sua 54

A noção de mitema foi retomada por Gilbert Durand a partir de Lévi-Strauss, o qual a definiu como uma “espessa unidade constitutiva”, para designar uma espécie de “átomo” fundamentador do discurso mítico. É a menor unidade do discurso mítico que é redundantemente significativa, isto é, que visa a repetitividade. (ARAÚJO, 2014, p. 25)

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finitude e na sua ânsia de eternidade, esses quatro Mitologemas estão presentes na narrativa de Narciso, que encarna um aspecto crucial da civilização da imagem – a auto exposição, ou a produção de imagens pessoais que servem de alicerce para os universos simbólicos particulares. A sua complexidade existencial dividido, assim como a duração do dia, entre noite (trevas) e dia (luz), nesta visão dicotomizada e maniqueísta forjar-se sua ânsia de claridade e pureza representados pela ascensão e/ou pelo relato inerente a ela. O mito tende, além disso, a suturar a ferida que o ser humano carrega neste mundo. Seu isolamento dos planos superiores (DURAND, 1983; MARDONES, 2006) Eliade, Durand, Mardones dentre outros concordam que o mito através de sua fundamentação organizadora, pautada na sua narrativa mito-simbólica, conduz o homem a um entendimento das problemática inerente a sua existência, respondendo seu início (a vida, o nascimento) e a sua finitude (a morte, ressurreição etc), o mito também preenche o durante, quando indica as relações estabelecidas entre o amor e o sofrimento (GUTIÉRREZ, 2012, p. 66-67) Para Mardones a etiológica do mito dá-se na própria abertura do narrado, no como dos acontecimentos que se narram. Ou seja conta-se histórias que possuam um caráter exemplar, pedagógico, pois as figuras ali presentes são os próprios homens num tempo histórico especifico ou num tempo original, condensador de todos os tempos, Eliade nos lembra que o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma história verdadeira, porque se refere a realidades. (ELIADE, 1987, p. 13) Uma das características presente no mitos é sua ambientação no reino arquetípico onde unido a sua universalidade temos a sua concretude, indo do passado ao futuro significando o presente. Esta última questão serviu aos detratores do mito, ou melhor ao pensamento enrijecido de alguns pesquisadores, pois pode parecer que o mito é a Panacéia de todos os males, mas não é esta a questão aqui, pois os mitos através da sua linguagem simbólica estão cravados num solo histórico e social, participando de suas transformações e formações, os símbolos utilizados em suas narrativas só possuirão força formativa e evocadora se, no grupo em que surgiram, mantiverem um diálogo alicerçado nos mitologemas que Durand identifica quatro essenciais: os mistérios da vida, da morte, o sentido do sofrimento e do amor. Os mitos são narrativas simbólicas organizadores e definidoras das múltiplas relações entre o Homem e suas concepções de transcendência. Os mesmo possuem pertenças religiosas, sociais, histórico e filosóficas. Gilbert Durand nos dois métodos que estabelece para a análise dos mitos, a saber a mitocrítica e a mitanálise, propõem a identificação dos motivadores mitológicos, os Mitologemas e das repetições possessivas do mesmo (os Mitemas), as menores partículas do mito, é interessante perceber que Durand assim como Levi-Strauss, Pierre Vernant e outros reconduzem o mito a um status de forjadores do social.

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Numa perspectiva durandiana a relação entre e mito e história, lenda e biografia, na trilha de uma hermenêutica que seja instauradora. As relações estabelecidas por Durand no campo do imaginário permitiu que a confluência de diversos métodos de análise, já que estruturar a Teoria Geral do Imaginário (TGI), o mesmo valeu-se das pesquisa e contribuições de Lévi-Strauss, Carl Gustav Jung, Henry Corbin, Edgar Morin, com exceção do primeiro e último os demais fizeram-se presentes no círculo de Eranos. No século XIX mito era sinônimo de algo falso, era um relato que não condizia com o real, mas no século XX com os trabalhos de Lévi-Strauss, Eliade e outros, percebe-se que ele designava uma história verdadeira e preciosa pelo seu relato sagrado. Esta mudança dar-se também no campo da definição semântica da palavra mito, pois agora o mesmo tanto representa uma ficção ou ilusão quanto uma tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar. (Eliade, 1991, p. 7) Entorno do mito podemos perceber dois astros o orbitando, são estes o tempo sagrado e o espaço sagrado, numa abordagem simbólica o mito em si já funda e desenvolve-se neste tempo sagrado e através de suas hierofanias, cratofanias e epifanias delimita o espaço sagrado ou sacralizado, este ponto o historiador romeno desenvolveu de forma ampla em seu Tratado de história das religiões e na História das Crenças e das ideias religiosas55. Alguns estudiosos propuseram uma categorização das funções do mito. Campbell sintetiza em quatro funções: em primeiro lugar ele elenca a função mística ou metafísica do mito de reconciliação é da consciência com as condições prévias da sua própria existência; a segunda função é a cosmológica eles devem formular e apresentar uma imagem do universo; a terceira é sociológica, o mito deve validar ou manter uma ordem social específica; e a quarta função é psicológica ele deve dar forma aos indivíduos para que alcancem metas e ideais dos seus diferentes grupos sociais (Campbell, 1995, p. 130). Gilbert Durand utilizar-se da imagem da formação do rio para ilustrar o desenvolvimento dos mitos, no trajeto que o mesmo empreende desde seu nascedouro até sua transição simbólica, Durand identifica seis etapas: escoamento, separação das águas, confluências, nome do rio, ordenamento das margens, declínio meandro e deltas. O escoamento pode ser entendido como aglutinação simbólica parte semântica e morfológica dos mitos, possuindo nesse estágio as respostas dadas pelo homem as implicações inerentes aos Mitologemas, estas respostas tendem a organizar-se perante princípios filosóficos, como por exemplo os presente na ideia de imagem ou de representação, em termos práticos, estes primeiros relatos, imagens ou símbolos possuíram sua relevância a partir do nível de comprometimento com o meio social em que eles desenvolvem-se. Separação das águas, termo bem evocativo de caráter cristão por referir-se ao Gênesis, mas na Teoria Geral do Imaginário esta terminologia faz referência ao 55

Na edição portuguesa em três volumes e na edição espanhola em quatro, já que nesta última acrescentou-se um livro publicado posteriormente, propondo uma discussão dos especialistas e especificidades do sagrado.

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aquífero composto pelo rio que se forma a parte das nascentes, singrando vales e montanhas, mas também aquele rio subterrâneo que percorre o interior da terra numa assertiva, entre águas superiores e inferiores. Um rio pode ser formado por mais de uma fonte, estas devem confluir, de acordo com o terreno para mesma fenda ou baixa na terra que servirá de condutor destas águas, da mesma forma partindo de contatos sociais, seja com um ou mais indivíduos as versões de um mesmo mito podem coexistir sem se excluírem, temos por exemplo as diferentes versões do mito de Hércules, no que tange ao início de sua jornada. As confluências simbólicas que permite as aproximações mítica reside no caráter fluídico destes relatos, das narrativas que visam legitimar atos e justificar certos desígnios. Se formos buscar origens do nomes de nosso rio, constataremos que estes foram escolhidos por externarem características dos rios, assim como os mito: o mito de Procrustes, utilizado por Durand para ilustrar as hermenêuticas redutoras e os métodos que reduzem seus objetos as suas propostas. Entendemos que a estrutura da ordenação das margens, defini as aplicações simbólicas do mito, podemos como exemplo o mito das civilizações arcaicas que Levi-Strauss estudou ou as quatro características que Campbell elenca, os mitos enquanto constituintes das respostas de um povo diante da vida, da morte, do sofrimento e do amor. Esses seis elementos podem ocorrer todos os não, sua ordem pode ser das mais diversas possíveis, podendo ter um escoamento e em seguida o nome do rio ou o declínio. O mito por seu caráter cíclico está perpetuamente em movimento, sempre atualizando-se, o último ponto que Durand elenca é o meandro e os deltas, em si as possibilidades de separações das águas em novos afluentes, voltando ou não a reencontrar-se. Outros autores como Lévi-Strauss propõem outras metodologias de análise e interpretações do mito, levando em consideração sua estrutura relacional, como por exemplo a coleção de mitos cosmogônicos atrelados a relatos antropogônicos.

3 – Teoria das Mídias O que temos de mais consistente acerca de reprodutibilidade técnica e teoria das mídias tiveram seu advento nos proeminentes estudos advindos da escola de Frankfurt (Adorno, Benjamin, Heidelberg, etc.). Entretanto, as contribuições de Harry Pross (1923 – 2010) com base na função das suas condições de produção e de recepção estabeleceram uma teoria das mídias que se tornou referência para os campos da comunicação e ciências sociais. As mídias são divididas em primária, secundária e terciária. A mídia primária é o corpo. Toda comunicação humana começa na mídia primária, na qual os participantes individuais se encontram cara a cara e imediatamente presentes com seu corpo; toda comunicação humana retornará a este ponto (PROSS, 1970).

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Na mídia primária a interação é presencial, emissor e receptor precisam estar no mesmo espaço e tempo e compartilhar o mesmo código (sistemas simbólicos). Visão, olfato, paladar, tato, audição, assim como seus desdobramentos, são emissores e receptores dos códigos simbólicos de comunicação. A mídia secundária parte do corpo e é intermediada por algum aparato técnico ou ferramenta que transporta a mensagem ao receptor, e este não precisa de qualquer aparato receptor para receber a mensagem, apenas compartilhar o mesmo sistema simbólico, o fim é apenas o corpo. Ou seja, o emissor utiliza de alguma ferramenta, o receptor não. São mídias secundárias a escrita, fotografia, gravura, imagem, escultura, etc. Essa é a primeira mídia a impor o homem sobre a morte, o prolongamento e a permanência, sobrevida simbólica após a presença do corpo. Emissor e receptor não precisam ocupar o mesmo tempo e espaço físico. Na mídia terciária a interação acontece por intermédio de algum meio eletrônico e exige técnica ou tecnologia nas duas pontas, emissor e receptor precisam de algum aparato para enviar e para receber a mensagem. Esse tipo de mídia ultrapassa todas as limitações de tempo e espaço enfrentadas pelo homem. Diversas categorias de mensagens podem ser transmitidas de diferentes formas; para uma audiência coletiva independente de compartilhar o mesmo espaço e tempo, podem ser gravadas, armazenadas, copiadas, ou chegar a qualquer lugar do planeta instantaneamente etc. As mídias avançam de modalidade em um sistema cumulativo, a primária vai estar contida na secundária e a secundária e primária na terciária, e a finalidade é sempre o encontro com a mídia primária, ou seja, o corpo. O nosso objeto de estudo: a auto-imagem ou selfie e a auto exposição voluntária, transmitida pela rede mundial de computadores (www - world wide web ou simplesmente internet), mídia terciária por excelência, é conseqüência da reprodutibilidade técnica e do sistema vigente de produção e de consumo.

4 – Redes Sociais O que distingue o ser humano dos outros animais é a capacidade de possuir sistemas simbólicos, ou seja, possuir, organizar, transmitir e se comunicar através de símbolos; imagens, linguagens, códigos corporais, etc. As linguagens orais e escritas de cada povo, por exemplo, são construídas e modificadas aos ditames dos costumes, localização, cultura. Diferente dos outros animais que possuem uma linguagem baseada em instintos e reflexos e comum a toda a espécie. O universo cultural, próprio aos humanos, estende ainda mais essa variabilidade dos espaços e das temporalidades. Por exemplo, cada novo sistema de comunicação e de transporte modifica o sistema das proximidades práticas, isto é, o espaço pertinente para as comunidades humanas. [...] Cria-se, portanto, uma situação em que sistemas de proximidades e vários espaços práticos coexistem. De maneira análoga, diversos sistemas de registro e de transmissão (tradição oral, escrita, registro audiovisual, redes digitais) constroem ritmos, velocidades ou qualidades história diferentes. (LÉVY, 2014, p. 22) 56

As redes sociais existem desde que existe a sociedade humana, quer dizer, redes são pessoas interagindo. Rede não é um site ou um aplicativo, mas a interação. O site é uma ferramenta (mídia terciária) que através de um sistema simbólico pode proporcionar a interação. Aqui faremos uma breve síntese de rede, estabelecendo uma relação entre o diagrama de Paul Baran (1926 – 2011) e os três principais períodos da internet até a explosão das redes sociais expressivas (web 1.0, 2.0 e 3.0, ou primeira, segunda e terceira onda da internet). Em 1964 Baran publica o artigo On Distributed Communications, onde teoriza três modelos de rede: centralizada, descentralizada e distribuída. Web 1.0 (Rede centralizada) – A primeira onda da internet popularizada (década de 90), não mais restrita somente ao uso militar. Modelo que Baran classificaria como rede centralizada; as páginas são estáticas, um escritor (emissor) e um leitor (receptor), o usuário somente ler e não interage com o conteúdo, não há possibilidade de feedback. É que pode ser chamada também de rede hierarquizada. Quanto mais centralizada for uma rede, menos conectividade ela possui. Web 2.0 (Rede descentralizada) – Neste momento o monopólio da fala é quebrado, não só o emissor posta conteúdo, o usuário participa e interage respondendo ao conteúdo quando instigado. Surgimento das mídias sociais expressivas, blogs, enciclopédias livres. Na medida em que a interação através da rede de computadores vai aumentando, também acontece a popularização das câmeras fotográficas digitais e telefones celulares com câmeras; fotos tiradas e lançadas na rede em questão de segundos. Neste momento da história da web acontecem as primeiras aparições de protagonismo dos usuários contrapondo os emissores/programadores, e consequentemente as primeiras manifestações de exposição da vida íntima e social. Web 3.0 (Rede distribuída) – Esse é o período que mais nos interessa para o estudo do objeto deste artigo. A chamada “Terceira Onda da Internet” é o momento que estamos presenciando agora, focado no conceito da mobilidade (mobile); pessoas conectadas a maior parte do tempo do seu dia por intermédio de aparelhos como smartphones, tablets e notebooks. A profusão de imagens a que somos submetidos através desses meios, bem como o assédio constante por parte do mercado por meio delas, constituem a agressão mais discreta e anônima que a humanidade já sofreu, porque ela é voluntária, nós a aceitamos no momento da aquisição de um produto que nos coloca na rede. Feito isso, nós estamos à disposição de uma corporação que nos vende para o mercado como uma reles mercadoria comum. A partir da análise de banco de dados, nossos interesses e preferências são filtrados, nosso perfil é traçado e somos bombardeados com uma enorme quantidade de imagens publicitárias ou ideológicas a partir dos nossos interesses. Assustadoramente, a terceira onda da internet proporcionou o aceso às grandes organizações privadas para a nossa localização, para com quem estamos e o que estamos fazendo. Decretamos o fim da privacidade como a conhecemos voluntariamente. 57

5 – Interações na Pós-modernidade – A vida na rede digital O retorno acentuado ao símbolo, ao ícone e à imagem, ainda que enquadrado às normas do mercado e através das suas ferramentas, parece um suspirar de liberdade que contrapõe o racionalismo típico a que fomos submetidos em toda a modernidade. Admitindo-se uma tal hipótese, não é de se espantar a retomada do imaginário. Este em uma perspectiva holística, restaura o equilíbrio perdido, ao reinvestir as estruturas arcaicas que se acreditava ultrapassadas e ao recriar as mitologias que irão servir de liame social. A explosão das imagens está aí para prová-lo. Graças a elas, as sociedades revêem e assim recuperam parte de si mesmas, das quais tinham sido frustradas por uma modernidade essencialmente racionalista. (MAFFESOLI, 1995, p. 41)

Maffesoli (1995) diagnosticou que a passagem da modernidade para a pósmodernidade seria marcada pela transmutação de ideal democrático para ideal comunitário, assim como o indivíduo passaria de homo economicus para homo eroticus. Neste contexto, a pós-modernidade teria um retorno ao sentimento de tribalismo, de pertencimento. O indivíduo não tem a preocupação de acumular patrimônio como na modernidade, mas de viver “pelo” e “graças ao outro”. A relação entre indivíduos e desses com o meio social acontece por mediação das imagens e seus desdobramentos (estereótipos, arquétipos, etc). [...] a profusão das imagens e a ênfase posta no estilo indicam um retorno à “comunidade”. [...] o que parece estar na ordem do dia remete antes a uma espécie de tribalismo, que tem por vertente um verdadeiro reencantamento do mundo. A partir do que é visível, imanente, há algo que leva ao invisível, ao transcendente. Acontece que nas sociedades pós-modernas, essa força de união, esse “maná” é quotidiano, é vivido aqui e agora, e encontra sua expressão em uma transcendência imanente de coloração fortemente hedonista. Assim o que prevalece não é mais o indivíduo, isolado na fortaleza de sua razão, mas o conjunto tribal, que se comunica ao redor de um conjunto de imagens que consome com voracidade. (MAFFESOLI, 1995, p.145)

Essa coesão de pertencimento, consequentemente ligada ao status social e imagem do indivíduo, foi tratada por Guy Debord (1931 - 1994) em A Sociedade do Espetáculo quando o autor trata de tempo histórico, tempo cíclico, tempo pseudocíclico e tempo espetacular. Basicamente, DEBORD (1997) classifica em três os estágios de status quo do indivíduo ao longo da história: No primeiro estágio o indivíduo “é” o que essencialmente e verdadeiramente “ele é”. No segundo “ele é” o que “ele possui” (acúmulo, propriedade, luta de classe) e no terceiro “ele é” o que “parece ser” e o que “parece possuir”, é o início da espetacularização da sociedade.

58

Para DEBORD (1997), Toda vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação. O autor, já na década de 60 do século passado, reconhece a importância da imagem como sintetizador das relações sociais do mundo espetacular: O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, midiatizado por imagens (DEBORD 1997, p. 14). No acúmulo de espetáculos, a produção descontrolada de imagens que culmina em sua inflação, deixou de ser atividade exclusiva do mercado; essa nova categoria de indivíduo, o homo narcissus post-modernus56, é também um agente criador, disseminador e inflacionador de imagens. O buscado é a projeção imagética de si mesmo em confluência aos ditames das tipologias ideais propagados pelo mercado e seus mitos funcionais, a saber: a moda, os famosos, os padrões de beleza, os esportistas, os símbolos sexuais e os eventos esportivos, musicais e sociais que vemos como grandes sínteses da vida em comunidade que precisamos participar (pertencer). Na tabela abaixo traçamos uma relação fenomenológica entre o mito de Narciso e a auto exposição nas redes sociais por meio da selfie. Narrativa do mito de Narciso.

Fenômeno da selfie no contexto social.

1 - Nascimento de Narciso, filho do 1 - Adesão a uma rede social / acordo deus rio Cefiso e a ninfa Liríope. simbólico. 2 - Tomada de consciência da própria 2 - Apropriação dos valores estéticos beleza. vigentes. 3 - Ostracismo social

3 - Mais relacionamentos menos relacionamentos reais.

virtuais,

4 - Tragédia ou transmutação do EU.

4 - Mudança de reconhecimento. O EU é o que se projeta pela imagem.

5 - Perpetuação do mito. Transmutação 5 - Perpetuação da imagem. O homem na flor Narciso. produz imagens para vencer a morte. Tabela 1 - Tabela desenvolvida pelos autores deste artigo

6 - Além do espetáculo - Transmutação de si mesmo em imagem e em mercadoria

56

homo narcissus post-modernus - Termo dos autores deste artigo para o sucessor do homo eroticus proposto por Maffesoli; enquanto este ultimo vive “pelo” e “graças ao outro” por intermédio das imagens, o homo narcissus post-modernus faz o mesmo mas através da projeção imagética de si mesmo, mas precisamente sua alto imagem (selfie).

59

O teórico da semiótica e da comunicação Norval Baittelo Junior, denomina nossa época de A era da iconofagia em livro homônimo. Para BAITTELO JUNIOR (2014) o homem começou a produzir imagens por medo da morte na busca de impor-se sobre ela e vencê-la; as imagens, símbolos ou signos são as primeiras manifestações humanas que transgridem as limitações de espaço e tempo para além do corpo-vivo. Os homens caem, os símbolos permanecem. Citando Walter Benjamin (1892 - 1940), BAITTELO JUNIOR (2014) elucida a passagem da produção de imagens do modo manual e artesanal para o modo de reprodução em série por meio de máquinas. O que ocasionou na era da reprodutibilidade técnica e a sociedade do descontrole. As imagens, antes buscadas por serem únicas, agora são repetidas, idênticas, seriadas. Por mais que produzamos imagens, é inevitável que as mesmas passem pelo processo de invisibilidade, não por esquecimento ou desgaste, mas pela atuação excessiva, descontrole, inflação, excesso de produção de imagem. Para o autor, essa produção inflacionada de imagens provoca a perda dos símbolos diretores e o esvaziamento de sentido, então precisamos de mais imagens para substituí-las, que também perdem seu valor e precisamos de outras. Neste sentido, nos tornamos devoradores vorazes de imagens. Assim também acontece com a nossa auto imagem na rede, precisamos o tempo inteiro reivindicar a sua re-significação. A existência agora depende da adesão a uma plataforma que nos coloque na rede digital (mídia terciária), e dessa forma podemos participar e pertencer à vida social onde estão os nossos iguais. O emblemático Cogito, ergo sum, aqui é substituído pelo Video, ergo sum, ou seja, sou visto, pertenço aos meus iguais, então existo (ideal comunitário). Certamente, alguns grandes teóricos de diversas áreas foram verdadeiros prenunciadores no que diz respeito à profusão de imagens que vivenciamos hoje em decorrência da reprodutibilidade técnica, da evolução dos meios e da terceira onda da internet. Marx, Debord, Maffesoli, Feuerbach, Benjamin, Bourdieu entre outros, quando escreveram sobre, seguramente falavam do mercado ou de mercadoria, e não de indivíduos. Quando Marx escreveu [...] rápido melhoramento de todos os instrumentos de produção, pelas comunicações infinitamente facilitadas […], é impossível que ele tenha imaginado que um indivíduo comum poderia, por exemplo, entrar em um banheiro, fazer dezenas de fotografias de si mesmo (selfie) e lançar em uma rede de alcance mundial. E que esse mesmo indivíduo, por estar conectado por uma plataforma de uma corporação, poderia ser negociado como uma mera mercadoria; quanto mais usuários uma plataforma possui, mais poder de barganha para negociar com os seus anunciantes. A ditadura contemporânea não consiste mais no fato, salvo exceções notáveis, de indivíduos sanguinários e cruéis, ela é anônima, doce, dissimulada. Ela é, sobretudo, não consciente do que é, ou do que faz, e se emprenha, em total boa fé, em promover o sacrossanto princípio de realidade utilitarista. E desse modo extirpa, de fato, a faculdade onírica. (MAFFESOLI, 1995, p.145)

Os serviços de adesão em qualquer plataforma de relacionamento ou rede social, para o indivíduo mais desatento, parece ser totalmente gratuito, quando na verdade quando concordamos com os termos de uso estamos nos colocando à 60

disposição da corporação como mercadoria para sermos alvo de todo tipo de publicidade. Podemos comparar este fenômeno com a prática de casas de entretenimento ou festas que anunciam gratuidade para mulheres, é a mesma lógica de negócio. Um estabelecimento quando anuncia que mulheres tem entrada gratuita, não estão dando às mulheres a entrada sem nenhum custo, mas fazendo delas a sua mercadoria; ele está oferecendo o espaço, a festa, a bebida e, consequentemente, as mulheres que estão ali sem pagar.

7 - O mito da satisfação estética Ao iniciarmos este trabalho, pressupostos saltavam a nossa frente caminhos múltiplos apresentavam-se como elementos certos e fechados, mas ao avançarmos nessas laudas formos vislumbrando outros elementos, este homem “pós-moderno” cercado por referências mitológicas que em seu racionalismo o abstrato e impalpável está sempre a rondar, é em si um ser de múltiplas possibilidades e nomenclaturas, indicamos isto no texto ao evocar se caráter narcisista, erótico, simbólico e também aesthético. Sentir, apreender o mundo que o cerca e o qual numa interação simbiótica influencia e é influenciado pelo mesmo, compõem uma das muitas facetas deste homem, diante da moldagem social. Vale lembrar que: A força produtiva estética é a mesma que a do trabalho útil e possui em si a mesma teleologia; e o que se deve chamar a relação de produção estética, tudo aquilo em que a força produtiva se encontra inserida e em que se exerce, são sedimentos ou moldagens da força social. (ADORNO, 1998, p. 16)

O likes determinam sua popularidade, seu status é medido pelo número de amigos, curtidas e compartilhamentos, o tecido social é tramado com estes fios que privilegiam a lógica do ter e do parecer e reduzem o noção do que se é, a força produzida ou induzida pelos memes que alternam-se entre política, amor, solidariedade e até mesmo falta de cultura geral, mergulha-se num estado onde rirse de tudo, para num apelo a comédia suportar o esvaziamento simbólico que ora enfrentamos, o estado fraturado em que o homem está, e pode ser visto enquanto: Os sinais da desorganização [que] são o selo de autenticidade do modernismo; aquilo pelo qual ela nega desesperadamente o encerramento a invariância. A explosão é um dos seus invariantes. A energia untitradicionalista transforma-se em turbilhão devorador. Nesta medida o Moderno é um mito voltado contra si mesmo; a sua intemporalidade torna-se catástrofe do instante que rompe a continuidade temporal. (ADORNO, 1998, p. 35)

A tensão entre atual e virtual é vivenciada nas redes sociais a cada segundo ou byte de informação, somos agregados enquanto mercadoria simbólica, na seguinte forma: recebemos a possibilidade de termos relações voláteis – para 61

começarmos ou terminarmos amizades basta um botão, esta barreira sobre o peso da realidade suplantada pelo distanciamento físico e temporal, e da mesma forma tornamo-nos números (estatística), um verdadeiro curral, onde sem que percebamos vemos, ouvimos e “sentimos” o que foi determinado por algoritmos de satisfação, de um estado de felicidade, ansiedade ou desejos idealizados. Esta satisfação é de caráter estético, formulada no momento em que preenchemos nosso perfil, curtimos ou bloqueamos determinadas publicações. Por vezes a auto-imagem do perfil das principais redes sociais é substituída por memes de representação de alguma comoção generalizada, principalmente quando o caso em questão ganha notoriedade ou é super espetacularizado pela mídia de massa. A violência passa a significar apenas a visibilidade da violência ou então a ter uma estreita e estranha relação com o fenômeno tão contemporâneo da visibilidade. Só é violência o que se vê, e não se considera violência quase nada do que ocorre nos subterrâneos da vida social, da esfera familiar ou das relações interpessoais. (BAITTELO JUNIOR, 2014, p. 35)

Um acidente, um atentado ou um crime chocante acorrido na França pode suscitar o sentimento de coletivismo planetário (ideal comunitário, pertencimento) quando mostrado insistentemente pela mídia de massa (espetacularizado), e em pouco tempo temos uma legião de usuários da rede com a imagem de perfil montada ou editada digitalmente sobre a bandeira da França em sinal de compadecimento com o acontecimento. Entretanto, todo o tempo, temos os exemplos de ocorridos a nível regional de violência para com a humanidade ou para com a liberdade e não instigamos com o mesmo empenho, pois não são espetacularizados. Dentre outros prejuízos que o modus vivendi do homo narcissus postmodernus e sua relação iconofágica com a imagem acarretará para a sociedade, podemos enumerar: a homogeneização de estereótipos com bases nos valores estéticos estabelecidos e a intolerância para com as minorias e as diferenças; a permanência do indivíduo em um tempo cíclico, ignorando o tempo histórico por estar sedado no seu estado de contemplação de imagens; a transmutação de si mesmo em imagem (projeção imagética de si mesmo) e em mercadoria; e a inibição da introspecção. “o indesejável está dentro de si mesmo, é a introspecção, o olhar para dentro de si mesmo” (BAITELLO JUNIOR, p. 70) Uma das revoluções no campo das artes durante o Renascimento foi a aplicação da perspectiva – o ponto a partir do qual observamos determinada imagem, sugiro a nosso caro leitor tirar uma selfie; observe-a, aguce o olhar e perceberá que linhas imaginárias propagam-se a partir de você – centro simbólico da imagem, terás num segundo plano amigos ou paisagens que indicaram um locus,

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as relevâncias sociais e pessoais ditará se esta imagem ganhará vida no universo virtual, ou se a mesma terá apenas uma função efêmera.

Referencias

ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1998. ARAÚJO, Alberto Filipe. Da Mitocrítica à Mitanálise – um contributo metodológico em educação In O mito revivido – a Mitanálise como método de investigação do imaginário. São Paulo: Képos, 2014. BAITTELO JUNIOR, Norval. A era da iconofagia: reflexões sobre a imagem, comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014. BARAN, Paul. On Distributed Communications. Rand Corp: Santa Monica, 1964. Disponível em: http://www.rand.org/pubs/research_memoranda/RM3420.html. Acessado em: 10/03/2016 às 19h. BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. São Paulo: Editora Vozes, 2014. BIERDEMANN, Hans. Melhoramentos,1997.

Dicionário

Ilustrado

de

símbolos.

São

Paulo:

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DURAND, Gilbert. Mito e sociedade. Lisboa: A regra do jogo, 1983. ELIADE, Mircea. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa: Edições 70.1987. ______. Mito e Realidade. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva, 1991. GUTIÉRREZ, Fátima. Mitocrítica – Naturaleza, funcione, teoria y pratica. Sant Salvador: Milenio, 2012. LÉVY, Pierre. O que é virtual?. São Paulo: Editora 34, 2014. MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e ofícios, 1995. MARDONES, José María. A vida do símbolo – a dimensão simbólica da religião. São Paulo: Paulinas, 2006. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2008.

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Narrativas do corpo: metodologia de contato da criança consigo mesma e seus desdobramentos

Kilma Farias Bezerra57 Resumo

O movimento corporal pode se transformar em uma eficiente ferramenta para se acessar a si mesmo. O primeiro mundo da criança é o corpo. Quando ela passa a explorar o mundo exterior, necessita da orientação de um adulto que estará lhe ensinando valores. Aos poucos essa criança vai silenciando seus movimentos e se enquadrando num padrão social corporal. O método proposto objetiva que a criança reaprenda a brincar com seu corpo como mecanismo de escuta para acessar seu espaço interno, que está pleno de fantasia, representações simbólicas, experiências relacionais e essência criativa – seu imaginário. A criança que é consciente de seu corpo e de si terá mais chances de ser um adulto mais independente. A metodologia proposta fundamenta-se na hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur (19132005) em diálogo com a teoria psicogenética de Henri Wallon (1879-1962) e a teoria do movimento de Rudolf Laban (1879-1958). Ricoeur traz a arte de compreender-se a si mesmo através do texto. E, na metodologia proposta, o texto é a linguagem do corpo. Em Wallon os processos psíquicos do ser humano são integrados – intelecto, afetivo e motor. Laban traz a linguagem do movimento como objeto de estudo. A metodologia foi desenvolvido para crianças de 6 a 11 anos, quando o raciocínio simbólico se consolida como ferramenta cognitiva e a criança começa a desenvolver as capacidades de memória e atenção voluntárias. Os resultados esperados da aplicação da metodologia é uma criança que reaprendeu a ouvir o corpo, deixando o movimento falar, para entrar em contato consigo mesma, sua subjetividade, facilitando um maior conhecimento de si para assim poder se desenvolver e integrar o mundo e suas possíveis relações com consciência. Palavras-chave: narrativa, imaginário, corpo. 57

Mestranda em Ciências das Religiões, graduada em Jornalismo, graduanda em Licenciatura em Dança. Integra os grupos de pesquisa Sacratum/CNPq e NEPCênico/CNPq, ambos da UFPB e é bolsista de extensão do MoveMente/CAPES. [email protected] Orientação de Suelma Moraes

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1. Introdução à teia teórica

Paul Ricoeur (1913-2005) foi um destacado filósofo francês do período PósSegunda Guerra Mundial de extrema importância para pensarmos o conceito de pessoa humana e suas produções simbólicas. O estudo das narrativas sob uma perspectiva linguística e poética, assim como a reflexão filosófica sobre a memória, compõem o universo da fenomenologia hermenêutica de Ricoeur. Henri

Wallon

(1879-1962)

também

francês,

também

filósofo,

atuou

significativamente na psicologia e educação. Sua teoria psicogenética preocupa-se com a explicação da relação entre a criança e seu meio social, propondo compreender a gênese dos processos psíquicos do ser humano de forma integrada e às dimensões intelectual, afetiva e motora em interdependência. No universo da dança, estudiosos do movimento como o austríaco Rudolf Laban (1879-1958) entendem as emoções como corpo e, portanto, sendo indissociáveis. Laban propõe uma correlação ao que ele chama de Fatores de Movimento a estados psicofísicos. Assim, os Fatores de Movimento Fluxo, Espaço, Peso e Tempo, correlacionam-se respectivamente com Emoção, Atenção, Sensação e Decisão. Tendo em vista as aproximações e contrastes entre o pensamento desses três estudiosos do ser humano, visualizo uma teia cujos fios da trama tecem uma metodologia capaz de auxiliar a criança a emergir sua potência simbólica, muitas vezes esquecida pela construção de mundo a que foi socialmente imposta. O primeiro brinquedo do homem é o corpo. O bebê, desde os primeiros dias de vida, move suas mãos, tendo no corpo um objeto de experimentação de si mesmo. Ao passar dos meses, pega nos pés, explora braços e pernas, até sentir o peso da cabeça, engatinhar, sentar e andar. Sento esse último verbo um divisor de águas na liberdade do corpo do sujeito. Ao iniciar os primeiros passos, uma conduta social é apresentada para o novo morador desse planeta, o novo grão movente nessa terra. Uma série de “nãos” e “porquês” moldam a personalidade do sujeito que se descobre em relação consigo mesmo e com o mundo exterior a ele. Para além das sensações, lhe são ensinadas racionalizações nas quais precisa introjetar e com as quais precisa aprender a 65

conviver. O fato é que, na maioria das vezes, o mundo inerente ao sujeito (subjetivo) é silenciado para que outros valores sistêmicos vigentes possam falar nele e através dele, sustentando a realidade social. A metodologia “Narrativas do corpo” propõe tecer uma “Geogramática” do sujeito onde serão levantadas memórias narrativas da criança sobre seu próprio corpo. Assim, o procedimento metodológico é voltado para crianças na fase dita Categorial, em Wallon, dos 6 aos 11 anos, quando desenvolvem a capacidade de raciocínio simbólico e atenção voluntária, buscando fazê-las refletir como interpretam e compreendem a si mesmas. A fase Categorial sucede a fase do Personalismo, dos 3 aos 6 anos, quando se verifica uma fase de imitação motora e social, fazendo o sujeito se afastar gradativamente da sua subjetividade inerente, visceral, sua verdade. Através da metodologia em apresentação nesse artigo, uma narrativa do corpo é escutada, propondo, através do movimento, uma possível linguagem do eu mais profundo do sujeito que é articulada em espaços diversos: internos e externos, real e imaginário, espaço da memória e dos desejos – há uma infinidade de espaços a serem narrados pelo movimento.

2. Fundamentando a Geogramática

Há vários significados para o prefixo grego Geo. O que mais contempla minha pesquisa é associá-lo ao estudo das formas e composições físicas, da natureza e do humano, ou seja, da Terra. Geo é terra: a natureza é terra; somos natureza, somos terra, somos humanos enquanto húmus. Já a palavra Gramática58, substantivo feminino, nos diz de um conjunto de princípios que regem o funcionamento de uma língua, tendo com foco a morfologia e a sintaxe. De origem grega, passando pelo latim “Grammata”, significava “letras”. Numa época em que o analfabetismo imperava, a arte de escrever era considerada misteriosa, configurando-se como arte incompreensível, relacionada à magia. Assim, a Geogramática propõe extrair do húmus do homem, do mais profundo que se possa cavar sua terra, seu chão, aquilo que o faz refletir sobre si e seu inerente conjunto de princípios, muitos deles ainda desconhecidos pelo sujeito. A

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Disponível em < http://www.dicionarioetimologico.com.br/gramatica/>, acesso em 25,10, 2015.

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narrativa do corpo ganha voz pelo movimento para trazer à tona o imaginário do aluno e todo seu composto criativo, entrando em contato com sua verdade descortinada para poder então transformar-se no melhor de si, já que só podemos transformar e melhorar aquilo que conhecemos. Nesse pensamento, o movimento se faz dança enquanto arte de magia, pura alquimia que transforma o sujeito a partir de si. Observa-se aqui a espiritualidade não religiosa, inerente ao humano do homem, anterior às construções sociais simbólicas a que foi submetido. Para tanto, penso o conceito de espiritualidade a partir de Boff onde ela é tudo “[...] aquilo que produz no ser humano uma mudança interior” (BOFF, 2006, p. 16) capaz de transformá-lo num ser melhor. Assim toma-se como base o eixo temático centrado no Rito, contido dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso, abordando rituais do corpo, símbolos do imaginário e espiritualidade. Na minha percepção, os eventos que se sucedem no corpo, em toda a sua extensão, no ato da dança, são como uma rede interconectada. Penso em um corpo que não propõe separação entre o que o move e o que ele move ao dançar, através da não hierarquização entre impulso interno e externo. A dança se escreve como um todo, preenchido e presente de si, que vivifica o movimento enquanto arte. De acordo com Laban (1978, p. 53), uma literatura da dança é tão necessária quanto os registros históricos da escrita, o que implicaria na descrição das ações corporais e seus movimentos internos e externos, que refletiria a linguagem corporal (dança) e seus símbolos. A imperiosa necessidade de brincar e dançar expandiu-se, em consequência, numa variedade estonteante de tradições de movimentos, em todos os campos da atividade humana. A dança tem sido empregada como um agradável estímulo ao trabalho, principalmente em acessórios de luta, da caça, do amor e de muito mais atividades. Foi na dança, ou pensamento por movimentos, que o homem a princípio se apercebeu da existência de uma certa ordem em suas aspirações superiores por uma vida espiritual. (LABAN, 1978, p. 43).

Para Laban, o movimento é universal. “Em sua visão cósmica de mundo, o movimento era a origem de todo o ser e o elemento básico da vida, considerando a dança o retrato puro da vida.” (MOMMENSOHN & PETRELLA, 2006, p. 46). Dentro desse pensamento, o movimento está em tudo que é vivo, logo, movimento é igual à vida. Pensando desse modo, conclui-se que a qualidade de vida está implicada em como o ser vivo se move. A gama de complexidades e

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intenções provenientes desse mover é característica do movimento, que é capaz de informar as qualidades gerais de uma vida. Procurando analisar a correlação entre as teorias de Laban e Wallon, através da fenomenologia hermenêutica, vamos encontrar no início da caminhada do ser humano, a emoção e a afetividade, para os dois teóricos. Em Laban, o Fator de Movimento Fluxo ou Fluência está relacionado com o estado psicofísico da emoção. Para Wallon, “o sujeito possui um aparato orgânico prevalecente em seu início de vida, marcado por manifestações predominante emocionais, direcionadas ao mundo externo, às pessoas que dele cuidam”. (NUNES, SILVEIRA, 2009, p.109). Desta forma, Wallon objetiva entender que o contato social possibilita a construção de condutas de raciocínio e de visões de mundo, mas anterior a essa construção de um mundo cognitivo, simbólico, o ser humano tem em si sua linguagem pessoal, sua verdade, o primordial, o humano do homem, sua morada, sua “terra”. A teoria pedagógica de Wallon afirma que o desenvolvimento intelectual envolve muito mais que um simples cérebro. Assim, ele revolucionou por levar para dentro da sala de aula não só o corpo das crianças, mas suas emoções. A psicologia de Wallon é integradora, enfatizando emoção e afetividade na construção intelectual do conhecimento. Ele traz a conexão entre emoção e inteligência, sendo a primeira a mobilizadora da segunda, gerando a sociabilidade. Nesse sentido, a escola é entendida como um lugar de construção do conhecimento, mas também da identidade dos sujeitos – professor e aluno – pelas relações estabelecidas não apenas entre professor-aluno e aluno-aluno, mas também com o ambiente social e espacial da escola assim como os contextos compartilhados no dia-a-dia. Wallon fundamentou suas ideias em quatro elementos básicos que se comunicam o tempo todo: a afetividade, o movimento, a inteligência e a formação do eu como pessoa. Seu método deve ser aplicado apresentando conteúdos que atendam à construção de mundo (conhecimento objetivo) e à construção do eu (subjetividade), através de atividades que possibilitem a expressão verbal, corporal e emocional.

3. Uma nova metodologia sob um paradigma emergente

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A metodologia “Narrativas do corpo” foi desenvolvida através de um novo paradigma em experimentação, a pesquisa “guiada-pela-prática” ou “pesquisa performativa”, proposto através de manifesto59 por Brad Haseman, professor da Creative Industries Faculty da Queensland University of Technology, Austrália. Desse modo, a pesquisa performativa “expressa em dados não numéricos, em forma de dados simbólicos diferentes de palavras de um texto discursivo.” (HASEMAN, 2015, p.47). Para tanto, é facilitada ao aluno de 6 a 11 anos a condição de entrar em contato com sua Geogramática – sua linguagem simbólica pessoal que o coloca em contato consigo mesmo e que está sempre em constante movimento – através de aulas presenciais semanais de 45 minutos cada, em acompanhamento durante todo o ano letivo por um cientista da religião com foco na educação. O professor abordará a reapropriação do corpo do aluno por ele mesmo através de conduções que estabeleçam relações – consigo, com o outro, com o espaço e com o tempo. Assim, podemos estabelecer correlações entre aspectos interiores e exteriores, entendendo os aspectos exteriores como o meio social e o espaço. Pensando a construção do mundo e a construção do eu do aluno em Wallon, podemos esboçar um esquema das experiências sensitivas e cognitivas, além de entrever as conclusões hipotéticas dessas experiências, assim representadas. Experiência

Sensitiva

Cognitiva

Hipotética Conclusiva

Ação

Descrever

Narrar

Prescrever

Foco

Objetos

Associações

Julgamento

Caráter

Objetivo

Subjetivo

Ético

No campo da experiência Sensitiva temos o corpo palpável e descritivo a ser explorado pelo aluno. Em articulação com os Fatores de Movimento de Laban, teremos atividades que ponham o aluno em contato com o peso do seu próprio corpo e as sensações que podem suscitar a partir dessa reapropriação.

59

HASEMAN, Brad. A Manitesfo for Performative Research. International Australia Incorporating Culture and Policy, theme issue “Practice-led Research” n. 118. (2006, p. 98-106).

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Num segundo momento, o contato com o corpo do outro e o entendimento de si a partir do outro, onde associações possam ser feitas em subjetividade, iniciando um processo narrativo de si. Num terceiro momento, o estudo do espaço e do tempo colocará o aluno em contato com elementos como atenção e decisão, respectivamente. Entendendo a atenção como uma área maior que abraça o espaço-tempo e a percepção. Assim, o espaço pode ser entendido como seu próprio corpo em expansão, e não um lugar qualquer alheio a ele. Tudo passa pela experiência do corpo. Mas ao mesmo tempo em que essa corporeidade se presentifica, também se turva. Isso se dá porque, segundo Merleau-Ponty (2006, p. 290) “entre minha sensação e em mim há sempre a espessura de um saber originário que impede minha experiência de ser clara para si mesma.” E é nesse saber originário, nesse profundo do ser, no imaginário, que a experiência se humaniza na arte da dança. Facilitar ao aluno desenvolver sua Geogramática particular colabora com o entendimento de si e do mundo, tornando-o um adulto mais consciente de seu corpo e de suas experiências.

Referência Bibliográfica

BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2006. HASEMAN, Brad. Manifesto pela pesquisa performativa. Resumos do Seminário de Pesquisas em andamento PPGAC/USP. São Paulo: ECA USP, 2015. LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo : Martins Fontes, 2006. MOMMENSOHN, M. e PETRELLA, P. Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento. São Paulo: Summus, 2006 NUNES, A. I. B. L. & SILVEIRA, R. N. Psicologia da Aprendizagem: processos, teorias e contextos. Fortaleza: Líber Livro, 2009. WALLON, H. Psicologia e educação da infância. Lisboa: Estampa, 1975.

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O imaginário na interpretação da mensagem de Jesus de Nazaré: um estudo do mito, do ethos e do rito Maria Cecília Mendia60 Introdução A presente comunicação tem como intuito mostrar a presença do imaginário na origem de duas proposições: a importância de Jesus histórico para o surgimento da religião cristã, e, a revitalização da religião judaica por meio de Jesus de Nazaré. Com a preocupação de abordar o cristianismo nascente para torná-lo conhecido e reconciliá-lo com seus críticos atuais, trouxemos à baila o segundo capítulo do livro A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do cristianismo primitivo, publicado em 2009. Seguindo o autor Gerd Theissen, nossa abordagem pretende pontuar as três tensões fundamentais do sistema religioso de sinais: o mito, o rito e o ethos, relacionando a mensagem de Jesus com as formas expressas na religião judaica. O que está em questão é se o Jesus histórico lançou os fundamentos para uma nova linguagem religiosa de sinais. A hipótese é a de que a religião cristã foi atribuída a Jesus de Nazaré com as interpretações imaginárias que seus seguidores deram a sua pessoa e a sua morte. A formação do elo mito e história de Jesus de Nazaré. A chave de leitura para abordar o relacionamento da história de Jesus com a criação do mito salvífico deve primeiro transpassar formas de expressão da religião judaica, para depois considerar como se fechou o elo da história de Jesus com o mito salvífico. A narrativa do anuncio do nascimento de Jesus já contem em seu cerne o mito judaico dos últimos tempos, como um tempo decisivo para o mundo, um tempo em que Deus iria prevalecer contra todos os poderes sobrenaturais – Satã e seus demônios – a fim de mudar a situação instável de desgraça numa circunstância salvífica. Segundo Theissen: “O mito é a veste em forma de história dessas ideias, que visam à realização da história salvífica” (THEISSEN, 2009, p.42, n.2). O mito do senhorio de Deus como Deus Todo Poderoso, arraigado na memória do povo judeu, com a dramatização narrada no Livro do Êxodo, representa como o poder do Deus de Israel foi capaz de libertar os escravos judeus do Faraó, no Egito. Esse arcabouço imaginário, na franja da ideia de libertação dos oprimidos, permite a introdução da noção de Reino de Deus. E essa ideia de libertação assim relacionada já havia se cristalizado no acervo coletivo de imagens do judaísmo sendo continuamente vivificado pela leitura da Torá, por ocasião da Páscoa judaica. Assim a noção de Reino de Deus é compartilhada de maneira natural entre os judeus. No entanto, o discurso de Jesus revitaliza a ideia de Reino de Deus colocando-o em seu presente ou em seu futuro muito breve. Outro argumento, na pregação de Jesus une a alegoria política – o reinado de Deus – com outra alegoria também familiar aos judeus – a imagem de Deus como Pai. Dessa maneira, Jesus diferencia seu 60

Bacharel e Licenciada em História pela Universidade São Paulo – USP, em 1970. Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP em 2014.

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discurso, com a noção de que Deus chega ao poder como Pai em seu reinado e não como rei. E seus filhos e filhas têm como tratamento família dei, um relacionamento privilegiado com Deus como coparticipantes de seu senhorio. Observe na oração, a proximidade de Deus com seus filhos – Pai Nosso – e a invocação venha o teu reino. O mito do senhorio vindouro do Pai assume uma forma distinta na pregação de Jesus. É transmitida como sendo o futuro mítico no presente através de três maneiras: a historicização, a poetização e a desmilitarização. Do ponto de vista da historicização, uma das atitudes que Jesus assume é a prática do exorcismo, a qual ele une a sua capacidade de exorcizar à prova do senhorio de Deus contra Satã e seus poderes. Jesus exerce o exorcismo, em nome de Deus e investido de seus poderes. Pode-se perceber a assunção de um papel que sugere uma relação pessoal com Deus. Do ponto de vista mítico, Jesus está representando a luta do Bem e do Mal, com isso, ele cria um substrato composto de testemunhas oculares, para sustentar-se, como “um próximo” de Deus. Desse modo, fica mais fácil acreditar em seu anuncio de que o Reino de Deus se aproxima e que o futuro mítico está no presente, “está no meio de vós”, ou dito também “em vós”. Jesus anuncia que o Reino de Deus está presente em tempo atual como germe escondido, ou como uma semente, que se desenvolve até a colheita num tempo espantosamente breve. Theissen tece o seguinte comentário: para a exegese neotestamentária o futuro existindo ao mesmo tempo no presente é muito difícil de ser logicamente entendido. Mas no âmbito do pensar mítico isso não é estranho, pois aquilo que é diverso e diferente em sua manifestação pode na memória humana tornar-se idêntico. Assim, o agir de Jesus pode identificar-se com o futuro senhorio de Deus (THEISSEN: 45). O teor da mensagem de Jesus de Nazaré: é a composição poética da historicização do mito escatológico com o mito do senhorio vindouro do Pai. Seguindo a tradição religiosa judaica, Jesus transmite sua mensagem com formas estéticas, nas quais pode estar presente também o que está ausente. É nesse duplo sentido que as parábolas contadas narram a respeito de Deus e de seu reinado, e suas imagens fictícias despertam estímulos para seus ouvintes explicarem para si mesmo o significado, levando-os a repensar a noção de Deus, do mundo e a respeito de si mesmo. A linguagem poética figurada da profecia, e da Sabedoria judaica já é parte do universo imaginário do povo judeo, mas Jesus revitaliza com novas formas estéticas, tornando relevante a desmilitarização. Trata-se do anuncio do Reino de Deus com dupla reviravolta provocada pelo senhorio de Deus. Uma ocorre no plano metafísico, com a vitória sobre os demônios, e outra, no plano físico, com o deslocamento dos pobres da periferia para o centro da vida comunitária no Reino do Pai. Em resumo, Jesus vive em um mito escatológico, que nada mais é do que a dramatização de um axioma do judaísmo – o Reino de Deus. A conexão entre o mito e a história é característica da religião bíblica. Os ensinamentos de Jesus transmitidos através de suas parábolas expressam a conexão de sua história com o mito do Reino de Deus, mas é através de linguagem poética, que seus ouvintes constroem internamente os axiomas sem questioná-los como uma evidência para si mesmo, e passam a visualizar a imagem poética – a expectativa do reinado do Pai. Ethos como tensão fundamental do sistema religioso de sinais A ética de Jesus é percebida como um contraste ao judaísmo por autores cristãos distanciados do início do cristianismo, porém, sua ética pertence ao judaísmo. Na época de Jesus, o ethos da religião judaica já se encontra integrado na Torá, todas as normas se referiam à absoluta vontade de Deus carregada de exigência de obediência 72

incondicional. Todas as normas têm a função de mandamentos rituais para os judeus, e com sua prática no convívio cotidiano se abre a possibilidade de aproximar-se a Deus. A ética de Jesus dá continuidade a essa noção de ligação com Deus, porém, reage à radicalidade do cumprimento das normas éticas judaicas, e promove a tolerância às transgressões das normas. A dupla atitude de reação, e de tolerância às normas é proposta com o ethos da reconciliação, do perdão e do reconhecimento da fraqueza do ser humano. No entanto, no judaísmo o ethos da reconciliação, ou a disponibilidade e até mesmo o incentivo ao perdão já estava enraizado em sua memória religiosa. O que pode ter enevoado a visão dos escritores distanciados do início do cristianismo são as discrepâncias nos ensinamentos e atitudes do comportamento de Jesus. Parece que o mais importante é destacar um traço intrigante e particular da ética de Jesus quanto ao mandamento do amor ao próximo. Ele se refere aos estrangeiros e aos pecadores não como os destinatários do amor, mas como sujeitos dele. Afirma também que os cobradores de impostos e as prostitutas entrarão primeiro no Reino de Deus, juntamente com os pobres e as crianças por serem todos eles piedosos e “aqueles que mais amam”. A chave de leitura para o entendimento desse ideal pode ser melhor entendida com as considerações feitas por um dos principais pensadores críticos da América Latina – Franz Hinkelammert (1931) – com o conceito de que há duas sabedorias: a de Deus e a do mundo. Na sabedoria de Deus no pequeno está o grande e no fraco está a força, ou seja, os desprezíveis pela sabedoria do mundo é que são os sujeitos na sabedoria de Deus. O projeto de Jesus é uma transformação de tudo a partir da sabedoria de Deus. É a linguagem dos paradoxos que penetra o espiritual. Contudo, a sabedoria de Deus, não abole, ou substitui a sabedoria do mundo. Pois, a sabedoria do mundo é o caminho para a sabedoria de Deus. Ela capta a verdade da sabedoria de Deus no campo da razão mítica, a qual também pode se tornar a verdade para a sabedoria do mundo. A sabedoria de Deus, apesar de estar no plano mítico pode ser alcançada pela sabedoria do mundo se inverter o critério que afirma: “sou se derroto você” para o critério de acordo com a expressão “sou se você é”, expressão segundo a tradição africana, que se tornou um mote nos conflitos durante a Apartheid. O amor ao próximo exprime, então, o reconhecimento do outro como sujeito vivo no sentido do: eu sou se você é. Assim, amor ao próximo adquire o sentido de tornar-se solidário, estar ao lado do outro, que não pode se salvar sem você, tal como, você não pode se salvar sem ele. Já no livro bíblico Levítico está prescrito: “Amareis vosso próximo; vós mesmos sois ele”. (Lv 19,18). O conceito basilar do amor ao próximo encontra atualmente uma revisão que propõe o seguinte: A fé em Jesus de Nazaré pode provocar conflitos desumanos. Ao contrario, a prática da fé de Jesus de Nazaré humaniza o sujeito, e nesse sentido, é secular, ainda que seus argumentos tenham origem cristã, pois, esse ponto de vista é universal, e não propriedade de alguma religião. Assim, as interpretações imaginárias são criativas, e podem ser revisitadas até hoje (HINKELAMMERT, 2012 p. 39-48). Rito como linguagem de sinais Ao considerar que não há rupturas com o judaísmo tanto no âmbito do mito como no do ethos, mas apenas há uma revitalização, Theissen dirige sua pesquisa ao campo da linguagem ritual de sinais, partindo da definição de que o judaísmo é uma religião de rituais, com comportamentos simbólicos repetitivos no dia a dia. É também uma religião com sinais identificadores como a circuncisão, as regras alimentares e de pureza, e a obrigação da observância de repouso, de estudos e de preces aos sábados. Diante dessa linguagem ritual de sinais, a atitude de Jesus apresenta certas particularidades. Com relação à circuncisão Jesus não se posiciona. Mas questiona as autoridades judaicas quanto a observância das determinações sabáticas, e as regras de pureza, que definem os alimentos 73

permitidos e os alimentos proibidos, e, por fim, qualifica de irrelevante toda pureza exterior. Assim, Jesus apenas constata indicativamente sem colocar a exigência imperativa quando diz: “nada há no exterior do homem que, penetrando nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do homem, isso é o que o torna impuro” (Mc 7,15). Somente mais tarde com uma visão do Apóstolo Pedro (At 10, 9-11) é que a máxima sentenciosa “Imola e come” tornou-se uma prescrição comportamental concreta, originando assim a transgressão das normas judaicas com relação às regras de pureza. O nazareno se preocupa apenas com as refeições de seus discípulos e lhes recomenda “comam tudo o que se lhes for posto à frente”. Outra particularidade de cunho universalista expressa por Jesus é a visão do banquete escatológico em que ele vê pessoas dos quatro cantos do mundo vindo para o Reino de Deus, e assim projeta um quadro de uma refeição comum entre judeus, com os patriarcas – Abraão, Isaac e Jacó – e pagãos, sem que as regras alimentares tenham a menor importância. Quanto ao terceiro ponto estudado, Theissen afirma que: não se pode afirmar que Jesus abandona a linguagem ritual de sinais. Ele apenas se ocupa dela de forma concreta e interpreta-a mais liberalmente, sem que isso represente uma ruptura com a sua religião. Mas, então, onde Jesus se situa no judaísmo? O fio da resposta está na critica que Jesus faz ao Templo, com sua profecia de que “o Templo será destruído e não ficará pedra sobre pedra”. Pois, o Templo estava no centro ritual da religião judaica. Com essa atitude Jesus dá o testemunho indireto de uma secreta ligação interior com o centro da linguagem ritual de sinais do judaísmo. Ele quis reformar esse centro, dito de forma mais precisa ele quis substituí-lo por um novo Templo com a superação de sacrifícios, e com a retirada dos interesses públicos de seu interior. Jesus com sua temática com relação ao Templo toca o centro nevrálgico do judaísmo, da mesma forma em que se coloca em meio ao judaísmo. Ele não é um “judeu marginal”, a não ser na opinião de grupos judeus segregados, como os fariseus, os saduceus e os essênios, que o consideram “uma figura marginal com problemáticas opiniões liberais e com um misterioso carisma, solapador das tradições” (THEISSEN: 56). Finalização O conjunto dessas ações forma um comportamento político - simbólico vivenciado por Jesus como o mito de mudança para o Reino de Deus. E é somente por meio desse mito que as ações – o exorcismo como sinal do início do reinado de Deus – as refeições com pessoas consideradas marginalizadas, que podia representar o grande banquete escatológico – adquirem “forte e expressivo sentido político-simbólico”. Mas esse mito capaz de representar uma resistência às situações vigentes depende além de palavras e ações de uma aura especial, um carisma, que envolve toda a pessoa, no caso, Jesus de Nazaré. Ele representa um movimento de renovação dentro do judaísmo. Como esses movimentos acontecem sempre como desafio às potencias que dominam a situação, a renovação não pode ser compreendida sem a moldura política. Isso explica porque Jesus teve o fim que teve. Vale lembrar que o único título inquestionável com o qual Jesus de Nazaré se autodenominou é o de “Filho do Homem”, que naquela época, na linguagem cotidiana, significava “toda pessoa” ou “uma pessoa” ou “eu”. Na religião cristã nascente, essa designação é tida como uma característica da linguagem de Jesus e transmitida somente quando mencionam suas palavras. O que nos apraz recomendar para reflexão é que o imaginário transmitido pelos primeiros cristãos coloca no centro do sistema religioso de sinais uma figura humana descrita simplesmente com a expressão que significa “o homem” – como autodesignação de Jesus de Nazaré (THEISSEN: 64).

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O imaginário dos Apóstolos vinculou o nascimento de Jesus de Nazaré à imagem transcendental do final dos tempos, excedendo dessa forma, os limites do mundo sensível, e ao mesmo tempo, é o que lhe confere um sentido próprio como o fio condutor de um modelo explicativo. Gostaria de complementar com citações de dois autores como referência para a organização de modelos, processos ou correntes de pensamento. Durand chama atenção para a natureza ontológica e afirma: “A faculdade de simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram continuamente desde cerca de um milhão e meio de anos (época em) que o homo erectus ficou em pé na face da Terra” (DURAND, 2011, p.117). A forma como essa Comunicação se insere no imaginário: “O imaginário apresenta-se como uma esfera de representações de afetos profundamente ambivalentes: tanto pode ser uma fonte de erros e de ilusões como uma forma de revelação de uma verdade metafísica” (WUNENBURGER; ARAÚJO, 2003, p.34).

Bibliografia DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da Filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2011. THEISSEN, Gerd. A religião dos primeiros cristãos: uma teoria do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 2009. WUNENBURGER, Jean-Jacques; ARAÚJO, Alberto Filipe; BAPTISTA, Fernando Pinto (orgs.). Variações sobre o imaginário: domínios, teorizações, práticas Hermenêuticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

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FT 2 (ESPIRITUALIDADE & SAÚDE: CONFLUÊNCIAS)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA IV VIDELICET CONGRESSO INTERNACIONAL João Pessoa - PB, de 4 a 7 de novembro de 2015 Fórum Temático: Espiritualidade & Saúde: confluências As Danças Circulares Sagradas em diálogo com Paulo Freire: Educação e Encantamento, Sentido e Saúde Profª Doutoranda Maria Eleonora Montenegro de Souza61 RESUMO As Danças Circulares são primordiais e universais, participando o ser humano em todos os acontecimentos cósmicos, encontrando-se com eles entrelaçado interna e externamente. A Educação, para Paulo Freire (um dos maiores nomes da pedagogia do século XX), tinha como uma das principais funções despertar nas pessoas a crença de que era possível mudar o mundo ou o compromisso, a ética, o sonho por outro mundo possível. Para ele: "Educar-se é impregnar de sentido cada ato cotidiano". Nosso objetivo tem como proposta desenvolver um pequeno diálogo entre a experiência do dançar em círculo (mãos ou braços entrelaçados, do formar pares, revestidos pelo poder da música, constituindo comunhão com a totalidade, com a comunidade, com o sagrado pessoal e o respeito ao sagrado do outro) com a visão freiriana solidária, libertadora e emancipadora do conhecimento. A dança como possibilidade de autoconhecimento, de busca de equilíbrio e centramento; experiência que transcende a fragmentação e reconhece o sentido da totalidade da vida. A Educação como leitura de mundo, compartilhamento e o diálogo como possibilidade de encantamento e reconstrução desse mundo. Educação como prática da liberdade. A Educação de Freire e a Dança Circular como teorias de respeito profundo à identidade do outro. A auto estima, a valorização, o prazer, o encantamento, o educador (como nos afirma Moacir Gadotti) como um profissional do sentido. A Dança Circular enquanto ferramenta para redescoberta do ser sujeito, cidadão, consciente, sem perder de vista o prazer e a qualidade de vida. Palavras - Chave: Dança Circular/ Educação/ Sagrado/ Saúde.

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Eleonora Montenegro: Professora do Departamento de Educação Musical da UFPB. Licenciada em Música (1980) e em Artes Cênicas (1982) pela UFPB; Especialização em Artes Cênicas (1984) pela UFPB; Mestra em Artes Cênicas (2001) pela UFBA e Doutoranda em Ciências das Religiões na UFPB. Atriz, autora, cantora, diretora teatral e focalizadora de Danças Circulares. Participante do grupo de pesquisa NOUS: Espiritualidade & Sentido, UFPB, coordenado pelo seu orientador, Prof. Dr. Thiago Antonio Avellar de Aquino. Email: [email protected].

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Falar de um objeto de paixão é vê-lo de forma ampliada, sem viseiras ou entraves, mas permitindo que o discurso aconteça com todos os sentidos unidos. Assim é, para mim, falar sobre a importância da Arte e, neste caso específico, sobre as Danças chamadas Sagradas. Assim podemos dizer também do educador Paulo Freire ao conectar-se com o seu objeto apaixonado e apaixonante, a Educação. As Danças Circulares Sagradas é, neste momento, o meu objeto de pesquisa dentro do doutorado em Ciências das Religiões na Universidade Federal da Paraíba. Projeto este ligado à área de Espiritualidade e Saúde, tendo em vista ainda a ampla visão da espiritualidade não religiosa. Projeto intitulado As Danças Circulares Sagradas e o Sentido da Vida: um diálogo entre as DCS e o pensamento de Viktor Frankl62 sobre o sentido da vida e a saúde. Dentre os diversos saberes que elencam a religião como objeto de estudo, esse Projeto vem trazer a perspectiva de se debruçar sobre a religião sob as óticas da Arte e da psicologia, proporcionando um diálogo entre esses campos distintos e complementares da realidade humana, compreendendo, como nos afirma Viktor Frankl, que a busca do sentido da vida poderá ser também considerada a busca pela saúde no sentido mais amplo da palavra. Dentro dessa mesma perspectiva e visão aprofundada sobre a Totalidade do ser humano, deparamo-nos quando desvendando a história e os saberes que acompanham as Danças Circulares Sagradas. E é justamente a partir de tantos anos de vivência com as Artes e, neste caso específico, com as Danças Circulares Sagradas, que venho propor, nesse projeto, um aprofundamento, compartilhamento, vivência e diálogo sobre a nossa pergunta filosófica primeira (a partir da qual poderemos objetivar uma melhor e real qualidade de vida), ou seja, o Sentido de Existir. Nesse caso, uma pesquisa e diálogo entre alguns estudiosos das Artes, das DCS com a fundamentação do Viktor Frankl, acreditando que possa ser essa pesquisa de grande importância, principalmente nesse momento em que vivemos de tanto desajuste, desconexão, desumanização e perda de si. Distanciando-se do sagrado da vida, distanciamo-nos também do sentido da existência. Através desse estudo mais aprofundado, uma proposta e reflexão: Podemos dizer que as DançasCirculares Sagradas promovem saúde, dialogando com o pensamento de Viktor Frankl sobre o sentido da vida? Quando da proposta deste artigo 'As Danças Circulares Sagradas em diálogo com Paulo Freire: Educação e Encantamento, Sentido e Saúde', percebo a possibilidade de um novo diálogo com a mesma amplitude, qualidade e necessidade essencial de reflexão para os nossos dias: De um lado, a Dança como possibilidade de autoconhecimento, de busca de equilíbrio e centramento; experiência que transcende a fragmentação e reconhece o sentido da totalidade da vida. Do outro lado, a Educação como leitura de mundo, como compartilhamento, tendo o diálogo como 62

Viktor Emil Frankl (1905-1997), psiquiatra e neurologista fundador da escola de Logoterapia. Segundo OLIVEIRA; AQUINO (2014) trata-se de uma terapia centrada no sentido; é considerada a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia, depois da Psicanálise de Freud e da Psicologia Individual de Adler. Mais especificamente, trata do fenômeno religioso como um aspecto especificamente humano, ou seja, como uma expressão de uma busca de sentido para a vida conforme compreendia Viktor Frankl.

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possibilidade de encantamento e reconstrução desse mundo. A Educação como prática da liberdade. A Educação de Freire e a Dança Circular como teorias de respeito profundo à identidade do outro. A auto estima, a valorização, o prazer, o encantamento, o educador (como nos afirma Moacir Gadotti) como um profissional do sentido. A Dança Circular enquanto ferramenta para redescoberta do ser sujeito, cidadão, consciente, sem perder de vista o prazer e a qualidade de vida. Primeiramente, para compreensão desse diálogo, necessário se faz situar o que chamamos de Danças Circulares Sagradas e, ao mesmo tempo, sintetizar quem foi o pensador Paulo Freire. Mas, para que o diálogo se faça com maior interação, estaremos mesclando as duas visões e compreensões de mundo: o das Danças Circulares Sagradas e o pensamento freiriano sobre a Educação. Dessa forma, acredito que poderá se tornar bem mais compreensível, criando-se também um movimento mais dançante, mais amalgamado; quase um pas de deux63 . Nosso objetivo com este artigo é, então, dar início a um possível diálogo entre a experiência do dançar em círculo (mãos ou braços entrelaçados, do formar pares, revestidos pelo poder da música, constituindo comunhão com a totalidade, com a comunidade, com o sagrado pessoal e o respeito ao sagrado do outro) com a visão freiriana solidária, libertadora e emancipadora do conhecimento. Para este momento, ou primeiro diálogo, escolhi alguns pontos fundamentais do pensamento freiriano que também estão intimamente ligados à compreensão, filosofia e prática das Danças Circulares Sagradas, não pretendendo abarcar a todos, mas (como mencionado) dar início ao processo de conversa. São eles: As DCS como um processo educacional por excelência, com a visão freiriana da Educação como um processo permanente e contínuo de mudança; As DCS e a Educação como práticas de liberdade (que conscientizam, animam e alcançam as últimas fronteiras do humano); As DCS e a Educação como apaixonantes e estruturadoras, não se constituindo como processos exclusivamente cognitivos; Fundamentais para o homem porque este é inacabado e sabese inacabado; A Educação e a Arte como formas de impregnar de sentido todos os atos da nossa vida cotidiana. Formas de entender e transformar o mundo e a si mesmo. O educador brasileiro Paulo Freire, natural de Recife - PE (1921-1997) dispensa apresentações. Segundo pesquisa, foi o brasileiro mais homenageado da história, tendo recebido títulos de Doutor Honoris Causa de 27 universidades, inclusive Harvard, Cambridge e Oxford, além de prêmios como: Educação para a Paz (das Nações Unidas, 1986) e Educador dos Continentes (da Organização dos Estados Americanos, 1992), possuindo ainda o título de Patrono da Educação Brasileira. Lecionou na Universidade de Harvard (Estados Unidos) em 1969 e, na década de 1970, foi consultor do Conselho Mundial das Igrejas (CMI), em Genebra (Suíça), época em que deu consultoria educacional a governos de países pobres (a maioria do continente africano). Destacou-se por seu trabalho na área da educação popular para a alfabetização e a conscientização política de jovens e adultos operários, chegando a influenciar em movimentos como os das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), servindo de inspiração para professores especialmente na América Latina e na África. Pela sua visão educacional revolucionária (uma Pedagogia pela Libertação, intimamente ligada à visão marxista) e pelo empenho em ensinar às classes menos favorecidas, foi perseguido pelo regime militar no Brasil (1964-1985), tendo sido preso e exilado.

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pas de deux: termo extraído do dicionário do balé clássico, que significa uma coreografia dançada a dois, ou seja, executada por um par de dançantes. No nosso caso, um dançante diálogo.

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Na sua filosofia de trabalho, o compromisso, a ética e o sonho por um outro mundo possível. Radicalmente contrário à visão da educação bancária, tecnicista e alienante do modelo capitalista, a ele interessava a visão solidária, libertadora e emancipadora do conhecimento. O seu método de alfabetização de adultos traz como de fundamental importância a visão de que quem constrói o conhecimento é o educando (o sujeito protagonista), cabendo ao educador motivar, incentivar, coordenar, provocar curiosidade. O educador como um construtivista: que ajuda o outro a construir o seu conhecimento. Não se trata obviamente de Não se trata obviamente de impor à população expoliada e sofrida que se rebele, que se mobilize, que se organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na verdade, não importa se trabalhamos com alfabetização, com saúde, com evangelização ou com todas elas, de simultaneamente com o trabalho específico de cada um desses campos desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais ainda, que sua situação concreta não é destino certo ou vontade de Deus, algo que não pode ser mudado. (FREIRE, 2001, p.31) A origem das Danças Circulares Sagradas está nas danças tradicionais dos povos. Estas se confundem com a origem da própria humanidade. Remete-nos à época em que o homem tinha uma estreita ligação com a natureza, simbolizando os movimentos circulares a pura expressão dos ciclos existentes em tudo que nos rodeia: o trajeto das estrelas e do sol em torno da terra, a chegada das chuvas, as fases da lua. Essas danças refletiam a necessidade de comunhão, de celebração, de união entre as pessoas e se associavam a diferentes momentos de suas vidas: o nascimento, as brincadeiras infantis, o casamento, o plantio, a entrada da primavera, a colheita, a morte, entre outros importantes acontecimentos ou rituais de passagem. Desta maneira, a relação do homem com a dimensão temporal, naquela ocasião, levava-o a uma forma mais profunda de viver consigo mesmo, de relacionar-se com o outro e com a natureza sem a fragmentação, mas sim com a unificação entre as partes e o todo. A dança como um espaço de reafirmação do Uno, um encontro sagrado entre o Ser e a Totalidade. Essa conexão com a natureza e com a essência da vida foi-se perdendo na medida em que o chamado “progresso” social e econômico foi-se fazendo crescente. “O que aconteceria se, em vez de apenas construirmos nossa vida, tivéssemos a loucura ou a sabedoria de dançá-la?” (GARAUDY, 1980). Assim principia o livro de Roger Garaudy ‘Dançar a Vida’, falando sobre a dança como um modo de viver. Desde a origem das sociedades, é através das danças e dos cantos que o ser humano se sente parte de uma comunidade. Enquanto a palavra pode levar a desunião, aos mal entendidos (como nos lembra o mito de Babel), a dança tem a capacidade de união. União com o seu próximo, consigo mesmo e com o universo. A dança nasce justamente da necessidade de dizer aquilo que as palavras não conseguem exprimir. O ato de dar as mãos, de respirar em uníssono, de atravessar o mesmo ritmo e gestos, de confiança e entrega no guiar do vizinho, na busca de equilíbrio e harmonia consigo mesmo e com o outro, no rompimento dos próprios limites, no sentir-se presente e aceito; não o mais importante, mas peça fundamental daquele momento único. Dançar é, antes de tudo, estabelecer uma relação ativa do homem com a natureza maior, compreendendo assim a sua natureza.

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Assim também nos fala o mestre Paulo Freire sobre o sentido maior da Educação. Um processo que se faz em relação com o outro e com o mundo. Na realidade, um pensamento bastante diverso do que presenciamos hoje dentro das nossas escolas repetidoras de um modelo capitalista, voltadas para a produção e sem a menor preocupação ou compreensão de que o conhecimento não pode existir, de fato, sem o prazer e o encantamento. Assim nos lembra Moacir Gadotti, quando nos afirma a visão ideal freiriana de uma escola, como muito além de um espaço físico, como um modo de ser e de ver. De certa forma, a sua visão do ser humano como um ser que aprende e se define pelas relações, corrobora e dialoga com o mesmo 'dançar a Vida' do Roger Garaudy, acima citado. A escola não é só um lugar para estudar, mas para se encontrar, conversar, confrontar-se com o outro, discutir, fazer política. Deve gerar insatisfação com o já dito, o já sabido, o já estabelecido. Só é harmoniosa a escola autoritária. A escola não é só um espaço físico. É, acima de tudo, um modo de ser, de ver. Ela se define pelas relações sociais que desenvolve. E, se quiser sobreviver como instituição, precisa buscar o que é específico dela. (GADOTTI, 2007, p. 11). As Danças Circulares estão presentes em antigas tradições de diversos povos de todo o planeta. Os povos antigos sempre tiveram a sabedoria de Dançar e Cantar. “Quem canta seus males espanta”, diz o linguajar popular. Então, penso eu, poderíamos dizer que o ser que dança liberta-se, cria asas, alça o voo das águias. As artes sempre foram as primeiras formas de expressão. Utilizandose de desenhos, pinturas, cantos ou danças, o ser humano foi contando a sua história através de símbolos e, a partir dessas expressões, passamos a conhecer e a reconhecer a cultura de um povo. Novamente trazemos o pensamente freiriano sobre o ser humano como produto da sua cultura, estando a escola ligada à sociedade que a mantém. Assim como também nos fala da necessidade de uma aprendizagem em rede de relações (escola, escolas, famílias e sociedade como um todo), para que sejam trilhadas as transformações necessárias. A escola não pode mudar tudo e nem pode mudar a si mesma sozinha. Ela está intimamente ligada à sociedade que a mantém. Ela é, ao mesmo tempo, fator e produto da sociedade. Como instituição social, ela depende da sociedade e, para se transformar, depende também da relação que mantém com outras escolas, com as famílias, aprendendo em rede com elas, estabelecendo alianças com a sociedade, com a população. (FREIRE, 2002, p. 11). O que são as danças circulares e por que as chamamos de danças circulares sagradas? Estas são perguntas constantes quando ouvimos falar sobre as Danças Circulares. Na verdade, a dança é um rito: ritual sagrado e também social. Esta dupla significação está na origem de toda atividade humana. O homem é um ser solitário. Está só diante do incompreensível, do imensurável. Angústia, medo, mistério e sede de desvendá-lo. Podemos dar nomes como Deus, Absoluto, Natureza. A Dança Sagrada nasce da necessidade dessa comunhão, desse desvelamento, dessa busca de entendimento de si mesmo a partir da compreensão de um Todo maior e que lhe cabe e preenche. Dizer o indizível em corpo, em mente e em espírito. Buscar referência e reverenciar o Poder Maior, que não tem tempo, forma ou espaço. Saber-se Presente e parte da Totalidade. Experienciar o aconchego e o descanso de voltar ao lar. 81

Da mesma forma que o ser humano se sente só em relação ao seu destino ou a sua origem, podendo imprimir a sua busca na compreensão da unidade com o Sagrado, com a verticalidade, ele também necessita de uma complementaridade com o seu semelhante, com o seu grupo étnico, social e cultural. Dizemos nesse momento que a dança passaria a ter um cunho mais profano, mais voltado para a horizontalidade. Sentir-se parte de um grupo, de um meio. Vivenciar leis, trajes, costumes, gestos, linguagem. Assim nascem as danças folclóricas, as danças populares. Na realidade, somos seres inacabados, incompletos. Aprendemos com as nossas experiências, em nossas comunidades. E, como seres sociais, crescemos em relação, com as nossas formas de ser e de estar. Assim também nos fala Paulo Freire: Não somos seres determinados, mas, como seres inconclusos, inacabados e incompletos, somos seres condicionados. O que Não somos seres determinados, mas, como seres inconclusos, inacabados e incompletos, somos seres condicionados. O que aprendemos depende das condições de aprendizagem. Somos programados para aprender, mas o que aprendemos depende do tipo de comunidade de aprendizagem a que pertencemos. A primeira comunidade de aprendizagem a que pertencemos é a família, o grupo social da infância. Daí a importância desse condicionante no desenvolvimento futuro da criança. A escola, como segunda comunidade de aprendizagem da criança, precisa levar em conta a comunidade nãoescolar dos aprendentes. E mais: todos precisamos de tempo para aprender, na escola, na família, na cidade. (FREIRE, 2002, p. 11). Dois tipos de solidão. Duas maneiras de completude. Dança sagrada, dança profana. Mãos unidas, ritmos únicos, respiração compartilhada. “A dança é uma das raras atividades humanas em que o homem se encontra totalmente engajado: corpo, espírito e coração”, segundo o bailarino Maurice Béjart no prefácio de GARAUDY (1980). O passado não se apresenta, o futuro nada lhe diz. É o momento presente, o aqui e agora, olhos nos olhos, passo sobre passo, concentração viva de um corpo completo, sem fragmentação nem devaneio, pois que senão erram-se os compassos e gera-se a desarmonia. Mais uma vez a lembrança de Paulo Freire e os seus ensinamentos de que ensinar exige a consciência do inacabamento: Como professor crítico, sou um “aventureiro” responsável, predisposto à mudança, à aceitação do diferente. Nada do que experimentei em minha atividade docente deve necessariamente repetir-se. Repito, porém, como inevitável, a franquia de mim mesmo, radical, diante dos outros e do mundo. Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo é a maneira radical como me experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento. (FREIRE, 2002, p. 21-22) As Danças Circulares são primordiais e universais, participando o ser humano em todos os acontecimentos cósmicos, encontrando-se com eles entrelaçado interna e externamente. A Educação, para Paulo Freire (um dos maiores nomes da pedagogia do século XX), tinha como uma das principais funções despertar nas pessoas a crença de que era possível mudar o mundo ou o 82

compromisso, a ética, o sonho por outro mundo possível. Para ele: "Educar-se é impregnar de sentido cada ato cotidiano": Educar é sempre impregnar de sentido todos os atos da nossa vida cotidiana. É entender e transformar o mundo e a si mesmo. É compartilhar o mundo: compartilhar mais do que conhecimentos, ideias... compartilhar o coração. Numa sociedade violenta como a nossa é preciso educar para o entendimento. Educar é também desequilibrar, duvidar, suspeitar, lutar, tomar partido, estar presente no mundo. Educar é posicionar-se, não se omitir. (...) Não pode haver caminho mais ético, mais verdadeiramente democrático do que testemunhar aos educandos como pensamos, as razões por que pensamos desta ou daquela forma, os nossos sonhos, os sonhos por que brigamos, mas, ao mesmo tempo, dando-lhes provas concretas, irrefutáveis, de que respeitamos suas opções em oposição às nossas” (FREIRE, 2001, p.38). Nossa sociedade moderna aponta, a todo o momento, formas de divisão profunda do ser humano. Dissociamos a educação do corpo da educação da mente e do espírito. Nossa religião não satisfaz a inteligência, nossa medicina não valoriza o saber da alma ou do espírito e o nosso intelecto, por sua vez, nega o corpo e o espírito. Dançar não é apenas um espetáculo, um êxtase ou um mostrar-se tecnicamente apto a realizar piruetas. “Dançar é um ato de meditação” (WOSIEN, 2006). É tão importante quanto falar, seja para uma criança, para um adulto ou um ancião. É sentir-se vivo e inteiro, consigo, com o outro e com o espaço infinito. É celebração do sentir-se presente, pleno, único e tantos, conexão terra e céu, horizontalidade e verticalidade ao mesmo tempo. Se pensarmos dessa forma, não poderemos negar que dançar é um ato sagrado. Tudo vai depender do entendimento que tivermos desse estado de celebração. Roger Garaudy, pensador francês, radicaliza dizendo que a dança não é apenas uma arte, mas um modo de viver, um modo de existir: A própria palavra dança, em todas as línguas europeias – danza, dance, tanz -, deriva da raiz tan que, em sânscrito, significa tensão. Dançar é vivenciar e exprimir, com o máximo de intensidade, a relação do homem com a natureza, com a sociedade, com o futuro e com seus deuses. (...) Dançar é, antes de tudo, estabelecer uma relação ativa entre o homem e a natureza, é participar do movimento cósmico e do domínio sobre ele. (GARAUDY, 1980, p. 14) As danças tradicionais dos povos antigos expressavam as necessidades de cada comunidade, de cada cultura. Os seus desejos se manifestavam em círculo, cantando e dançando. Quantos mais chegassem mais se integravam naquele grupo, fazendo parte da manifestação. A origem das Danças Circulares Sagradas está nessas danças tradicionais, que não necessitam de palco, mas que expressam toda comunhão e celebração dos seus participantes. Foi a partir da observação de vdanças tradicionais de vários povos que o bailarino e coreógrafo alemão Bernhard Wosien percebeu a riqueza incalculável dessas manifestações. Procurando um significado maior no ato de dançar, observou também que alguns povos não dançavam mais e que algo muito importante estava sendo perdido. Começou então um trabalho de pesquisa e coletânea dessas danças populares. Em 1976 83

levou para Findhorn Foundation (na Escócia), onde iniciou a difusão dessas danças e um trabalho profundo de pesquisa sobre a simbologia e essência dessas manifestações. Para Paulo Freire, tudo está ligado a questão da leitura do mundo e a validade do conhecimento é dada socialmente. Não existe educação neutra; todo ato de educação é um ato político. Eu Leio o mundo, Compartilho o mundo lido (a importância do diálogo) e agora, juntos, vamos reconstruir o mundo. Isto é, através do diálogo, do respeito, no conhecimento compartilhado, vamos (re)construindo um novo mundo possível. Fala-nos de uma Escola Cidadã e autônoma, que ensina para e pela cidadania. Assim, a compreensão de Paulo Freire sobre a Educação vem comungar com o movimento das DCS, com uma visão de mundo não autoritária, na qual a hierarquia é substituída pelo diálogo e aprendizagem coletiva. Liberdade, prazer e construção coletiva de um mundo mais justo, ético e solidário. Para ele, um professor autoritário afoga e amesquinha a liberdade e o direito do educando, ao mesmo tempo que mata a sua curiosidade e inquietude. Assim também nos fala da importância do diálogo, do aprender e crescer com o respeito às diferenças. O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. (...) É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista ou entendida como virtude, mas como ruptura com a decência. (FREIRE, 2002, p.25) Finalizo, então, esta primeira possibilidade de diálogo entre as DCS e o pensamento freiriano com a visão necessária da alegria, do encantamento, da persistência e da esperança quando em contato com ambos processos educacionais. A esperança como parte fundamental da natureza humana, que vem trazer saúde e qualidade de vida, ao mesmo tempo que traz um acreditar, um porque lutar, ou seja, um sentido de existir. A esperança faz parte da natureza humana. Seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, primeiro, o ser humano não se inscrevesse ou não se achasse predisposto a participar de um movimento constante de busca e, segundo, se buscasse sem esperança. A desesperança é negação da esperança. A esperança é uma espécie de ímpeto natural possível e necessário, a desesperança é o aborto deste ímpeto. A esperança é um condimento indispensável à experiência histórica. Sem ela, não haveria História, mas puro determinismo. Só há História onde há tempo problematizado e não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a negação da História. (FREIRE, 2002, p.29)

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Para Freire, ensinar exige a convicção de que a mudança é possível. Para os praticantes das DCS, a busca de uma cultura de Paz através do diálogo corporal, gestual, do acolhimento, amorosidade, respeito às diferenças; compreensão da totalidade; seres que se complementam e podem/ devem/ necessitam crescer em relação. É preciso ficar claro que a desesperança não é maneira de estar sendo natural do ser humano, mas distorção da esperança. Eu não sou primeiro um ser da desesperança a ser convertido ou não pela esperança. Eu sou, pelo contrário, um ser da esperança que, por "n" razões, se tornou desesperançado. Daí que uma das nossas brigas como seres humanos deva ser dada no sentido de diminuir as razões objetivas para a desesperança que nos imobiliza. (FREIRE, 2002, p.29) Ensinar exige, pois, segundo Freire, da mesma forma que 'dançar a Vida', curiosidade, liberdade, tomada consciente de decisões, tolerância, coerência; a compreensão de que a educação é uma forma de intervenção no mundo para uma consequente transformação. E tornou-se cada dia mais urgente, a necessidade do escutar-se e saber escutar, respeitar-se e saber respeitar, em diálogo constante e construtivo para um mundo melhor. O centro da obra de Paulo Freire é o processo de humanização e, desta forma, ele nos aponta (como também nos faz ver o movimento das DCS) a Solidariedade como a única condição possível de sobrevivência. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 5 ed., 1981. FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. (Coleção Leitura). São Paulo: Paz e Terra, 25ª ed., 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra,1997. FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Cortez, 5ª ed., 2001. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 23 ed., 1989. GADOTTI, Moacir. A escola e o professor: Paulo Freire e a paixão de ensinar. São Paulo : Publisher Brasil, 2007. GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Prefácio de Maurice Béjart. Tradução de Antonio Guimarães Filho e Glória Mariani. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. GADOTTI, Moacir. A escola e o professor: Paulo Freire e a paixão de ensinar. São Paulo: Publisher Brasil, 2007. OLIVEIRA, Karen Guedes; AQUINO, Thiago Antonio Avellar de. A Logoterapia no contexto da psicologia religiosa. Revista Interações – Cultura e Comunidade, Belo Horizonte, Brasil, V. 9 N 16, P. 225-242, Jul/Dez. 2014. ISSN 1983-2478. OSTETTO, Luciana Esmeralda. Educadores na roda da dança: formação – transformação. Tese de doutorado, Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Campinas – SP, 2006.

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VIESSER, Lizete Carmem, WAGNER, Raul, BOHNE, Vicente (Redação). Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Religioso. 7. ed. (Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso). São Paulo: Editora Ave-Maria, 2004. WOSIEN, Bernhard. Dança: um caminho para a totalidade. São Paulo: TRIOM - Centro de Estudos Marina e Martin Harvey. 2 ed, 2006.

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A RELAÇÃO DA PLANTA DE PODER “YU-RE-MA”(JUREMA) E O INDÍGENA NA CULTURA RELIGIOSA SERTANEJA: TAPUIASESPIRITUALIDADES E RESISTÊNCIA ÉTNICA Profª. Ma. Wellida Karla Bezerra Alves Vieira64

RESUMO: O presente artigo é um recorte temático, de uma pesquisa bibliográfica e antropológica em nível de dissertação de Mestrado, vinculado ao PPGCR( Programa de Pós graduação em Ciências das Religiões) da UFPB/ BR. O texto, busca abordar a cosmologia indígena do nordeste, reforçando os indígenas sertanejos da Paraíba (área geográfica seca), considerados “Tapuias”. Atrelando sua história de resistência étnica cultural e espiritual as lutas de terras e uso da “planta de Poder” Mimosa Hortilis Beth, culturalmente conhecida como Jurema. Que mais tarde, sua ingestão ritualística dá origem ao culto a Jurema Sagrada. Prática remanescente dos indígenas do nordeste, bem popularizado pela Umbanda Brasileira. Neste recorte, nos deteremos a abordagem histórica relatada em várias literaturas escritas por pesquisadores e colonizadores que aqui estiveram no Brasil Colônia. PALAVRA- CHAVE: Indígenas, Jurema, ritos, cultura e resistência ética INTRODUÇÃO O termo “Yu-r-ema” é apresentado por alguns autores como originário da Língua Tupi. No entanto, a etimologia da palavra possivelmente recebeu influência espanhola. Segundo Assunção (2010), autores como Cascudo (1978, p.98) define o nome dado a uma “árvore espinhenta do sertão, da qual o gentil 65 extraia um suco capaz de dar sono e êxtase a quem ingeria.” Essa planta é utilizada como base para 64

Pedagoga, Especialista e Psicopedagogia Institucional e Mestre em Ciências das Religiões na linha de Educação e Religião Pela UFPB. Possuí atuação como Supervisora pedagógica e educacional e professora do Ensino Religioso e de Formação de Educadores em Entidades de Ensino Superior Privada. Pesquisadora dos grupos FIDELID e SACRATUM, ambos vinculados ao CNPQ. .

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bebidas, banhos, defumações, remédios, como um canal direto com o reino espiritual para trazer curas para quem o procura. Dois tipos de jurema são mais utilizados nessas preparações: a preta (Mimosa hostilis benth) e a branca (vitex agmus castus). Para alguns adeptos religiosos, a jurema preta emerge uma força maior; sendo mais utilizadas em “trabalhos” mais difíceis, ou seja, quando há um grau de dificuldade recorrem ao uso especifico dessa jurema em seus mais diversos ritos. Quanto à sua ação alucinógena pregada por vários grupos religiosos, é conhecido farmacologicamente que a jurema preta apresenta um nível de concentração de DMT (Dimetiltripitamina) muito superior ao de outras plantas e é principal fonte contemporânea de triptaminas66 para as pharmahuascas67 e anahuascas68. Substância de efeito psicodélico, psicoativo ao consumo humano. Outra descoberta notável, é que, consumido via oral acima de 25 mg, o DMT é psicoativo por si só, não precisando de inibidores. Não haveria, portanto, o tão propalado “ingrediente perdido” do preparo da Jurema entre os índios nordestinos. Apesar que quando falamos das “beberagens” citadas por muitos autores presentes em ritos indígenas ao longo de nossa história ou ainda nos próprios ritos dos “terreiros” acredita-se que além da “força” da jurema, como um “pau sagrado”, adicionasse a ela outros ingredientes: ervas, raízes, sementes, folhas ,ou seja, a “ciência” de cada mestre juremeiro, líder de sua falange espiritualistica. ENTENDENDO A ESPIRITUALIDADE INDÍGENA NORDESTINA A jurema, assim como o cacto mandacaru, faz parte do dia-a-dia do nordestino bem como as histórias e lendas, sobretudo na caatinga nordestina sendo considerada sagrada pelos índígenas. Não é difícil entender porque a jurema seria sagrada para os índios nordestinos antes da chegada dos europeus. Além do seu possível caráter alucinógeno e do seu comprovado uso nas guerras e ritos de passagem, a jurema, enquanto planta, desempenha um papel central no ecossistema semi-árido das caatingas69 nordestinas durante os longos períodos de estiagem; quando a paisagem do sertão fica cinza e vermelho apenas ela e o cacto do mandacaru70 resistem verdes e com reservas de água. 66

Triptamina é um alcalóide monoamínico bioativo encontrado em plantas, fungos, e animais. É baseado na estrutura em anel do indol, e é quimicamente relacionado ao aminoácido triptofano, do qual seu nome é derivado. Triptamina é encontrada em quantidades de traços nos cérebros de mamíferos e tal presença é atribuida a um papel como um neuromodelador ou neurotransmissor Jones R.S.. (1982). "Tryptamine: a neuromodulator or neurotransmitter in mammalian brain?" 67 Farmahuasca é uma farmacêutica versão do entheogenic bebida ayahuasca . Ayahuasca tradicional é feita a partir do IMAO molecular contendo Banisteriopsis caapi vinha com uma DMT, planta contendo, como Psychotria viridis . Farmahuasca refere-se a uma combinação similar que utiliza um conjuto de ervas farmacêuticas em vez de uma planta. 68 Combinações de diferentes plantas, diferentes de Liana (B.Cappi) e Chacruna (P.Viridis) própria ayahuasca. Outras formas de combinar DMT e IMAO`s. Moderador: Salvium 69 (do tupi: ka'a [mata] + tinga [branca] = mata branca) é o único bioma exclusivamente brasileiro, o que significa que grande parte do seu patrimônio biológico não pode ser encontrado em nenhum outro lugar do planeta. Este nome decorre da paisagem esbranquiçada apresentada pela vegetação durante o período seco: a maioria das plantas perde as folhas e os troncos tornam-se esbranquiçados e secos. A caatinga ocupa uma área de cerca de 850.000 km², cerca de 10% do território nacional, englobando de forma contínua parte dos estados da Paraíba, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia (região Nordeste do Brasil) e parte do norte de Minas Gerais (região Sudeste do Brasil). 70

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Na verdade, no auge da estiagem o interior da casca da Jurema seca permanece viçoso. Quando a chuva volta, a casca seca cai e a árvore reaparece jovem. Esse fenômeno dá margem a uma longa mitologia de lendas e cantos envolvendo os ciclos de sazonalidade de morte e renascimento. Mas, ao contrário do mandacaru, do qual o sertanejo pode extrair água durante a estiagem, a água da Jurema é completamente inacessível ao uso humano. No caso da Jurema, a existência de água atrai a presença de pequenos insetos e de vários níveis de pequenos predadores da cadeia alimentar do ecossistema do sertão. As cobras são habituais no juremal, tanto pela existência farta de seu alimento como pela proteção dos galhos espinhosos, impossibilitando o trânsito de animais maiores. Este fato deu margem a uma extensa mitologia popular, cantada em pontos ou turimbas71 em que as cobras protegem espiritualmente a árvore (Cultura Popular, 2014), assim como esta, com seus espinhos, protege os seus répteis guardiões. Um mito sobre o “Pau sagrado”, entoados em vários pontos de jurema, é o mito cristão. Onde se acredita que a Jurema é a árvore onde Jesus Cristo descansou antes de sua morte. O fato que os “mitos” que envolvem a Jurema como planta mágica são os mais variáveis possíveis que passam das tradições indígenas ao cristianismo católico além do Kardecismo e credos pagãos. Fazendo com que a jurema se torne não só uma planta sagrada, mas um canal espiritual de força e fé da cultura popular. Outros autores definem a jurema desde uma planta ou um culto sagrado, Prandi (2010), explica que: “Jurema, que hoje dá nome a uma prática religiosa, é originalmente nome de uma árvore considerada sagrada pelo grupo religioso. Também é nome da bebida preparada com a casca do tronco da jurem, beberagem encontrada entre antigos costumes indígenas. Beber jurema é um momento crucial numa sessão de jurema. Também de origem indígena é o uso da fumaça no ritual. Preferencialmente usando-se usar o cachimbo encostando a abertura do forno na boca, num gesto contrário ao ato de fumar. Hoje a jurema pode ser encontrada em todo nordeste como prática mágica e religiosa que se reproduz e se complexifica no interior de diferentes religiões afro-brasileiras, como o Candomblé e o Xangô e, especialmente a Umbanda.”

Além da definição, o autor explica a originalidade do culto desde as práticas de pajelanças indígenas bem mencionados com o uso do cachimbo da representação da fumaça e as beberagens, comuns aos ritos nas aldeias em toda área geográfica nacional também representadas por Figueiredo (1976, p.44); onde irá destacar como ocorre o rito com o uso da jurema nestas aldeias: “A cerimônia gira inteiramente em torno do pajé, que invoca os mestres com um pequeno maracá, e que é ajudado por pessoa de sua família que acende os cigarros, ferve a bebida ou defuma o ambiente.” A beberagem com a jurema é ressaltada por (Mata,1989) nos ritos do Ouricurí72, Praiá73 e Toré74, praticados nos aldeamentos indígenas do nordeste. 71 72

Denomina-se Ouricuri o complexo ritual e o local onde se realiza. É praticado por vários grupos do nordeste. Em Colégio as festividades duram 15 dias, nos meses de janeiro-fevereiro. A fartura faz parte da festa e para lá é levado sob a forma de alimentos, tudo o que se consegue acumular durante o ano. Na mata cerrada há uma clareira, o "limpo", onde ocorre o ritual. Em volta do "limpo" há construções de tijolo para alojar as pessoas durante sua permanência. É uma outra aldeia, a taba, construída para fins religiosos. O corpo ritual do Ouricuri se constitui num conjunto de cantos e danças e na ingestão de jurema, infusão feita da

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No século XVI, a Paraíba tinha uma população estimada de indígenas com cerca de 100 mil índios (Melo, 1999). No litoral, viviam os pertencentes aos Tupis que se dividiam em dois grandes grupos, os Tabajaras e os Potiguaras. Na região do interior encontrava-se a Nação Kariri, que tinha uma grande variedade de grupos, dentre elas os Taraírus todos considerados pelos colonizadores como Tapuias. No entanto, esses fazem parte dos povos do tronco Macro Gê. Em sua totalidade, o indígena paraibano vivia da caça, pesca, coleta e uma primitiva agricultura de subsistência. A maioria deles eram nômades, no caso especifico dos Tapuias, e sua organização social se dava através de grupos onde era divido todo trabalho ou função de acordo com o sexo, idade ou adequação funcional. Ou seja, trabalho, guerra, homem, mulher, idoso, como narra (Cavalcante, 1996, p. 20). Os indígenas que falavam língua adversa dos tupis do litoral foram denominados pelos colonizadores e missionários como Tapuias. Ser Tapuia para o colonizador era ser inimigo (Assunção, 2010). Diferentemente dos “caboclos”, os Tapuias não faziam questão alguma de relacionar-se harmoniosamente com os invasores, pois eles acreditavam tão somente na real intenção dos “brancos” em suas terras. Eram indígenas fortes, acostumados a estiagem do sertão e a vida nômade. Suas práticas rituais eram semelhantes a dos grupos indígenas do litoral: cantos, danças, fumos, beberagens entre outras. Acredita-se inclusive numa prática ritualística de antropofagia sagrada (Gândavo, 1980), a qual seria praticada de forma bem acentuadas mediante a grandes atos de guerra ou cerimônias fúnebres, como relatam alguns missionários e viajantes da época . Compreender a nação Tapuia é entender a gênese da variação, diversidade espiritual e a resistência étnica do indígena no Nordeste. E na Paraíba, muito dessa espiritualidade só pode ser entendida mediante a compreensão e o estilo de vida desse indígena (Assunção, 2010). E para buscarmos esse entendimento, fizemos alguns recortes mediante escritos deixados por missionários ou colonos presentes nesse período em nossas terras. Logicamente, uma ressalva abordada por Assunção (2010), é bem pertinente a nossa pesquisa. O autor endossa um olhar posto nestes escritos sendo a de um colonizador cristão. No entanto, particularidades das vidas dos Tapuias e de seus ritos, esses são descritos de forma que podem ser analisadas de uma óptica aproveitável, como reforça o autor. Um viajante e funcionário da Companhia das Índias Ocidentais, Joan Nieuhof, que circulou em várias aldeias indígenas entre 1640 a 1649, mas precisamente aldeias nos estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, em seu relato, presente no livro: “Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil”, descreve os Tapuias como um povo forte e resistente dizendo que: “... Os Tapuias são altos e fortes, ultrapassando brasileiros e holandeses, tanto em força quanto em estatura. Sua cor é morena escura, têm cabelos pretos pendentes sobre as espáduas, pois aparam-no apenas na testa, até as orelhas. Alguns cortam os cabelos a moda européia. De resto arrancam todo pelo do corpo, até mesmo as sobrancelhas. Os reis as pessoas em destaque distinguem dos demais pelos cabelos e pelas unhas; o primeiros cortam os cabelos em forma de coroa e conservam unhas grandes entrecasca da raiz desta árvore, posta a macerar para produzir o vinho. O climax do ritual é o transe resultante do uso da jurema. Neste estado os participantes dizem romper as barreiras entre passado, presente e futuro numa comunhão com seus ancestrais e suas divindades. 73 Parte integrante do Rito do Toré Indígena. 74 Dança ritual indígena.

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nos polegares. Entretanto, os parentes do rei e de outros indivíduos em destaque na tribo tem unhas cumpridas em todos os dedos, menos nos polegares, pois este detalhe é considerado entre eles ornamento todo especial. Os Tapuias são muito fortes”. ( Nieuhof, p. 318, 1942)

Além da ressalva de força física e presença corporal dos Tapuias com relação ao colonizador, observamos no depoimento de ( Nieuhof, 1942), a descrição de ornamentos físicos de destaque para as figuras com grau de importância no convívio social da tribo, como seria o caso dos reis (cacique ), sacerdotes (Pajé) e parentes destes. A ideia de vida primitiva dos Tapuias foi descrita por vários olhares. O secretário do governo Holandês, o cronista Pierre Moreau descreve os Tapuias como: “... nação mais brutal, que vivem completamente nus nas matas, como vagabundos (havendo alguns que habitam em comum nas aldeias ou vilas, mas que se locomovem de seis em seis meses para serem mais sadios e anda por todos os lugares)”. Nieuhof, (p.311,1942), descreve um perfil de costumes no cotidiano dos Tapuias no aldeamento do interior : “ Vivem muito quietos, ao menos que beba; nessas ocasiões cantam e dançam dia e noite(...) apreciam muito a dança(...) em geral cantam enquanto dançam. Os selvícolas do interior andam completamente nus, tanto homens quanto mulheres. Toda via os do litoral, que mantém contactos com os holandeses e portugueses, usam uma a camisa de algodão ou linho”.

Na descrição de Nieuhof (1942), observamos a cultura de vida Tapuia no canto, dança e beberagem nas aldeias. No entanto, já desenvolve-se restrições e adaptações comportamentais (“civilidade”) no indígena do litoral, mediante ao uso de vestimentas no ato de contato com o branco europeu. Umas das narrativas importantes a qual destaca detalhes ricos não só sobre a cultura Tapuia da sua vida cotidiana, nas crenças e práticas ritualísticas espirituais foram transcritas pelo padre Capuchinho francês Martinho de Nantes. O qual viveu em aldeias do índios cariris, na Paraíba destacando que: Tinham um deus para as culturas que a terra produzia; outro para a caça; outro para os rios e as pescarias, e a todos esse deuses deixavam tempo para as festas em sua honra, e manifestavam sua adoração com alguns sacrifícios, que incluíam as mesmas coisas que recebiam, por meio de cerimônias pouco diferentes, constituídas de danças, pinturas do corpo, festins, quase sempre impudicos, praticando o adultério, a que não davam nenhuma importância. Havia entre eles feiticeiros, ou pra dizer ..melhor, impostores, que adiviavam os que eles pensavam. Prediziam coisas futuras , curavam doenças, quando não as produziam. Podiam acreditar que alguns deles tinham entendimento com o Diabo. Pois não usavam como remédio, para todos os males, senão a fumaça do tabaco e certas rezas. Cantando toadas tão selvagens quanto eles, sem pronunciar qualquer palavra.(...) Para serem felizes na caça ou pesca, faziam queimar osso de animais ou espinhas de peixe, e os mestres de cerimônia faziam beber aos jovens os sucos de certas ervas amargas e, esfregando várias partes do corpo desses jovens com os dentes agudos de animais , incrustados com cera, misturados com

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cinza, os faziam penetrar na pele com dores sensíveis, durante os dez dias que durava a festa.(Nantes, p. 4-6, 1979)

Mesmo sob um olhar colonizador cristão, entendendo que esses comportamentos eram inadequados ou tendo ligação direta com a figura do demonizador; conseguimos captar nas narrativas de Nantes (1979) peculiaridades da cultura e espiritualidade indígenas a partir de sua convivência com os Tapuias. Algo que nos chamou a atenção em especial, é a semelhança do rito de preparação para caça, realizada pela tribo; que se assemelha a práticas de outros grupos préhistóricos em âmbito geral da história da humanidade. Os quais observamos seus registros em pinturas rupestres deixadas pelo homem primitivo em vários lugares do Brasil e do mundo. Como é o caso das imagens de Altamira75 no município de Santillana del Mar - Cantábria Espanha e Parque Nacional da Serra da Capivara 76 no Piauí, Patrimônio Mundial da Unesco, com o maior acervo do continente americano, e um dos mais estudados no nordeste brasileiro. Semelhantemente aos Tupinambás, os Tapuias acreditavam na ancestralidade e na imortalidade da alma. E que todos aqueles que vivessem dentro das normas consideradas certas, incluído a morte e ingestão da carne de seus inimigos iriam desfrutar de uma eternidade de danças e festejos juntos aos seus ancestrais nas altas montanhas.(Léry, 1980). A prática antropofágica dos Tapuias igualmente aos Tupinambás tinham total relação com o sagrado. O consumo da carne humana não possuía um caráter alimentício, mas teria como motivação o amor ou a vingança. buscando força ou eternização. Sobre essa relação Gândavo (1980) narra que: (...) Esses Tapuyas nam comem a carne de nenhuns contrários, antes Sam immigos capitães daquelles a costumam comer, e os perseguem com mortal ódio. Porem pelo contrario tem outro rito muito mais feio e diabólico, contra a natureza, e digno de maior espanto. E he que quando algum chega a estar doente de maneira que se desconfia de sua vida, sei pai ou mai, irmãos ou irmãs, ou quaisquer outros parentes mais chegados o acabem de matar com suas próprias mãos, havendo que usam assi com elle de mais piedade, que consentirem que a morte o esteja senhoreando e consomindo por temos tam vagarosos. E o peor que He depois disso o assam e cozem, e lhe comem toda a carne, e dizem que nam hão de sofrer que cousa tão baixa e vil como he a terra lhes coma ocorpo de quem elles tanto amam, e que pois he seu parente, e entre elles há tanta razam de amor, que sepultura mais honrada lhe podem dar que mete-lo dentro em si, e agazalha-lo par sempre em suas entranhas. (Gandavo, p. 141, 1980)

Como podemos observar nas narrativas, a prática antropofágica era realizada em busca da honra e força através do canibalismo aos inimigos e presos de guerra; ou concedida num ato honroso da “sepultura dentro de si” para aqueles

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Altamira é o nome de uma caverna na qual se conserva um dos conjuntos pictóricos mais importantes da PréHistória Fica no município espanhol de Santillana del Mar, Cantábria, num prado do qual tomou o nome. Por volta de há 13 mil anos, a queda de uma rocha bloqueou a entrada da caverna, impedindo a continuidade da ocupação humana e preservando o seu interior. 76 Parque Nacional da Serra da Capivara no Piauí, Patrimônio Mundial da Unesco, com o maior acervo do continente americano, e um dos mais estudados do mundo. Remete-se ao período Pré- cabralino brasileiro.

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que os amavam, no caso da ingestão de carne humana dos próprios parentes e amigos. MORTE E ANULAÇÃO ÉTNICA TAPUIA Com relação aos indígenas do sertão, no caso os Tapuias, muitas foram as lutas e tentativas de resistência étnica desse povo. Esses resistiram a sua expulsão, e desencadearam uma série de batalhas sangrentas, expedições até a completa extinção de suas nações indígenas. No sertão do Seridó a “guerra dos bárbaros”, também conhecida como Confederação dos Carirys em 1687, entra para história, marcando assim quem sabe o inicio da dissolução da nação Tapuia. Para entendermos o que aconteceu com os indígenas do sertão, os chamados Tapuias, observemos um trecho da carta enviada do governador da Parayaba Albergarya ao rei de Portugal. (apud Seixas, p.56, 1975): (...) Os núcleos de habitantes do interior ficaram reduzidos ao elemento que receberam em sua origem; isto é, alguns índios domésticos, umas duas famílias de brazileiros e nada mais. A grande população natural, essa foi arcabusada, morta a punhal, a açoites ou vendida como escrava. As mais bravias relegaram-se para as margens dos grandes rios; as outras proximas de sua exticção, submetteram-se e deram pequeno contigente ao povoamento dos sertões.

Como aparece nitidamente na carta enviada ao rei de Portugal, a nação Tapuia dissemina-se da pior forma possível, desde a escravização, morte, até o que podemos chamar de “sepultamento étnico”. Pois os poucos que resistiram tiveram que adaptar-se a nova forma de vida chamados agora de “caboclos77”, que seria mais uma forma de desapropriação de sua terra e anulação ética cultural, ancestral e espiritual.

CONCLUSÃO: A nação Tapuia, representa a resistência étnica do indígena do Nordeste. Uma última representação de anulação cultural, espiritual e social dos indígenas nordestinos foi a “doação” das terras da Sesmaria de Jacoca e Arataguis (Conde e Alhanda- PB). Onde ao receber as braçadas de terra, o indígena perdia o titulo de índio e se tornaria caboclo. Encontramos esses registros na carta Topográfica dessa Sesmaria. Além de importantes detalhes do tipo de terra, área de alagamentos e improdutividade local. Os indígenas desta área geográfica, mesmos distanciados de sua cultura e língua materna, continuaram exercer suas crenças e espiritualidades através do da Ingestão do chá da Jurema e a pratica do Catimbó. A qual mais tarde dá inicio ao Culto a Jurema Sagrada no Nordeste bem difundido pela Umbanda Brasileira. Assim, podemos observar que a relação, terra, cultura e espiritualidade, sempre estiveram atreladas a vida cotidiana do indígena do nordeste, do indígena brasileiro. E que a pesar das adversidades vivenciadas por essa etnia nunca

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Nome dado aos índios ou seus descendentes, “domesticados”. Aqueles que eram “aliados” dos colonizadores ou viviam em forma pacífica e submissa com os mesmos.

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perderam suas essências culturais e religiosas, as quais presentemente visualizamo-nos na Jurema sagrada em todo território nacional.

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Medicina chinesa noções de saúde física e mental Izabelita Cirne Beltrão78 Resumo

A medicina chinesa é considerada uma das mais antigas formas de medicina oriental conhecida, se fundamenta numa estrutura teórica sistêmica e abrangente, de natureza filosófica. Tem como base leis fundamentais que governam o cosmo e suas relações com o funcionamento do organismo humano através da interação com o ambiente segundo os ciclos da natureza, possuindo assim uma compreensão sistêmica e ampliada dos processos que influenciam na manutenção e reestabelecimento da saúde. Para se aproximar da estrutura desse pensamento se faz necessário procurar entender o contexto e as influencias histórico-culturais em que ele é formado. Nesse sentido a medicina chinesa ultrapassa as noções de saúde física e adentra num universo mais amplo com a influência de um sistema filosófico conhecido como Daoísmo. A medicina chinesa traz uma proposta de integração corpo e mente que faz parte de todo uma fisiologia energética para explicar o princípio de saúde e do equilíbrio que resulta na saúde física, mental abrangendo todos os níveis relacionais do indivíduo. Com toda uma proposta de pontos energéticos localizados na superfície do corpo e de cada órgão do corpo relacionados com uma função mental diferente mostra que essa percepção chinesa demonstra uma conexão profunda da mente e do corpo. As propostas terapêuticas dessa medicina milenar que utiliza o corpo como via de entrada para equilibrar sintomas físicos e principalmente mentais, através de conceitos como Dao, yin e yang e das relações do homem com o cosmo. Esse trabalho aponta importantes conceitos da medicina chinesa no entendimento das relações corpo e mente entendendo a saúde como integração multidimensional do ser. Palavras-chaves: medicina chinesa, saúde, mente, corpo.

1. INTRODUÇÃO A medicinal chinesa constitui parte importante do pensamento chinês antigo, tem origem atribuída ao Imperador Amarelo Huáng Dì (2797 a.c.), e confunde-se com o início da cultura e da civilização dos chineses. Seus ensinamentos eram transmitidos verbalmente, depois foi condensada através da escrita ideográfica

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Graduada em Fonoaudiologia. Mestranda do Programa de Ciências das Religiões da UFPB e membro do grupo Padma. email: [email protected]

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chinesa, num livro tradicional chamado Huáng Dì Nèi Jīng – Clássico do Imperador Amarelo que é dividido em duas partes: Sù Wèn e Líng Shū. 79 Essa medicina é considerada uma das mais antigas formas de medicina oriental conhecida atualmente, se fundamenta numa estrutura teórica sistêmica e abrangente, de natureza filosófica. Tem como base as leis fundamentais que governam o cosmo e suas relações com o funcionamento do organismo humano através da interação com o ambiente segundo os ciclos da natureza, possuindo assim uma compreensão sistêmica e ampliada dos processos que influenciam na manutenção e reestabelecimento da saúde. 80 Para entendermos como a medicina chinesa relaciona e considera os aspectos multidimensionais do ser, se fez necessário pesquisa em referências bibliográficas que mostrasse: importantes conceitos dessa medicina e como se dá a relações mente e corpo no processo da obtenção do equilíbrio energético que resulta na obtenção da saúde integral; seu contexto histórico e os elementos que compõe a medicina chinesa incluindo sua fisiologia energética. A criação das primeiras escolas filosóficas na China, remontam à Dinastia Zhou do Leste (770-256 a.c.), aos períodos conhecidos por Primaveras e Outonos (771-481 a.c.) e por Estados Combatentes (481-221 a.c.) quando essa dinastia estava passando por diversas crises morais e políticas que culminaram com guerras e conflitos constantes entre seus estados que, outrora, compunham o passado ideal chinês. Para Bueno (2004)81, isso fez com que os chineses tivessem que rever suas posições diante do mundo e da sociedade, e assim reformular a maneira de conceberem o ser humano e a natureza, e suas relações. Este período também foi conhecido como Cem Escolas de Pensamento Zhūzǐ Bǎijiā quando as principais escolas filosóficas chinesas – confucionismo, daoísmo, legalismo, moísmo, Yīn Yáng e Cinco Movimentos Wǔ Xíng, entre outras se originaram buscando explicar os motivos que haviam levado a china a essas crises, o que fazer para superá-las e como agir para que elas não se repetissem. Contudo os elementos que compunham essas escolas não eram novos, foi com base numa cosmologia já organizada que essas escolas se formaram. Para Robinet (1991)82, dentre “Os Mestres e as Cem Escolas de Famílias” há uma linha de pensamento que tem como principal matriz a concepção do Dào, como modo de pensar, de agir e viver dos chineses com reflexões sobre o mundo, como condensação do Qì em relação ao homem, com Qì particularizado em constante correlação com o Yīn Yáng e as suas cinco fases que mantém a regulação do céu sobre a terra e nas relações humanas. Essa corrente de pensamento é aquela que receberia mais tarde a denominação de daoísmo pelo neologismo jesuíta. Foram épocas de constante desenvolvimento do taoísmo pelos pensadores clássicos chineses, que viveram durante os Reinos Combatentes, porém suas publicações ocorreram apenas durante a dinastia dos Han, entre IV-I a.C. Foram as noções 79

DULCETTI JUNIOR, Orley; DULCETTI, Pérola G. S. Pequeno Tratado de Acupuntura Tradicional Chinesa. São Paulo: Andrei, 2001. p. 25. 80 LUCA, Alexandre C. B. Medicina tradicional chinesa - acupuntura e tratamento da síndrome do climatério. Tese, Ciencias, USP, 2008. pp. 39 et seq. 81 BUENO, André apud JUNQUEIRA, Luiz Fernando Bernardi. Os dois aspectos do coração XĪN: Interpretação sobre o livro de medicina chinesa HUÁNG DÌ NÈI JĪNG SÙ WÈN LÍNG SHŪ. Monografia, Historia, UFSC, 2013. pp. 17 et seq. 82 ROBINET, Isabelle apud DULCETTI JUNIOR, Orley. Op. Cit. p. 36.

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destes pensadores da família daoísta que influenciaram os pensadores médicos, desde os Reinos Combatentes, passando pela dinastia Han, chegando até o daoísmo médico de Wang Bing, na dinastia Tang, com a elaboração do conteúdo e publicação do Clássico Interno o Huáng Dì Nèi Jīng.

2. CONCEITOS DA MEDICINA CHINESA 2.1 DAO O Dao se define como o indefinível, inominável, ordem, totalidade, ou ainda o inominado, incontável, está presente em tudo e em todos e esta acima de um principio. O Dao dotado de ação origina todas as coisas. Pode-se denominar o Dao de energia original que inicia o movimento do surgimento do ser e condiciona seu desenvolvimento. O Dao é à base da medicina tradicional chinesa.83 2.2 ENERGIA QI O Qi é à força da vida, o pensamento chinês considera as energias primordiais compondo a origem do universo, como se fosse uma mistura de energias impalpáveis e invisível, que é o céu anterior, o estado perfeito das energias criativas do mundo primitivo, a energia primordial do Tao. Essa mistura de energia é o modelo energético Original da medicina tradicional chinesa que afirma que o universo compõe-se de energia.84 2.3 YIN E YANG Segundo a filosofia Daoísta, da energia original surgiram duas formas de energias antagônicas mais complementares, denominada yin e yang, tudo o que existe no universo possui esses dois tipos de energias e dependendo do quanto tenha de cada uma delas são classificados como yin ou yang. Existe verdadeiras escala de acordo com a quantidade dessas duas energias, é o que acontece com as cores e os sabores, como exemplo temos o sabor picante como o mais yang dos sabores, e o amargo como o menos yang e portanto mais yin, assim como as cores temos o vermelho como mais yang e o violeta mais yin. No nosso corpo, como em tudo o que existe acompanha essa escala de yin e yang.85 (CORDEIRO, 2009). 2.4 CINCO ELEMENTOS A alteração quantitativa que acontece na evolução cíclica da energia yin e yang dá origem aos bigramas, que representam um princípio quaternário encontrado no céu, na terra e no homem. Como as quatro estações do ano as quatro faces da lua. Esse princípio foi descoberto pelos chineses com a ajuda provavelmente do gnomon (uma simples vara fincada no chão, cuja sombra aumenta e diminui de tamanho representando as estações do ano). Os chineses, não se detiveram no

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DULCETTI JUNIOR, Orley; DULCETTI, Pérola G. S. Pequeno Tratado de Acupuntura Tradicional Chinesa. São Paulo: Andrei, 2001. p. 41 84 Ibid. p. 36 85 CORDEIRO, Ari E CORDEIRO, Rui. Acupuntura: Elementos Básicos. São Paulo: Ensaio, 1986. p. 17

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princípio quaternário, incluíram um quinto elemento e evoluíram da representação quaternária da cruz para a representação pentagonal dos cinco elementos.86 Na teoria dos cinco elementos, a Madeira simboliza o início do Yang, do ciclo vegetal, do dia, da primavera. A Madeira gera o fogo emblema do Yang em máxima atividade, a terra contendo todos os elementos, o declínio do Yang, gera o elemento Metal sendo o início do Yin, que cresce gerando o elemento Água, o máximo do Yin, noite e inverno.87 O yin e o yang regem todas as coisas, inclusive o corpo humano, onde as funções são divididas em yin e yang. As funções yang são relativas às vísceras ocas, em relação com o exterior, produzem e fazem circular a energia no corpo, seus órgãos são representativos são: estomago bexiga, vesícula biliar, intestino delgado e grosso e o triplo reaquecedor onde esse último não tem órgão representativo no corpo físico. As funções yin são desenvolvidas pelos órgãos internos que concentram a energia, purificam, e fazem circular o sangue, são representadas pelo coração, pulmão, fígado, rins e baço-pâncreas e a sexta função que também não tem órgão representativo no corpo físico que é circulaçãosexualidade. Cada função possui uma serie de pontos na superfície do corpo que são ligados entre si que são os meridianos.88 2.5 MERIDIANOS As energias são transportadas por todo o corpo através de trajetos energéticos que os chineses chamam de ching, Soulié (1934) ao traduzir esse termo chinês, trouxe para nós o termo meridiano por analogia as linhas dos meridianos da terra, já que consiste em estruturas canaliculares distribuídas e ordenadas que interliguem as estruturas do corpo, através de redes energéticas ligando o exterior e o interior do corpo conduzindo energia vital.89 2.6 ENERGIA SHEN Shen é um celestial portanto Yang dirige todos os mecanismos energéticos, o seu ideograma 示申 representa: A instância (ou as instâncias) criadora que concebe o ser, o indivíduo a partir das forças celestes dirigidas para a terra (princípios criadores) e terrestres (substratos, nutrimentos) voltados para o céu, isto é, a conjugação cósmica do pai e da mãe, do inato celeste e da aquisição terrestre, dos princípios sutis e das formas concretas, o diálogo se fazendo 90 segundo um eixo vertical centrado no homem.

O Shen só se manifesta na presença das essências, se manifesta na hora da fecundação e precisa estar presente desde o começo para organizar essas essências que permitem a difusão da vitalidade A origem das emoções está na condução exercida pela energia celeste. As funções psíquicas se relaciona com as entidades viscerais (Wu Shen 五神). 86

Ibid. p. 51 et. Seq. DULCETTI JUNIOR, Orley; DULCETTI, Pérola G. S. op. cit. p. 56 88 CORDEIRO, Ari E CORDEIRO, Rui. Op. cit. p. 17 89 DULCETTI JUNIOR, Orley; DULCETTI, Pérola G. S. op. cit. p. 147 90 EYSSALET, J. M. Shen ou o instante criador. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003. p. 166 87

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As cinco emoções associam-se aos cinco elementos: assim o excessos de Alegria lesiona o Coração; excessos de pensamento lesiona o Baço/pâncreas; excessos de Tristeza lesiona o Pulmão; excessos de Medo lesiona o Rim; excessos de Raiva lesiona o Fígado. 3. REALIDADE PSICOSSOMATICA Para Capra (2005)91 o modelo biomédico está baseado no pensamento cartesiano que introduziu a rigorosa separação corpo e mente, assim as primeiras divisões foram a de corpo e espírito, ser humano e natureza, chegando ao ponto do corpo humano ser considerado como um relógio, uma máquina, negligenciando aspectos psicológicos, sociais e ambientais relacionados à doença. Barsted (2006) 92 ressalta que a cosmologia da medicina chinesa, se caracteriza por ser globalizante, ordenada e integrada, postulando ressonâncias entre categorias afins e compreendendo formulações que extrapolam os limites mecanicistas, assim a medicina chinesa não concebe divisão entre corpo e mente embora atualmente a medicina chinesa pareça estar se aproximando cada vez mais da linguagem científica-ocidental moderna, considerando conceitos fundamentas da medicina chinesa antiga como místicos, supersticiosos e metafísicos. Entendendo que o sintoma tem sua linguagem e é a manifestação no corpo de todos os processos produzidos na consciência, assim as informações são produzidas na consciência e se tornam visíveis no corpo, sendo o corpo o veículo da manifestação dessas informações. A vida é uma série de transições das quais o indivíduo tem a oportunidade de se remodelar, e reorganizar, para isso é necessário à aprendizagem de novas habilidades na vida e a construção de todo um conjunto de hábitos corporais. Atualmente as mudanças surgem em uma velocidade cataclísmica, assim precisamos de múltiplos referenciais, para estarmos preparados a lidar com elas. Muitos de nós não estamos preparados para lidar com as mudanças, assumindo apenas a postura de herói ou vítima uma vez que não temos um método para lidar com a nossa realidade somática.93 A linguagem da psicologia é de insight, mais é importante também estarmos preparados para as mudanças orgânicas, estarmos atentos ao processo somático, no qual nos organizamos e reorganizamos94 Nossos padrões físicos, posturais, musculares, emocionais são passiveis de mudanças, e podem ser modificados se estivermos disposto a mudar nosso estilo de vida de modo satisfatório. Experiênciar a vida abre uma nova visão do ser humano, que não é uma identidade cristalizada, nem uma imagem perfeita, nem uma criatura fadada a resolver conflitos ou viver na dualidade (sobra/luz; bem/mal; 91

CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: A Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. 25. ed. São Paulo: Cultrix, 1982. p. 119 92 BARSTED, Dennis W. V. L. Cosmologia Daoísta e Medicina Chinesa. In: NASCIMENTO, Marilene Cabral do. As duas faces da montanha: estudos sobre medicina chinesa e acupuntura. São Paulo: Hucitec, 2006. pp. 41 et seq. 93 KELEMAN, Stanley. Realidade somática: experiência corporal e verdade emocional. São Paulo: Summus, 1994. p. 51 94 Ibid. pp. 51 e 52

101

racional/irracional). Somos um ser biológico que sente, pensa, estamos continuamente em movimento, e vivendo a partir do nosso processo, nos comprometemos com a evolução da vida, do ser, do planeta.95 4. CONCLUSÃO As técnicas da medicina chinesa vem sendo estudadas pela comunidade cientifica comprovando as várias alterações físicas, bioquímicas e mentais advinda de suas técnicas, e inúmeros são os trabalhos que ratificam sua eficácia.96 O resgate dessas práticas milenares, contribui para o despertar da consciência em direção a um estilos de vida mais saudável, contribuindo para saúde emocional e espiritual, para o encontro consigo mesmo e para uma longevidade mais feliz.

BIBLIOGRAFIA BARSTED, Dennis W. V. L. Cosmologia Daoísta e Medicina Chinesa. In: NASCIMENTO, Marilene Cabral do. As duas faces da montanha: estudos sobre medicina chinesa e acupuntura. São Paulo: Hucitec, 2006. CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação: A Ciência, a Sociedade e a Cultura Emergente. 25. ed. São Paulo: Cultrix, 1982. CORDEIRO, Ari E CORDEIRO, Rui. Acupuntura: Elementos Básicos. São Paulo: Ensaio, 1986. DULCETTI Jr, O. Pequeno Tratado de Acupuntura Tradicional Chinesa. São Paulo: Andrei, 2001. EYSSALET, J. M. Shen ou o instante criador. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003. KELEMAN, Stanley. Realidade somática: experiência corporal e verdade emocional. São Paulo: Summus, 1994. ROBINET, Isabelle apud DULCETTI JUNIOR, Orley. O Caminho do Nèi jīng para o Ocidente: Continuidades e Rupturas de uma Obra de Medicina Chinesa Antiga e suas Traduções para os Idiomas Europeus. Tese, Ciência das Religiões, PUC-SP, 201

WEN, Ton Sintan. Acupuntura Clássica Chinesa. São Paulo: Cultrix, 1985.

95

Ibid. 94 LEITE, S.R.R.; SÁ, L.D. Um breve olhar sobre a medicina tradicional chinesa. In: GNERRE, M. L. A.; POSSEBEN, F. China Antiga Aproximações Religiosas. João Pessoa: Fonte editorial, 2015 p. 118 e 119 96

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ESPIRITUALIDADE E FENÔMENO RELIGIOSO: CONFLUÊNCIAS

Rosangela Xavier da Costa97 Silvia Xavier da Costa Martins98

RESUMO Este trabalho, enquanto pesquisa bibliográfica, tem por objetivo demonstrar como a espiritualidade e o fenômeno religioso, apesar de seguirem caminhos específicos, se confluem, em determinados aspectos. O fenômeno religioso pode ser encontrado em todos os povos e culturas, pois surge na medida em que as pessoas necessitam de um ser superior para servir-lhes de apoio diante das adversidades da vida, afirma Edivaldo Siqueira de Abreu (2014). Portanto, o fenômeno religioso, enquanto aspecto subjetivo do ser humano, está fundamentado em duas categorias: as crenças e os ritos, segundo Emile Durkheim (1989). As crenças são as representações que estão constituídas nas opiniões, valores e saberes de determinadas ações humanas, ao passo que os ritos são as maneiras de se conduzir essas ações subjetivas. Desse modo, o fenômeno religioso, ao ser detectado nas diversas religiões e culturas como processo subjetivo, está associado à espiritualidade. Segundo Eymard Vasconcelos (2006), espiritualidade é uma dimensão particular do processo subjetivo que orienta a prática humana, assumindo diferentes aspectos a partir da cultura dos povos. Percebe-se que espiritualidade não é uma crença em uma religião específica, mas está na fé, na força, na esperança e na capacidade de acreditar em algo ou alguém superior, encontrandose, também, nas emoções que o ser humano tem ao sentir, se emocionar, acreditar, cuidar, decidir, ou seja, transcender. Constata-se que o fenômeno religioso e a espiritualidade, mesmo sendo categorias diferentes, são confluentes, na medida em que, fazem parte de um universo transcendente de experiências individuais, de emoções e de hierofanias, que se apoderam fortemente do ser humano em determinados momentos, transformando o cotidiano e a realidade dita normal na 97

Titulação: Mestre em Ciências das Religiões. Instituição: Universidade Federal da Paraiba. Grupo de Pesquisa “Arte Visual & Inclusão: ensino de artes visuais em instituições de educação inclusiva em João Pessoa- PB”. Email: [email protected]. 98 Titulação: Mestre em Ciências das Religiões. Intituição: Universidade Federal da Paraiba. Email: [email protected].

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existência. Mediante isso, pode-se concluir que, tanto a espiritualidade quanto o fenômeno religioso, são buscas subjetivas pessoais de sentido e significado para a vida que se confluem, principalmente em momentos em que o ser humano está necessitando de ajuda, em busca de encontrar soluções para seus problemas pessoais. Palavras-chave: Espiritualidade; Fenômeno religioso; Confluência.

1. INTRODUÇÃO A ciência e a religião buscam cada vez mais desvendar os mistérios do universo e da vida. Entre tantos e distintos desafios, o surgimento da Ciência da Religião, enquanto disciplina, está entre eles. Na metade do século XIX, fatores culturais e históricos contribuíram para o aparecimento

da

disciplina

Ciência

da

Religião

em

meio

às

profundas

transformações por que passou o Ocidente; a partir de um processo de ramificação das ciências naturais e das ciências humanas.

Essa disciplina juvenil, na

Modernidade, é de importância fundamental para a pesquisa científica, devido ao fato de que ela se propõe a desenvolver “[...] um estudo comparado das diferentes tradições religiosas da humanidade então desconhecidas, com o objetivo de reconstruir a história da evolução religiosa da humanidade” (FILORAMO; PRANDI, 2003, p. 7). Segundo esses autores, o problema epistemológico básico das Ciências das Religiões é tentar explicar ou compreender a religião. A Ciência da Religião não é Teologia porque parte do princípio de estudar várias religiões e o fenômeno religioso, sem se ater à veracidade ou axioma de valor, em busca de resultados úteis à comunidade universal, e não a um grupo específico (HUFF JÚNIOR; PORTELLA, 2012). No entanto, a Teologia é “a interpretação racional da fé religiosa” (RYRIE, 2004, p.16), ou seja, é a busca do significado sistematizado das verdades a respeito de Deus. O estudo da religião, portanto, não é apenas uma janela que se abre para panoramas externos, mas é como um espelho em que nos vemos, afirma Rubem Alves. Segundo ele, é fácil identificar, isolar e estudar a religião como o comportamento exótico de grupos sociais restritos e distantes. Mas é necessário reconhecê-la como

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presença invisível, sutil, disfarçada, que se constitui num dos fios com que se tece o acontecer do nosso cotidiano. A religião está mais próxima de nossa experiência pessoal do que desejamos admitir [...], a Ciência da Religião é também ciência de nós mesmos, é sapiência, é conhecimento saboroso. (ALVES, 2008, p.12).

Nessa confluência cotidiana, Hock (2010) define religião como um construto científico que abrange componentes de diferentes fatores, critérios e dimensões que, em seu conjunto, descreve um quadro no qual a Ciência da Religião insere o seu objeto. Segundo Durkheim (1989), nenhuma religião é falsa, todas são verdadeiras, por responderem diferencialmente a determinadas condições da vida humana; todas exprimem o indivíduo a sua maneira, facilitando a compreensão de mais um aspecto da natureza humana. A religião, portanto, segundo este autor, é uma espécie de entidade indivisível, formada por partes de um sistema complexo de mitos, dogmas, ritos e cerimônias. Desse modo, a Ciência da Religião é uma ciência que transmite os conhecimentos sobre religiões e culturas (HOCK, 2010), em que, entre tantas coisas, busca compreender o sentido da espiritualidade e do fenômeno religioso. Para melhor compreensão, este artigo objetiva fundamentar as teorias e conceitos de autores que se aprofundaram sobre os temas da espiritualidade e do fenômeno religioso.

2. O FENÔMENO RELIGIOSO

Os historiadores das religiões procuram complementar informações a respeito das estruturas específicas dos fenômenos religiosos, em busca de compreender a própria essência da religião. O fenômeno religioso, enquanto aspecto subjetivo do ser humano, está fundamentado em duas categorias: as crenças e os ritos (DURKHEIM, 1989). As crenças são as representações que estão constituídas nas opiniões, valores e saberes de determinadas ações humanas, ao passo que os ritos são as maneiras de se conduzir essas ações. Podendo ser encontrado em todos os povos, culturas e religiões, o fenômeno religioso está associado às necessidades humanas, principalmente durante o enfrentamento das adversidades da vida. Quando tudo parece não ter mais sentido, 105

o fenômeno religioso surge como um apoio; nos momentos em que a dificuldade é tamanha, faz-se necessário o surgimento da fé e da crença em um futuro cheio de esperança (ABREU, 2014). Nessa situação, a fé pode se sobrepor à razão. As emoções positivas surgem, expandindo o potencial de elevação da autoestima permeada pela espiritualidade. Além disso, a fé é uma crença individual de uma extrema convicção e entrega, mediante a qual o indivíduo direciona sua energia positiva para a busca de uma realização pessoal, independente de religião. Quando se refere à fé, Vaillant (2010, p. 70) afirma que ela “pode ser experimentada por meio da emoção positiva, da percepção pessoal de iluminação interior, de reverência e de anseio pelo sagrado”. Segundo Durkheim (1989), a vida religiosa se encontra ao redor de duas classes ou de dois gêneros opostos, que são o sagrado e o profano, variando de acordo com a concepção de cada religião. Na busca pela compreensão do sagrado, Eliade (2010, p. 16) enfatiza que “o sagrado se manifesta sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades naturais”.

As realidades consideradas naturais ou normais na vida

humana, ou seja, as que podem ser intituladas profanas, são classificadas como as coisas do cotidiano, que são separadas da noção de sagrado. Desse modo, o indivíduo “[...] toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra, como algo absolutamente diferente do profano” (ELIADE, 2010, p.17). Essas duas modalidades de ser no mundo, o sagrado e o profano, segundo Mircea Eliade, são classificadas como duas situações existenciais humanas, que interessam a todo cientista que busca conhecer as dimensões possíveis do ser humano. O termo proposto pelo autor, para o ato da manifestação do sagrado, é hierofania, que significa a revelação do sagrado. Então, o fenômeno religioso é uma hierofania? Certamente, afirma Croatto (2010, p. 71): “todo fenômeno religioso é uma hierofania. O sagrado, de fato, só pode ser experimentado se ele se mostrar”. Nesse sentido, o ato da revelação do sagrado (hierofania) vem acontecendo durante toda a história das religiões. As religiões estão repletas de hierofanias. Eliade (2010, p. 17) afirma: “[...] a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas”.

106

O indivíduo das sociedades mais arcaicas, tinha a tendência de viver o maior tempo possível no sagrado ou muito perto dos objetos ditos consagrados, constata Eliade (2010), ao passo que o indivíduo ocidental moderno já não tem essa percepção, devido ao ceticismo e a falta de crença nas inúmeras formas de manifestações do sagrado. Nesse sentido, objetos podem representar essa hierofania, como por exemplo, pedras e árvores podem ser consideradas sagradas para algumas pessoas, sem perder a essência de serem pedras e árvores, pois revelam algo que já não é pedra nem árvore, mas é o sagrado, o Ganz Andere99 (ELIADE, 2010). Essa adoração em relação aos objetos sagrados como hierofanias pode ser exemplificada pela árvore que Buda, o iluminado, meditou na sombra dela, na Índia (figura1); ela ainda continuou a ser uma árvore, mas passou a ser considerada sagrada mediante a representação que adquiriu após ter sido utilizada por ele para o devido fim.

Figura 1: Buda, o iluminado, meditando sob a árvore sagrada. Fonte:http://www.buddhachannel.tv/portail/local/cachevignettes/L450xH248/femme_bouddha-98734.jpg

Portanto, o fenômeno religioso detectado nas diversas religiões e culturas, como processo subjetivo, está associado à espiritualidade. 3. A ESPIRITUALIDADE

99

O grandioso, o totalmente diferente, aquilo que o homem religioso interpreta como a materialização extrema do sagrado.

107

A utilização da palavra “espiritualidade” esteve sempre associada à religião, mas nos últimos vinte anos tem adquirido significados mais amplos. Na contemporaneidade, a espiritualidade se encontra independente da religião porque surge como fruto do conhecimento humano associado à elaboração subjetiva de sentimentos positivos e fenômenos individuais. Para uma compreensão mais relevante sobre isso, corrobora-se com Jeff Levin, quando enfatiza que: a palavra espiritualidade adquiriu um novo significado. Obras populares de escritores da nova era e da mídia, frequentemente hostis às instituições religiosas estabelecidas, mas abertos à expressão religiosa individual, começaram a reservar o termo “religião” para comportamentos, crenças e outras manifestações que ocorrem no contexto das religiões organizadas. Todas as outras expressões religiosas, inclusive práticas tais como a meditação e experiências transcendentes seculares (por exemplo, sentimentos de unidade com a natureza), são agora abarcadas pelo termo “espiritualidade”. Nesse novo sentido, espiritualidade é o fenômeno mais amplo, sendo a palavra “religião” reservada para o subconjunto de fenômenos espirituais que se referem à atividade religiosa organizada. (LEVIN, 2001, p. 25).

Vasconcelos (2006) afirma que a espiritualidade é uma dimensão particular do processo subjetivo que orienta a prática humana, assumindo diferentes aspectos a partir da cultura dos povos. Sem interferir na importância da religião, a espiritualidade amplia seu conceito e abrange formas de fenômenos mais variados, incluindo processos subjetivos com experiências individuais de contato com uma dimensão que vai além das realidades consideradas normais na vida humana, que as transcende (VASCONCELOS, 2006, p. 30). Segundo o autor, apesar de ser uma experiência individual, o fenômeno transcendente da espiritualidade tem uma importância significativa social, porque transforma profundamente a percepção da vida nas pessoas, ressignificando e gerando

novas

condutas

mediante

uma

conexão

com

o

“eu

profundo”

(VASCONCELOS, 2006, p. 36). O “eu profundo”, para o autor, é um canal de conexão e abertura com a transcendência. Entretanto, para Vasconcelos (2006), toda pessoa já pode ter vivenciado eventualmente essa experiência da transcendência na espiritualidade, ou seja, o mergulho no “eu profundo”. Ele exemplifica com um caso hipotético. Uma pessoa que resolve passar por um parque, para encurtar o caminho que o levaria ao dentista, se depara com a cena de um pequeno lago rodeado de árvores, onde encontra-se uma pata nadando com seus filhotes (figura 2). 108

Figura 2: Pata nadando com seus filhotes. Fonte: http://4.bp.blogspot.com/-pbUvFWEJZA/UBXrmi4rThI/AAAAAAAABlA/7Mfd94geXRU/s1600/o+amor.jpg

A cena a toca profundamente e a pessoa fica enlevada, esquecendo-se momentaneamente de seus problemas e compromissos, altera-se repentinamente o seu estado de consciência, de modo que ela percebe dimensões da realidade que antes não conseguia identificar. Fica nesse espaço por mais de uma hora, observando o cenário, perde o dentista, mas consegue perceber alguns insights com perspectivas para a resolução dos problemas que estava enfrentando. O estado mental de encantamento dessa pessoa, caracteriza-se como uma conexão espiritual com o “eu profundo”. Nessa

linha

de

pensamento,

Koenig

demonstra

a

percepção

da

espiritualidade no contato com a natureza: Muitas pessoas encontram espiritualidade através da religião ou de um relacionamento pessoal com o divino. Porém, outros podem encontrá-la por meio de uma conexão com a natureza, com a música e as artes, por meio de um conjunto de valores e princípios ou por uma busca da verdade científica (KOENIG, 2012, p. 13).

Assim, buscar compreender a espiritualidade, de forma subjetiva e pessoal, em busca de sentido e significado para a vida, é essencial para a compreensão e para o enfrentamento dos desafios da existência, em um mundo carregado de símbolos e signos, que codificam, de certa forma, a relação com o mistério, o transcendente, o divino, o sagrado e os assombros das questões existenciais (DITTRICH, 2005). 109

Por isso, a espiritualidade não se caracteriza apenas como uma crença em determinada religião, mas está na fé, na força, na esperança e na capacidade de acreditar em algo ou alguém superior, encontrando-se também nas emoções que o ser humano tem ao sentir, se emocionar, acreditar, cuidar, decidir, ou seja, transcender. Assemelha-se ao conceito de Jung (2008), que trata a espiritualidade não se referindo a uma determinada profissão de fé religiosa, mas à relação transcendental da alma com a divindade e à mudança que daí resulta; ou seja, a espiritualidade também está relacionada a uma atitude, a uma ação interna, a uma ampliação da consciência, a um contato do indivíduo com sentimentos e pensamentos superiores e ao fortalecimento e amadurecimento que esse contato pode resultar para a personalidade e para a vida. Portanto, espiritualidade é um sentimento pessoal que dá sentido à vida, e a religião é uma expressão da espiritualidade (SAAD; MASIERO; BATTISTELLA, 2014). 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A

essência

da

espiritualidade,

independentemente

de

religião,

está

intrinsecamente associada ao fenômeno religioso. São confluências que estão presentes nas crenças, nos saberes, nos valores e nos questionamentos pessoais presentes na vida do ser humano envolvidos pela cultura de cada ser. Considerando a espiritualidade e o fenômeno religioso como buscas subjetivas pessoais de sentido e significado para a vida, entende-se que existe uma grande contribuição em tudo que envolve esses dois temas e na relação entre ambos. Afinal, a espiritualidade encoraja o aprendizado para a própria experiência, como forma peculiar de vivenciar o mundo. Constata-se que a espiritualidade e o fenômeno religioso, mesmo sendo categorias diferentes, estão em confluência, porque fazem parte de um universo transcendente de experiências individuais, de emoções e de hierofanias que se apoderam fortemente do ser humano, em determinados momentos, transformando o cotidiano e as realidades ditas normais na existência. No entanto, esse campo de estudos em formação e em expansão necessita de pesquisas mais aprofundadas, pois a reflexão aqui presente apenas demonstra a relevância da compreensão sobre esse assunto, de suma importância para a

110

contribuição do conhecimento do ser humano, que permeia a humanidade desde os primórdios.

5. REFERÊNCIAS ABREU, Edivaldo Siqueira de. O fenômeno religioso. Disponível em: . Acesso em: 1 mar. 2014. ALVES, Rubem. O que é religião? 9. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008. CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2010. DITTRICH, Maria Glória. A arteterapia: da criatividade e espiritualidade ao sentido de viver. In: NOÉ, Sidnei Vilmar (Org.). Espiritualidade e saúde: da cura d’almas ao cuidado integral. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005. p. 44-59. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Tradução de Joaquim Pereira Neto. 2. ed. São Paulo: Paullus,1989. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. FILORAMO, Giovanni; PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paullus, 2003. HOCK, Klauss. Introdução à ciência da religião. São Paulo: Loyola, 2010. HUFF JÚNIOR, Arnaldo Érico; PORTELLA, Rodrigo. Ciência da religião: uma proposta a caminho para consensos mínimos. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião. Juiz de Fora, v.15, n. 2, p. 433-456, 2012. JUNG, Carl Gustav. Chegando ao inconsciente. In: ______. (Org.). O Homem e seus símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. KOENIG, Harold G. Medicina, religião e saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade. Porto Alegre: L&PM, 2012. LEVIN, Jeff. Deus, fé e saúde. São Paulo: Cultrix, 2001. RYRIE, Charles Cadwell. Teologia básica ao alcance de todos. Tradução de Jarbas Aragão. São Paulo: Mundo Cristão, 2004.

111

SAAD, Marcelo; MASIERO, Danilo; BATTISTELLA, Linara Rizzo. Espiritualidade baseada em evidências. Revista Acta Fisiátrica, v. 8, n. 3, p. 107-112, 2001. Disponível em: . Acesso em: 1 mar. 2014. VAILLANT, George E. Fé: evidências científicas. Tradução de Isabel Alves. São Paulo: Manole, 2010. VASCONCELOS, Eymard Mourão. A espiritualidade no cuidado e na educação em saúde. In: ______. (Org.). A espiritualidade no trabalho em saúde. São Paulo: Hucitec, 2006. p. 13-19.

112

Tradição que cura – Profissão Benzedeiras Tatiane Ribeiro de Lima100 Kelly Thaysy Lopes Nascimento101 Tiago O. de Belmont Fonseca102 Gabriel Taciano de Oliveira103 RESUMO

Os conhecimentos tradicionais são as bases de nossa sociedade, disso não temos nenhuma dúvida, mas, o que infelizmente constatamos é que muitas vezes esses conhecimentos não têm mais o seu devido espaço em nossa sociedade. Os conhecimentos tradicionais passam por muitas áreas, mas aqui, vamos nos deter ao conhecimento curativo das práticas das benzedeiras, tão comuns em nossa sociedade. As benzedeiras, são ainda hoje em nossa cultura, figuras importantes para a conservação da tradição, apesar da forte carga de secularização que carregamos, durante muito tempo, desde a colonização do Brasil podemos perceber na história que essas figuras têm um papel fundamental para a população que são a de agentes de cura. Entretanto, os seus métodos muitas vezes as colocam em categorias de classificação a qual elas não pertencem. Comumente é possível perceber essas mulheres/homens serem acusadas (os) de fazerem bruxarias, magia negra. Modernamente são acusadas de exercerem a prática ilegal da medicina quando levamos em consideração que as bênçãos são quase sempre acompanhadas de tratamentos fitoterápicos. Felizmente, depois de anos de perseguição é possível vislumbrar tempos melhores para as práticas de “rezas”, por exemplo, quando encontramos municípios legalizando essas profissionais enquanto agentes de saúde e fazendo com elas parcerias, trazendo as benzedeiras para dentro do circulo das 100

Graduada em Ciências das Religiões (UFPB), mestra em Ciências das Religiões (PPGCR- UFPB), pesquisadora do Videlicet. 101 Mestre em Ciências das Religiões (UFPB) - [email protected] 102 Graduando em Engenharia Química (UFPB) – [email protected] 103 Graduado em Pedagogia (UFPB)

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práticas integrativas complementares de saúde; bênçãos associadas aos tratamentos médicos passam a ser vistos como uma forma de cuidado holístico. INTRODUÇÃO

O preconceito em volta das práticas das benzedeiras é bastante antigo e tem ligação direta com o poderio religioso católico. As práticas de “benzeção” são perseguidas há séculos pelo catolicismo. Atualmente, o combate ao trabalho dessas pessoas que têm nas suas práticas a manipulação curativa através do contato com o sagrado, não vem apenas da igreja católica, mas das inúmeras denominações evangélicas neopentecostais, que tratam essas práticas como pertencentes ao mundo demoníaco. Outra parcela da população que também condena essa prática, é a grande fatia de céticos criados pelo processo de secularização. Como podemos observar, a prática de benção sofre muitas e duras críticas pelas mais diversas camadas da sociedade, estas críticas podem ter um fundo religioso como as levantadas principalmente pela dogmática cristã (católica ou protestante) ou pode ter um cunho cientifico, onde o ceticismo impera, essa descrença em relação às práticas das benzedeiras está pautada principalmente nos avanços da medicina que hoje consegue através de tratamentos alopáticos, combater problemas de saúde que antes era tratado apenas pelas benzedeiras e rezadores. No Brasil, o catolicismo popular deu às benzedeiras uma nova formatação: a arte de curar com palavras e chás, “Africanos, índios e mestiços foram os grandes curandeiros do Brasil colonial. O conhecimento que tinham das ervas e de procedimentos rituais específicos a seu universo cultural, atrelou-se ao acervo da medicina popular” (SOUSA, 2006.p.222). Podemos dizer que as nossas benzedeiras são o resultado da mistura das práticas de feitiçaria europeia, somadas às práticas de curas indígenas, feitas pelos pajés, usando instrumentos mágicos, sopros e sucções, as rezas católicas, e as influências da cultura africana criando um novo formato, de manipuladores do sagrado, assim essa pessoas agraciadas com esse “dom” não têm mais funções determinadas como acontecia em alguns lugares da Europa. “No Brasil colônia, curandeiros podiam tanto restaurar a harmonia rompida, restituindo saúde aos que tinha perdido como desencadear malefícios. Aqui, foram poucas às vezes em que houve uma divisão funcional como a que existia na Galícia em fins do século XVI: as bruxas enviavam o mal, as feiticeiras sanavam-no.” (SOUSA, 2009.p.225).

As práticas das benzedeiras aqui no Brasil não têm essa divisão, é possível obter das mesmas benzedeiras diferentes tipos de rezas para diferentes tipos de problemas, independentemente da sua origem, o que vai variar será o tipo de tratamento “receitado” pela benzedeira (o), o tipo de material que será usado para a realização da reza, podendo utilizar de folhas, flores, tecidos, linhas e agulhas. O material usado dependerá da doença que está sendo tratada. Essas doenças podem ter origem tanto espiritual e energética como o mau olhado ou mesmo doenças que são causadas por esforço físico como espinhela caída, ou ainda doenças que podem passar por meio de contágio como é o caso das feridas de boca.

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Durante muitos anos, essa pessoas que se encarregaram de curar corpos e almas foram fortemente marginalizadas pelas religiões institucionalizadas, que para aniquilarem essas práticas, às satanizavam, diminuindo assim o número de pessoas que se interessam em aprender o oficio e de pessoas que procuram as curandeiras para utilizarem os seus serviços. Reprimidas pelas religiões e pela medicina, ao poucos esses profissionais foram sendo minados da nossa cultura e substituídos por remédios e orações feitas por profissionais autorizados a manipular o sagrado que de preferência tenha em suas mãos um diploma de teologia o que os autoriza a rezar e orar nas pessoas necessitadas, a partir de imposições de mãos, aspersão de água e unção com óleo, podendo ainda benzer a água que a pessoa deve beber para se purificar. As benzedeiras acabaram sendo empurradas, geração após geração, para a marginalização sociocultural, sendo hoje o quantitativo de pessoas “capacitadas” no oficio das benzeduras escarço. Depoimentos de benzedeiras relatam a dificuldade de encontrar jovens que se interessem em aprender os rituais de cura e as rezas, mas mostrando que essa é uma tradição muito forte que nem as instituições religiosas e nem os avanços da medicina conseguiram aniquilar, pois o que sustenta essas práticas mesmo nas margens da sociedade- religioso é o fato das pessoas mais simples ainda depositarem uma profunda confiança nas rezas desses profissionais. Pois, “Para o pensamento tradicional, o homem se apresenta múltiplo, diverso” (Durand, 2008, p.39). Essa multiplicidade e diversidade deve ser vista de forma total, não retalhada como faz a medicina que pretende curar apenas o corpo, de preferência apenas aquela pequena parte que está adoecida, e também se difere das curas proporcionadas pelas religiões que visam apenas a cura da alma. As curandeiras com as suas rezas, banhos e chás “atacam” pelas duas vertentes, ao mesmo tempo, proporcionando a cura do corpo e da alma. Apesar da negação científica e cética que as benzedeiras sofreram principalmente do campo da medicina, hoje essa visão vem se modificando, a introdução de novas formas de pensamento trouxe para medicina um olhar holístico sobre a doença considerando que as doenças do corpo podem ser provenientes de vários fatores que necessariamente não são fatores físicos. Dessa maneira ficou mais simples aceitar que as benzedeiras podem sim influenciar os processos de cura, esse novo olhar pode ser comprovado de diversas formas, uma delas que posso citar é que atualmente verificar se as pessoas frequentam benzedeiras, como forma de tratamento de saúde é uma preocupação do Ministério da Saúde. É possível encontrar nas fichas de cadastramento da saúde básica (FICHA DE CADASTRO INDIVIDUAL – ESUS) um campo onde é perguntado se aquele usuário frequenta benzedeira. O que deixa clara, a preocupação da medicina com a participação das práticas das benzedeiras, durante os tratamentos, e a possibilidade de introdução das práticas tradicionais como um suporte no tratamento de algumas doenças. Outro avanço que podemos observar é com relação à aceitação das benzedeiras na sociedade enquanto profissionais de relevância para o tratamento das pessoas, através das suas rezas e chás encontradas em alguns municípios do Brasil. Municípios como São João do Triunfo- PR e Rebouças – PR, tomaram a vanguarda no processo de reintrodução das rezadeiras como parte importante e atuante na cultura e na vida da sociedade, mais que isso, eles reconheceram verdadeiramente o trabalho dessas profissionais na manipulação do sagrado, reconheceram o trabalho dessas pessoas como participativas na saúde pública, legalizando essa profissão.

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3 DESENVOLVIMENTO 3.1. BRUXAS, CURANDEIROS, MEDICINA E IGREJA NO BRASIL Durante a idade média a caça às bruxas foi uma das principais atividades desempenhadas pela inquisição dentro da igreja católica. Toda e qualquer atitude suspeita de bruxaria que fosse denunciada era investigada. E as atitudes suspeitas poderiam ser denunciadas por qualquer pessoa, e muitas eram as atitudes suspeitas: o simples fato de tomar um chá fazendo uma oração já poderia ser considerada como uma atitude suspeita para ilustrar essas acusações. Traremos à tona uma narrativa do Brasil colônia. “A primeira Visitação à Bahia apurou as culpas de João Roiz Palha, lavrador de 62 anos de idade. Confessando, confessando contra esse homem que 52 anos antes, ainda em Portugal, encantará o gado para que ele caíssem os bichos: “Tomava nove pedras do chão e dizia as palavras seguintes, encanto bizando (sic) com o diabo maior e com o menor, e com outros todos”. Repetia essas palavras por nove vezes,” e cada vez que as acabava de dizer, lançava uma das ditas pedras contra a encosta (sic) o lugar onde andava o gado”. Após três dias, os bichos caíram todos. Perguntado sobre o motivo que o levará a agir assim respondeu” que o fazia porque naquele tempo o viu fazer quase todos os pastores aquela terra” (SOUZA, 2009. p 246).

A narrativa supracitada nos traz não uma acusação, mas uma confissão de um homem que acreditava ter feito mesmo que de forma inocente e sem a intenção de fazer mal a outrem. Podemos aqui nos dar a licença para sairmos um instante das provas empíricas e imaginarmos que essa confissão poderia estar atrelada ao medo de ser delatado e com isso não poder livrar-se do castigo. Confessar era uma das formas que as pessoas tinham em diminuir os castigos para as suas desobediências doutrinárias. Segundo (SOUSA, 2009) o medo de ser apontado como bruxa, levava muita pessoas a confessarem a prática de pequenos sortilégios, simpatias ou outras práticas condenadas pela igreja e que estavam na mira da inquisição. A bruxa era uma figura temida e bastante conhecida principalmente na Europa medieval, em geral eram mulheres que ocupavam essa “classe” social o que não impedia a existência ainda que em menor proporção de bruxos. Nesse trabalho utilizaremos o conceito de Keith Thomas para bruxas, segundo ele: “Uma bruxa era uma pessoa de qualquer sexo (mas com maior frequência uma mulher) que podia ferir outras pessoas por meios misteriosos. O dano que ela podia causar - maleficium, na linguagem técnica – assumia várias formas. Em geral, suspeita-se que causava danos físicos a outras pessoas, ou que provocava a morte delas.” (KEIT, 1933. p 355). Como vimos, a bruxa possuía em si poderes capazes de prejudicar as pessoas, ainda segundo (KEIT, 1933) o poder de ação dessas bruxas ou bruxos ultrapassavam as fronteiras de feitiçaria técnica, elas tinha em si o poder de emanar o mal, eram capazes de influenciar uma pessoa apenas com um toque ou com um olhar, outro meio utilizado pela bruxa para atingir uma pessoa eram as pragas e as maldições, mas também usavam artifícios físicos para as suas bruxarias como pedaços de roupas, de unhas, de cabelos, bonecos com agulhas, ossos e todos os tipos de secreção humana ou não. 116

Os supostos poderes dessas bruxas as tornavam pessoas temidas pela maioria das pessoas, mas também era à elas que as pessoas recorriam quando queriam conseguir algo não lícito ou que prejudicaria a alguém. Essas mulheres eram temidas, pois todas acreditam que elas tinhas pactos com o diabo, essa é uma das alegações da igreja católica para tornar toda e qualquer bruxa antecipadamente culpada, mesmo que não tenha causado mal a ninguém, apenas o fato de “terem um pacto com o diabo” já as tornavam culpadas por antecipação. Thomas nos traz uma citação sir Edward Coke onde bruxa seria “uma pessoa que tem conferência com o Diabo para consultá-lo ou para cometer algum ato”. Com base nessa definição que era recorrente e foi válida na idade média, podemos afirmar que as bruxas não tinham por si só poderes sobrenaturais, os seus poderes advinham de pactos demoníacos, o que as tornavam alvos certos da igreja. Depois dessa breve descrição do perfil de uma bruxa na idade média demonstrando como elas agiam e praticavam as suas bruxarias, passaremos a falar agora dos curandeiros também na idade média, suas práticas e as principais diferenças entre eles a as bruxas. Apesar de também se utilizarem de práticas mágicas, os curandeiros tiveram na idade média europeia uma maior aceitação por muitos motivos. Entre eles, podemos citar que diferentemente das bruxas, esses homens e mulheres estão na sociedade muito mais com o a proposta de ajudar as pessoas do que de prejudicá-las como faziam as bruxas. O que não quer dizer que o curandeiro sempre utilizasse os seus conhecimentos apenas para o bem. Os curandeiros interferiam na vida das pessoas em praticamente todos os aspectos, curavam doenças, encontravam objetos perdidos, faziam encantamentos amorosos, para atrair dinheiro, sorte e todas e quaisquer finalidades que a pessoas que fossem procurá-los acreditassem que eles seriam capazes de sanar, como suas orações, porções e sortilégios. As pessoas procuravam os curandeiros por inúmeros motivos e a procura das mais distintas soluções. Vejamos agora como se processava o tratamento feito por um curandeiro durante a idade média. “O traço mais característico dos tratamentos terapêuticos do curandeiro era, talvez, sua prontidão em diagnosticar uma causa sobrenatural para a doença do paciente, dizendo que estava assombrado por um mau espírito, um fantasma ou “duende”, ou que estava assombrado por um mau espírito, um fantasma ou “duende”, ou que estava com “mau-olhado”, “fascinado” ou em temos mais simples, enfeitiçado” (KHEIT, 1933. p 162). Além dessas funções, ainda alguns curandeiros diziam ter uma capacidade especial em detectar bruxas. Um exemplo desse tipo de curandeiro é Joan Tyrry citado por (Kéti, 1933) onde afirma que essa curandeira era “rápida em identificar bruxas entre seus vizinhos” o que demonstra que apesar de utilizarem práticas mágicas os curandeiros eram aceitos por não possuírem vínculos com o “diabo”. Como já vimos os curandeiros costumam atribuir as doenças a seres, digamos, não humanos e extraordinários. “Havia a ideia de que a doença era uma presença estranha no corpo, precisando ser conjurada ou exorcizada” (Kéti, 1933, p 159). Atualmente com os avanços da medicina e o nosso reativo conhecimento do mundo microscópico onde vivem e se desenvolvem os vírus e as bactérias que adoecem os homens, podemos dizer que os curandeiros não estavam de todo errados, já que 117

grande parte das doenças são mesmo provenientes de presenças estranha no nosso organismo, mas que não são entidades sobrenaturais. A grande aceitação de curandeiros tanto na idade média na Europa quanto no período colonial no Brasil se dá por alguns fatores, entre eles, podemos citar: “A reza de preces em latim foi por muito tempo um componente comum no tratamento mágico às doenças” (KHEIT, 1933. p. 17), essas rezas em latim afastavam as suspeitas da igreja, uma vez que eram rezas católicas, além da pequena quantidade de médicos existentes na Europa” a insuficiência dos serviços médicos ortodoxos deixavam uma grande parcela da população inglesa dos períodos Tudor e Stuart na dependência da medicina popular tradicional” (KHEIT, 1933. p. 156). Como podemos observar, na Europa existe uma clara diferença entre bruxa e curandeiro. Essa diferença também irá se aplicar quando falarmos de feitiço e bruxaria, cada qual terá a sua própria metodologia e lógica social, entretanto não entraremos agora nesse mérito. O que nos vale aqui sobressaltar é que o curandeiro tinha uma função social de grande importância na Europa medieval, pois essas pessoas não faziam apenas feitiços elas traziam consigo um largo conhecimento de medicina popular baseadas em chás, banhos e xaropes que salvava muitas vidas. Essa tradição dos curandeiros europeus atravessou o oceano nas caravelas e desembarcam no Brasil, nem sempre essa viagem era desejada como nos deixa claro Laura de Mello: “réus de feitiçaria eram preferencialmente enviados para o Brasil; no século seguinte, os feiticeiros portugueses passaram a cumprir suas penas nas ilhas atlânticas ou, com maior frequência, nos coutos existentes em território metropolitano.” (SOUZA, 2009. p. 114).

Aqui chegando, sofrem muitas influências, além das influências católicas que eles trouxeram do velho mundo. No novo mundo misturou-se com os conhecimentos indígenas e mais tarde com os conhecimentos dos negros surgindo assim no Brasil os seus próprios curandeiros com o seu próprio estilo que nesse artigo chamaremos de benzedeiras e benzedores, pois foi com essa nomenclatura que esses profissionais da saúde holística se espalhou e ficou conhecido no Brasil. Diferente das bruxas que tinham punições mais severas, os curandeiros eram despachados para a colônia para que aqui pulgassem os seus pecados. Já mencionamos a diferença entre bruxos e feiticeiros. Aqui usaremos o termo curandeiro, mas para que fique bem claro (Souza, 2009) nos traz a sua interpretação de Keith Thomas “O feiticeiro lança mão de objetos, enquanto o bruxo não”. Aqui chegando, as práticas mágicas de curandeirismo dos europeus se misturaram com as práticas de pajelança indígena, criando-se novas rezas e novas formas de benzer. Mas vale lembrar que os europeus assim como faziam com as bruxas, demonizaram também as práticas mágicas dos índios (SOUZA, 2009). Entretanto, essa demonização e perseguição não foram o suficiente para destruir esse “patrimônio imaterial” da nossa cultura. Pois, atualmente ainda nos é possível observar que as práticas de curandeirismo continuam vivas, e são passadas de geração para geração pelas benzedeiras. Assim como no período colonial as pessoas eram tratadas pelas práticas de curandeirismo na cura de doenças como “quebranto, mau-olhado, erisipela” (SOUZA, 2009), ainda hoje é possível ver 118

benzedeiras tratando dessas mesmas enfermidades, o que deixa clara a força da tradição que resistiu a todas as investidas da igreja católica. Apesar de não ser uma ideia explícita, é possível perceber que ainda paira no imaginário das pessoas, as mesmas convicções dos europeus mais simples de que “as bruxas enviam o mau, as feiticeiras sanavam-no”. ATUAL SITUAÇÃO DAS BENZEDEIRAS NO BRASIL DO SÉCULO XXI No decorrer deste trabalho, fizemos um breve percurso histórico sobre a difícil tarefa de ser uma benzedeira ou feiticeira na Europa e no Brasil colonial, mostrando que essas pessoas tinham um grande conhecimento curativo e carregavam grandes responsabilidades, percorrendo um caminho difícil, pois a sociedade apesar de precisar dos conhecimentos e dos serviços prestados por essas mulheres e homens, eles não tinham o seu espaço garantido na sociedade, a qualquer momento eles poderiam ser acusados de bruxaria e serem perseguidos pela igreja, o que fazia com que essa arte de curar não fosse praticada de forma explícita, apesar de ser de conhecimento geral da sociedade que ela existia e que era a principal saída para a cura das classes sociais menos privilegiadas. Sempre marginalizadas, essas práticas mágicas de benzer e esses profissionais que manipulavam o sagrado com fins curativos, foram se tornando cada vez mais escassos. A perseguição da igreja foi um forte fator responsável por intimidar essas práticas, mas com o avanço da medicina, e as descobertas do mundo dos vírus e bactérias, dos antibióticos, todo esse aparato da medicina moderna secularizou quase que definitivamente a cura de enfermidades, grande parte das doenças que faziam parte do mundo desconhecido, as doenças que eram tidas como investiduras do sobrenatural no corpo das pessoas, passaram fazer parte de um conjunto de doenças comprovadas e até com uma relativa facilidade de serem curadas. As benzedeiras deixam de ser protagonista até nas camadas mais populares da sociedade com o advento da medicina. Como foi dito, as benzedeiras deixam de protagonizar, mas, nunca saíram de cena, recolhidas a comunidades mais distantes dos centros urbanos, elas continuaram os seus trabalhos e suas curas. No sertão nordestino esses profissionais da cura pela fé na reza, e nos medicamentos naturais que elas/eles “receitam” ainda são bastante procurados e respeitados pelo povo, principalmente por que normalmente essas pessoas são anciãos que guardam o conhecimento consigo (de cabeça) sem nenhum tipo de registros, tanto das ervas para preparar os remédios, quanto das rezas. O que nos é bastante curioso é notar na nossa atual sociedade de medicina secularizada de dissecação de conhecimento, é encontrar cidades onde o poder público resolve tirar as benzedeiras da obscuridade e dá destaque a essa profissão. Como exemplo disso temos as cidades Paraenses de Rebouças e São João do Triunfo. Essas duas cidades passaram a reconhecer o trabalho das benzedeiras como relevantes para a sociedade, e legalizaram a profissão. Na cidade de São João do Triunfo, que tem cerca de 14 mil habitantes e fica localizada á 106 km de Curitiba esses profissionais em 2009 foram cadastrados como agentes de saúde publica 161104 benzedeiras. Já em Rebouças são mais 133105 104

Dados retirados de: http://www.paulopes.com.br/2012/05/cidades-reconhecem-benzedeirascomo.html#.Vsun0fkrLIV em 22/02/2016.

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profissionais cadastradas. Esse reconhecimento foi uma luta desses profissionais, entretanto, elas causam algumas controvérsias, pois alguns médicos temem que essas pessoas possam interferir no tratamento alopático de doenças graves. “O oncologista Cícero Urban, vice-presidente do Instituto Ciência e fé disse que a segurança cientifica não pode ser deixada de lado e que o paciente não pode substituir o curandeiro pelo médico” (POVO, Gaseta.: http://www.paulopes.com.br/2012/05/cidades-reconhecembenzedeiras-como.html#.Vsun0fkrLIV. Acesso em 22/02/2016). As benzedeiras claro se defendem alegando que as rezas curam pela fé, mas que elas jamais pedem aos seus clientes que abandonem os tratamentos da medicina convencional. Um ponto muito importante que quero tocar aqui é na relevância que os tratamentos feitos pelas benzedeiras têm para determinar a saúde do país, visto que tomar conhecimento dessas práticas enquanto um dado relevante para saúde pública é uma preocupação do ministério da saúde. Dentro do programa Saúde da Família essas práticas são bastante relevantes, isso pode ser comprovado empiricamente, pois na ficha de cadastro individual que é preenchida pelo Agente Comunitário de Saúde é possível encontrar dentro do grande campo que se refere às Informações Sociodemográficas um campo onde se pergunta objetivamente se a pessoa frequenta: Curandeiro (a) / Benzedeira (o) dando a opção de resposta como sim ou não. O que implica dizermos se a profissão está sendo legalizada em algumas cidade. Saber sobre o hábito das pessoas que frequentam esses profissionais é uma preocupação do Ministério da Saúde, então vemos que a sociedade e as autoridades olharam para esses profissionais enquanto potencial de cuidado da saúde. Não é ainda o fim do estigma e do preconceito que esses profissionais carregam principalmente devidos à associação histórica das benzedeiras e curandeiros com as bruxarias e as suas práticas demoníacas, mas é um passo para retirar esse conhecimento que atravessou séculos da marginalidade social e cultural. Conclusão Mediante a trajetória histórica desses profissionais da cura através da manipulação do sagrado, compreender o quanto essas pessoas foram importantes para a sociedade, detentores de grandes conhecimentos de fitoterapia aliados à oração e a ainda precária medicina essas pessoas foram muitas vezes responsáveis por muitas curas, uma vez que em muitos momentos as rezas de curandeiros e benzedeiras era o único recurso disponível para uma enorme parcela da população. Esses profissionais sofreram os mais diversos tipos de perseguições e preconceitos, primeiro da igreja que os viam como bruxas e bruxos, em seguida da categoria médica que não aceitavam que essas pessoas tratassem doenças, alegando que elas não eram médicos, muito embora os próprios médicos segundo nos fala Keith Thomas, aprendiam muito com os curandeiros principalmente no que se refere a medicamentos fitoterápicos. Outro grande inimigo foi o grande movimento de secularização que vivemos durante a revolução industrial que trouxe as pessoas para os polos urbanos, as afastando cada vez mais de suas crenças.

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Dados retirados de: http://redeglobo.globo.com/rpctv/meuparana/noticia/2013/11/conheca-cidadeque-reconhece-benzedeiras-como-profissionais.html

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Entretanto apesar de sofrer muitas ofensivas, a tradição das benzedeiras resistiu e agora aos poucos com a forte onda de cuidados holístico da saúde inspirados principalmente nas tradições orientais, e formatadas às nossas realidades, é possível observar que a medicina volta ao poucos a valorizar o bem espiritual enquanto um ponto positivo no tratamento das doenças. Dessa maneira os tratamentos das benzedeiras paralelos aos tratamentos médicos funcionam como um auxiliar e não como um substituto, mas esses profissionais como vimos em alguns lugares do país já estão sendo reconhecidos como pessoas capazes de aplicar práticas terapêuticas complementares. Acredito que esse é um grande avanço para a medicina e para a cultura do país, afinal, em um país onde a cada dia se expande mais o mercado de práticas terapêuticas importada do Oriente como a Ioga, hei, aromaterapia, cromoterapia, entre outros, também pode abrir as portas para as nossas práticas terapêuticas de bênçãos, banhos e chás, como práticas que se somam e melhoram a qualidade de vida das pessoas.

Referencias

Thomas, Keith. A religião e o declínio da magia. Companhia das letras, São Paulo, 1991. Souza, e Mello de Laura.

O diabo e a terra de Santa Cruz, Feitiçaria e

religiosidade popular no Brasil colonial. Companhia das letras. São Paulo, 2009. DUCATI,

Ariene.

DIONÍSIO,

Bibiana.

Benzedeiras

são

consideradas

profissionais de saúde no Paraná. Em Rebouças, no interior do estado, lei inaugura tradição

prática.

Acesso

em

20

de

Outubro

de

2015.

Disponível

em

http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2012/05/benzedeiras-sao-consideradasprofissionais-da-saude-no-parana.html. GAZETA , do povo . Cidades habilitam benzedeiras como agentes de saúde pública.

Acesso

em

20

de

Outubro

de

2015.

Disponivel

em:

http://www.paulopes.com.br/2012/05/cidades-reconhecem-benzedeirascomo.html#.VugXyeIrLIV

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Trabalhando o fenômeno bullying no contexto escolar à luz de Viktor Frankl

Anne Emanuelle Cipriano106 José Rodrigo Gomes de Sousa107 Resumo: O bullying é um fenômeno social que afeta a saúde física e psíquica de crianças e adolescentes, causando prejuízos que chegam a acompanhar esses indivíduos até a vida adulta, comprometendo seu desenvolvimento bio-psico-social e, consequentemente, sua qualidade de vida. Geralmente, o bullying é definido como um conjunto de atitudes agressivas e intencionais que podem ser praticadas por ambos os sexos, em qualquer classe social, faixa etária, de modo repetido e entre pares. Para Viktor Frankl somente quando o homem encontrar-se integrado de forma bio-psico-sócio-espiritual é que o mesmo pode autotranscender e tornar-se verdadeiramente humano, alcançando a realização. Portanto, a presente pesquisa objetiva fazer uma análise acerca deste fenômeno no âmbito escolar e através da reflexão de um recorte teórico para entender que caminho pode ser trilhado para a construção de adultos psicologicamente saudáveis. A metodologia que será utilizada consiste no método bibliográfico que visa fazer uma análise acerca de um recorte da teoria do presente autor.

Palavras-chave: Bullying. Âmbito escolar. Viktor Frankl.

1 Introdução

106

Mestranda em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected] 107 Mestrando em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected]

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A presente pesquisa visa de certa forma, analisar o fenômeno do bullying que ocorre no âmbito escolar e a partir de um recorte teórico da perspectiva de Viktor Frankl e suas contribuições acerca da educação, com a finalidade pensar uma forma de minimizar as consequências negativas do bullying. De acordo com a complexidade, universalidade e dificuldade de intervenção com relação ao fenômeno bullying é que nos dispomos a compreender tal fenômeno no contexto escolar principalmente pela importância que a escola pode ter na vida de uma criança. Com base em pesquisas anteriores observamos que este fenômeno vem crescendo e afetando a vida das pessoas envolvidas. Com a leitura dos textos de Viktor Frankl podemos identificar uma visão de esperança na educação por parte do autor, pois Frankl (1992) acredita que se deve educar para a responsabilidade e que a partir deste “ser responsável” do indivíduo vai se perceber o que é importante e que não é, o que tem ou não sentido, e para ele a busca pelo sentido de vida é a força primária que impulsiona o homem, sendo este o único ser que possui essa característica de preocupar-se se a sua existência tem ou não sentido (Frankl, 1989). Para Viktor Frankl somente quando homem encontra-se integrado de forma biopsico-sócio-espiritual é que o mesmo pode autotranscender e tornar-se verdadeiramente humano, alcançando a realização. E ao falar de ser humano à luz de Viktor Frankl, não podemos deixar de citar a dimensão espiritual que para o autor vai além do religioso e do supranatural (GOMES, 2012).

2 Problemática

2.1 Bullying no contexto escolar à luz de Viktor Frankl108

Um dos grandes problemas encontrados atualmente na sociedade corresponde às formas de violência que podem ser desencadeadas nos mais variados ambientes incluindo a escola. De acordo com Aramis (2005) a escola é de grande significância para as crianças e adolescentes, e os que não gostam dela têm maior probabilidade de apresentar desempenhos insatisfatórios, comprometimentos físicos e emocionais à sua saúde ou sentimentos de insatisfação com a vida. Ainda de acordo com o autor este fenômeno sempre existiu, mas não era alvo da preocupação para educadores e profissionais de saúde. 108

Viktor Emil Frankl, médico psiquiatra nascido na Austría em 1905, de origem judia, fundador da Logoterapia, foi em 1942, levado com sua família por nazistas para um campo de concentração em Auschwitz. Ele sobreviveu e em 1945 foi libertado. Trabalho exaustivamente e palestrou em muitos países; casou-se novamente e veio a falecer em 1997 deixando muitas obras. (FRANKL, 1987; RODRIGUES; BARROS, 2009).

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A palavra Bullying na língua portuguesa não tem um termo equivalente, o termo deriva do inglês Bully que significa “o valentão”, mas ele pode ser definido como um conjunto de atitudes agressivas e intencionais (FANTE, 2005), pode-se também definir o Bullying como um comportamento cruel no qual o mais forte oprime o mais fraco através de “brincadeiras” que disfarçam o 109ato de maltratar e intimidar, de forma recorrente. Segundo Alcatraz (2007) pode ser praticado por ambos os sexos, mas cada um tem características próprias. Enquanto os meninos fazem agressões e xingamentos, as meninas adotam estratégias veladas como disseminação de fofocas, estórias mentirosas, pejorativas e excluem do grupo. O Bullying entre escolares é dividido por papéis sociais pela pedagoga e historiadora Cléo Fante que já pesquisa o tema a mais de 10 anos, como: vítima típica, vítima provocadora, vítima agressora e vítima expectadora. Pois para a autora todos os envolvidos sofrem, não apenas aquele que é alvo dos autores do Bullying (FANTE 2005; 2007). Para a identificação dos indivíduos é preciso estar atento e observar as mudanças de comportamento na criança ou no adolescente, não apenas a buscar identificar quem sofre as agressões, mas quem pratica também. Algumas características dos que sofrem Bullying é o baixo rendimento escolar, resistência em ir à aula, absenteísmo, isolamento no recreio, apresentam-se tristes. E quem pratica coloca apelidos ou chama pelo nome de forma malsoante, faz brincadeiras e ri de modo hostil e desdenhoso, aprece com frequência com novos pertences, faz ameaças, dá ordem, intimida, envolve-se constantemente em discussões e desentendimentos, dentre outros (ARAMIS, 2007; OLWEUS,1998). Fante (2005) acredita que diversos fatores compõem as causas que leva a criança a se tornar o agressor, entre elas a necessidade de reproduzir a agressão sofrida, insegurança, carência afetiva, falta de limites, entre outros, contudo uma observação feita pela autora nos confirma a importância de abordar este tema à luz de Viktor Frankl.

A ausência de modelos educativos humanistas, capazes de estimular e orientar o comportamento da criança para a convivência social pacífica e para o seu crescimento moral e espiritual, fatores indispensáveis ao bom processo socioeducacional, que se torna promotor de auto superação na vida (FANTE, 2005, p. 62).

Segundo Aramis (2007) as consequências podem ser tardias e/ou imediatas atingindo não só aos alvos, mas aos agressores e aos familiares, pois muitas vezes o Bullying pode ser um grande problema na vida dos pais e interferir na vida profissional e social dos mesmos.

124

Os autores que adotam um comportamento anti-social, buscando assumir uma liderança negativa sobre o grupo, apresentam chances quatro vezes maiores de virem adotar comportamentos de risco, atitudes delinquentes violentas e criminosas. Na vida adulta podem apresentar comportamentos violentos nos ambientes de trabalho e familiar (ARAMIS, 2007, p. 54).

As vítimas do Bullying são afetadas amplamente pelas agressões principalmente as de cunho psicológico e emocional.

Os alvos, em consequência das agressões sistemáticas sofridas, podem apresentar depressão, ansiedade, baixa autoestima, isolamento, exclusão, perdas materiais e etc. Quando jovens ou adultos, o mesmo quadro pode perdurar, além da dificuldade em impor-se profissionalmente e da insegurança em estabelecer uma relação afetiva duradoura (ARAMIS, 2007, p. 54).

O autor acima citado acredita que não há estratégias capazes de extinguir esse tipo de comportamento do âmbito escolar e apenas o conhecimento sobre o assunto pode ajudar aos jovens, familiares e profissionais de saúde a lidar com o problema. E refletindo sobre essa questão encontramos o pensamento de Viktor Frankl (1991) que observa a educação como parte de uma sociedade que atualmente encontra-se em crise espiritual e reforça que não apenas os médicos, mas também os círculos políticos-culturais e religiosos devem se comprometer com essa causa. Pois para Frankl a educação deve contribuir para a libertação, humanização e nesta humanização a relação interpessoal com o semelhante deve ganhar relevância segundo o que o autor acredita.

3 Objetivo

Este trabalho tem como objetivo sentido fazer uma análise acerca do fenômeno Bullying no âmbito escolar e através da reflexão de um recorte teórico entender que caminho pode ser trilhado para a construção de adultos psicologicamente saudáveis.

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4 Método

Este trabalho foi realizado através de pesquisa bibliográfica voltada para a compreensão do fenômeno Bullying no contexto escolar e de um recorte da teoria de Viktor Frankl. De acordo com Severino (2007, p. 122), o pesquisador se serve das pesquisas já existentes para fundamentar seu trabalho, “utiliza-se de dados ou de categorias já trabalhados por outros pesquisadores e devidamente registrados”. Qualquer trabalho científico pode se nortear pela pesquisa bibliográfica, coletando as afirmações e observações dos autores que se tornam referência no conteúdo pesquisado para a construção do texto. O procedimento utilizado foi à leitura sistematizada dos textos que abordam essa temática e conteúdos afins.

5 Resultados e Discussões

Ao fazermos um recorte da visão ontológica e antropológica do homem presente na sua teoria, pretende-se, assim, favorecer a perspectiva de que as pessoas devem conhecer a si próprio e, por conseguinte, aceitar o outro na sua individualização o que pode ser imprescindível para minimizar as consequências do Bullying. Em uma pesquisa realizada por Faria (2006) que visou ressaltar as contribuições do pensamento de Viktor Frankl para a educação a pesquisadora enfatizou as correntes filosóficas propostas pelo autor a partir de suas análises da filosofia da educação e a corrente do humanismo presente no pensamento do autor nos pareceu em conformidade com a nossa proposta, pois nela ele enfatiza o aspecto antropológico, o sentido da existência e o respeito à dignidade. E trabalhar o respeito entre pares escolares pode ser fundamental para inibir o Bullying no ambiente escolar.

As principais manifestações da frustação existencial - tédio e apatiatêm se tornado um desafio tanto para a educação quanto para a psicologia. Na área do vácuo transcendental, como dissemos, a educação não se deve limitar a transmitir conhecimento, nem contentar-se com o repasse das tradições. Ela deve sim, refinar a capacidade humana de encontrar aqueles sentidos únicos que não se deixam afetar pelo declínio dos valores universais. (FRANKL, 1997, p. 107-108).

126

Para Frankl o sentimento de vazio e a falta de sentido pode podem comprometer o desenvolvimento dos jovens. E repensando essas questões levantadas por Frankl, Aquino (2012, pg. 161) coloca que de fato, uma educação para uma humanidade “melhor” apenas seria possível na medida em que a escola possa incluir a questão do sentido da vida e dos valores que venham abarcar a dignidade incondicional dos habitantes dessa morada. Ademais, como um valor, a ética aponta sempre para a liberdade e responsabilidade da pessoa humana perante um deve ser específico. E esta reflexão nos conduz a algo ainda maior proposto por Frankl (1997), onde ele sugere que outro passo seja dado pela humanidade, ao que ele chamou de “monantropismo” que seria não apenas a crença num único deus, mas, além disso, mais que isso, a consciência da unidade do gênero humano, e ele acreditava que sob a luz desta unidade as cores de nossa pele desapareceriam, nossas diferenças desapareceriam, e restaria talvez o respeito pelo outro e por si mesmo e sendo isto trabalhado no contexto da educação até de forma preventiva contra o Bullying evitando que as pessoas afetadas por este fenômeno desenvolvam na vida adulta problemas, cujo as origem estão nas experiências tristes vividas nesses episódios . Podendo este conceito tão pouco explorado pelo autor ser objeto de pesquisa dentro de diversas perspectivas. Nos trabalhos de Frankl, há muitas referências sobre a educação, mas poucas pesquisas foram desenvolvidas nessa perspectiva. As que encontramos foram de grande contribuição e esperamos que ao provocar o tema outras pesquisas sejam realizadas.

6 Considerações Finais

Tendo passado por um breve contexto acerca do Bullying e da perspectiva de Viktor Frankl sobre homem e sua possibilidade de transcendência, acreditamos que é possível a longo prazo uma mudança de paradigma com a mudança de perspectiva de ver a si e ao outro sentindo-se responsável pelas interações socais e suas consequências.

7 Referências

ALCATRAZ, C. Prevenir o Bullying. Psicologia: Reflexão e Crítica. V.13, n.1, Porto Alegre, 2007.

AQUINO, T. A. A. Educação para o sentido de vida. Revista Logos & Existência. 127

V.1, n.2, pp. 160-172, 2012.

ARAMIS, A. L. N. Bullying – comportamento agressivo entre estudantes. Revista Oficial do Núcleo de Estudos da Saúde do adolescente UERJ (Rio J.) v.4, n.3, pp.51-56, jul./set., 2007.

FANTE, C. Fenômeno Bullying. São Paulo: Editora Verus, 2005.

FANTE, C; Pedra, J. A.. Bullying Escolar Perguntas e Resposta. São Paulo: Editora Artemed, 2007.

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______. Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de concentração. 12ª Ed. Trad. Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline; revisão técnica de Helga H. Reinhold. Petrópolis: Vozes, 1987.

______. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia. São Paulo: Paulus, 1997.

______. Um sentido para a vida: Psicoterapia e Humanismo. Aparecida - SP: Editora Santuário, 1989.

______. A presença ignorada de Deus. Tradução Walter O. Schlupp e Helena H. Reinhold – Ed. Rev. São Leopoldo: Sinodal. Petropólis: Vozes, 1992.

GOMES, E. S. SOUZA, E. A. A Visão do Homem por Frankl. Revista Logo & Existência: Revista da Associação Brasileira de Logoterapia e análise 128

existencial, v.1, n.1, p. 50-57, mai./out., 2012.

OLWEUS, Dan. Conductas de caso y amezana entre escolares. Madri: Morata, 1998.

RODRIGUES, L. A.; BARROS, L. A. Sobre o Fundador da Logoterapia: Viktor Emil Frankl e sua contribuição para à Psicologia. Goiânia, v. 6, n. 1/2, pp. 11-31, jan./fev. 2009. Disponível em: http://espiritualidadesentido.yolasite.com/resources/sobre%20o%20fundador%20da %20logoterapia.pdf. Acessado em: 29 de janeiro de 2016.

SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. 20ª ed. Petrópolis: Cortez,

2007.

129

FT 3 (DIVERSIDADE RELIGIOSA,ENSINO RELIGIOSO: MULTIPLAS ABORDÁGENS)

130

O imáginário na narrativa da obra As crônicas de Nárnia: uma perspectiva para a formação do símbolo religioso na criança.

Rômulo Anderson Matias Ferreira*

RESUMO O imaginário encontra-se reproduzido na literatura para crianças. A elaboração de uma obra literária vem, nesse ensejo, exercer e demonstrar a relação existente entre o homem e o sagrado, mesmo que de formas suaves. A relação sacro-literária produz elaborações na mente humana a partir dos símbolos reconhecidos culturalmente, dos conhecimentos compartilhados e das transformações do “si mesmo” propostas pela dinâmica da narrativa simbólica. Nossa pesquisa é descritiva e bibliográfica, e como método de análise foi selecionado a hermenêutica simbólica de Durand. Na obra literária de C. S. Lews as Crônicas de Nárnia, objeto da nossa pesquisa, o espaço sagrado e o tempo sagrado tem um valor existencial para a criança, personagem que interpreta o homem religioso, dimensionado no enredo. Nesse espaço e tempos sagrados da narrativa há uma convergência para a constituição do simbolismo religioso, e do imaginário, ambos em formação na criança e que recebem contribuições confluentes cujas perspectivas são plenamente captadas e aprendidas. O enredo que perpassa toda a narrativa está entretecido de elementos mitológicos, a priori, embora ficcionais, os quais reproduzem aspectos do imaginário que, num dado sentido, buscaram por meio da ação humana, no exercício das suas faculdades, dar sentido ao mundo. Ponderamos que a ética presente na narrativa, bem como as imagens simbólicas que se entrelaçam no enredo das Crônicas de Nárnia, fornecem termos que constituem a formação do símbolo religioso na criança. Esses aspectos simbólicos são portadores de conceitos sagrados, a partir do mito na narrativa, os quais encontram aplicação para o ensino em perspectiva religiosa para a criança. Palavras-chave: simbólica.

Imaginário.

Símbolo

religioso.

Literatura

infantil.

Narrativa

1. INTRODUÇÃO

131

O título “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, é o segundo de sete volumes que compõem As Crônicas de Nárnia, escrita por C. S. Lewis entre os anos de 1949 e 1954, assim sendo, este segundo livro foi publicado em 1950. Clive Staples Lewis, comumente mais referido como C. S. Lewis, nasceu em Belfast, atual Irlanda do Norte, 29 de novembro de 1898, e faleceu em Oxford, Inglaterra, 22 de novembro de _________________ * Mestrando em Ciências das Religiões vinculado ao PPGCR/UFPB. Graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Betel Brasileiro. Bacharel em Ciências Contábeis pela UFPB. E-mail: [email protected]

1963.

Além

de

teólogo

cristão

anglicano,

universitário, escritor, romancista, poeta, crítico

C.

S.

literário.

Lewis Durante

foi sua

professor carreira

acadêmica, foi professor e membro tanto da Universidade de Oxford, como da Universidade de Cambridge, ambas na Inglaterra. O sagrado, em suas múltiplas formas de ser conhecido ou se dar a conhecer ao homem, sempre será percebido pelo homem como uma realidade totalmente diferente das realidades presentes “naturais”, assim nos expõe Eliade (2010). E entre as muitas possibilidades de definir o sagrado, pode-se por hora apresentá-lo como sendo tudo que se opõe ao profano. Podemos nos aperceber, a partir disso, que o homem na história é constituído de duas modalidades afetas ao seu ser, a saber, o sagrado e o profano (ELIADE, 2010, p. 20). O homem religioso compreende que a experiência do sagrado promove a fundação ontológica do mundo. Por consequente, o espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso. É nesse espaço que o homem se esforça por estabelecer-se no centro do mundo, pois para viver no mundo é preciso fundá-lo e nenhum mundo pode nascer do estado de “caos” e da relatividade do espaço profano, a saber, o espaço exterior ao espaço sagrado. É partindo dessa premissa que Eliade afirma que a descoberta ou a projeção de um ponto fixo – o Centro – equivale à criação do mundo, a cosmogonia. A literatura infanto-juvenil produzida por C. S. Lewis, acaba por relacionar-se com o sagrado, mesmo que não explicitamente. Tal relação sacro-literária produz efeitos na mente humana elaborando conhecimentos e propondo transformações, quando necessário, para que seja construída uma experiência vivida pelo homem. É então visível a construção de uma identidade do homem no contado com o sagrado

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e consigo mesmo, alternando-se ora pelo trajeto da racionalidade, ora invocando o transcendente para além da razão. Partindo dessas noções preliminares, discorreremos sobre “As crônicas de Nárnia: o leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, obra de C. S. Lewis, escritor inglês do século XX. O enredo que perpassa toda a narrativa, está entretecido de elementos ficcionais, a priori, os quais reproduzem aspectos do imaginário que num dado sentido, buscaram por meio da ação humana no exercício das suas faculdades, dar sentido ao mundo. Daí ser necessário sobrepor os limites da razão e exercer capacidade de imaginar. Pela imaginação, observaremos no texto em fragmento que o autor, e o leitor atribuíram e atribuirão sentido ao mundo. Eis uma função que a narrativa nos apresentará: o imaginário que a permeia nos possibilita o exercício de dar significado ao mundo, valendo-se para tal dos símbolos nela existentes. Nesse sentido, como metodologia, buscamos fundamentos na a senda hermenêutica da Teoria do Imaginário, de Gilbert Durand.

2. INTERDISCURSIVIDADE E EXPOSIÇÃO DA ÉTICA NA NARRATIVA

A ética na narrativa é introduzida por um interdiscurso em que se observa a oferta sacrificial substitutiva, como instrumento da redenção do indivíduo, que Aslam realiza em negociação com a feiticeira. Fica estabelecida neste episódio uma aproximação intertextual implícita com o relato do sofrimento vicário (substitutivo) que o Cristianismo apresenta quando Jesus Cristo decide ser submetido ao sofrimento da morte em lugar do homem pecador, que por direito deveria ter sua existência dada ao adversário de Deus, Satanás. Após a negociação, fato relatado no capítulo seguinte, Aslam, o leão, Reicriador de Nánia, é levado “como ovelha muda que diante dos seus tosquiadores fica calada”, como alude o texto do profeta judaico Isaías anunciando o sofrimento do messias. O personagem se dispõe a ser sacrificado em lugar de Edmundo como cumprimento do rito antigo e assim “poder redimir a traição da criatura humana” agindo “para sossegar a Magia Profunda” (LEWIS, 2009, p. 171). O problema, fator de crise na narrativa, se traduz em como redimir e empoderar os Filhos de Adão (Pedro e Edmundo) e das Filhas de Eva (Suzana e Lúcia). Como livrá-los do alcance da feiticeira, uma vez que ainda não tinham sido consagrados e para agravar sua vulnerabilidade, Edmundo tinha cometido uma 133

transgressão à Magia Profunda do reino de Nárnia, sendo então necessária sua morte pelas mãos da feiticeira? A narrativa não nos encaminha para uma aporia, mas nos direciona para uma solução que passa por um dilema ético: é aceitável, justo, cabível que um inocente sofra punição em lugar do culpado? O capítulo catorze do livro mostra o sacrifício voluntário – que inclusive constava da Escritura da Magia Profunda – de Aslam traz a solução para a crise da narrativa. A narrativa contém aspectos da ética que envolvem princípios de lealdade, liderança, redenção e escolha entre bem sobre o mal. Edmundo pretere o relacionamento fraternal por bens recebidos que lhe proporcionam prazer, os manjares turcos, a tal ponto de em momentos anteriores da narrativa ter se disposto a mentir para eles conduzindo-os ardilosamente ao recanto da feiticeira. A redenção descrita na narrativa envolve a disposição voluntária de Aslam, primeiramente em reintegrar Edmundo ao relacionamento com os demais e, depois, ao se dispor para substituir o quarto irmão para satisfazer à invocação do cumprimento da Magia Profunda, feita pela feiticeira que renunciou ao sangue de Edmundo ao receber de Aslam a promessa de que a vida do leão ser-lhe-ia dada em troca. Interessante notar que a Magia Profunda, norma mística que rege as relações de domínio em Nárnia, é conhecida plenamente por ambos os antagonistas de poder em Nárnia: o leão Aslam e a feiticeira Jadis. E ele afirma que não pode negarse a permitir que sangue seja derramado como exigência para satisfazer à transgressão do menino Edmundo. Os irmãos são criados distantes de seus pais, por motivo da segunda guerra mundial, o que acentua em seus comportamentos o exercício da decisão. E a escolher entre o bem e o mal, entre crer e não crer, entre satisfazer-se ou abnegarse, tornam-se trilhas comuns onde suas escolhas trafegam. Atitudes como a postura inconveniente de Edmundo ridicularizando sua irmã menor Lúcia sobre a existência do Reino de Nárnia, mesmo sabendo da verdade, passando pela opção de dar os irmãos à feiticeira, como condição para obtenção de recompensa individual, chegando a lutar pessoalmente contra a feiticeira para proteger a vida do irmão Pedro, mostram a observância de uma ética admitida no Reino imaginário de Nárnia.

3. O IMAGINÁRIO COMO ACESSO PARA O SAGRADO

134

A narrativa possui uma forte sequencia de imagens que se dinamizam no decurso do enredo, imagens estas que embora com um referencial concreto no mundo, requerem do leitor uma derivação de significados possíveis no mundo imaginário. Assim Gomes nos expõe que “a consciência de duas maneiras de duas maneiras de representar o mundo: a primeira é através da imaginação reprodutora que age evocando objetos conhecidos de vivências passadas (...) a segunda maneira é através da imaginação criadora, que se refere ao devaneio, à invenção de outras imagens, à criação de fantasias, que são construídas por síntese de imagens” (GOMES, 2013. p. 20) .

Desta feita, quando entendemos que o ser humano é um ser que imagina e que vive atribuindo significado às coisas, um leitor se deparará no enredo, por exemplo, com um guarda-roupa que concretamente guarda casacos, mas que ao se permitir viver a infância junto com a personagem de Lúcia, tal leitor não terá a menor dificuldade em utilizar o guarda-roupa como portal para o mundo imaginário de Nárnia. Para Eliade, tempo sagrado é o lapso em que o homem evidencia seu desejo de aproximação com os deuses. Restabelecê-lo equivale a tornar-se contemporâneo dos deuses e, portanto, viver na presença deles, mesmo que de forma misteriosa, uma vez que nem sempre visível. Assim a situação que o homem deseja reintegrar na sua intencionalidade de recriar o tempo e espaço sagrados é a situação primordial em que os deuses e os antepassados míticos estavam presentes, em vias de criar o mundo, organizá-lo e ainda de revelar aos homens os fundamentos da civilização. Assim é que é possível ver a obsessão ontológica, que aliás pode ser considerada uma característica essencial do homem das sociedades primitivas e arcaicas. Porque, em suma, desejar restabelecer o Tempo da origem é desejar não apenas reencontrar a presença dos deuses, mas também recuperar o Mundo forte, recente e puro, tal como era in illo tempore. É ao mesmo tempo sede do sagrado e nostalgia do ser. (ELIADE, 2010. p. 84)

Nessa perspectiva, Eliade vem enuciar que “a experiência religiosa pressupõe uma bipartição do mundo no sagrado e no profano”, sendo “... o profano transmutado no sagrado pela dialéctica da hierofania”. (1969, p. 159) Os irmãos nutriam o desejo de estar em Nárnia e encontrar Aslam, o rei-criador, o que demonstra uma condição existencial de busca pela dimensão do sagrado, do real, num espaço sagrado – os domínios de Nárnia, em um tempo sagrado – sua infância e adolescência, utilizando-se de objetos sagrados que receberam como reis e 135

rainhas de Nárnia. Viver na presença de Aslam é equivalente a ser contemporâneo dos deuses na origem das coisas quando o caos fora ordenado pela Palavra criadora, pelo modelo exemplar. Do lado de cá do guarda-roupa, na Inglaterra em guerra, estava o profano, o comum, o não-real. Adentrar o guarda-roupas era cruzar os limites para estar no espaço sagrado de Nárnia onde lhes era dado pela divindade – Aslam – o poder de governar. Os personagens e elementos presentes na narrativa têm uma gama de simbolismos que apontam para significados sobre o mundo infantil. Durand apresenta que “de todas as imagens, com efeito, são as imagens de animais as mais frequentes e comuns. Podemos dizer que nada nos é mais familiar, desde a infância que as representações animais.” (2012, p. 69). Tal é assim que o enredo apresenta animais falantes como um leão, castores e lobos. Observamos que o leão, Aslam, traz a característica de um símbolo teriomórfico que, conforme apresenta Durand, ligado à animalidade angustiante sob várias formas, desempenhando um papel do símbolo da mordicância, aquele devora, que despedaça (2012, p. 87), tendo sua semelhança com o Cronos astral, da mitologia grega, que devorava seus filhos, e que nesse enredo devora, despedaça a malignidade da feiticeira, a qual inflige ao reino o frio e escuridão. Outros elementos do imaginário que permeiam a narrativa são as armas que os irmãos possuem: flechas, espadas, facas. Essas imagens estabelecem uma rede “na qual o sentido é dado na relação entre elas; as imagens organizam-se com certa lógica e estruturação, de modo que a configuração mítica do nosso imaginário depende da forma como arrumamos nele nossas fantasias” (GOMES, 2013. p. 13). Nesse sentido, Durand (2012, p. 134) afirma que “a flecha vem substituir o símbolo natural da asa. Porque a altura suscita mais que uma ascensão, suscita sobretudo um impulso [...] pela assimilação do raio, a flecha acrescenta os símbolos da pureza aos da luz, a retidão e a instantaneidade”. De forma que a imagem do herói está necessariamente vinculada às armas que o permitem vencer os dragões e seus inimigos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A narrativa recortada do livro “As crônicas de Nárnia: o leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, contém elementos que apontam para a tessitura do sagrado na 136

literatura contemporânea. Aspectos de caos, morte, heroísmo e redenção são presentes em elementos e personagens que exercitam a imaginação simbólica por meio dos seus arquétipos relacionados. O mundo de Nárnia é espaço sagrado é interpretado como o mundo do mito, constitui-se num “mundo dramático – um mundo de ações, de forças, de poderes conflitantes (...) Tudo o que é visto ou sentido está rodeado de uma atmosfera de alegria ou pesar, de angústia, de excitação, de exultação ou depressão.” (CASSIRER, 2010, p. 128). Na narrativa fica exposto o mito da realidade sagrada, cujos personagens desejam participar do Ser que está separado do profano, não fundado pelo mito. O espaço sagrado estabelecido ontologicamente – por Aslam – serve de modelo exemplar para que as crianças se tornem reis e rainhas.

A partir de uma

hermenêutica do imaginário, a obra em questão tem possibilidades de ser trabalhada na constituição do simbolismo religioso na criança que imerge nesta obra da literatura infantil. Aspectos de caos, morte, heroísmo e redenção são presentes em elementos e personagens que exercitam a imaginação simbólica por meio dos seus arquétipos relacionados. O mundo de Nárnia é espaço sagrado é interpretado como o mundo do mito, e que, portanto, pode apontar sentido para a vida. Suas perspectivas e pressupostos ético-religiosos possibilitam a compreensão do sagrado e uma reflexão sobre a aspiração humana em ser dele participante por meio do imaginário fortemente presente na dinâmica da narrativa. As imagens simbólicas e a ética da narrativa permitem a criação de conteúdos para aplicação na formação do símbolo religioso e uma abordagem didática no ensino infantil.

REFERÊNCIAS CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. 2ª. ed. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes, 2012. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 4ª. ed. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes, 2012. ELIADE, Mircea. Origens: história e sentido na religião. Lisboa: Edições 70, 1969. _______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3ª. ed. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes, 2010.

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GOMES, Eunice S. L. Um baú de símbolos na sala de aula. São Paulo: Paulinas, 2013. LEWIS, C. S. As crônicas de Nárnia. 2ª. ed. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes, 2009.

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Livro didático de ensino religioso na sala de aula Maria da Penha Lima da Silva – UFPB110 – UFPB111

RESUMO: Entendemos que o ensino religioso deve valorizar o pluralismo e a diversidade cultural presente na sociedade brasileira. O objetivo do nosso estudo foi despertar os alunos de Ensino Religioso do 6º ano do Ensino Fundamental II de uma Escola Municipal de João Pessoa, para o uso da imaginação simbólica e construir uma oficina com reciclagem a partir da seleção de um dos eixos norteadores dos conteúdos de ER e do livro didático: “A Religião no Mundo”, da Editora Paulinas. Delimitamos como objeto de estudo a Árvore Sagrada TUB’SHVAT. A metodologia do estudo realizado foi a pesquisa descritiva de campo e o método qualitativo. Elaboramos uma técnica de ensino, construindo com os alunos através da oficina de reciclagem a árvore e estudamos o conteúdo proposto. Como resultados da pesquisa desenvolvida identificamos um interesse maior dos alunos pela disciplina de ER, e um fortalecimento das relações interpessoais, que favoreceram este novo aprendizado. Foi possível perceber, também que o livro didático de Ensino Religioso foi bem aceito pelos alunos, portanto, precisa ser compreendido como um dos recursos constitutivo da formação humana e acadêmica dos sujeitos escolares. Palavras-Chave: Livro Didático. Imagens Simbólicas. Árvore Sagradas. Ensino Religioso Introdução

A presente pesquisa sobre “O Livro Didático de Ensino Religioso na Sala de Aula” busca desenvolver uma análise sobre o conteúdo “A árvore como símbolo” presente no livro do 6º ano da Coleção de Ensino Religioso “A religião no mundo” da Aluna Especial no Mestrado em Ciências das Religiões – UFPB/2015. Licenciada em Ciências das Religiões - Universidade Federal da Paraíba - UFPB – Pedagoga/ Universidade Estadual do Vale do Acaraú – UVA. Profª de ER da Rede Municipal de Ensino de João Pessoa-PB. Integrante do Grupo de Pesquisa GEPAI (Grupo de Estudo e Pesquisa em Antropologia do Imaginário) Pesquisa realizada como Trabalho de Conclusão de Curso. E-mal: [email protected] 111 Orientadora da Pesquisa Profª Pós Drª Eunice Simões Lins Gomes - Universidade Federal da Paraíba- UFPB, na Graduação e Pós Graduação em Ciências das Religiões. Coordenadora do Grupo de Pesquisa GEPAI (Grupo de Estudo e Pesquisa em Antropologia do Imaginário). 110

139

autora Maria Inês Carniato publicada pela Editora Paulinas. Coleção adotada pela SEDEC, em 2008. A relação com a temática da pesquisa ora proposta aconteceu a partir da formação e prática desta pesquisadora como docente do ER, desde o ano de 2010, em duas escolas da Rede Municipal de Ensino de João Pessoa – PB: Escola Municipal João Monteiro da Franca e Escola Municipal Zumbi dos Palmares, sendo esta pesquisa desenvolvida com a 1ª escola. O interesse pelo livro didático surgiu a partir da nossa vivência no estágio sendo possível perceber que o Ensino Religioso no contexto escolar vem se destacando como área do conhecimento. Para o professor do Ensino Religioso (ER) é indispensável o uso do material didático na sala de aula. Entendemos que o processo do ensino e da aprendizagem se caracteriza pelas combinações de atividades do professor e dos alunos e da aplicação das tendências pedagógicas na arte do ensino. Nesta pesquisa, foram desenvolvidos quatro trabalhos, porém estamos relatando, apenas uma experiência.

Ensino religioso e a educação no Brasil

Durante toda a trajetória do Ensino Religioso, desde a época da colonização do Brasil até a nossa atualidade, a Educação sempre foi um fato marcante nessa trajetória. Hoje, o Ensino Religioso apresenta objetivos voltados para a humanização da Educação. Tendo como parâmetros os valores humanos, desenvolvendo o autoconhecimento e a reflexão diante da possibilidade de optar por uma vida cidadã e solidária, na dimensão do transcendente. Durkheim (1967, p. 82-83) apresenta uma abordagem sobre educação, e afirma em sua obra literária que: A educação consiste, pois, sob qualquer de seus aspectos, numa socialização metódica de cada nova geração. Já afirmamos que, em cada um de nós, existe dois seres que, embora não possam ser separados senão pela imaginação, ainda assim não deixam de ser distintos. [...] Seu conjunto forma o ser social. Constituir este ser em cada um de nós, tal é o fim da educação.

No Brasil, percebemos a existência de muitos resquícios das “aulas de religião”, (ER), uma herança deixada por sua história no passado. Por outro lado, com a 1ª Constituição da República do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, que afirma 140

em seu Art. 72 nos seguintes parágrafos: § 28 – “Por motivo de crença ou de função religiosa, nenhum cidadão brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e políticos nem eximir-se do cumprimento de qualquer dever cívico”. Nessa concepção, o Ensino Religioso, deve ser considerado como um elemento integrador de valores na educação de nossas crianças, jovens e adultos. Pois os saberes produzidos no cotidiano pelos sujeitos envolvidos com esse componente curricular como: as crianças, os professores, os pais, a comunidade e outros profissionais, que atuam nessa área, já começam a perceber que existe outro olhar, objetivando o respeito pelas diferenças existentes no contexto escolar. Para Junqueira (2002, p. 43): “O direito à cidadania, ou abertura de uma nova relação, é o desafio da e para a educação brasileira. Neste contexto, o Ensino Religioso, [...] conseguiu alterar a concepção do mesmo, não mais um pressuposto teológico, mas assumindo seus pressupostos pedagógicos”.

O livro didático como recurso metodológico

Considerando ser o livro didático uma fonte poderosa de conhecimento nas diversas culturas. Em se tratando do Ensino Religioso, até bem pouco tempo, ainda percebíamos alguns escritos voltados para uma só cultura, uma forte herança deixada pelos colonizadores. Observamos isto no texto de Figueiredo (1995), onde relata que os primeiros livros para o ER surgiram: A partir dos anos 80, são inúmeros os pronunciamentos da Igreja Católica sobre Educação, Educação Religiosa e Ensino Religioso, quer em âmbito universal, quer em nível de Brasil. (1995, p.96). A leitura é considerada uma atividade muito importante na educação. É um dos objetivos mais importantes da escola: Ensinar a ler e a escrever. O primeiro contato da criança com o livro didático necessita ser bastante incentivado na escola a fim de que seja despertado na criança o gosto pela leitura. Conforme Gomes et al (2010 p. 128), “[...] o livro didático se destina a promover interações entre o educador e o educando, oportunizando caminhos de acesso ao conhecimento sistematizado como auxiliar do trabalho docente em sala de aula. [...]”. Contudo, é preciso que este educador esteja também em sintonia com a leitura, despertando em seus alunos o interesse por essa atividade com prazer,

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aplicando para isso dinâmicas diversificadas em sala de aula, já que o hábito de ler era pouco usado pelos docentes. Junqueira afirma: “O livro didático do ER pode despertar o aluno para os aspectos transcendentes da existência como: a busca do sentido radical da vida, a descoberta de seu compromisso com o social e a conscientização de ser parte de um todo”. (2002, p. 91). Os livros do Ensino Religioso da autora Carniato (2009), possibilitam, no trabalho didático-pedagógico, a realização de técnicas atrativas, com uma diversidade de dinâmicas que vão despertar nos educandos maior participação deles nessa teia de saberes voltado para a diversidade cultural religiosa. “A coleção de ensino religioso fundamental oferece: metodologia que favorece a observação do fenômeno religioso, a reflexão que leva a perceber pontos de unidade e de sentido nas várias tradições religiosas, a informação que possibilita a atitude de diálogo e reverência [...]”. Carniato (2009, p.05).

Nessa atitude de diálogo, a educação contemporânea insere a questão ambiental, pois o humano faz parte da natureza. Com relação a esse tema, exporemos a importância da árvore como símbolo religioso. A árvore como símbolo religioso Existem inúmeros relatos sobre o poder das árvores na natureza, pois a sua importância para a vida do ser humano faz parte da história da humanidade. Elas são tidas como seres vivos que duram mais tempo, por isso são consideradas seres mais longevos existentes no nosso planeta Terra, onde se apresentam árvores centenárias. Para muitas culturas a árvore representa o eixo do mundo.

Para

Scardua112, (2010). “A Árvore como um símbolo sagrado é encontrada em várias culturas e nas mais diversas épocas de nossa história”. A Árvore Sagrada faz parte da tradição de povos tão distintos quanto Maias, Escandinavos, Chineses, Maoris, Africanos e Hebreus. A árvore representa manifestações da força do poder divino; ela é venerada em todas as culturas e é relacionada com o destino dos homens, uma “hierofania”, segundo Mircea Eliade (2001, p. 124). “A imagem da árvore não só foi escolhida para simbolizar o cosmos, mas também para exprimir a Vida, a juventude, a 112

-Ver-[http://psiqueobjetiva.wordpress.com/2010/05/27/a -arvore-como-simbolo-e-a-dimensaovertical-da-existencia/].

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imortalidade, a sapiência”. Esse autor afirma ainda que (2001, p. 125). “É nesse símbolo de uma árvore cósmica, ou da Imortalidade ou da Ciência que se exprime com o máximo da força e clareza as valências religiosas da vegetação”. Nesse sentido, passaremos ao simbolismo da árvore para a cultura Judaica.

O simbolismo da árvore sagrada O TUB’SHVAT

A Árvore da Vida Judaica é um diagrama extremamente conhecido no estudo da Cabala. A Árvore é uma entre muitas ferramentas utilizadas pela Cabala para a correta compreensão das forças que regem o universo. Imagem 1- Árvore Sagrada da Vida

Fonte:http://www.shalom.org.br/index.php/tu-bishvat/

A Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento foram citadas no Zohar e na Bíblia, as Sefirot também são conhecidas como árvore do homem primordial. Na cabala nos relata que as árvores da vida e do conhecimento eram dois paralelos mundos onde o homem primordial teve a escolha de vivenciar o livre arbítrio, surgindo em Alexandria por Philon o cristão conceito do bem e do mal conhecido e popularizado hoje pelos cristãos. (Olavo Solera, 2012).113 “A árvore da Vida nasce nas raízes da árvore do Conhecimento. Diz-se, simbolicamente, que todo aquele que comer dos frutos da árvore do Conhecimento morrerá, mas ao mesmo tempo será como um Deus, pois seus olhos se abrirão e conhecerá o Bem e o Mal.” 114 Mesmo com a motivação do grupo alguns demonstraram insegurança, sem saber como realizar a atividade proposta, cada um dos participantes dava suas opiniões e não sabia como fazer. Logo, houve a necessidade da interferência da 113

- abaara.blogspot.com/2012/06/arvores-sagradas.html

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-Ver mais em: http://despertarcosmico2012.blogspot.com.br/p/cabala-arvore-da-vida.html.

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professora nas orientações, o que facilitou o trabalho e despertou a curiosidade e o bom senso do grupo. Freire (2006, p. 62) afirma que “O exercício do bom senso, com o qual só temos o que ganhar se faz no “corpo” da curiosidade”. Observamos que depois da construção desse trabalho, o quanto cresceu o desempenho do grupo, em relação ao espírito do coletivo, quando davam suas opiniões em relação as suas dúvidas. Conforme o FONAPER, nessa fase, o educando “apresenta facilidade para a ação e reflexão – fazer e pensar sobre o que fez” (2000, p. 10). Entendemos que esta técnica foi aplicada na realidade vivenciada pelo professor e que a construção das árvores sagradas desperta, provoca e suscita a curiosidade, ativa a imaginação simbólica. Para o sucesso desta atividade, o professor precisa ser um pesquisador, buscando dados adicionais que facilitem o seu contato inicial com os alunos. Imagem 2- Construção da árvore

Imagem3- Resultado da árvore TU’BSHVAT

Fonte: Silva, Maria da Penha-arquivo pessoal

Considerações finais

A experiência pedagógica vivenciada em sala de aula de ER com esses educandos teve um significado muito grande, não só para os sujeitos da pesquisa, mas para a própria escola. A partir da aula referente à representação do símbolo pensando ser oportuno iniciar o conteúdo a respeito do “símbolo sagrado”, questionando sobre o seu significado. Qual a sua importância para as culturas religiosas. Os dias que antecederam a realização das atividades foram de sensibilização para o fortalecimento dos grupos, através do incentivo da professora, que afirmava que eles “eram capazes e que poderiam realizar as atividades com excelência”. Estudos nos revelam que o aluno como todo indivíduo é suscetível quando estimulados positivamente achando-se com os outros. Essas relações se dão nas 144

imagens que despertaram registrando o que realmente aconteceu. Este tipo de trabalho favorece para o aluno o seu desenvolvimento psicológico, pois o trabalho em grupo apresenta um contexto no qual se processa seu desenvolvimento social, intelectual e emocional, permitindo que ele não só interiorize mais que assuma papéis e tome consciência de si mesmo como entidade distinta. Assim, compreendemos um momento mágico para docente e discente. As emoções abordadas no livro didático do Ensino Religioso de Carniato nos possibilitaram um arcabouço sucinto de informações, permitindo ao aluno despertar seu imaginário e mergulhar nas águas simbólicas do conhecimento científico na atualidade. Imagem 4: Resultados-Painel dos trabalhos em grupos

Fonte: Silva, Maria da Penha-arquivo pessoal

Referências

BRASIL. 1ª Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em http://www.presidencia.gov.br/legislacao/ (s.d.) CARNIATO, Maria Inês. A Religião no Mundo. Ed. Revista e Ampliada. 6 ano Professor. Paulinas. 2009. DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. Estudo da obra de Durkheim, Prof. Paul Fauconnet, Tradução Prof. Lourenço Filho. São Paulo-SP. 7 edição. Edições Melhoramentos Biblioteca de Educação, 1967. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Tradução: Rogério Fernandes. São Paulo: 5 Tiragem, Martins Fontes, 2001. FIGUEIREDO, Anísia de Paulo. O Ensino Religioso no Brasil: tendências, conquistas, perspectivas. 2 edição. Petrópolis RJ: Vozes, 1996. (Coleção Ensino Religioso Escolar. Série Fundamentos) FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido: saberes necessários à prática educativa. 33 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006 (Coleção Leitura) GOMES, Eunice Simões Lins et al. As Lendas nos Livros Didáticos: uma análise mítica. (Orgs). FERREIRA, Santos Marcos. GOMES, Eunice Simões Lins. Educação & Religiosidade: imaginários da diferença. Ed. Universitária UFPB. 2010.

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JUNQUEIRA, Sergio. O processo de Escolarização do Ensino Religioso no Brasil. – Petrópolis, RJ: Vozes, 20

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RITUALIDADE E PRODUÇÃO DE SENTIDOS NA SALA DE AULA Alexandre Mendonça da Silva – PPGCR-UFPB115

Eis, portanto, a tese que vamos sustentar: o espírito científico deve formar-se contra a Natureza, contra o que é, em nós e fora de nós, o impulso e a informação da Natureza, contra o arrebatamento natural, contra o fato colorido e corriqueiro. O espírito científico deve formar-se enquanto se reforma. Bachelard (1996)

Iniciamos nossa reflexão citando a provocação proposta na tese do mestre Bachelard (1996) quanto ao que convenciona-se por “científico”. Se há algo de legítimo no espírito científico é que o mesmo deve forjar-se em ambiente inquiridor, contra aquilo que se convenciona por ordinário, parceiro do método, mas não subjugado a ele. Criterioso, mas não previsível. Sensível a natureza, mas dela explorador. Inquieto, cortando se necessário for à própria carne, com o fim da descoberta e da ampliação do horizonte. Sujeito a revisão dos pressupostos, tendo em vista não o recomeço, mas a continuidade. A Constituição brasileira determina que a escola pública seja de orientação laica. Sob esta perspectiva compreendemos que o laico não é sinônimo de ceticismo ou de desconstrução da religiosidade. Ao contrário, um conceito de laicidade amadurecido abre a oportunidade de, (orientado pelo método), ter aplicados elementos envoltos no fenômeno religioso, (separado do viés sacro, que não é propósito das instituições públicas de ensino), sem, contudo posicionar-se como antirreligioso, partidário, ou mesmo ateu, porém, assumindo uma neutralidade religiosa permitida no ambiente educacional. O Ensino Religioso uma vez assegurado na carta magna como parte da formação do cidadão, contempla o respeito à diversidade cultural religiosa nas 115

Mestre em Ciências das Religiões pelo PPGCR - UFPB (Programa de Pós Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba). Ministro Presbiteriano e Professor do Instituto Bíblico Palavra da Vida, Paudalho – PE. Pesquisador do GEPAI - UFPB (Grupo de Estudo e Pesquisa em Antropologia do Imaginário). [email protected]

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unidades escolares da federação através dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso, os PCNER(s). Compreendendo a amplitude das interações que o ambiente escolar proporciona aos estudantes, propusemos como atividade para sala de aula, a abordagem dos valores da convivência mútua, partilha, e exercício do perdão e da fraternidade inerentes ao rito cristão da Santa Ceia, com uma abordagem didática, fenomenológica, atendo-se aos elementos do rito que promovem o acolhimento, tolerância, fraternidade e perdão, excluindo intenções proselitistas e promovendo o diálogo inter-religioso.

SOBRE A ORIGEM DA PROPOSTA Portanto, a articulação sobre temas religiosos dá-se em níveis diferentes de abstração, cuja identificação ajudará tanto o leitor quanto o cientista da religião que está prestes a trabalhar com um determinado assunto [...] No nível da nossa própria experiência somos testemunhas de um rito. Observamos o que os fiéis e os sacerdotes fazem, ouvimos suas palavras e canções, [...] Os fiéis dizem-nos como o rito é experimentado segundo seu ponto de vista. Relatam o que experimentam, sentem ou apreciam quando participam de um rito. Greschat (2005)

Como resultado de nossa pesquisa descritiva de campo desenvolvida na cidade de João Pessoa sobre o sentido da Santa Ceia para seus participantes, resultando na dissertação: “A Santa Ceia e o imaginário cristão protestante: rito, símbolo e produção de sentidos.” Buscamos investigar os sentidos atribuídos pelos participantes do rito da Santa Ceia pelo viés da Teoria Geral do Imaginário de Gilbert Durand – (TGI) na intenção de responder a questão: O que significa para os participantes do rito da Santa Ceia a simbologia dos elementos pão e vinho? Os professores Moraes e Galiazzi (2011) afirmam que “Atingir uma produção escrita de qualidade exige envolvimento e impregnação aprofundados nos fenômenos sobre os quais se escreve [...]”. Constatamos nas experiências pessoais dos participantes entrevistados da pesquisa sentidos que entendemos poder promover o diálogo inter-religioso e estimular posturas salutares ao ambiente da escola de ensino fundamental. Igualmente destacamos que através da análise dos discursos de nosso corpus, foi possível verificar nos indivíduos que colaboraram com a pesquisa, imagens geradas a partir do imaginário dos participantes do rito da Santa Ceia, constatando nos respectivos relatos, a evidência das estruturas antropológicas do imaginário postuladas por Gilbert Durand (2002), que são as estruturas heroica, mística e dramática, o que nos possibilitou o aporte teórico necessário para a propositura da atividade para a sala de aula do ensino fundamental através do Ensino Religioso.

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O objetivo da atividade por meio da realização simulada do rito da Santa Ceia como plano de aula do professor do Ensino Religioso, pretende proporcionar aos estudantes uma experiência didática com os elementos essenciais pão e suco de uvas, (cálice), utilizados no rito da Santa Ceia. Através da manipulação de seus elementos simbólicos essenciais, o pão e o suco de uvas, (representativo do vinho), se buscará com esta simulação e vivência com o rito, a promoção das posturas sugestionadas pelo próprio fenômeno inerente ao rito, conforme aferido pelos relatos do corpo social que dele participa regularmente, buscando por conseguinte, proporcionar posturas de tolerância e o diálogo inter-religioso na sala de aula.

SOBRE A DEFINIÇÃO DE RITO Bourdieu trata as análises estruturais por instrumentos metodológicos e define os sistemas simbólicos (ritos) “como instrumentos de conhecimento e comunicação, que só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados”. Bourdieu (1989)

Iniciamos esta seção propondo a seguinte questão: Por que um rito? Ao que respondemos que todo grupo humano organizado possui particularidades rituais, e esse fato não é diferente na sala de aula. Vilhena (2005) afirma que “todo o movimento resulta de uma ação [...] o rito é entendido como ação ordenada. Como toda ação está orientada para a consecução de um objetivo, para uma finalidade”. Uma outra forma de enxergar as possibilidades de diálogo com a formação dos indivíduos que participem da atividade é considerar a conclusão a que Durand (2002) chega ao afirmar que o ritual “tem o único papel de domesticar o tempo e a morte e de assegurar no tempo, aos indivíduos e à sociedade, a perenidade e a esperança. com respeito a experiência ritualística e suas interações com a finitude”. Estar a mesa com alguém é algo socialmente aceito em nossa cultura. Digase de passagem, dificilmente se senta a mesa para comer com qualquer pessoa. Comer juntos representa um valor em grande parte das culturas espalhadas pelo mundo. Sobre elementos como o pão e o suco utilizado nessa atividade. Entendemos que um rito que transmite essa ilustração tem em seu favor em sua abordagem por nossa atividade o que Borau (2008) afirma “Quando o símbolo é exterior e socialmente aceito, transforma-se em ritual ou cerimônia religiosa realizada através de palavras, de movimentos e de actos simbólicos preestabelecidos”. Ou seja, sentar a mesa com outro é sagrado em nossa cultura. Falando sobre a experiência religiosa com elementos fisiológicos, e aqui lembramos que este rito em particular lida com alimentos, que são elementos essenciais e estruturais na vida das pessoas, Eliade (1998) afirma que “Toda uma experiência religiosa, indistinta do ponto de vista estrutural, se deve a esta tentativa

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feita pelo homem para se inserir no real, no sagrado, através dos atos fisiológicos fundamentais que transforma em cerimônias [...]”. Desta forma, pretendemos como resultado de uma aula com ação ordenada conforme compreendido por Vilhena (2005),que igualmente afirma que “Estudar o rito é estudar o ser humano na cultura da qual participa com suas cosmovisões, seus costumes, sua vida social, sua vida material, sua história”. Compreendemos que pela aula atividade com o rito da Santa Ceia, se proporcionará aos alunos o exercício da humildade, e o fortalecimento do conceito de comunidade, convivência com as diferenças e enfrentamento do fato da finitude.

SOBRE OS ELEMENTOS DA ATIVIDADE Os símbolos são instrumentos por excelência da “integração social”: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação [...] eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração “lógica” é a condição da integração “moral”. Bourdieu (1989) Os elementos essenciais de nossa atividade são os alimentos ‘pão’ e o ‘suco de uvas’, representando o vinho no rito da Santa Ceia. Logo, estaremos imediatamente lidando nesse rito com o universo dos símbolos que segundo Durand (2002) “é, pois, uma representação que faz aparecer um sentido secreto. Na Teoria Geral do Imaginário está posta a reflexão de um trajeto imanente aos seres humanos chamado de ‘Trajeto Antropológico’. O ‘Trajeto Antropológico’ desperta e motiva o símbolo, essa motivação acontece tanto na intimação subjetiva, como na objetiva do elemento cultural. Gomes (2011) afirma que com esta abordagem “Durand amplia o conceito de mito colocando-o como componente fundamental do “trajeto antropológico”, que nada mais é do que relação, trajetividade, entre os polos biopsíquico (pulsões subjetivas) e sociocultural (intimações do meio)”. Os alunos do ensino fundamental certamente tem em si noções elementares de temporalidade. O imaginário desses alunos já se deparou ou se deparará com este fato. O rito da Santa Ceia através da função ‘fantástica transcendental’ trata igualmente dos temas que envolvem a temporalidade humana e são motivos mais que legítimos para o diálogo sobre a efemeridade da vida e o fato da finitude como reflete Tillich (1996) “O sentimento de ser aniquilado pela presença do divino é o que expressa mais profundamente à relação em que se encontra o homem diante do sagrado”. Proporcionar aos alunos o exercício da humildade, e o fortalecimento do conceito de comunidade, convivência com as diferenças e enfrentamento do fato da 150

finitude perpassam pela manipulação dos elementos essenciais e a abordagem das temáticas existenciais. Dessa forma propomos como introdução enveredar pelo universo das artes falando um pouco sobre o afresco de Da Vinci, A Última Ceia, onde as crianças terão a oportunidade de pintar a imagem reproduzindo a ideia do quadro; Passado esse momento, as convidamos para encenar o que elas pintaram, e é nessa hora que os elementos da Santa Ceia serão utilizados em forma de dramatização por eles mesmos com um tom de reflexão sobre o que eles comunicam em sua essência e de que maneira poderiam ser incorporados em suas posturas pessoais.

SOBRE O RITO DA SANTA CEIA

[...] o mundo dos ritos enraíza-se no mundo dos seres humanos, e que o mundo dos seres humanos constrói-se na cultura. Sendo assim, nem o ser humano nem o rito podem ter existência, tampouco ser compreendidos fora da cultura, que por sua vez é construção humana e histórica. Vilhena, (2005)

Durand (2004) esclarece que a principal função do imaginário é dar esperança ao homem diante de dois elementos que ele enfrentará em seu trajeto antropológico, 'o tempo' e a 'morte', essa é a razão pela qual ele precisa dar significado a sua vida que a cada dia é ameaçada por Cronos, o tempo, e ameaçada pela iminência da finitude. A vida religiosa, e o ‘tempo sagrado’ orquestrado pelo rito da Santa Ceia, constitui um grande promotor de esperança e significado da vida social. A narrativa da Santa Ceia contando o sacrifício de Jesus Cristo nos evangelhos, no relato bíblico do rito da Santa Ceia. Este rito é assim uma narrativa simbólica que está ligada a cultura, e vem sendo retransmitida aos indivíduos religiosos por meio de remanescentes ancestrais. A narrativa vai sempre ressurgir de forma simbólica, ela é o mito, ao contrário do que está no senso comum, não é falácia, invenção ou necessariamente mentira, é apenas a forma de expressar uma tentativa de explicação da origens, "o mito nada mais é do que uma narrativa simbólica" para Durand (2002). É nesse aspecto essencial que o mito se distancia do relato bíblico, mas se aproxima de seu método. Bierlein (2003) diz que sobre o mito que: “Esta é a nossa primeira pista sobre a natureza do mito. É a primeira forma de ciência, especulação sobre as origens”. Aqui está claro para o teórico que o mito é especulação, uma tentativa de explicação em razão da ausência do registro escrito, porém, transmitido pela tradição oral. 151

A narrativa bíblica é um registro escrito, os eventos que marcaram a vida, morte e ressureição de Cristo não estão apenas registrados nos documentos da cristandade, mas escritores contemporâneos dos dias de Jesus, como é o caso do historiador judeu do primeiro século Flávio Josefo (38 – 100 a.D.) cita em ‘A História dos Judeus’, que os “cristãos cantavam a Jesus, a quem diziam que havia ressuscitado”.

SOBRE A CONCLUSÃO DA PROPOSTA

Gilbert Durand identificou dois Regimes que administram e organizam as imagens. Um deles ele o denomina Regime Diurno, este sugere o enfrentamento da angustia do tempo e da morte, as ‘faces do tempo’, através das armas de combate ativadas nas dominantes reflexas. O outro sistema ele denomina de Regime Noturno, sugestionado pelo schéme da descida, do acolhimento, da resignação, da noite e da escuridão e da conciliação dos opostos. Reiteramos a tese durandiana acerca dos regimes das imagens aonde define que “as imagens são administradas por dois regimes, um é o Regime Diurno, que é o regime da luz, o outro é o Regime Noturno, que o regime da escuridão, do acolhimento, do refugio”. De acordo com nossa pesquisa, o regime prevalecente na maioria dos discursos é o das imagens do Regime Noturno. Na Teoria Geral do Imaginário surge a abordagem da ‘função fantástica’. Essa função da imaginação dá esperança diante da morte e do tempo, as ‘faces do tempo’ Durand (2002), aonde tudo irá acontecer no campo da ‘fantástica transcendental’, da ‘imaginação’. Segundo Durand, o cogito ergo sumo, a famosa frase de Descartes, 'Penso, logo existo', é o Imaginário, é a imaginação. Todo processo de criação, de produção do homem, tem que ser imaginado, tudo vai partir da imaginação, e o que ele constrói, revela um imaginário por trás. Refletir no significado dos elementos pão e suco de uvas (representativo do vinho), corresponde a lançar mão da esperança diante da finitude e pensar no valor de se viver em um cultura de não violência e que tenha o perdão e as incoerências consideradas, mas nunca como um instrumento de hostilização ou assédio moral. Dessa forma renovamos o questionamento: O que pode significar para os alunos do ensino fundamental, a simbologia dos elementos pão e cálice presentes no rito da Santa Ceia? Entendemos quanto à funcionalidade com esta experiência com o rito, que a abordagem didática do rito da Santa Ceia provocará nos alunos do Ensino Religioso nas escolas de ensino fundamental, a reflexão sobre suas relações sociais, seja com os seus pares na escola, seja nas interações hodiernas com a família, estimulando a reflexão, o respeito às diferenças e a identificação do valor do ‘outro’ pela compreensão que o rito proporciona acerca da efemeridade da vida e da finitude, sendo este um significado relevante em sua formação enquanto cidadãos.

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BIBLIOGRAFIA BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. 316p. BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo de Genebra. Revista e atualizada. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Cultura Cristã, 2000. 1986p. BIERLEIN, J. F. Mitos paralelos: uma introdução aos mitos no mundo moderno e as impressionantes semelhanças entre heróis e deuses de diferentes culturas. Trad. Pedro Ribeiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2011. 359p. BORAU, José Luis Vázquez. O fenómeno religioso. Trad. Lara Almeida Dias Traduvárius. Lisboa: Paulus, 2008. 314p. (Coleção Memória e Sociedade) BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989. 314p. (Coleção Memória e Sociedade) DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 552p. (Coleção biblioteca universal) ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 110p. (Tópicos) ______. Tratado de história das religiões. Vários Tradutores. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 479p. GOMES, Eunice Simões Lins. A catástrofe e o imaginário dos sobreviventes: quando a imaginação molda o social. 2ed. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2011. 176p. GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião. Trad. Frank Usarski. São Paulo: Paulinas, 2005. 167p. (Coleção repensando a religião) MORAES, R.; GALIAZZI, M. do C. Análise textual discursiva. 2.ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011. 244p. PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro: Atlântica, 2005. 110p. (Coleção filosofia) TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. 5.ed. Trad. Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1996. 90p.VILHENA, Maria Angela. Ritos: expressões e propriedades. São Paulo: Paulinas, 2005. 160p. (Coleção temas do ensino religioso)

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A criação do ser humano em re-creação: Técnica didático-pedagógica para Ensino Fundamental-I à luz de Pestalozzi e PCN-ER

Linda Siokmey Tjhio Cesar Pestana116 Fabricio Possebon117

1. Introdução

O processo de aprendizagem é facilitado pelos sentimentos e sensações positivas. As ações simbólicas dos ritos que rememoram mitos cosmogônicos, participam da aprendizagem cuja linguagem simbólica precede a razão discursiva do ser (ELIADE, 2002, p. 23-52). “Por ocasião da reatualização dos mitos, a comunidade inteira é renovada, ela reencontra as suas ‘fontes’, revive as suas ‘origens’. ” (ELIADE, 1994, p. 37). Traçamos como metodologia, a pesquisa descritiva, bibliográfica e de campo com abordagem qualitativa e como fundamentação teórica, os estudos de Pestalozzi. O objetivo da nossa pesquisa consiste em proporcionar um espaço de acolhimento lúdico e solidário na sala de aula de ER que favoreça a aprendizagem, o diálogo, a expressão verbal e corporal, sobretudo, a integração dos educandos consigo mesmos, com os colegas, com o educador, com o espaço que habitam e com o 116

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões – PPGCR/UFPB, Especialista em Aconselhamento e Psicologia Pastoral – EST, Bacharel em Teologia – FACETEN, Cirurgiã-Dentista – FOUSP, Terapeuta Comunitária Integrativa – ABRATECOM, Capacitada em Prevenção do Uso de Drogas – UFSC/SENAD, Participante do Grupo de Pesquisa: Religiões, Identidades e Diálogos – UNICAP. 117

Doutor em Letras – UFPB. Mestre em Letras - USP. Coordenador da Graduação (Licenciatura e Bacharelado) em Ciências das Religiões e professor associado do Departamento de Ciências das Religiões, Centro de Educação – UFPB. Atua nos Grupos de Pesquisas SACRATUM - Hermenêutica filosófica e literária em diálogo com o estudo do sagrado (UFPB/CNPq) e RAÍZES - Religiões mediúnicas e suas interlocuções (UFPB/CNPq). Atua também no Curso de Licenciatura em Letras/Libras, modalidade a distância, e nos Programas de Pós-Graduação em Letras (mestrado e doutorado) e Ciências das Religiões (mestrado e doutorado).

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transcendente.

Através de atividades simbólicas lúdico-criativas, estabelecem-se em tempo e espaço ordinários, momentos organizados e agradáveis de encontros, vínculos e socialização que alteram a emocionalidade e promovem uma vivência mítica na dimensão imaginativosimbólica. Essa experiência possibilita a conscientização, o sentido interior, a congruência, a mobilização, a expressão do imaginário e a realização da atividade humana com olhar e escuta revitalizados e mais conectados com a existência humana imanente e transcendente (MARDONES, 2006, p. 159-179). Segue-se uma proposta didático-pedagógica baseada no conceito fundamental de Pestalozzi (sentir e fazer), associado a um rito de rememoração do mito cosmogônico. Através do eixo temático 2.2.2. dos PCN-ER,118 reproduziremos de forma criativa e lúdica a narrativa da criação do ser humano, conforme as Escrituras Sagradas (Gênesis 1,26; 2.7); e pretendemos observar a luz invadindo o olhar do pupilo, que a partir da escuridão vazia e sem forma da massa de modelar, faz surgir a si mesmo como um ser rico em significados. Parafraseando Nasser (2003, p. 16), é o mito da criança organizando o caos.

2. Problemática

Segundo Pestalozzi (2015), a aprendizagem é facilitada pelos sentimentos positivos e pela ação: "A vida educa. Mas a vida que educa não é uma questão de palavras, e sim de ação. É atividade". A vivência de sentimentos de amor, segurança e afeto, presentes num lar ideal e numa sala de aula, despertam o processo autônomo e natural de aprendizado que conduz o indivíduo à realização moral e à religiosidade, conforme seu estágio de desenvolvimento, habilidades e necessidades (FERRARI, 2015). Assim, a iconografia proposta como atividade pedagógica, favorece as várias relações do indivíduo, de modo a expressar e ensinar sentidos e significados na história, na cultura e no pensamento (MUELA, 2012, p. 11-35). Além disso, por ser subjetiva, a arte une o significante ao significado como um discurso carregado de experiências da realidade fenomenológica e hermenêutica do artista, inclusive, na percepção do sagrado e do eterno (BORAU, 2008, p. 18-23, 33). Conforme Nasser (2013), a linguagem simbólica é ponte que une almas, mundos, pensamentos, emoções, o que se conhece e o indizível. Contém energia e força próprias para criar e 118

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS.

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ressignificar as lembranças, a história e a esperança de uma pessoa composta de corpo físico, psiquismo e espírito. Ao reconhecer os símbolos das crianças, valoriza-se sua existência e individualidade; estimula-se a realização moral, a religiosidade, as suas relações consigo mesmas, com os colegas, com o ambiente, com o transcendente e, portanto, com a vida escolar.

3. Objetivos

3.1. Objetivo geral:

Proporcionar um espaço de acolhimento lúdico e solidário na sala de aula que favoreça a valorização do ser humano e o processo de aprendizagem.

3.2. Objetivo específico (Os educandos e as educandas serão capazes de):

3.2.1. Reconhecer e valorizar a individualidade de cada colega, pela promoção de diálogo: escuta, expressão verbal e artística. 3.2.2. Sentir alegria, companheirismo e acolhimento no espaço escolar. 3.2.3. Participar de atividades criativas que estimulam a aprendizagem e o desempe-nho escolar.

4. Metodologia:

Em semelhança à técnica pedagógica proposta por Gomes (2013), essa proposta visa a aprendizagem através de símbolos. Após um momento social e lúdico de acolhimento e reforço da identidade (expressão verbal e jogo da memória), cada criança reproduz a si mesma na massa de modelar, em semelhança ao Criador na narrativa bíblica sobre a criação do ser humano. Cada atividade envolve expressão corporal e verbal das crianças, num espaço de acolhimento e solidariedade.

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4.1. Desenvolvimento do tema: descrição passo a passo da abordagem teórica e prática do tema com vistas a promover os objetivos especificados acima. (As crianças sentam-se em círculo, de preferência, no chão).

4.1.1. A educadora ou o educador se apresenta e pede para cada educando e educanda falar o seu nome e sua cor favorita. 4.1.2. Cada criança ganha dois cartões e escolhe dois gizes de cera para “desenhar” (de forma igual) seu nome nos versos dos cartões (reafirmação de identidade). 4.1.3. Em grupos de cinco crianças, brinca-se o Jogo da Memória com os cartões. (Os ganhadores dos grupos ganham um bis e pede-se que cada criança guarde seus cartões junto com seu material escolar. Essa primeira parte leva uns quinze a vinte minutos. A próxima etapa leva mais uns vinte a vinte e cinco minutos)

4.1.4. Em círculo, todos em pé, fazem um breve alongamento, respiração e chacoalham o corpo. 4.1.5. Todos sentam-se. Cada criança fala seu nome e uma qualidade pessoal. 4.1.6. A educadora ressalta (olhando com carinho, nos olhos de cada criança) que cada pessoa ali é feita de forma especial. Procede-se a leitura do texto bíblico (Gênesis 1,26 e 2.7) e, a partir dessa narrativa, propõe-se criar a imagem de si mesmo na massa de modelar (rito de rememoração de mito). 4.1.7. Enquanto as crianças produzem suas obras sobre uma folha de papel (para não sujar o chão), a educadora ou o educador dá atenção a cada educando e educanda, perguntando o que é a obra em andamento e fazendo comentários positivos. 4.1.8. Cada criança apresenta sua produção artística para a classe. Pede-se que todos escutem em silêncio a seus colegas, enquanto aguardam sua vez de falar. 4.1.9. As crianças guardam suas artes no recipiente próprio (o mesmo em que receberam a massinha), recolhem papéis e restos de material espalhados pela sala, limpam as mãos com lenços umedecidos e em pé, de mãos dadas, formam um círculo. Cada criança ganha um bis. 4.1.10. Canta-se uma música que toda classe conheça, de preferência, divertida e com gestos. 4.1.11. Cada criança fala, em uma palavra, o que mais gostou. 4.1.12. Aplausos para a classe toda, despedida e abraços.

4.2. Recursos didáticos: 157

Sala ampla o suficiente para que as crianças possam sentar-se em círculo. Cartões. Gizes de cera coloridos, massa de modelar em potinhos com tampa. Folhas de jornal ou papel sulfite para forrar o chão para apoiar a massinha. Bíblia sagrada. Caixas de bis. Lenços umedecidos para higiene das mãos.

5. Resultados e discussões

Conforme Pestalozzi, a avaliação é feita de modo subjetivo e diagnóstico, sem provas, punições ou recompensas, incentivando a liberdade e a autonomia moral, ao invés de julgamentos externos (FERRARI, 2015). Seguindo Higuet (2015, p. 7-62), o educador irá analisar as produções imagéticas dos discentes levando em conta a antropologia, a hermenêutica e a fenomenologia, observando os conceitos, a lógica própria, os arquétipos, a participação, a tradição cultural, a realidade invisível, o espírito, a imaginação e o imaginário da criança impressos na massa de modelar. O educador ou a educadora observa a tudo atentamente, procura avaliar a aula e responder às perguntas: As crianças estão alegres e tranquilas? Em qual atividade houve melhor ou pior interesse e participação? O tempo foi suficiente, longo ou curto? As crianças manifestaram verbal e corporalmente interesse e desejo de continuar a aula? Através de anotações em seu diário, o educador ou a educadora acompanha o desempenho, o comportamento e os sentimentos manifestados pelas crianças em cada momento, para repensar suas técnicas e elaborar novas abordagens conforme o potencial e as necessidades da classe. No caso de aulas sequenciais, é possível perceber mudanças nos pensamentos, no comportamento, nos impulsos fisiológicos e no conteúdo dos sonhos de cada discente. Que essas atividades em sala de aula colaborem para integrar a personalidade, reforçar a identidade das crianças e permitir-lhes a expressão de percepções e sentimentos, de forma que elas expressem em estado consciente e alerta a atividade mental e percepções da realidade que apareciam somente nos sonhos (JUNG, 2008).

6. Considerações finais

Essa aula foi ministrada por Linda Siokmey Tjhio Cesar Pestana em dez de novembro do corrente ano, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Cônego João de Deus, no período da manhã em uma classe de vinte e cinco crianças do 3º ano do Ensino Fundamental I. Como primeiro 158

resultado da experimentação em campo, a técnica proposta e aplicada na aula de Ensino Religioso foi considerada bem-sucedida, pois, embora as crianças fossem bem agitadas, cooperaram e participaram satisfatoriamente de todas as atividades propostas. Ao fim, manifestaram alegria, satisfação e gratidão à minha pessoa. Todas as etapas foram cumpridas em sequência e no tempo estimados, de forma dinâmica, porém, sem pressa.

Junto com Pestalozzi (2015), constatamos que ao cultivar a pureza e a bondade da essência infantil, potencializa-se sua vivência intelectual, sensorial e emocional do conhecimento; a criança aprende, desenvolve habilidades e assimila valores enquanto caminha do desconhecido para o novo, do concreto ao abstrato, da prática à teoria, numa educação integral intuitivo-dedutiva, que envolve percepção, disciplina interior, formação intelectual, física e moral; e assim, fazemos eco de suas palavras: “Reconhece-te a ti mesmo e constrói a obra do teu enobrecimento sobre a consciência profunda de tua natureza animal, mas também com a consciência completa da tua força interior de viver divinamente no meio dos laços da carne”.

7. Referências bibliográficas

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GOMES, Eunice Lins. Um baú de símbolos na sala de aula. São Paulo: Paulinas, 2013.

159

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para

crescer.

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Acesso em: 20 out. 2015.

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160

A IMPORTÂNCIA DA PEDAGOGIA DA AUTONOMIA NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR DO ENSINO RELIGIOSO

RODRIGUES, Ana Paula Soares Loureiro - UFPB119 BASTOS, Ana Cristina de Almeida Cavalcante - UFPB120

RESUMO

O presente estudo tem como objetivo refletir a formação do professor do Ensino Religioso ancorada na Pedagogia da Autonomia, de forma que este docente possa investir pedagogicamente na promoção da assunção cultural de seus alunos, pautada no reconhecimento e no respeito das diferenças e diversidades culturais e religiosas existentes, com fins de desenvolver um pensamento crítico e reflexivo, no combate às situações de intolerância, preconceito e discriminação. Tendo por base uma revisão bibliográfica nos saberes necessários defendidos por Paulo Freire para a formação do professor em sua prática educativa, este artigo pretende aprofundar o tema em questão a partir da discussão sobre como esses saberes, aplicados efetivamente através da dialogicidade enquanto condição essencial para o desenvolvimento da aprendizagem e defesa de uma educação inclusiva, fraterna, solidária e formadora de uma cultura de paz. Uma educação capaz de 119119

Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB, mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba – UEPB-PB. Supervisora da Rede Municipal de Educação de João Pessoa – PMJP-PB – à disposição da Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência – FUNAD - Paraíba Professora da Educação de Jovens e Adultos da Rede Municipal de João Pessoa – PMJP/PB -e-mail: [email protected] Possui graduação em Estudos Sociais – UEPB/PB e Pedagogia – UVA/CE – especialidade em Psicopedagogia Institucional – CINTEP/PB– mestre em Ciências das Religiões - UFPB. Pesquisadora do grupo FIDELID - Grupo de Pesquisa Formação, Identidade, Desenvolvimento e Liderança de Professores de Ensino Religioso - UFPB - Professora da Rede Estadual à disposição da Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência – FUNAD - Paraíba, enquanto reabilitadora na Assessoria de Educação Especial – Professora da Educação de Jovens e Adultos da Rede Municipal de João Pessoa – PMJP/PB – e-mail: [email protected] 120

161

instrumentalizar as pessoas para a libertação de situações opressoras, ao dar-lhes o empoderamento necessário para que se assumam enquanto seres sociais, agentes de transformação das estruturas sociais injustas no meio em que vivem. Como conclusão, o estudo propõe que no exercício da docência no Ensino Religioso, não se haja uma proposição de catequização ou doutrinação religiosa do aluno. O professor, dotado de uma conduta ética, de intencionalidade e de direção, e no exercício coerente e vivaz de sua prática, precisa assumir o compromisso do estudo do fenômeno religioso no contexto escolar de forma a propiciar uma formação cidadã, onde o aluno não seja apenas um mero reprodutor do conhecimento ensinado, mas que seja capaz de aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a conviver, preocupado não somente com o seu desenvolvimento cognitivo, mas com o desenvolvimento global, enquanto ser humano que convive harmoniosamente com seus pares. PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia da Autonomia. Ensino Religioso. Formação do professor.

1. INTRODUÇÃO

Falar sobre a prática do professor a partir da contribuição dos saberes descritos por Paulo Freire é assumir uma das exigências que esta prática pedagógica por ele defendida: o testemunho da disponibilidade à vida e aos seus ensinamentos. Este é um dos temas centrais do livro A Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática docente (2006), com o qual pretendemos fundamentar os argumentos por nós apresentados neste artigo. A formação do ser professor ocorre de forma artesanal, aos poucos enquanto vivencia e experimenta a prática social de que se torna parte. Pois foi aprendendo a conhecer e experimentando que começamos a entender e fazer de nossa prática docente um ato pedagógico aberto e tanto quanto possível bonita e prazerosa (Freire, 2006). O Ensino Religioso traz em sua proposta os princípios de cidadania, respeito à diversidade, tolerância no entendimento do outro e na relação do ser humano em sua busca pelo transcendente. Princípios estes descritos nos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNER´s. Para atender a este propósito, como deve ser a atuação do professor do Ensino Religioso? Será que a ele compete ser um profissional articulador, cuja atuação esteja imbuída do desejo de contribuir para além da interação com e entre os alunos? É sua função contribuir com a possibilidade de promover uma melhor compreensão das relações que se formam no ambiente escolar e que são reflexos dos espaços de vivência além dos muros da escola? Na busca por resposta a estes questionamentos centrais e outros que destes decorrem e tendo por base uma revisão bibliográfica nos saberes necessários defendidos por Paulo Freire para a formação do professor em sua prática educativa, este artigo pretende aprofundar o tema em questão a partir da discussão sobre como esses saberes, aplicados efetivamente através da dialogicidade enquanto condição essencial para o desenvolvimento da aprendizagem e defesa de uma 162

educação inclusiva, fraterna, solidária e formadora de uma cultura de paz. Uma educação capaz de instrumentalizar as pessoas para a libertação de situações opressoras, ao dar-lhes o empoderamento necessário para que se assumam enquanto seres sociais, agentes de transformação das estruturas sociais injustas no meio em que vivem.

2. O PROFESSOR DE ENSINO RELIGIOSO E O DESAFIO DE SUA FORMAÇÃO

Uma discussão sempre atual no espaço acadêmico, nas associações, nas entidades representativas da classe e na mídia é a formação inicial e continuada dos professores, pois sua evidência reflete na direito constitucional de uma educação para todos como previsto no Art. 205, da Constituição Federal de 1988 Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

A educação como direito de todos para ser implica na garantia de uma escola pública de qualidade. E para tanto, a formação inicial e continuada dos professores toma uma dimensão de política pública no cenário educacional brasileiro. O Ministério da Educação, através do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), declara que existem aproximadamente dois milhões de professores em atuação na educação básica. Dados do Inep apontam que no ano de 2000, foi registrado que 59,7% dos professores tinha nível superior. Em 2011, este mesmo registro foi de 74,09%. Houve, portanto, um aumento de 14,34% de professores com nível superior atuando na educação básica. O quantitativo em número absoluto equivale a mais de 1,5 milhões de professores graduados. Destes, 1,2 milhões (82,5%), possuem cursos de licenciatura e apenas 17,5% não possuem apenas o magistério ou o ensino médio. (PORTO, 2014 apud OLIVEIRA, RISKE-KOCH e BERG, 2015). No entanto, o expressivo número de professores graduados, ainda não é a solução, “pois o fato de o professor ser portador de um diploma em curso de licenciatura não significa que ele esteja em exercício na área de conhecimento para a qual é habilitado.” Porto (2014, p.151) apud Oliveira, Riske-Koch e Berg (2015). Para melhorar estes índices, o Brasil tem investido em programas de formação para o magistério através dos Institutos de Ensino Superior (IESs). Destacam-se como iniciativas: 1.

Rede Nacional de Formação Continuada de Professores – RENAFOR (2003), voltada exclusivamente para educação infantil e ensino fundamental;

163

2.

3.

4.

Universidade Aberta do Brasil – UAB (2006) – formação iniciada e continuada de professores através da metodologia de Educação à Distância (EaD); Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica – PARFOR (2009), para promover licenciatura para professores das escolas públicas que não possuem formação adequada com o que está previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (1996); Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Distância – PIBID (2010), para fomentar a iniciação à docência e assim qualificar o desempenho da educação básica.

Segundo Oliveira, Riske-koch e Berg, apesar do Ministério da Educação acenar com estas formações iniciais e continuadas para os professores que atuam na Educação Básica.

A formação inicial para o Ensino Religioso (ER) encontra-se neste cenário, contudo com um diferencial: nunca foi assumida efetivamente pelas políticas públicas na normatização da educação superior no Brasil. Desse modo, a situação do ER é ainda mais crítica em relação às demais áreas da educação básica, uma vez que grande parte dos Estados da Federação sequer possui formação inicial para esta área do conhecimento (2015, p. 182).

Diante desta lacuna, o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso – FONAPER, criado em 1995, tem se preocupado com a formação continuada de professores para o ER. Para tanto, elaborou a Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Ciências da Religião – Licenciatura em Ensino Religioso e apresentou ao Conselho Nacional de Educação. No período entre 1995 e 2015, vários cursos de licenciatura foram criados nos Institutos de Educação Superior - IESs brasileiros em uma tentativa de atender e regularizar o processo de formação de professores para atuar no ER, como apresentado no quadro abaixo apresentado por Oliveira, Riske-Koch e Berg (2015, p. 186):

Nº INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO SUPERIOR

UF

SITUAÇÃO

01 Centro Universitário Municipal São José - USJ

SC

Em funcionamento

02 UEA – Universidade Estadual do Amazonas

AM

Em funcionamento

03 Universidade Comunitária da Região de Chapecó

SC

Em 164

funcionamento 04 Universidade do Contestado – UnC

SC

Inativo

05 Universidade do Estado do Pará – UEPA

PA

Em funcionamento

06 Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – RN UERN

Em funcionamento

07 Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC

SC

Inativo

08 Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL

SC

Inativo

09 Universidade UNIMONTES

Estadual

de

Montes

Claros

– MG Em funcionamento

10 Universidade Federal da Paraíba – UFPB

PB

11 Universidade Federal de Juiz de Fora

MG Em funcionamento

12 Universidade Federal do Sergipe – UFS

SE

Em funcionamento

13 Universidade Regional de Blumenau – FURB

SC

Em funcionamento

14 Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE

SC

Inativo

15 Universidade Estadual do Maranhão – UEMA

MA

Inativo

Em funcionamento

Fonte: Arquivo do RELER, com base nos dados do MEC (2015)

Na Paraíba, segundo Holmes (2010) apud Bastos (2015, p. 102) foi no ano de 1996, que a disciplina de ER foi implantada em todas as escolas estadual do Estado da Paraíba, nas séries de 5ª e 6ª série (atualmente do 6ª ao 9º ano). A qualificação dos professores ficou sob a responsabilidade da I Capacitação de Professores do ER, com carga horária de 80h. O FONAPER participou deste processo de qualificação em 2000 promovendo o Curso à distância: Capacitação para a Formação Docente Novo Milênio FONAPER, em que dos cem (100) professores inscritos, cinquenta e seis concluíram o curso, No ano de 2005, a Universidade Federal da Paraíba - UFPB implantou a primeira turma de especialização em Ciências das Religiões. Em 2007, o Mestrado e em 2008, o curso de Licenciatura/Bacharelado nesta mesma área de ensino. O Mestrado implantado pela UFPB é o primeiro Mestrado em Ciências das Religiões no Nordeste e o 2º em uma Universidade Federal no Brasil. 165

3. A PEDAGOGIA DA AUTONOMIA E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DO ENSINO RELIGIOSO

Bastos (2015, p. 102), discorre sobre o Ensino Religioso como sendo (...) estudo não confessional e pautado na base epistemológica das Ciências das religiões que permite realizar uma análise diacrônica e sincrônica do fenômeno religioso, o Ensino Religioso favorece um olhar mais ampliado da educação pelo fato de contemplar as práticas do respeito, do diálogo e do ecumenismo entre as religiões, que pode incidir na formação integral do ser humano.

Sendo assim, a assunção de uma postura questionadora e inquietante sobre as causas e sobre a dinâmica interna da aprendizagem faz parte do perfil do atual professor de um Ensino Religioso, com caráter epistemológico, pedagógico e científico. A formação deste professor deve ser comprometida com as possiblidades de mudanças em que a construção se sujeitos históricos conhecedores de sua realidade e, sobretudo, capazes de intervir para provocar a unidade que a diversidade dos direitos humanos traz como princípio. O professor precisa ampliar e atualizar o conhecimento sobre os fatos e acontecimentos da ação educativa, a fim de reelaborar seus elementos e interpretálos a luz da teoria e adequá-los a novas situações e circunstâncias. No livro A Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática docente, de Paulo Freire, sobre o qual nos apoiamos para discutir sua importância na formação do professor do Ensino Religioso, Freire defende uma prática educativoprogressiva que trabalha em favor do aluno. Para tanto, chama a atenção dos professores para a responsabilidade ética com a prática docente. E ao discorrer sobre esta ética afirma:

(...) A ética de que falo é a que se sabe traída e negada nos comportamentos grosseiramente imorais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é a que se abre afrontada da manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vive-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz aos educandos em nossa relação com eles. (...) (FREIRE, 2006, p.16)

A formação dos professores do ensino religioso propõe como tarefa para alcançar seus objetivos de transformação individual e coletiva, a habilidade de se fazer construtivamente presente na realidade do educando. Para tanto, o professor deve assumir uma postura aberta, disposição, sensibilidade e compromisso. 166

Rodrigues (2006, p.94), no seu estudo sobre a formação dos educadores populares, afirma que

Compreender os limites da prática educativa é reconhecer a clareza política dos educadores com relação ao contexto de vida dos educandos. Compete aos educadores assumirem a politicidade de sua prática. Isto implica em assumir-se em favor de quem, como educador popular exerce uma prática político-educativa, pois sem intervenção não há uma educação progressista

A educação recortada, fragmentada em disciplinas isoladas, as quais de tão dissociadas não dialogam entre si, não contribui para formar o ser humano em sua totalidade, então o Ensino Religioso tem uma capital importância na vida escolar porque sua proposta é levar o aluno a refletir sobre sua postura enquanto cidadão responsável pela sociedade em que vive. Em um processo contínuo de formação e em um processo de rompimento com posturas monoculturais e de homogeneização religiosa, resquícios das concepções confessionais e interconfessionais que denunciam o aspecto histórico da disciplina, o professor do ER deve realizar cotidianamente em sua sala de aula a recriação do seu fazer educativo. Em uma perspectiva esperançosa, otimista, mas de forma alguma ingênua, Freire (2006) aponta os saberes necessários à prática educativa progressista.

3.1 Não há docência sem discência O processo de aprendizagem ocorre diante da disponibilidade dos seus participantes, da atuação ativa de quem se coloca como sujeito deste processo. A contribuição da obra de Paulo Freire é para que o professor se proponha a descobrir como seu aluno aprende, quais as conexões que ele (aluno) faz para apreender um novo conhecimento e ou ressignificar uma experiência já vivida. Por sua vez, o aluno deve deixar de lado uma postura passiva, deixar de ser apenas receptor de informações e posicionar-se como sujeito construtor de um conhecimento que pode e deve contribuir para que o mesmo interfira na realidade que o cerca. Bastos (2015, p. 112) considera que o Ensino Religioso favorece um olhar mais ampliado da educação pelo fato de contemplar as práticas do respeito, do diálogo e do ecumenismo entre as religiões, que pode incidir na formação integral do ser humano. Para que tais práticas sejam construídas, segundo Paulo Freire (2002), ensinar exige rigorosidade metódica. O fazer em sala de aula não exige a definição de estratégias para que a curiosidade ingênua presente no discurso pedagógico se transforme em uma curiosidade epistemológica, uma busca metodicamente rigorosa. E Freire (Idem, p. 29) afirma

167

(...) Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o compromisso da educadora com a consciência crítica do educando cuja “promoção” da ingenuidade não se faz automaticamente. (Grifos do autor)

E por não se fazer automaticamente, é preciso respeito aos saberes dos educandos. Isto se refere à consideração com as experiências com que os alunos chegam à escola. O Ensino Religioso é por princípio o espaço de conhecimento privilegiado para discutir a diversidade religiosa e as constantes violações ao direito de ter ou não declaradas uma prática religiosa. Esta consideração com as experiências vividas faz com que se crie as condições para a promoção da curiosidade ingênua, carregada de pré-conceitos sobre religião e religiosidade, assuma uma curiosidade epistemológica, em uma busca pelo conhecimento. Para que promova esta passagem para uma curiosidade epistemológica, o professor do Ensino Religioso deve assumir uma postura ética. Como afirma Freire (2006, p. 33), É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico e amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. A sua prática em sala de aula precisa ser um testemunho do que é proposto como conteúdo do Ensino Religioso. Pois o ato de ensinar exige coragem para assumir o novo e rejeitar qualquer forma de discriminação, dentro ou fora de sala de aula. Este testemunho precisa ser refletido criticamente de forma permanente, pois o professor de ER é um privilegiado para promover a assunção da identidade cultural e religiosa dos alunos.

3.2. Ensinar não é transferir conhecimento

Não transferir conhecimento implica em não apresentar conteúdos prontos, acabados, fundamentados em conceitos que não foram construídos em sala de aula de forma coletiva. No Ensino Religioso, esta transferência pode implicar em transferir posições fechadas quanto à praticas religiosas diferentes daquelas professadas pelos professores de ER. Ter consciência de que todos os atores do processo educativo, professores e alunos, encontram-se em construção, em formação como seres humanos. O inacabamento de nós, seres humanos, nos coloca em posição de aprender, de ouvir o outro, de se despir de certezas eternas. Porque somos condicionados ao que nos é apresentado como verdades inquestionáveis, é que ao longo da história temos presenciado tanta violência em nome da Religião. O respeito à autonomia do ser do educando, faz com que o conhecimento sobre as diversas religiões seja colocado no centro das discussões em sala de aula. 168

Cada um possa apresentar a sua forma de ser religioso. Para tanto, é imperioso que o bom senso seja uma virtude do professor de ER, o qual dele exige humildade, tolerância para que lute por direitos. O bom senso faz com que o professor de ER conheça as diferentes dimensões da prática educativa e promova a alegria e a esperança necessárias ao seu testemunho à vida. Para tanto, se faz necessário uma abertura à mudança e ainda a declaração sobre seu posicionamento diante das injustiças sociais praticadas. O testemunho à vida implica colocar-se como ser curioso, alguém que questiona, que pesquisa, que interage em busca de estratégias de promoção de uma prática educativa amorosa.

3.3 Ensinar é uma especificidade humana

O ser humano difere do animal na sua capacidade de intervir no mundo e esta intervenção exige dele segurança, competência profissional e generosidade. A autoridade do professor do Ensino Religioso em sala de aula se funda na sua competência profissional, no seu comprometimento profissional com a identidade religiosa que seus alunos assumem quando compreendem que a religião é uma das formas de intervenção no mundo. A liberdade religiosa ocorre a partir da assunção da autoridade que reconhece o direito do outro como inalienável. Para Paulo Freire (2006, p. 108), A posição mais difícil, indiscutivelmente correta, é a do democrata, coerente com seu sonho solidário e igualitário, para quem não é possível autoridade sem liberdade e esta sem aquela. A implantação do Ensino Religioso como conhecimento curricular traz, ao longo da história, diferentes posicionamentos quanto ao papel de conformação de um ensino confessional, preconceituoso quanto a divergência com a prática religiosa predominante. Compete ao professor de ER escutar os alunos e suas angústias diante das incompreensões e negação de sua religiosidade ou da não declaração de ateísmo. A escuta implica que é preciso reconhecer que a educação é ideológica, trazendo em seus conteúdos a forma de pensar e de se expressar de uma maioria. Para tanto, se faz imperiosa a disponibilidade par ao diálogo com o diferente em um ato que vai além do respeito à diversidade religiosa, é o respeito ao ser humano. O diálogo aberto promover a amorosidade que é uma condição especificamente humana e que é ponto determinante para o exercício de uma prática educativa progressista.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os saberes propostos por Paulo Freire de forma leve, criativa e provocadora encorajam a quem se propõe a discutir a formação do professor de Ensino Religioso 169

de forma esperançosa. A atuação deste profissional é marcada pelos conflitos e os debates, sempre atuais, sobre religião. A formação do professor de ER deve ser um espaço que vai além da apresentação de conteúdos específicos. Os espaços de formação devem reafirmar e criação de saberes que constituem os conteúdos a serem discutidos e vivenciados em sala de aula. Paulo Freire contribui com esta contínua formação ao apresentar uma proposta de uma pedagogia que promova a autonomia do professor e do alunos, porque sujeitos da construção do conhecimento. Uma prática educativa fundada no respeito à dignidade de ser gente. Uma prática educativa rigorosamente ética, competente e alegre. A ética exige do professor um testemunho de sua prática condizendo com o discurso que comunica. A sua competência profissional implica no comprometimento com a pesquisa e a rigorosidade com que promove a curiosidade epistemológica, o respeito às experiências vividas pelos alunos e a forma com que estes estabelecem relação entre o conhecimento de mundo e o saber sistematizado que deve ser assimilado depois que se torna aplicável como intervenção social. A alegria, por fim, deve ser o combustível do professor de ER que assume a assunção cultural e religiosa dos alunos como um testemunho de sua prática educativa, como um fazer natural de sua condição humana.

REFERÊNCIAS

BASTOS. Ana Cristina de Almeida Cavalcante. A formação do professor do Ensino Religioso: um olhar sobre a inclusão de alunos com deficiência na escola. São Paulo. Fonte Editorial, 2015. ________Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília DF, 05 out.1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 03/03/2016 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessário à prática educativa. 33ª Ed. São Paulo: Paz e Terra. 2006. RODRIGUES, Ana Paula Soares L. Educação Popular e a formação dos educadores populares no Projeto Beira da Linha: um celeiro de experiências. UFPB. PPGE. .2006 OLIVEIRA, Lilian Blanck de, RISKE-KOCH, Simone, BERG, Irene de Araújo Van Den. Formação de docentes para o Ensino Religioso no Brasil: desafios de norte a sul. In: POZZER, Adecir, PALHETA, Francisco, 170

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Formação continuada de professores de Ensino Religioso: as práticas específicas mediante as dificuldades dos educandos na assimilação do tema função e valores da tradição religiosa

Sidney Allessandro da Cunha Damasceno121

RESUMO: O presente trabalho é fundamentado a partir da pesquisa desenvolvida na dissertação de mestrado, realizada no PPGCR/UFPB, na linha de pesquisa Educação e Religião. Este se constitui como um trabalho bibliográfico, descritivo e qualitativo. Trabalho que tece uma relação entre uma das conclusões verificadas nessa pesquisa, em meio a análise das respostas à questão: “especificamente, no que tange ao tema função e valores da tradição religiosa, o que tem se constituído 121 Mestrando em Ciências das Religiões no Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões – (PPGCR) – UFPB, bolsista da CAPES, especialista em Ciências da Religião – FATIN – PE, graduado em Licenciatura Plena em Filosofia – FAERPI, graduado como Bacharel em Teologia – FATIN - PE, graduado em Licenciatura Plena em Pedagogia – UFPB, desenvolveu atuação profissional como professor de Ensino Religioso na Rede pública municipal de Educação em João Pessoa (2011-2015) – SEDEC/PMJP, membro do grupo de estudo e pesquisa em antropologia do imaginário – GEPAI (e-mail www.gepai.com.br). Pesquisa a qual tem como orientadora a Prof.ª Pós Dr.ª Eunice Simões Lins Gomes docente na graduação e pós-graduação em Ciências das Religiões DCR-PPGCR-CE-UFPB e Líder do grupo GEPAI. Contatos pelo e-mail [email protected]

171

como a parte de mais resistência dos educandos à assimilação do tema?” Como questão apresentada na pesquisa em forma de entrevistas realizadas com um grupo de dez profissionais contratados pela Rede de Ensino da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de João Pessoa–PB, para atuarem como professores no componente curricular de Ensino Religioso (ER). Os quais preencheram o requisito de ter participado do modelo presencial de Formação Continuada de Professores de ER (FCPER) ofertado pela instituição há, pelo menos, três anos. Relação esta, entre os principais destaques dessas respostas dos professores entrevistados, as características da diversidade cultural religiosa – compreendida como as diferentes formas de demonstrar a crença de cada povo na história da humanidade – que perpassam o conteúdo do componente curricular Ensino Religioso e as práticas específicas às quais esses professores verificam que contribuem para superação das resistências dos educandos à assimilação do tema. Assim, em suas considerações finais, este trabalho ressalta algumas questões que podem ser consideradas fundamentais na estruturação do desempenho das etapas dos percursos de um modelo de FCPER, quanto às sugestões para a superação de dificuldades como as ressaltadas pelos profissionais que atuam na docência de ER.

Palavras-chave: Formação Continuada, Ensino Religioso, Tradição Religiosa.

INTRODUÇÃO

As relações implícitas neste trabalho resultam de um dos aspectos identificados na pesquisa realizada junto ao PPGCR/CE/UFPB, como parte da dissertação de mestrado, que apresenta até o momento – após sua qualificação – o título: “Formação continuada de professores de ensino religioso: do conteúdo das ciências das religiões à prática na sala de aula de ensino religioso”. Devido à configuração da pesquisa ser de uma pesquisa-ação, bibliográfica, descritiva com abordagem qualitativa (GIL, 1994) é a partir das declarações dos professores entrevistados, em resposta ao objetivo proposto, ou seja, de averiguar se a Formação Continuada de Professores de Ensino Religioso – FCPER – contribui com os professores de ER no ensino do tema ‘função e valores da tradição religiosa’

172

que fundamentamos o presente trabalho como um trabalho bibliográfico, descritivo e qualitativo. Este texto está organizado em três partes. A primeira parte apresenta um pouco da estrutura metodológica da pesquisa de mestrado e denota algumas das declarações dos professores entrevistados em resposta à questão: Especificamente, no que tange ao tema função e valores da tradição religiosa, o que tem se constituído como a parte de mais resistência dos educandos à assimilação do tema? A segunda parte do texto tece relações entre considerações referentes às maneiras como esses professores procedem na superação das resistências dos educandos à assimilação do tema. A terceira parte do texto ressalta observações de como pode ser pensada, em nível de educação básica, desde o primeiro ano do Ensino Fundamental I, no que diz respeito ao conteúdo do componente curricular do ER, algumas características da diversidade cultural religiosa dentro do seu significado de ser as diferentes formas de demonstrar a crença de cada povo na história da humanidade. Consequentemente, em suas considerações finais, este trabalho destaca questões que se caracterizam como essenciais na estruturação do desempenho das etapas dos percursos de um modelo de FCPER, no que tange a superação de possíveis dificuldades como as ressaltadas pelos profissionais que atuam na docência de ER.

1. A estrutura metodológica da pesquisa

A pesquisa a qual este texto se refere, foi realizada em uma modalidade de formação continuada presencial (HOLANDA, 2011, p. 149) desenvolvida junto ao modelo de FCPER implantado e desenvolvido a partir do ano de 2006, dentro da Rede Municipal de Ensino de João Pessoa, no propósito de suportar ao que tange aos conteúdos e às práticas didático/pedagógicas do componente curricular do Ensino Religioso junto ao seu corpo docente. Como discorremos outrora (DAMASCENO; GOMES, 2014, p. 2), na realização dessa pesquisa, primeiro buscamos “contextualizar a FCPER e identificar suas principais contribuições para o ER referente ao tema” (Função e Valores da Tradição Religiosa) seguindo um caminho metodológico que baseou o capítulo um a 173

partir das considerações de Moraes e Galiazzi (2011, p.165) a respeito da Análise Textual Discursiva. O que foi feito por meio de entrevistas individuais abertas que seguiram um roteiro semiestruturado e depois foram transpostas para a forma escrita. Foram entrevistados dez professores vinculados a Rede de Ensino da Secretaria de Educação e Cultura – SEDEC, da Prefeitura Municipal de João Pessoa – PMJP, os quais atuam profissionalmente na docência no componente curricular de ER, em turmas do quinto ano do Ensino Fundamental, e estiveram participando desse modelo de FCPER por um tempo mínimo de três anos. Logo, considerando a décima quarta questão do ‘Roteiro Semi-Estruturado da Entrevista’ (conforme registrado no ‘Comitê de Ética em Pesquisa’ – CEP): “Especificamente, no que tange ao tema função e valores da tradição religiosa, o que tem se constituído como a parte de mais resistência dos educandos à assimilação do tema?” Destacamos adiante, entre as respostas dos professores entrevistados, algumas das dificuldades mais enfatizadas como a “concepção de valor do sujeito” tanto para o educando quanto para o professor desprovido dessa habilidade, como considera o seguinte professor, em sua fala:

Eu diria que a concepção de valor do sujeito [...] Então, essa percepção, dessa diferenciação, desse modo de ser que você se mostra a partir do fenômeno religioso dentro de sala de aula, constitui uma dificuldade enorme para o aluno e também até para o professor quando não tem o domínio dessa temática e dessa área do Ensino Religioso. (Professor, 05)

Isto posto, mediante os aspectos que perpassam, de fato, pela alteridade foram considerados especificamente entre as resistências dos educandos à assimilação do tema: [...] como fazer esse trabalho para que o aluno entenda que o outro é tão importante quanto ele, enquanto pessoa. Que a minha fé, ela não pode ser imposta ao outro. Eu não sou obrigado a acreditar no que o outro acredita. Mas também ele não é obrigado a acreditar no que eu acredito. (Professor 07)

Do mesmo modo, que a questão da fé pessoal foi citada: “A fé. […] Se for uma fé extravasada uma fé que leve você ao fanatismo radical que não queira ouvir ninguém, de que só você é dona da verdade, aí isso dificulta o trabalho. É muito prejudicial.” (Professor 01) 174

A resistência mais é quando se tratam de tradições religiosas que não são as suas, sejam elas quais forem. [...] porque, os alunos ainda têm essa dificuldade: de querer saber outras coisas além do seu mundo religioso. Eu acho que isso é uma questão mesmo dos preconceitos religiosos. (Professor 07)

Porém, a pesquisa constatou que, segundo os professores entrevistados, a maior resistência dos educandos à assimilação do tema diz respeito às ‘Tradições Religiosas de Matriz Africana’. “O grande problema está aí em sua maioria em aceitar os valores, a função e os valores da Tradição de matriz africana” (Prof. 09); “E hoje nas escolas, você pode trabalhar qualquer cultura religiosa, [...] eles encaram numa boa. Mas quando você vai para cultura Afro, há! É onde a gente encontra ainda a maior resistência. Porque tudo é voltado pro diabo, pro mal. (Professor 06); [...] é a questão das religiões Afro. É um problema que a gente sente, que a gente vê, que a gente percebe que há uma resistência entre a maioria das pessoas de aceitar, as religiões Afro. (Professor 02)

2. Práticas específicas para superar as resistências dos educandos

Entre algumas das práticas dos professores entrevistados, na busca pela superação das resistências dos educandos, registradas pela pesquisa, destacam-se: A produção de texto por parte dos alunos é algo assim muito importante” (Professor 03); “Quando o professor passar a sua experiência de vida, o aluno tem ele como um espelho e isso funciona dentro da sala de aula. E funciona na vida, no dia a dia” (Professor 01); “Eu trabalho muito a questão do valor do outro, do sujeito e buscar perceber que esse outro pode construir junto comigo, pensando diferente um caminho melhor para viver harmonicamente em paz” (Professor 05). Especificamente, quanto à questão das ‘Tradições Religiosas de Matriz Africana’, verificou-se que: “É o afrodescendente. [...] Mas eu trabalho isso, de outra maneira. Eu primeiro, eu trabalho com filme mostrando, depois eu entro com a conversação, depois eu faço uma dinâmica em sala” (Professor 10). Mas quando você começa a mostrar que o negro, a consciência do negro, em relação ao Transcendente, as histórias que nós contamos 175

dos Orixás, como é que eles viveram, o que é que o negro acha, como pensou. Eles começam a aceitar. (Professor 09)

Desse modo, observa-se que esses professores entrevistados, de várias maneiras, têm desenvolvido em suas práticas didático-pedagógicas formas de construir nos educandos estruturas de pensamentos fundamentadas em perspectiva crítico reflexiva a qual possa viabilizar e sustentar as interações sociopolíticoculturais.

3. O pensar a introdução às tradições religiosas de matriz africana O conteúdo, como aborda Piletti, é “à organização do conhecimento em si, com base nas suas próprias regras […] é um instrumento básico para poder atingir os objetivos”(PILETTI, 2004, p. 66). Desse modo, há diversas maneiras sobre as quais podem ser pensadas para se estruturar, de uma forma mais adequada, uma introdução dessa parte do conteúdo relativo à ‘Função e Valores das Tradições Religiosas’, que diz respeito ao assunto ‘Tradições Religiosas de Matriz Africana’. Na práxis, constata-se que uma quantidade significativa de educandos já chega à sala de aula do primeiro ano do Ensino Fundamental com concepções perpassadas por preconceitos e discriminações quanto à cultura afrodescendente. O que também se reflete, consequentemente, na maneira como vários educandos repetem jargões depreciativos ditos pelos adultos, como: tá amarrado, chuta que é macumba, isso é o capeta, isso é demônio, entre outros; ao deparar-se com algum contato que expresse a religião e/ou a religiosidade afrodescendente. Nessa faixa etária, suspeita-se que ir de encontro a essas concepções introjetadas e/ou absorvidas naturalmente por qualquer uma dessas crianças – a partir de um contexto tão marcante como é o das comunidades as quais elas encontram-se relacionada – é algo que pode gerar tanto um mal estar, devido alguma interpretação equivocada pelos pais e/ou responsáveis pelas crianças, como também, gerar um (s) efeito (s) contrário (s), os quais ao invés de desenvolver de maneira positiva fundamentos éticos relacionados ao respeito, a alteridade, consolidem o fortalecimento da antipatia, da indiferença e rejeição a qualquer tipo de relações e relacionamentos que envolvam aspectos afrodescendentes.

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Consequentemente, ao se pensar uma introdução mais propícia para esse assunto, dentro do conteúdo do componente curricular do ER, considerando-se a diversidade cultural religiosa como as diferentes formas de demonstrar a crença de cada povo na história da humanidade, é possível seguir sem referências a esses aspectos reproduzidos por crianças marcadas desse modo e apresentar uma dinâmica no processo de ensino/aprendizagem fundamentada por uma prática didático/pedagógica atravessada pela ludicidade. Um bom exemplo desse tipo é a apresentação de um vídeo como recurso didático (em substituição a um texto e/ou cartaz de papel cartolina). Pois, músicas como a do compositor Bita122 tem no dia a dia dessas crianças do primeiro ano, apresentado tanto dentro do contexto geográfico (ir para a África), como as observações que a fauna, a flora e os próprios personagens que representam alguns africanos no vídeo (ao aparecer revestidos por um dado aspecto que aponta para a “religiosidade afrodescendente” – características nativas), envolvem e estimulam as crianças para aprenderem a cantar a música. Música que em si, apresenta muitas outras possibilidades de serem trabalhadas relações de interdisciplinaridade em meios as demais áreas de conhecimento do Ensino Fundamental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, conforme identificado pela pesquisa – como a maior resistência dos educandos à assimilação do tema – devido a relevância e importância do assunto ‘Tradições Religiosas de Matriz Africana’, verifica-se que é preciso, ao ser estruturado um modelo de FCPER, dá-se uma atenção mais consistente ao desenvolvimento de metodologias e técnicas de ensino, (PILETTI, 2004, 102 – 142) que possam dar suporte aos professores que atuam profissionalmente no componente curricular de ER. Para que se tenha, durante todo o período do ano letivo, abordagens que sempre acrescentem novos aspectos que desvelem para o educando a diversidade cultural religiosa das muitas nuances da Áfricas. Bem como, na sequenciação dos

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Bita e os Animais - Viajar pelo Safari Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9WFYuIu7BKA Acessado em: 13/02/2016

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conteúdos possa-se suportar o educando para superar as dificuldades como identificadas, de modo a ele poder ressignificar e (ré) apropriar dentro das suas leituras e interpretações a abrangência das diferentes formas de demonstrar a crença de cada povo na história da humanidade.

REFERÊNCIAS DAMASCENO, Sidney A. da C.; GOMES, Eunice S. Lins. Formação Continuada de Professores de ER: teoria e prática na sala de aula. Congresso Nacional de Educação, 1., 12 a 20 de set. 2014, Campina Grande. Anais I CONEDU (Congresso Nacional de Educação). Campina Grande: Realize, 2014. Volume 1, Número 1, ISSN 2358-8829 Disponível em: http://www.editorarealize.com.br/revistas/conedu/trabalhos/Modalidade_1datahora_ 13_08_2014_18_37_37_idinscrito_32539_4e1021cf3006a76de0029544ae7a3582. pdf Acessado em: 20/11/2014. GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1994. HOLANDA, Ângela Maria Ribeiro. A formação de professores no ensino religioso. In: JUNQUEIRA, Sergio A., WAGNER, Raul. (Org.) O ensino religioso no Brasil. – 2. ed. ver. e ampl. – Curitiba: Champagnat, 2011a. (Coleção Educação: religião; 5).

MORAES, Roque; GALIAZZI, Maria do Campo. Análise textual discursiva. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2011, 244 p.

PILETTI, Claudino. Didática Geral. 53º ed., São Paulo: Ática, 2004.

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Formação continuada de professores de Ensino Religioso: as práticas específicas mediante as dificuldades dos educandos na assimilação do tema função e valores da tradição religiosa

Sidney Allessandro da Cunha Damasceno123

RESUMO: O presente trabalho é fundamentado a partir da pesquisa desenvolvida na dissertação de mestrado, realizada no PPGCR/UFPB, na linha de pesquisa Educação e Religião. Este se constitui como um trabalho bibliográfico, descritivo e qualitativo. Trabalho que tece uma relação entre uma das conclusões verificadas nessa pesquisa, em meio a análise das respostas à questão: “especificamente, no que tange ao tema função e valores da tradição religiosa, o que tem se constituído como a parte de mais resistência dos educandos à assimilação do tema?” Como questão apresentada na pesquisa em forma de entrevistas realizadas com um grupo de dez profissionais contratados pela Rede de Ensino da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura Municipal de João Pessoa–PB, para atuarem como professores no componente curricular de Ensino Religioso (ER). Os quais preencheram o requisito de ter participado do modelo presencial de Formação Continuada de Professores de ER (FCPER) ofertado pela instituição há, pelo menos, três anos. Relação esta, entre os principais destaques dessas respostas dos professores entrevistados, as características da diversidade cultural religiosa – compreendida como as diferentes formas de demonstrar a crença de cada povo na história da humanidade – que perpassam o conteúdo do componente curricular Ensino Religioso e as práticas específicas às quais esses professores verificam que contribuem para superação das resistências dos educandos à assimilação do tema. Assim, em suas considerações finais, este trabalho ressalta algumas questões que podem ser consideradas fundamentais na estruturação do desempenho das etapas dos percursos de um modelo de FCPER, quanto às sugestões para a superação de dificuldades como as ressaltadas pelos profissionais que atuam na docência de ER.

Palavras-chave: Formação Continuada, Ensino Religioso, Tradição Religiosa.

123 Mestrando em Ciências das Religiões no Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões – (PPGCR) – UFPB, bolsista da CAPES, especialista em Ciências da Religião – FATIN – PE, graduado em Licenciatura Plena em Filosofia – FAERPI, graduado como Bacharel em Teologia – FATIN - PE, graduado em Licenciatura Plena em Pedagogia – UFPB, desenvolveu atuação profissional como professor de Ensino Religioso na Rede pública municipal de Educação em João Pessoa (2011-2015) – SEDEC/PMJP, membro do grupo de estudo e pesquisa em antropologia do imaginário – GEPAI (e-mail www.gepai.com.br). Pesquisa a qual tem como orientadora a Prof.ª Pós Dr.ª Eunice Simões Lins Gomes docente na graduação e pós-graduação em Ciências das Religiões DCR-PPGCR-CE-UFPB e Líder do grupo GEPAI. Contatos pelo e-mail [email protected]

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INTRODUÇÃO

As relações implícitas neste trabalho resultam de um dos aspectos identificados na pesquisa realizada junto ao PPGCR/CE/UFPB, como parte da dissertação de mestrado, que apresenta até o momento – após sua qualificação – o título: “Formação continuada de professores de ensino religioso: do conteúdo das ciências das religiões à prática na sala de aula de ensino religioso”. Devido à configuração da pesquisa ser de uma pesquisa-ação, bibliográfica, descritiva com abordagem qualitativa (GIL, 1994) é a partir das declarações dos professores entrevistados, em resposta ao objetivo proposto, ou seja, de averiguar se a Formação Continuada de Professores de Ensino Religioso – FCPER – contribui com os professores de ER no ensino do tema ‘função e valores da tradição religiosa’ que fundamentamos o presente trabalho como um trabalho bibliográfico, descritivo e qualitativo. Este texto está organizado em três partes. A primeira parte apresenta um pouco da estrutura metodológica da pesquisa de mestrado e denota algumas das declarações dos professores entrevistados em resposta à questão: Especificamente, no que tange ao tema função e valores da tradição religiosa, o que tem se constituído como a parte de mais resistência dos educandos à assimilação do tema? A segunda parte do texto tece relações entre considerações referentes às maneiras como esses professores procedem na superação das resistências dos educandos à assimilação do tema. A terceira parte do texto ressalta observações de como pode ser pensada, em nível de educação básica, desde o primeiro ano do Ensino Fundamental I, no que diz respeito ao conteúdo do componente curricular do ER, algumas características da diversidade cultural religiosa dentro do seu significado de ser as diferentes formas de demonstrar a crença de cada povo na história da humanidade. Consequentemente, em suas considerações finais, este trabalho destaca questões que se caracterizam como essenciais na estruturação do desempenho das etapas dos percursos de um modelo de FCPER, no que tange a superação de possíveis dificuldades como as ressaltadas pelos profissionais que atuam na docência de ER.

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1. A estrutura metodológica da pesquisa

A pesquisa a qual este texto se refere, foi realizada em uma modalidade de formação continuada presencial (HOLANDA, 2011, p. 149) desenvolvida junto ao modelo de FCPER implantado e desenvolvido a partir do ano de 2006, dentro da Rede Municipal de Ensino de João Pessoa, no propósito de suportar ao que tange aos conteúdos e às práticas didático/pedagógicas do componente curricular do Ensino Religioso junto ao seu corpo docente. Como discorremos outrora (DAMASCENO; GOMES, 2014, p. 2), na realização dessa pesquisa, primeiro buscamos “contextualizar a FCPER e identificar suas principais contribuições para o ER referente ao tema” (Função e Valores da Tradição Religiosa) seguindo um caminho metodológico que baseou o capítulo um a partir das considerações de Moraes e Galiazzi (2011, p.165) a respeito da Análise Textual Discursiva. O que foi feito por meio de entrevistas individuais abertas que seguiram um roteiro semiestruturado e depois foram transpostas para a forma escrita. Foram entrevistados dez professores vinculados a Rede de Ensino da Secretaria de Educação e Cultura – SEDEC, da Prefeitura Municipal de João Pessoa – PMJP, os quais atuam profissionalmente na docência no componente curricular de ER, em turmas do quinto ano do Ensino Fundamental, e estiveram participando desse modelo de FCPER por um tempo mínimo de três anos. Logo, considerando a décima quarta questão do ‘Roteiro Semi-Estruturado da Entrevista’ (conforme registrado no ‘Comitê de Ética em Pesquisa’ – CEP): “Especificamente, no que tange ao tema função e valores da tradição religiosa, o que tem se constituído como a parte de mais resistência dos educandos à assimilação do tema?” Destacamos adiante, entre as respostas dos professores entrevistados, algumas das dificuldades mais enfatizadas como a “concepção de valor do sujeito” tanto para o educando quanto para o professor desprovido dessa habilidade, como considera o seguinte professor, em sua fala:

Eu diria que a concepção de valor do sujeito [...] Então, essa percepção, dessa diferenciação, desse modo de ser que você se mostra a partir do fenômeno religioso dentro de sala de aula, constitui uma dificuldade enorme para o aluno e também até para o 182

professor quando não tem o domínio dessa temática e dessa área do Ensino Religioso. (Professor, 05)

Isto posto, mediante os aspectos que perpassam, de fato, pela alteridade foram considerados especificamente entre as resistências dos educandos à assimilação do tema: [...] como fazer esse trabalho para que o aluno entenda que o outro é tão importante quanto ele, enquanto pessoa. Que a minha fé, ela não pode ser imposta ao outro. Eu não sou obrigado a acreditar no que o outro acredita. Mas também ele não é obrigado a acreditar no que eu acredito. (Professor 07)

Do mesmo modo, que a questão da fé pessoal foi citada: “A fé. […] Se for uma fé extravasada uma fé que leve você ao fanatismo radical que não queira ouvir ninguém, de que só você é dona da verdade, aí isso dificulta o trabalho. É muito prejudicial.” (Professor 01) A resistência mais é quando se tratam de tradições religiosas que não são as suas, sejam elas quais forem. [...] porque, os alunos ainda têm essa dificuldade: de querer saber outras coisas além do seu mundo religioso. Eu acho que isso é uma questão mesmo dos preconceitos religiosos. (Professor 07)

Porém, a pesquisa constatou que, segundo os professores entrevistados, a maior resistência dos educandos à assimilação do tema diz respeito às ‘Tradições Religiosas de Matriz Africana’. “O grande problema está aí em sua maioria em aceitar os valores, a função e os valores da Tradição de matriz africana” (Prof. 09); “E hoje nas escolas, você pode trabalhar qualquer cultura religiosa, [...] eles encaram numa boa. Mas quando você vai para cultura Afro, há! É onde a gente encontra ainda a maior resistência. Porque tudo é voltado pro diabo, pro mal. (Professor 06); [...] é a questão das religiões Afro. É um problema que a gente sente, que a gente vê, que a gente percebe que há uma resistência entre a maioria das pessoas de aceitar, as religiões Afro. (Professor 02)

2. Práticas específicas para superar as resistências dos educandos

Entre algumas das práticas dos professores entrevistados, na busca pela superação das resistências dos educandos, registradas pela pesquisa, destacam-se: 183

A produção de texto por parte dos alunos é algo assim muito importante” (Professor 03); “Quando o professor passar a sua experiência de vida, o aluno tem ele como um espelho e isso funciona dentro da sala de aula. E funciona na vida, no dia a dia” (Professor 01); “Eu trabalho muito a questão do valor do outro, do sujeito e buscar perceber que esse outro pode construir junto comigo, pensando diferente um caminho melhor para viver harmonicamente em paz” (Professor 05). Especificamente, quanto à questão das ‘Tradições Religiosas de Matriz Africana’, verificou-se que: “É o afrodescendente. [...] Mas eu trabalho isso, de outra maneira. Eu primeiro, eu trabalho com filme mostrando, depois eu entro com a conversação, depois eu faço uma dinâmica em sala” (Professor 10).

Mas quando você começa a mostrar que o negro, a consciência do negro, em relação ao Transcendente, as histórias que nós contamos dos Orixás, como é que eles viveram, o que é que o negro acha, como pensou. Eles começam a aceitar. (Professor 09)

Desse modo, observa-se que esses professores entrevistados, de várias maneiras, têm desenvolvido em suas práticas didático-pedagógicas formas de construir nos educandos estruturas de pensamentos fundamentadas em perspectiva crítico reflexiva a qual possa viabilizar e sustentar as interações sociopolíticoculturais.

3. O pensar a introdução às tradições religiosas de matriz africana O conteúdo, como aborda Piletti, é “à organização do conhecimento em si, com base nas suas próprias regras […] é um instrumento básico para poder atingir os objetivos”(PILETTI, 2004, p. 66). Desse modo, há diversas maneiras sobre as quais podem ser pensadas para se estruturar, de uma forma mais adequada, uma introdução dessa parte do conteúdo relativo à ‘Função e Valores das Tradições Religiosas’, que diz respeito ao assunto ‘Tradições Religiosas de Matriz Africana’. Na práxis, constata-se que uma quantidade significativa de educandos já chega à sala de aula do primeiro ano do Ensino Fundamental com concepções perpassadas por preconceitos e discriminações quanto à cultura afrodescendente. O que também se reflete, consequentemente, na maneira como vários educandos repetem jargões depreciativos ditos pelos adultos, como: tá amarrado, chuta que é 184

macumba, isso é o capeta, isso é demônio, entre outros; ao deparar-se com algum contato que expresse a religião e/ou a religiosidade afrodescendente. Nessa faixa etária, suspeita-se que ir de encontro a essas concepções introjetadas e/ou absorvidas naturalmente por qualquer uma dessas crianças – a partir de um contexto tão marcante como é o das comunidades as quais elas encontram-se relacionada – é algo que pode gerar tanto um mal estar, devido alguma interpretação equivocada pelos pais e/ou responsáveis pelas crianças, como também, gerar um (s) efeito (s) contrário (s), os quais ao invés de desenvolver de maneira positiva fundamentos éticos relacionados ao respeito, a alteridade, consolidem o fortalecimento da antipatia, da indiferença e rejeição a qualquer tipo de relações e relacionamentos que envolvam aspectos afrodescendentes. Consequentemente, ao se pensar uma introdução mais propícia para esse assunto, dentro do conteúdo do componente curricular do ER, considerando-se a diversidade cultural religiosa como as diferentes formas de demonstrar a crença de cada povo na história da humanidade, é possível seguir sem referências a esses aspectos reproduzidos por crianças marcadas desse modo e apresentar uma dinâmica no processo de ensino/aprendizagem fundamentada por uma prática didático/pedagógica atravessada pela ludicidade. Um bom exemplo desse tipo é a apresentação de um vídeo como recurso didático (em substituição a um texto e/ou cartaz de papel cartolina). Pois, músicas como a do compositor Bita124 tem no dia a dia dessas crianças do primeiro ano, apresentado tanto dentro do contexto geográfico (ir para a África), como as observações que a fauna, a flora e os próprios personagens que representam alguns africanos no vídeo (ao aparecer revestidos por um dado aspecto que aponta para a “religiosidade afrodescendente” – características nativas), envolvem e estimulam as crianças para aprenderem a cantar a música. Música que em si, apresenta muitas outras possibilidades de serem trabalhadas relações de interdisciplinaridade em meios as demais áreas de conhecimento do Ensino Fundamental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Bita e os Animais - Viajar pelo Safari Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9WFYuIu7BKA Acessado em: 13/02/2016

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Assim, conforme identificado pela pesquisa – como a maior resistência dos educandos à assimilação do tema – devido a relevância e importância do assunto ‘Tradições Religiosas de Matriz Africana’, verifica-se que é preciso, ao ser estruturado um modelo de FCPER, dá-se uma atenção mais consistente ao desenvolvimento de metodologias e técnicas de ensino, (PILETTI, 2004, 102 – 142) que possam dar suporte aos professores que atuam profissionalmente no componente curricular de ER. Para que se tenha, durante todo o período do ano letivo, abordagens que sempre acrescentem novos aspectos que desvelem para o educando a diversidade cultural religiosa das muitas nuances da Áfricas. Bem como, na sequenciação dos conteúdos possa-se suportar o educando para superar as dificuldades como identificadas, de modo a ele poder ressignificar e (ré) apropriar dentro das suas leituras e interpretações a abrangência das diferentes formas de demonstrar a crença de cada povo na história da humanidade.

REFERÊNCIAS DAMASCENO, Sidney A. da C.; GOMES, Eunice S. Lins. Formação Continuada de Professores de ER: teoria e prática na sala de aula. Congresso Nacional de Educação, 1., 12 a 20 de set. 2014, Campina Grande. Anais I CONEDU (Congresso Nacional de Educação). Campina Grande: Realize, 2014. Volume 1, Número 1, ISSN 2358-8829 Disponível em: http://www.editorarealize.com.br/revistas/conedu/trabalhos/Modalidade_1datahora_ 13_08_2014_18_37_37_idinscrito_32539_4e1021cf3006a76de0029544ae7a3582. pdf Acessado em: 20/11/2014. GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1994. HOLANDA, Ângela Maria Ribeiro. A formação de professores no ensino religioso. In: JUNQUEIRA, Sergio A., WAGNER, Raul. (Org.) O ensino religioso no Brasil. – 2. ed. ver. e ampl. – Curitiba: Champagnat, 2011a. (Coleção Educação: religião; 5).

MORAES, Roque; GALIAZZI, Maria do Campo. Análise textual discursiva. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2011, 244 p PILETTI, Claudino. Didática Geral. 53º ed., São Paulo: Ática, 2004

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FORMAÇÃO CONTINUADA EM EDUCAÇÃO ESPECIAL NA PERSPECTIVA INCLUSIVA: UM SABER NECESSÁRIO AO PROFESSOR DO ENSINO RELIGIOSO

BASTOS, Ana Cristina de Almeida Cavalcante - UFPB 125 RODRIGUES, Ana Paula Soares Loureiro - UFPB126 RESUMO O presente artigo tem como objetivo o entendimento da importância da formação continuada do professor do ensino religioso em educação especial na perspectiva inclusiva para a aquisição de um aporte teórico/prático acerca das necessidades educacionais especiais do aluno com deficiência em ambiente escolar. Este estudo também propõe refletir que o Brasil, apesar de ser signatário de vários documentos internacionais e possuir um manancial de marcos normativos que garantem a inclusão educacional, ainda vivencia uma caminhada histórica para superação da discrepância existente entre o que está preconizado na Lei e o que de fato acontece em vários espaços da realidade escolar. Destarte, aponta a necessidade do docente possuir conhecimentos específicos em educação especial como forma de melhor trabalhar com esta demanda cada vez mais crescente que está matriculada nas escolas e que como qualquer aluno, requer condições necessárias para não somente a garantia do acesso, mas objetivando a permanência efetiva com sucesso no respeito às individualidades, minimização dos déficits e aumento de suas potencialidades. Como resultado, propõe que a aquisição deste conhecimento permite instrumentalizar o professor para o desenvolvimento de alternativas 125

Possui graduação em Estudos Sociais – UEPB/PB e Pedagogia – UVA/CE – especialidade em Psicopedagogia Institucional – CINTEP/PB– mestre em Ciências das Religiões - UFPB. Pesquisadora do grupo FIDELID - Grupo de Pesquisa Formação, Identidade, Desenvolvimento e Liderança de Professores de Ensino Religioso - UFPB - Professora da Rede Estadual à disposição da Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência – FUNAD - Paraíba, enquanto reabilitadora na Assessoria de Educação Especial – Professora da Educação de Jovens e Adultos da Rede Municipal de João Pessoa – PMJP/PB – e-mail: [email protected] 126

Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB, mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba – UEPB-PB. Supervisora da Rede Municipal de Educação de João Pessoa – PMJP-PB – à disposição da Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência – FUNAD Paraíba Professora da Educação de Jovens e Adultos da Rede Municipal de João Pessoa – PMJP/PB -e-mail: [email protected]

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pedagógicas de inclusão educacional deste público-alvo, como também a reflexão sobre o compromisso ético do professor do Ensino Religioso ser efetivamente um facilitador de uma cultura inclusiva no combate às atitudes de preconceito, intolerância e discriminação, com vistas à garantia da continuidade de uma trajetória escolar, que não somente favorecerá o aluno com deficiência, mas beneficiará toda a comunidade escolar no sentido de vivência de ampliação do olhar de valorização e dignificação da pessoa humana no reconhecimento das diferenças e diversidades existentes. PALAVRAS-CHAVE: Formação continuada. Professor do ensino religioso. Aluno com deficiência. FÓRUM TEMÁTICO: 3 abordagens.

- Diversidade Religiosa, Ensino Religioso: múltiplas

1. INTRODUÇÃO Um mundo em contínua transformação e evolução, totalmente interligado pelas formas de comunicação física e virtual, traz um avolumado número de informações e novos conhecimentos que se modificam assustadoramente em tempo recorder. O professor enquanto eterno aprendiz tem que estar em contínua busca de aquisição de conhecimentos, objetivando solidificar seu aporte teórico e sua prática pedagógica. Por mais que se haja uma formação inicial consistente, é na formação continuada que o professor vai adquirindo aporte teórico e recursos metodológicos necessários para fortalecer e significar a atividade docente. É neste tipo de formação surgida a partir das necessidades prementes do professor em sala de aula que este docente vai buscando respostas às suas perguntas e inquietações e se instrumentalizando para poder realizar a transposição didática entre o saber adquirido na Academia e o repasse desse saber ao alunado em sala de aula. Segundo Chimentão (2009) A formação continuada de professores tem sido entendida como um processo permanente de aperfeiçoamento dos saberes necessários à atividade profissional, realizado após a formação inicial, com o objetivo de assegurar um ensino de melhor qualidade aos educandos.

A formação continuada vai trazendo uma complementação de informações e conhecimentos que permitem promover uma articulação entre as instituições formadoras e as escolas, a partir do momento em que os professores adquirem um conhecimento teórico e levam os saberes adquiridos na prática e assim, construindo e reconstruindo novos saberes com vistas a atender as necessidades do seu alunado. A chegada cada vez maior de aluno com deficiência às escolas regulares em função do avanço das políticas públicas voltadas à inclusão escolar tem requerido do professor a necessidade de formação continuada em educação especial na 189

perspectiva inclusiva para que este possa dominar o conhecimento específico em função das necessidades educacionais da referida clientela. A Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência, documento internacional oriundo da Organização das Nações Unidas – ONU, que trata dos Direitos Humanos das pessoas com deficiência, traz no seu Art. I um novo olhar sobre a definição das pessoas com deficiência, onde também coloca as barreiras encontradas como impeditivas para a participação dessas pessoas na sociedade. Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas. (ONU, 2006)

As pessoas com deficiência física, sensorial ou intelectual já convivem com limitações inerentes à sua condição, mas necessariamente não são estas limitações as únicas determinantes da maneira pela qual estão inseridas num meio social. As barreiras, físicas, comunicacionais e principalmente atitudinais são as grandes responsáveis pela ausência ou minimização do desenvolvimento das potencialidades desse público-alvo. A barreira atitudinal é preponderante para o desencadeamento do preconceito, da discriminação e da exclusão da pessoa com deficiência e por isso, a mais importante de ser combatida. E não existe melhor local para combater essa barreira atitudinal do que a escola, pois este espaço, enquanto elemento meio entre a família e a sociedade e promotora do desenvolvimento humano, torna-se um lócus não somente do desenvolvimento cognitivo, mas da formação de valores dos membros de uma sociedade. É na escola que existem pessoas de todas as crenças, culturas, condições socioeconômicas e concepções de mundo e para tanto, a comunidade escolar deve estar preparada para o desenvolvimento de um pensamento inclusivo com atitudes de acolhimento, abertura, reconhecimento e respeito à diversidade humana. Muitas vezes o aluno com deficiência adentra no ambiente escolar visto como um “problema” que vai demandar uma atenção especial e quebrar uma pseudohomogenia existente. Na realidade, este é um grande insight trazido pela inclusão dessas pessoas que chegam com o estigma de diferentes para fazer mostrar o óbvio: que ninguém é igual a ninguém e por isso todos podem a partir de um convívio harmonioso com a diversidade, sair ganhando com a complementação advinda de uma multiculturalidade. No Brasil apesar de toda uma série de legislações e políticas públicas voltadas para o fortalecimento da educação inclusiva ainda existe uma distância entre o que é normatizado e o vivenciado na prática diuturna no contexto educacional. E para tanto, necessário se faz trazer a reflexão sobre o respeito às diferenças para a sala de aula. É o entendimento que a diversidade não é um problema que afasta, mas uma riqueza que complementa. A Constituição Brasileira (1988) já garante uma sociedade inclusiva e uma educação inclusiva ao afirmar em seu Art. 3º, V que o Estado brasileiro deve 190

“promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” e no seu Art.º 5º explicita que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Bastaria o cumprimento na íntegra desses dois artigos para que a pessoa com deficiência assim como todo e qualquer cidadão fosse reconhecida e respeitada como sujeito de direitos em sua integridade. No tocante aos aspectos educacionais a própria Constituição garante como um dos seus princípios básicos no Artigo 206, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, pois não é somente o acesso que é solicitado, uma vez que o aluno não pode ser apenas um número de um dado estatístico, mas um ser humano que como tal, tem no direito à educação uma condição inerente ao estado de ser humano. Já no Artigo 208 encontra-se assegurado o ensino fundamental, obrigatório e gratuito como também o atendimento educacional especializado aos “portadores de deficiência”, preferencialmente na rede regular de ensino. Atualmente o termo “portador” não é mais utilizado, pois se entende que ter deficiência faz parte de uma condição inata ou adquirida da pessoa humana. Já o verbo “portar” significa carregar e ninguém porta ou carrega uma deficiência. Foram as próprias pessoas com deficiência que a partir da década de 90 acolheram essa nomenclatura como a como mais correta. (SASSAKI, 2003) Além da Constituição Brasileira, muitos outros marcos normativos são voltados para o exercício de direito das pessoas com deficiência, sendo a ultima delas a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e reúne numa só normativa questões relacionadas ao atendimento, habilitação, reabilitação, saúde, educação, moradia, trabalho, assistência social, previdência social cultura, esporte, turismo, lazer, transporte, mobilidade, acessibilidade, e outros aspectos que favorecem a pessoa em sua totalidade. Inclusive esta Lei modifica outras Leis já ema vigência a exemplo da Lei 7.853/89, Art 1º que agora vigora com nova redação: Art. 8o Constitui crime punível com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência) I - recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência) – (BRASIL, 2015)

As leis brasileiras estão muito claras: não se pode voltar a trás na proposta da educação inclusiva e os alunos público-alvo da educação especial estão chegando cada vez mais às escolas. Destarte, resta trazer para o lócus escolar a discussão e disseminação desta temática. O Ensino Religioso – ER ao sair de uma visão de doutrinação e ensino de religião, amparado nas Ciências das Religiões para a construção de uma identidade epistemológica, pedagógica e científica, busca trabalhar o entendimento do fenômeno religioso, a ligação ao transcendente e a manifestação desse fenômeno em várias culturas e épocas. Ao ter o Ethos como um dos seus eixos organizadores para trabalhar seu bloco de conteúdos enfocando a alteridade, os valores e os limites, torna-se um espaço de diálogo apropriado para refletir não somente a 191

diversidade religiosa, mas a diversidade humana na aceitação da pessoa com deficiência como um sujeito de direitos no ambiente escolar.

1. FORMAÇÃO DOS PROFESSORES PERSPECTIVA INCLUSIVA

DO

ENSINO

RELIGIOSO

NUMA

O professor do Ensino Religioso se depara com o grande desafio de lidar com uma área de conhecimento muito abrangente e que por conta disso exige deste profissional a sua efetiva participação em formações continuadas que referendem sua prática em sala de aula. O professor do ensino religioso não é diferente dos demais no sentido de requerer uma formação que vá além do mero repasse de teorias e métodos. Há uma necessidade premente de se investir numa reflexão teórico-prática onde se apontem caminhos para o desenvolvimento de aprendizagem significativa e prazerosa, fortalecendo a bidirecionalidade do ensino aprendizagem através de uma melhor relação professor-aluno. O processo de formação de professores deve ser pautado pela qualidade e efetividade do trabalho do educador em razão da formação humana com base nos princípios da solidariedade, generosidade, equidade e respeito às diversidades culturais, sociais, políticas, individuais e religiosas dos próprios professores e alunos. (ESCARIÃO, 2013, p.20)

Por lidar com o fenômeno religioso, o professor do Ensino Religioso tem uma propensão maior de já na sua lida diária trabalhar com os princípios da solidariedade, equidade e respeito às diferenças e diversidades. Dessa forma estará mais aberto ao acolhimento do aluno com deficiência em sua sala de aula como um sujeito de direitos, com o qual vai interagir na mesma proporção que os demais e viabilizar a sua interação com seus pares. O aluno com deficiência ainda encontra resistência por parte de alguns professores que se sentem despreparados por não haverem recebido formação específica para lidar com esse alunado. Essa resistência inicial e ou temor pode ser um incentivo para a busca de formação continuada em Ed. Especial. A educação especial é uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades, realiza o atendimento educacional especializado, disponibiliza os recursos e serviços e orienta quanto a sua utilização no processo de ensino e aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular. (BRASIL, 2008)

Os alunos com deficiência encontram-se matriculados desde a educação ao ensino superior e estão em todas as etapas e modalidades de ensino. E a educação especial, antes entendida como um sistema de ensino paralelo foi ressignificada em atendimento educacional especializado ofertado preferencialmente nas salas de 192

recursos multifuncionais, que são espaços de atendimento deste público-alvo no contra turno de sua matrícula em classe comum da regular de ensino. A Educação Especial favorece uma melhora no processo de inclusão escolar ao passo que promove o direito à igualdade e diferença, com vistas a garantir não somente o acesso, mas a permanência desse alunado em ambiente escolar. A disseminação desse conhecimento específico tanto para os professores que atuam nas salas de recursos multifuncionais quanto para os professores de escola comum, tem permitido um desenvolvimento de uma cultura inclusiva, demonstrado com o aumento crescente do número de alunos com deficiência matriculados ano após ano. O Ensino Religioso, respaldado pela Lei 9.475/97 que afirma este componente curricular como parte integrante da formação básica do cidadão e que tem como um dos princípios, o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, por si só já combate preconceito, rótulo e estigma. Portanto o docente dessa disciplina já tem em sua prática pedagógica o trato de lidar com a diversidade religiosa que advém posteriormente da diversidade humana. Mas na realidade, a importância da formação continuada voltada para trabalhar com a diversidade, principalmente no tocante ao aluno com deficiência, faz a diferença na vida de qualquer profissional, principalmente porque o instrumentaliza de um conhecimento teórico que deve ser aliado ao conhecimento prático, efetivo, vivenciado em sala de aula com o alunado.

A formação docente de qualquer professor e dentre eles, o professor do ensino religioso, deve ser muito mais do que um conjunto de informações teóricas sobre sua prática pedagógica. É muito mais ampla do que apenas instrumentalização cognitiva. O professor que tenha uma concepção sobre a necessidade de ensinar a todos os seus alunos, sem preconceito e discriminação, deve estar em busca permanente do seu desenvolvimento profissional porque tem consciência da diversidade humana com a qual terá que se confrontar e dentre ela, deverá buscar uma sólida formação teórica que o faça saber trabalhar com todos os seus alunos e dentre eles, o aluno com deficiência. (BASTOS, 2015, p.156)

Um professor comprometido com sua prática deve sempre buscar estar em contínua formação profissional justamente para poder atender de forma a contemplar a diversidade de seus alunos. Ao participar de formação continuada em educação especial na perspectiva inclusiva, o professor do ensino religioso, terá um conhecimento específico de como lidar com o aluno com deficiência em suas necessidades educacionais especiais, de maneira a desenvolver alternativas metodológicas que favoreçam o ensino à turma toda, incluindo este aluno no processo de ensino-aprendizagem. Ademais, por trabalhar com valores, pode se tornar um interlocutor na defesa dos direitos desses alunos, no direito a uma educação numa escola aberta, plural e equitativa.

Como professor num curso de formação docente não posso esgotar minha prática discursando sobre a Teoria da não extensão do conhecimento. Não posso apenas falar bonito sobre as razoes ontológicas, epistemológicas e políticas da Teoria. O meu discurso sobre a Teoria deve ser o exemplo

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concreto, prático, da teoria. Sua encarnação. Ao falar da construção do conhecimento, criticando a sua extensão, já devo estar envolvido nela, e nela, a construção, estar envolvendo os alunos (FREIRE, 2002, p. 27)

Ao se participar de um curso de formação continuada, principalmente quando se trata da área da educação especial, percebe-se o quanto se faz necessário trazer a teoria para a prática com vistas a ressignificar o olhar sobre o aluno com deficiência na escola, principalmente porque nem todos os docentes buscam esse tipo de conhecimento, apesar de necessário a todos. É o momento em que se pode compreender a riqueza da diversidade e a necessidade de lutar contra o preconceito e a discriminação que ainda incide sobre esse alunado. Ao passo que a educação inclusiva traz à tona a questão da diversidade como algo inerente ao ser humano, demonstra a necessidade de ver cada pessoa como única e singular e detentora de especificidades que devem ser reconhecidas no firme propósito de fazer valer o respeito como uma tônica nas relações interpessoais. E esta diversidade muitas vezes era preterida no ambiente escolar em função de uma homogeneização que tendia a excluir todos os que ficavam fora do parâmetro de normalidade imposto no determinado ambiente. O aluno com deficiência por possuir necessidades educacionais específicas diante de suas limitações, requer um professor que possa primeiramente ter um pensamento inclusivo, que acredite nas potencialidades a serem desenvolvidas e que não se restrinja aos limites que por ventura o aluno possa apresentar. O professor precisa acreditar na possibilidade de ser um agente de empoderamento do aluno que por vezes chega a escola com um sentimento de menos-valia, de descrença em si próprio. Por vezes, o próprio ambiente escolar é restritivo e não possibilita as condições favoráveis para o desenvolvimento do aluno com deficiência em condição de igualdade com os demais alunos. Necessário se faz que o professor se muna de conhecimentos teóricos práticos capazes de fazê-lo ir além de quaisquer barreiras atitudinal, comunicacional e pedagógica que possa existir no ambiente escolar. Muitas vezes as barreiras arquitetônicas por serem mais perceptíveis se transformam em obstáculos e impeditivos mais visíveis de um bom desenvolvimento dos alunos, quando na realidade são as outras barreiras que provocam a edificação do preconceito de maneira mais arraigada.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de todo um aparato legal que garante a inclusão de alunos com deficiência, ainda é fato que nem todos tem acesso a educação, como também ainda não estão incluídos num meio social que respeite as suas limitações e diferenças.

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Uma sociedade inclusiva passa necessariamente por uma escola inclusiva, pois a escola enquanto formadora do desenvolvimento humano precisa promover a quebra de paradigmas, conceitos e atitudes que estão arraigadas acerca do aluno com deficiência, visto muitas vezes com um sentimento de menos-valia ou de incapacidade. Assim, se faz necessário o despertar de uma consciência crítica, de respeito e de valorização de cada pessoa enquanto ser humano, sujeito de direitos. É preciso que se perca a rejeição oriunda do medo de não saber lidar com o aluno com deficiência. E esse medo vai se dissipando a partir da formação continuada em educação especial numa perspectiva inclusiva ao promover um aprimoramento do conhecimento e das praticas metodológicas mais significativas e concretas que não apenas servem para um grupo de alunos, mas para todos, levando ao final o entendimento que todos os alunos são diferentes e que na diferença e na diversidade é que se promove um crescimento quando as relações interpessoais se pautam no respeito às diferenças e diversidades. O professor do ensino religioso ao adquirir conhecimentos específicos sobre as pessoas com deficiência enquanto sujeitos de direitos, terá muito mais propriedade de discutir sobre preconceito, intolerância, discriminação, rótulo e desamor, não somente relacionadas a este público-alvo, mas com todos os partícipes da comunidade escolar. Dessa forma, trabalhará valores de aceitação, solidariedade, justiça, amorosidade, tolerância e compromisso com o bem estar alheio. Isso fará com que a mudança aconteça não somente em sala de aula, mas em todos os espaços da escola e consequentemente na sociedade, pois é nela que os estudantes com e sem deficiência vivem e constroem suas histórias de vida.

REFERÊNCIAS

BASTOS. Ana Cristina de Almeida Cavalcante. A formação do professor do Ensino Religioso: um olhar sobre a inclusão de alunos com deficiência na escola. São Paulo. Fonte Editorial, 2015 BRASIL. A convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência: versão comentada. Brasília: CORDE, 2008, P.28-30. ________Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília DF, 05 out.1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 22/01/2016 _______Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - Corde institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. Brasília, DF, 24 out. 1989. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7853.htm Acesso em 03/11/2015

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_______Lei nº 13.146 de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, 6 de julho de 2015. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2015/Lei/L13146.htm Acesso em 03/01/16 _______ Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Ed. Inclusiva. 2008. Disponível em < http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/p

________ Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997. Dá nova redação ao art. 33 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9475.htm> Acesso em 13/05/2014 CHIMENTÃO, Lilian Kemmer. O significado da formação continuada docente. 4º CONPEF. Congresso norte paranaense de educação física escolar. Universidade Estadual de Londrina. 2009 ESCARIÃO, Glória das Neves Dutra. Formação de professores para o ensino religioso a luz da concepção freiriana de homem. Globalização, Diversidade e Religiosidade-II Volume. Glória Escarião [et al] (Orgs), João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2013 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessário à prática educativa. 25ª Ed. São Paulo: Paz e Terra. 1996. SASSAKI, Romeu. Como chamar as pessoas que tem deficiência? Revista da Sociedade Brasileira de Ostomizados, ano I, n. 1, 1° sem. 2003, p.8-11. [Texto atualizado em 2009] Disponível em < http://proex.pucminas.br/sociedadeinclusiva/Blog:%20Direito%20de%20se%20Difere nte/Como%20Chamar%20as%20Pessoas%20com%20Deficiencia.pdf Acesso em 29/12/15

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Gamificação no Ensino Religioso Nancyellen de Araújo Torres127 Emir Lima Ribeiro Segundo128

RESUMO Partimos do pressuposto de que os jogos digitais despertam a curiosidade das pessoas que tem empenhado seu tempo em frente às telas e de que a tecnologia da educação, na qual diversas disciplinas têm se empenhado na produção de jogos educativos, assim selecionamos a gamificação que é a utilização de elementos de jogos em outras atividades, para ser aplicada na sala de aula do Ensino Religioso-ER. O objetivo de nossa pesquisa é analisar a influência da gamificação na educação voltada para o ensino religioso, que é um tema em grande ascensão, embora seja uma disciplina bastante discutida na atualidade. Sendo essa disciplina obrigatória nas escolas da rede pública e municipal e opcional para os alunos, urge a necessidade da utilização da tecnologia, como melhoria na construção do conhecimento, assim selecionamos a gamificação como uma ferramenta tecnológica pode ser um meio a ser utilizado como forma de aprendizagem. Como forma de investigação a nossa pesquisa é descritiva com abordagem qualitativa e bibliográfica. Como primeiro resultado do estudo, fizemos o levantamento do acervo e buscamos fontes de autores que falam a respeito da gamificação na educação e artigos científicos sobre o uso da tecnologia no ensino religioso.

Palavras-chave: Jogos educativos, Gamificação, Ensino Religioso.

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Graduada em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba e Mestranda pelo departamento de Pós-graduação em Ciências das Religiões pela UFPB. Pesquisa sob orientação da Profª. Drª. Eunice Simões Lins Gomes do Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões. 128 Graduado em Produção Publicitária pela IESP/FATECPB, Pós-Graduando em Desenvolvimento e Design de Jogos Digitais pela Faculdade Estácio de Sá. Pesquisa sob orientação da Profª. Drª. Eunice Simões Lins Gomes do Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões.

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INTRODUÇÃO A Laicidade tem como ideal a igualdade na diversidade e respeito às particularidades. É concebida como um fator que favorece a construção de uma sociedade livre, garantia de liberdade de espírito e da liberdade do próprio homem. Nessa perspectiva a busca pelo estudo do fenômeno religioso em suas diversas manifestações tem sido uma crescente. Nesse sentido, de acordo com USARSKI (2002), não se questiona a verdade ou a qualidade de uma religião, pois o mesmo tem como proposta fazer uma descrição detalhada, o mais abrangente possível, de fatos reais do mundo religioso, um entendimento histórico do surgimento e desenvolvimento de religiões particulares, uma identificação e seus contatos mútuos, e a investigação de suas inter-relações com outras áreas da vida. Partindo desse pressuposto diante do crescimento tecnológico e das trocas de informações em um mundo globalizado, percebemos que diversas culturas tem se expandido com facilidade diante de conhecimentos diferentes proveniente ao avanço tecnológico que tem influenciado diversas áreas de conhecimento, inclusive no que diz respeito ao fenômeno religioso. Diante dessa realidade com a crescente desses estudos, o ensino religioso tem sido de grande importância nas escolas, para o desenvolvimento do educando frente a essa realidade. A tecnologia tem trazido conhecimentos culturais de todo o mundo, sendo esses acrescidos ao estudo de diversas áreas inclusive da educação que tem um papel fundamental na construção do ser humano. Percebendo essas rápidas mudanças em virtude do avanço tecnológico e suas influências na educação, sendo o Ensino Religioso-ER uma disciplina obrigatória nas escolas da rede pública e municipal e opcional para os alunos, surgiu o seguinte questionamento: Como tem sido utilizada a tecnologia, como melhoria na construção do conhecimento? Frente a essa problemática o objetivo da nossa pesquisa é: analisar a influência da gamificação na educação voltada para o ensino religioso, que é um tema em grande ascensão, embora seja uma disciplina bastante discutida na atualidade.

1. ENSINO RELIGIOSO E TECNOLOGIA NA EDUCAÇÃO Diante da formação plena do cidadão, tendo o respeito às diferentes culturas e crenças religiosas, contribuindo para uma sociedade harmoniosa com os mais diversos grupos, o Ensino Religioso constitui como disciplina curricular e área de conhecimento, visando o estudo do fenômeno religioso em suas diversas manifestações.

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O objeto das Ciências das Religiões consiste no estudo e na interpretação do fenômeno religioso em suas diversas manifestações, com base no convívio social dos indivíduos, constituindo-o objeto de estudo do conhecimento na diversidade religiosa e cultural, proporcionando um espaço de respeito, tendo como pressuposto o caráter científico. Com o avanço de novas possibilidades, alguma tensão surge à conquista de um cidadão do mundo que procura não perder as raízes de sua realidade local, participando vivamente no cotidiano do país e das comunidades, ao mesmo tempo considerando um horizonte internacional, o que implica compreender as diversidades dos povos, ao mesmo tempo atentos para não correr o risco de se perder no pluralismo, enriquecido somente se o particular, individual, for cultivado, a fim de haver uma intensa interação cultural. (JUNQUEIRA E WAGNER, 2011, p 46).

Ao pensar no fenômeno religioso no mundo contemporâneo, percebemos a velocidade com que as trocas culturais são vivenciadas, temos caminhado em processo intenso de globalização, que por meio dele existe essa possibilidade de troca de conhecimentos, de informações, trocas culturais, educacionais, entre outras. Sabemos que há uma crescente no fenômeno religioso por toda a parte, com a modernidade e o avanço da tecnologia, através da internet, percebemos a velocidade das trocas de informações que proporcionam uma fusão de culturas e conhecimentos sobre elas. Nossa sociedade tem vivido o fenômeno da globalização, para uns ela é cruel, para outros, ela é promissora, quanto mais avançamos, maior é a rapidez das transformações que a tecnologia nos proporciona. Segundo Miele (2011) “Temos hoje a necessidade de conhecer em profundidade, as várias mensagens que estão disponíveis no mercado simbólico cultural”. (p 21) Nesse sentido percebemos que a tecnologia tem se tornado uma ferramenta intermediadora de extrema importância para a educação, tendo como foco a relação com o aprendizado. Percebemos que a mesma se adequa rapidamente ao processo de ensino, pois possui fortes características de comunicação, visto que o ensino e a aprendizagem possuem uma perfeita relação com a comunicação. Durante os últimos anos experimentamos um avanço tecnológico grandioso, as novas gerações já nascem em meio a esse avanço e fica cada vez mais evidente “a insatisfação dos alunos em relação a aulas ditas "tradicionais", ou seja, aulas expositivas nas quais são utilizados apenas o quadro-negro e o giz” ROCHA & SILVA (2015), a tecnologia tem modificado a forma de se adquirir o conhecimento.

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A tecnologia da educação vem se apresentando como época de rompimento do paradigma tradicional e o surgimento do construtivismo, que por sua vez tem como objetivo a participação do sujeito na construção do seu próprio conhecimento, através de suas interações, com isso, segundo Tarouco (2004) a capacidade do educador e o conteúdo dos livros é uma construção necessária, mas não completa, ou seja, não é suficiente para garantir a aprendizagem, pois esse processo constitui uma assimilação, construção de conhecimentos e habilidades, mas também é necessário uma construção intransferível, que é uma construção individual. O computador segundo Papert (1994) é uma interface facilitadora de informação com a maior influencia para os educandos nas escolas. Essa possibilidade não é algo distante da nossa realidade, pois percebemos que quase todas as escolas hoje em dia possuem laboratórios de informática, porém infelizmente muitas vezes não sendo utilizados. Além disso, segundo Rocha & Silva (2015) faz-se necessário que o professor se aproxime do aluno trazendo para sala elementos que fazem parte de sua cultura, fato esse já observado por alguns profissionais da educação, a exemplo do estado de Goiás e conforme descrito no seu Currículo em Debate – Goiás (2009): Os adolescentes e jovens, de uma forma ou de outra, estão ligados e influenciados pelas novas tecnologias de informação e comunicação e estas podem ser consideradas como integrantes da cultura juvenil, ou seja, estão no imaginário dos estudantes, mesmo que seja apenas no desejo de possuí-las e dominá-las. Currículo em Debate – Goiás (2009, p.37).

Nesse sentido, segundo Santos apud Santaella (2010) os jogos digitais são aqueles que passam pelo meio tecnológico, proporcionando uma maior influencia e o despertar pela interação. Os jogos digitais tem sido, segundo Branca (2011), um espaço de discussões em diversos campos do conhecimento, pois a sua natureza é interdisciplinar, para o desenvolvimento de um jogo digital podemos dizer que é complexo, pois é necessário pessoas de diversas áreas para desenvolver, podemos citar, um roteirista, animador, programador, entre outros. Embora tenha essa complexidade, é possível perceber que a indústria de jogos digitais tem atingido um grande crescimento durante os anos, esse alargar tem despertado os pesquisadores e estudiosos a se mover e canalizar esse meio tecnológico para a sala de aula. Ao trazer os jogos digitais para a escola e usando esse meio tecnológico, podemos dizer que esses são jogos educacionais, que possuem essa única intenção.

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Diante dessa realidade surge um método que por meio de elementos de jogos proporciona um maior engajamento, uma socialização, gerando uma motivação e despertando a criatividade. Esse novo método é conhecido como gamificação, que segundo Vianna, et al (2013) corresponde ao uso de elementos de jogos com o objetivo de despertar um maior envolvimento entre o público exclusivo, nesse sentido a sala de aula.

2. GAMIFICAÇÃO NA EDUCAÇÃO E ENSINO RELIGIOSO Proporcionando uma interação lúdica, a gamificação vem para incentivar uma participação maior do educando, gerando um diálogo, uma interação; embora tenha esse sentido é “errado pensar que se trata de uma ciência que se debruça sobre o ato de criar jogos, mas sim uma metodologia por meio da qual se aplicam mecanismos de jogos a resolução de problemas ou impasses em outros contextos.” (VIANNA, et al, 2013, p.17). Segundo Inácio, Maria & Ribas (2014) os jogos possuem grande capacidade de engajamento e motivação, podemos aplicar esse potencial à educação e estabelecer uma conexão eficiente entre o professor (criador) e o aluno (usuário). Sobram exemplos do poder do engajamento dos jogos, Vianna et al (2013) relata a frequência que ouvimos das pessoas a respeito do vício dos jovens: Evidências mais contundentes desse padrão de comportamento intrigante são a morte de um tailandês em 2012, após supostamente ter passado mais de 40 horas consecutivas jogando Diablo III, ou do norte-americano que perdeu o parto do próprio filho por não conseguir resistir à tentação de retomar sua saga no World of Warcraft ao voltar em casa para buscar a mala que deveria ter sido levada ao hospital.

Embora a gamificação sejam um fenômeno moderno, algumas iniciativas já fazem conexões dela com a educação, Alves et al (2014) trás um exemplo de utilização da gamificação em estudos realizados pelo Grupo de Pesquisa Comunidades Virtuais (GPCV) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). No relato de Alves et al (2014) o grupo aplicou uma atividade nominada Gamificação na Educação nos de Centros Juvenis de Ciência e Cultura, uma iniciativa do governo da Bahia para melhoria da educação do ensino médio do estado. Essa experiência foi voltada a formação de professores das disciplinas de: biologia, história, designer, pedagogia, matemática, turismo, artes, letras e música, onde obteve resultados significativos: Os resultados alcançados com este estudo apontam para uma ressignificação do conceito de gamificação em cenários educacionais, 201

que passam a ser compreendidos como estratégias metodológicas estruturadas mediante a mecânica dos games, não implicando necessariamente na mediação dos jogos digitais. Se por um lado, a gamificação é capaz de envolver o aluno na resolução de problemas reais, ajudando-o a dar significado para aquilo que estuda, de outro possibilita que o professor elabore estratégias de ensino mais sintonizadas com as demandas dos alunos, apropriando-se da linguagem e estética utilizada nos games para construir espaços de aprendizagem mais prazerosos. Alves et al (2014 p. 90)

Percebemos a importância do uso da tecnologia e em especial da gamificação na construção do conhecimento, seja ela por parte do educando, criando engajamento e motivação para o estudo, seja ela por parte do educador, que passa a falar a língua do educando, se aproxima de sua cultura e propicia a criação de um ambiente educacional mais prazeroso, algo que urge em acontecer na educação atual. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nos estudos realizados, a tecnologia tem proporcionado às diversas disciplinas da educação uma relação crescente entre educando e educador, possibilitando assim, um maior crescimento; a gamificação como um método veio ser esse facilitador. Embora seja um estudo atual, assim como a tecnologia tem crescido rapidamente, entretanto no que diz respeito ao Ensino Religioso não podemos dizer o mesmo. Embora a gamificação seja um método que tem crescido e muito pesquisado em diversas áreas inclusive na educação conforme verificamos, percebemos que até 2015 a utilização da gamificação no Ensino Religioso ainda caminhava a passos lentos, ao investigarmos esse processo por fontes bibliográficas não identificamos a utilização desse método em sala de aula. Dada brevidade e objetivo deste estudo, essa constatação se torna satisfatória, visto que deste ponto em diante se abre uma porta para novos estudos e utilização do método da gamificação aplicado ao ensino religioso.

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O imáginário na narrativa da obra As crônicas de Nárnia: uma perspectiva para a formação do símbolo religioso na criança.

Rômulo Anderson Matias Ferreira*

RESUMO O imaginário encontra-se reproduzido na literatura para crianças. A elaboração de uma obra literária vem, nesse ensejo, exercer e demonstrar a relação existente entre o homem e o sagrado, mesmo que de formas suaves. A relação sacro-literária produz elaborações na mente humana a partir dos símbolos reconhecidos culturalmente, dos conhecimentos compartilhados e das transformações do “si mesmo” propostas pela dinâmica da narrativa simbólica. Nossa pesquisa é descritiva e bibliográfica, e como método de análise foi selecionado a hermenêutica simbólica de Durand. Na obra literária de C. S. Lews as Crônicas de Nárnia, objeto da nossa pesquisa, o espaço sagrado e o tempo sagrado tem um valor existencial para a criança, personagem que interpreta o homem religioso, dimensionado no enredo. Nesse espaço e tempos sagrados da narrativa há uma convergência para a constituição do simbolismo religioso, e do imaginário, ambos em formação na criança e que recebem contribuições confluentes cujas perspectivas são plenamente captadas e aprendidas. O enredo que perpassa toda a narrativa está entretecido de elementos mitológicos, a priori, embora ficcionais, os quais reproduzem aspectos do imaginário que, num dado sentido, buscaram por meio da ação humana, no exercício das suas faculdades, dar sentido ao mundo. Ponderamos que a ética presente na narrativa, bem como as imagens simbólicas que se entrelaçam no enredo das Crônicas de Nárnia, fornecem termos que constituem a formação do símbolo religioso na criança. Esses aspectos simbólicos são portadores de conceitos sagrados, a partir do mito na narrativa, os quais encontram aplicação para o ensino em perspectiva religiosa para a criança. Palavras-chave: simbólica.

Imaginário.

Símbolo

religioso.

Literatura

infantil.

Narrativa

1. INTRODUÇÃO O título “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, é o segundo de sete volumes que compõem As Crônicas de Nárnia, escrita por C. S. Lewis entre os anos de 1949 e 1954, assim sendo, este segundo livro foi publicado em 1950. Clive Staples Lewis, 204

comumente mais referido como C. S. Lewis, nasceu em Belfast, atual Irlanda do Norte, 29 de novembro de 1898, e faleceu em Oxford, Inglaterra, 22 de novembro de _________________ * Mestrando em Ciências das Religiões vinculado ao PPGCR/UFPB. Graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Betel Brasileiro. Bacharel em Ciências Contábeis pela UFPB. E-mail: [email protected]

1963.

Além

de

teólogo

cristão

anglicano,

universitário, escritor, romancista, poeta, crítico

C.

S.

literário.

Lewis Durante

foi sua

professor carreira

acadêmica, foi professor e membro tanto da Universidade de Oxford, como da Universidade de Cambridge, ambas na Inglaterra. O sagrado, em suas múltiplas formas de ser conhecido ou se dar a conhecer ao homem, sempre será percebido pelo homem como uma realidade totalmente diferente das realidades presentes “naturais”, assim nos expõe Eliade (2010). E entre as muitas possibilidades de definir o sagrado, pode-se por hora apresentá-lo como sendo tudo que se opõe ao profano. Podemos nos aperceber, a partir disso, que o homem na história é constituído de duas modalidades afetas ao seu ser, a saber, o sagrado e o profano (ELIADE, 2010, p. 20). O homem religioso compreende que a experiência do sagrado promove a fundação ontológica do mundo. Por consequente, o espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso. É nesse espaço que o homem se esforça por estabelecer-se no centro do mundo, pois para viver no mundo é preciso fundá-lo e nenhum mundo pode nascer do estado de “caos” e da relatividade do espaço profano, a saber, o espaço exterior ao espaço sagrado. É partindo dessa premissa que Eliade afirma que a descoberta ou a projeção de um ponto fixo – o Centro – equivale à criação do mundo, a cosmogonia. A literatura infanto-juvenil produzida por C. S. Lewis, acaba por relacionar-se com o sagrado, mesmo que não explicitamente. Tal relação sacro-literária produz efeitos na mente humana elaborando conhecimentos e propondo transformações, quando necessário, para que seja construída uma experiência vivida pelo homem. É então visível a construção de uma identidade do homem no contado com o sagrado e consigo mesmo, alternando-se ora pelo trajeto da racionalidade, ora invocando o transcendente para além da razão. Partindo dessas noções preliminares, discorreremos sobre “As crônicas de Nárnia: o leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, obra de C. S. Lewis, escritor inglês do 205

século XX. O enredo que perpassa toda a narrativa, está entretecido de elementos ficcionais, a priori, os quais reproduzem aspectos do imaginário que num dado sentido, buscaram por meio da ação humana no exercício das suas faculdades, dar sentido ao mundo. Daí ser necessário sobrepor os limites da razão e exercer capacidade de imaginar. Pela imaginação, observaremos no texto em fragmento que o autor, e o leitor atribuíram e atribuirão sentido ao mundo. Eis uma função que a narrativa nos apresentará: o imaginário que a permeia nos possibilita o exercício de dar significado ao mundo, valendo-se para tal dos símbolos nela existentes. Nesse sentido, como metodologia, buscamos fundamentos na a senda hermenêutica da Teoria do Imaginário, de Gilbert Durand.

2. INTERDISCURSIVIDADE E EXPOSIÇÃO DA ÉTICA NA NARRATIVA

A ética na narrativa é introduzida por um interdiscurso em que se observa a oferta sacrificial substitutiva, como instrumento da redenção do indivíduo, que Aslam realiza em negociação com a feiticeira. Fica estabelecida neste episódio uma aproximação intertextual implícita com o relato do sofrimento vicário (substitutivo) que o Cristianismo apresenta quando Jesus Cristo decide ser submetido ao sofrimento da morte em lugar do homem pecador, que por direito deveria ter sua existência dada ao adversário de Deus, Satanás. Após a negociação, fato relatado no capítulo seguinte, Aslam, o leão, Reicriador de Nánia, é levado “como ovelha muda que diante dos seus tosquiadores fica calada”, como alude o texto do profeta judaico Isaías anunciando o sofrimento do messias. O personagem se dispõe a ser sacrificado em lugar de Edmundo como cumprimento do rito antigo e assim “poder redimir a traição da criatura humana” agindo “para sossegar a Magia Profunda” (LEWIS, 2009, p. 171). O problema, fator de crise na narrativa, se traduz em como redimir e empoderar os Filhos de Adão (Pedro e Edmundo) e das Filhas de Eva (Suzana e Lúcia). Como livrá-los do alcance da feiticeira, uma vez que ainda não tinham sido consagrados e para agravar sua vulnerabilidade, Edmundo tinha cometido uma transgressão à Magia Profunda do reino de Nárnia, sendo então necessária sua morte pelas mãos da feiticeira? A narrativa não nos encaminha para uma aporia, mas nos direciona para uma solução que passa por um dilema ético: é aceitável, justo, cabível que um inocente sofra punição em lugar do culpado? O capítulo 206

catorze do livro mostra o sacrifício voluntário – que inclusive constava da Escritura da Magia Profunda – de Aslam traz a solução para a crise da narrativa. A narrativa contém aspectos da ética que envolvem princípios de lealdade, liderança, redenção e escolha entre bem sobre o mal. Edmundo pretere o relacionamento fraternal por bens recebidos que lhe proporcionam prazer, os manjares turcos, a tal ponto de em momentos anteriores da narrativa ter se disposto a mentir para eles conduzindo-os ardilosamente ao recanto da feiticeira. A redenção descrita na narrativa envolve a disposição voluntária de Aslam, primeiramente em reintegrar Edmundo ao relacionamento com os demais e, depois, ao se dispor para substituir o quarto irmão para satisfazer à invocação do cumprimento da Magia Profunda, feita pela feiticeira que renunciou ao sangue de Edmundo ao receber de Aslam a promessa de que a vida do leão ser-lhe-ia dada em troca. Interessante notar que a Magia Profunda, norma mística que rege as relações de domínio em Nárnia, é conhecida plenamente por ambos os antagonistas de poder em Nárnia: o leão Aslam e a feiticeira Jadis. E ele afirma que não pode negarse a permitir que sangue seja derramado como exigência para satisfazer à transgressão do menino Edmundo. Os irmãos são criados distantes de seus pais, por motivo da segunda guerra mundial, o que acentua em seus comportamentos o exercício da decisão. E a escolher entre o bem e o mal, entre crer e não crer, entre satisfazer-se ou abnegarse, tornam-se trilhas comuns onde suas escolhas trafegam. Atitudes como a postura inconveniente de Edmundo ridicularizando sua irmã menor Lúcia sobre a existência do Reino de Nárnia, mesmo sabendo da verdade, passando pela opção de dar os irmãos à feiticeira, como condição para obtenção de recompensa individual, chegando a lutar pessoalmente contra a feiticeira para proteger a vida do irmão Pedro, mostram a observância de uma ética admitida no Reino imaginário de Nárnia.

3. O IMAGINÁRIO COMO ACESSO PARA O SAGRADO

A narrativa possui uma forte sequencia de imagens que se dinamizam no decurso do enredo, imagens estas que embora com um referencial concreto no mundo, requerem do leitor uma derivação de significados possíveis no mundo imaginário. Assim Gomes nos expõe que

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“a consciência de duas maneiras de duas maneiras de representar o mundo: a primeira é através da imaginação reprodutora que age evocando objetos conhecidos de vivências passadas (...) a segunda maneira é através da imaginação criadora, que se refere ao devaneio, à invenção de outras imagens, à criação de fantasias, que são construídas por síntese de imagens” (GOMES, 2013. p. 20) .

Desta feita, quando entendemos que o ser humano é um ser que imagina e que vive atribuindo significado às coisas, um leitor se deparará no enredo, por exemplo, com um guarda-roupa que concretamente guarda casacos, mas que ao se permitir viver a infância junto com a personagem de Lúcia, tal leitor não terá a menor dificuldade em utilizar o guarda-roupa como portal para o mundo imaginário de Nárnia. Para Eliade, tempo sagrado é o lapso em que o homem evidencia seu desejo de aproximação com os deuses. Restabelecê-lo equivale a tornar-se contemporâneo dos deuses e, portanto, viver na presença deles, mesmo que de forma misteriosa, uma vez que nem sempre visível. Assim a situação que o homem deseja reintegrar na sua intencionalidade de recriar o tempo e espaço sagrados é a situação primordial em que os deuses e os antepassados míticos estavam presentes, em vias de criar o mundo, organizá-lo e ainda de revelar aos homens os fundamentos da civilização. Assim é que é possível ver a obsessão ontológica, que aliás pode ser considerada uma característica essencial do homem das sociedades primitivas e arcaicas. Porque, em suma, desejar restabelecer o Tempo da origem é desejar não apenas reencontrar a presença dos deuses, mas também recuperar o Mundo forte, recente e puro, tal como era in illo tempore. É ao mesmo tempo sede do sagrado e nostalgia do ser. (ELIADE, 2010. p. 84)

Nessa perspectiva, Eliade vem enuciar que “a experiência religiosa pressupõe uma bipartição do mundo no sagrado e no profano”, sendo “... o profano transmutado no sagrado pela dialéctica da hierofania”. (1969, p. 159) Os irmãos nutriam o desejo de estar em Nárnia e encontrar Aslam, o rei-criador, o que demonstra uma condição existencial de busca pela dimensão do sagrado, do real, num espaço sagrado – os domínios de Nárnia, em um tempo sagrado – sua infância e adolescência, utilizando-se de objetos sagrados que receberam como reis e rainhas de Nárnia. Viver na presença de Aslam é equivalente a ser contemporâneo dos deuses na origem das coisas quando o caos fora ordenado pela Palavra criadora, pelo modelo exemplar. Do lado de cá do guarda-roupa, na Inglaterra em guerra, estava o profano, o comum, o não-real. Adentrar o guarda-roupas era cruzar 208

os limites para estar no espaço sagrado de Nárnia onde lhes era dado pela divindade – Aslam – o poder de governar. Os personagens e elementos presentes na narrativa têm uma gama de simbolismos que apontam para significados sobre o mundo infantil. Durand apresenta que “de todas as imagens, com efeito, são as imagens de animais as mais frequentes e comuns. Podemos dizer que nada nos é mais familiar, desde a infância que as representações animais.” (2012, p. 69). Tal é assim que o enredo apresenta animais falantes como um leão, castores e lobos. Observamos que o leão, Aslam, traz a característica de um símbolo teriomórfico que, conforme apresenta Durand, ligado à animalidade angustiante sob várias formas, desempenhando um papel do símbolo da mordicância, aquele devora, que despedaça (2012, p. 87), tendo sua semelhança com o Cronos astral, da mitologia grega, que devorava seus filhos, e que nesse enredo devora, despedaça a malignidade da feiticeira, a qual inflige ao reino o frio e escuridão. Outros elementos do imaginário que permeiam a narrativa são as armas que os irmãos possuem: flechas, espadas, facas. Essas imagens estabelecem uma rede “na qual o sentido é dado na relação entre elas; as imagens organizam-se com certa lógica e estruturação, de modo que a configuração mítica do nosso imaginário depende da forma como arrumamos nele nossas fantasias” (GOMES, 2013. p. 13). Nesse sentido, Durand (2012, p. 134) afirma que “a flecha vem substituir o símbolo natural da asa. Porque a altura suscita mais que uma ascensão, suscita sobretudo um impulso [...] pela assimilação do raio, a flecha acrescenta os símbolos da pureza aos da luz, a retidão e a instantaneidade”. De forma que a imagem do herói está necessariamente vinculada às armas que o permitem vencer os dragões e seus inimigos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A narrativa recortada do livro “As crônicas de Nárnia: o leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, contém elementos que apontam para a tessitura do sagrado na literatura contemporânea. Aspectos de caos, morte, heroísmo e redenção são presentes em elementos e personagens que exercitam a imaginação simbólica por meio dos seus arquétipos relacionados. O mundo de Nárnia é espaço sagrado é interpretado como o mundo do mito, constitui-se num “mundo dramático – um 209

mundo de ações, de forças, de poderes conflitantes (...) Tudo o que é visto ou sentido está rodeado de uma atmosfera de alegria ou pesar, de angústia, de excitação, de exultação ou depressão.” (CASSIRER, 2010, p. 128). Na narrativa fica exposto o mito da realidade sagrada, cujos personagens desejam participar do Ser que está separado do profano, não fundado pelo mito. O espaço sagrado estabelecido ontologicamente – por Aslam – serve de modelo exemplar para que as crianças se tornem reis e rainhas.

A partir de uma

hermenêutica do imaginário, a obra em questão tem possibilidades de ser trabalhada na constituição do simbolismo religioso na criança que imerge nesta obra da literatura infantil. Aspectos de caos, morte, heroísmo e redenção são presentes em elementos e personagens que exercitam a imaginação simbólica por meio dos seus arquétipos relacionados. O mundo de Nárnia é espaço sagrado é interpretado como o mundo do mito, e que, portanto, pode apontar sentido para a vida. Suas perspectivas e pressupostos ético-religiosos possibilitam a compreensão do sagrado e uma reflexão sobre a aspiração humana em ser dele participante por meio do imaginário fortemente presente na dinâmica da narrativa. As imagens simbólicas e a ética da narrativa permitem a criação de conteúdos para aplicação na formação do símbolo religioso e uma abordagem didática no ensino infantil.

REFERÊNCIAS CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. 2ª. ed. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes, 2012. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 4ª. ed. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes, 2012. ELIADE, Mircea. Origens: história e sentido na religião. Lisboa: Edições 70, 1969. _______. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3ª. ed. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes, 2010. GOMES, Eunice S. L. Um baú de símbolos na sala de aula. São Paulo: Paulinas, 2013. LEWIS, C. S. As crônicas de Nárnia. 2ª. ed. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes, 2009.

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A criação do ser humano em re-creação: Técnica didático-pedagógica para Ensino Fundamental-I à luz de Pestalozzi e PCN-ER

Linda Siokmey Tjhio Cesar Pestana129 Fabricio Possebon130

1. Introdução

O processo de aprendizagem é facilitado pelos sentimentos e sensações positivas. As ações simbólicas dos ritos que rememoram mitos cosmogônicos, participam da aprendizagem cuja linguagem simbólica precede a razão discursiva do ser (ELIADE, 2002, p. 23-52). “Por ocasião da reatualização dos mitos, a comunidade inteira é renovada, ela reencontra as suas ‘fontes’, revive as suas ‘origens’. ” (ELIADE, 1994, p. 37). Traçamos como metodologia, a pesquisa descritiva, bibliográfica e de campo com abordagem qualitativa e como fundamentação teórica, os estudos de Pestalozzi. O objetivo da nossa pesquisa consiste em proporcionar um espaço de acolhimento lúdico e solidário na sala de aula de ER que favoreça a aprendizagem, o diálogo, a expressão verbal e corporal, sobretudo, a integração dos 129

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões – PPGCR/UFPB, Especialista em Aconselhamento e Psicologia Pastoral – EST, Bacharel em Teologia – FACETEN, Cirurgiã-Dentista – FOUSP, Terapeuta Comunitária Integrativa – ABRATECOM, Capacitada em Prevenção do Uso de Drogas – UFSC/SENAD, Participante do Grupo de Pesquisa: Religiões, Identidades e Diálogos – UNICAP. 130

Doutor em Letras – UFPB. Mestre em Letras - USP. Coordenador da Graduação (Licenciatura e Bacharelado) em Ciências das Religiões e professor associado do Departamento de Ciências das Religiões, Centro de Educação – UFPB. Atua nos Grupos de Pesquisas SACRATUM - Hermenêutica filosófica e literária em diálogo com o estudo do sagrado (UFPB/CNPq) e RAÍZES - Religiões mediúnicas e suas interlocuções (UFPB/CNPq). Atua também no Curso de Licenciatura em Letras/Libras, modalidade a distância, e nos Programas de Pós-Graduação em Letras (mestrado e doutorado) e Ciências das Religiões (mestrado e doutorado).

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educandos consigo mesmos, com os colegas, com o educador, com o espaço que habitam e com o transcendente.

Através de atividades simbólicas lúdico-criativas, estabelecem-se em tempo e espaço ordinários, momentos organizados e agradáveis de encontros, vínculos e socialização que alteram a emocionalidade e promovem uma vivência mítica na dimensão imaginativosimbólica. Essa experiência possibilita a conscientização, o sentido interior, a congruência, a mobilização, a expressão do imaginário e a realização da atividade humana com olhar e escuta revitalizados e mais conectados com a existência humana imanente e transcendente (MARDONES, 2006, p. 159-179). Segue-se uma proposta didático-pedagógica baseada no conceito fundamental de Pestalozzi (sentir e fazer), associado a um rito de rememoração do mito cosmogônico. Através do eixo temático 2.2.2. dos PCN-ER,131 reproduziremos de forma criativa e lúdica a narrativa da criação do ser humano, conforme as Escrituras Sagradas (Gênesis 1,26; 2.7); e pretendemos observar a luz invadindo o olhar do pupilo, que a partir da escuridão vazia e sem forma da massa de modelar, faz surgir a si mesmo como um ser rico em significados. Parafraseando Nasser (2003, p. 16), é o mito da criança organizando o caos.

2. Problemática

Segundo Pestalozzi (2015), a aprendizagem é facilitada pelos sentimentos positivos e pela ação: "A vida educa. Mas a vida que educa não é uma questão de palavras, e sim de ação. É atividade". A vivência de sentimentos de amor, segurança e afeto, presentes num lar ideal e numa sala de aula, despertam o processo autônomo e natural de aprendizado que conduz o indivíduo à realização moral e à religiosidade, conforme seu estágio de desenvolvimento, habilidades e necessidades (FERRARI, 2015). Assim, a iconografia proposta como atividade pedagógica, favorece as várias relações do indivíduo, de modo a expressar e ensinar sentidos e significados na história, na cultura e no pensamento (MUELA, 2012, p. 11-35). Além disso, por ser subjetiva, a arte une o significante ao significado como um discurso carregado de experiências da realidade fenomenológica e hermenêutica do artista, inclusive, na percepção do sagrado e do eterno (BORAU, 2008, p. 18-23, 33). Conforme Nasser (2013), a linguagem simbólica é ponte que une almas, mundos, 131

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS.

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pensamentos, emoções, o que se conhece e o indizível. Contém energia e força próprias para criar e ressignificar as lembranças, a história e a esperança de uma pessoa composta de corpo físico, psiquismo e espírito. Ao reconhecer os símbolos das crianças, valoriza-se sua existência e individualidade; estimula-se a realização moral, a religiosidade, as suas relações consigo mesmas, com os colegas, com o ambiente, com o transcendente e, portanto, com a vida escolar.

3. Objetivos

3.1. Objetivo geral:

Proporcionar um espaço de acolhimento lúdico e solidário na sala de aula que favoreça a valorização do ser humano e o processo de aprendizagem.

3.2. Objetivo específico (Os educandos e as educandas serão capazes de):

3.2.1. Reconhecer e valorizar a individualidade de cada colega, pela promoção de diálogo: escuta, expressão verbal e artística. 3.2.2. Sentir alegria, companheirismo e acolhimento no espaço escolar. 3.2.3. Participar de atividades criativas que estimulam a aprendizagem e o desempe-nho escolar.

4. Metodologia:

Em semelhança à técnica pedagógica proposta por Gomes (2013), essa proposta visa a aprendizagem através de símbolos. Após um momento social e lúdico de acolhimento e reforço da identidade (expressão verbal e jogo da memória), cada criança reproduz a si mesma na massa de modelar, em semelhança ao Criador na narrativa bíblica sobre a criação do ser humano. Cada atividade envolve expressão corporal e verbal das crianças, num espaço de acolhimento e solidariedade.

213

4.1. Desenvolvimento do tema: descrição passo a passo da abordagem teórica e prática do tema com vistas a promover os objetivos especificados acima. (As crianças sentam-se em círculo, de preferência, no chão).

4.1.10. A educadora ou o educador se apresenta e pede para cada educando e educanda falar o seu nome e sua cor favorita. 4.1.11. Cada criança ganha dois cartões e escolhe dois gizes de cera para “desenhar” (de forma igual) seu nome nos versos dos cartões (reafirmação de identidade). 4.1.12. Em grupos de cinco crianças, brinca-se o Jogo da Memória com os cartões. (Os ganhadores dos grupos ganham um bis e pede-se que cada criança guarde seus cartões junto com seu material escolar. Essa primeira parte leva uns quinze a vinte minutos. A próxima etapa leva mais uns vinte a vinte e cinco minutos)

4.1.13. Em círculo, todos em pé, fazem um breve alongamento, respiração e chacoalham o corpo. 4.1.14. Todos sentam-se. Cada criança fala seu nome e uma qualidade pessoal. 4.1.15. A educadora ressalta (olhando com carinho, nos olhos de cada criança) que cada pessoa ali é feita de forma especial. Procede-se a leitura do texto bíblico (Gênesis 1,26 e 2.7) e, a partir dessa narrativa, propõe-se criar a imagem de si mesmo na massa de modelar (rito de rememoração de mito). 4.1.16. Enquanto as crianças produzem suas obras sobre uma folha de papel (para não sujar o chão), a educadora ou o educador dá atenção a cada educando e educanda, perguntando o que é a obra em andamento e fazendo comentários positivos. 4.1.17. Cada criança apresenta sua produção artística para a classe. Pede-se que todos escutem em silêncio a seus colegas, enquanto aguardam sua vez de falar. 4.1.18. As crianças guardam suas artes no recipiente próprio (o mesmo em que receberam a massinha), recolhem papéis e restos de material espalhados pela sala, limpam as mãos com lenços umedecidos e em pé, de mãos dadas, formam um círculo. Cada criança ganha um bis. 4.1.10. Canta-se uma música que toda classe conheça, de preferência, divertida e com gestos. 4.1.11. Cada criança fala, em uma palavra, o que mais gostou. 4.1.12. Aplausos para a classe toda, despedida e abraços.

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4.2. Recursos didáticos: Sala ampla o suficiente para que as crianças possam sentar-se em círculo. Cartões. Gizes de cera coloridos, massa de modelar em potinhos com tampa. Folhas de jornal ou papel sulfite para forrar o chão para apoiar a massinha. Bíblia sagrada. Caixas de bis. Lenços umedecidos para higiene das mãos.

5. Resultados e discussões

Conforme Pestalozzi, a avaliação é feita de modo subjetivo e diagnóstico, sem provas, punições ou recompensas, incentivando a liberdade e a autonomia moral, ao invés de julgamentos externos (FERRARI, 2015). Seguindo Higuet (2015, p. 7-62), o educador irá analisar as produções imagéticas dos discentes levando em conta a antropologia, a hermenêutica e a fenomenologia, observando os conceitos, a lógica própria, os arquétipos, a participação, a tradição cultural, a realidade invisível, o espírito, a imaginação e o imaginário da criança impressos na massa de modelar. O educador ou a educadora observa a tudo atentamente, procura avaliar a aula e responder às perguntas: As crianças estão alegres e tranquilas? Em qual atividade houve melhor ou pior interesse e participação? O tempo foi suficiente, longo ou curto? As crianças manifestaram verbal e corporalmente interesse e desejo de continuar a aula? Através de anotações em seu diário, o educador ou a educadora acompanha o desempenho, o comportamento e os sentimentos manifestados pelas crianças em cada momento, para repensar suas técnicas e elaborar novas abordagens conforme o potencial e as necessidades da classe. No caso de aulas sequenciais, é possível perceber mudanças nos pensamentos, no comportamento, nos impulsos fisiológicos e no conteúdo dos sonhos de cada discente. Que essas atividades em sala de aula colaborem para integrar a personalidade, reforçar a identidade das crianças e permitir-lhes a expressão de percepções e sentimentos, de forma que elas expressem em estado consciente e alerta a atividade mental e percepções da realidade que apareciam somente nos sonhos (JUNG, 2008).

6. Considerações finais

Essa aula foi ministrada por Linda Siokmey Tjhio Cesar Pestana em dez de novembro do 215

corrente ano, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Cônego João de Deus, no período da manhã em uma classe de vinte e cinco crianças do 3º ano do Ensino Fundamental I. Como primeiro resultado da experimentação em campo, a técnica proposta e aplicada na aula de Ensino Religioso foi considerada bem-sucedida, pois, embora as crianças fossem bem agitadas, cooperaram e participaram satisfatoriamente de todas as atividades propostas. Ao fim, manifestaram alegria, satisfação e gratidão à minha pessoa. Todas as etapas foram cumpridas em sequência e no tempo estimados, de forma dinâmica, porém, sem pressa.

Junto com Pestalozzi (2015), constatamos que ao cultivar a pureza e a bondade da essência infantil, potencializa-se sua vivência intelectual, sensorial e emocional do conhecimento; a criança aprende, desenvolve habilidades e assimila valores enquanto caminha do desconhecido para o novo, do concreto ao abstrato, da prática à teoria, numa educação integral intuitivo-dedutiva, que envolve percepção, disciplina interior, formação intelectual, física e moral; e assim, fazemos eco de suas palavras: “Reconhece-te a ti mesmo e constrói a obra do teu enobrecimento sobre a consciência profunda de tua natureza animal, mas também com a consciência completa da tua força interior de viver divinamente no meio dos laços da carne”.

7. Referências bibliográficas

A BÍBLIA Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. ed. rev. e atual. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1997.

BORAU, José Luis Vasquez. O fenômeno religioso: símbolos, mitos e ritos das religiões. Tradução de Lara Almeida Dias. São Paulo: Paulus, 2008.

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolo: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______. Mito e realidade. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1994

216

GOMES, Eunice Lins. Um baú de símbolos na sala de aula. São Paulo: Paulinas, 2013.

HIGUET, Etienne Alfred. Imagens e imaginário: subsídios teórico-metodológicos para a interpretação das imagens simbólicas e religiosas. In: NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Religião e linguagem: abordagens teóricas interdisciplinares. São Paulo: Paulus, 2015.

FERRARI,

Márcio.

Educar

para

crescer.

Disponível

em:

Acesso em: 20 out. 2015.

JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos: concepção e organização C. G. Jung. Tradução de Maria Lucia Pinho. 2 ed. RJ: Nova Fronteira, 2008.

MARDONES, José Maria. A vida do símbolo: a dimensão simbólica da religião. Tradução de Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulinas, 2006.

MUELA, J. C. Las Imágenes sagradas em el cristianismo: origen y sentido. In: Iconografia Cristiana: Guía Básica para estudiantes. 2 ed. Madrid: Akal, 2012.

NASSER, Maria Celina Carrera. O que dizem os símbolos? São Paulo: Paulus, 2003.

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS. Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso. São Paulo: Mundo Mirim, 2009.

PESTALOZZI, Johann Heinrich. In Wikipedia: a enciclopédia livre. Wikipédia, 2015. Disponível em: Acesso em: 20 out. 2015.

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O estudo comparado como método de abordagem no ensino religioso: uma perspectiva do rito de iniciação nas religiões monoteístas

Josilene Silva da Cruz132

RESUMO Este trabalho visa apresentar a perspectiva do estudo comparado das religiões como método de pesquisa o qual pode ser utilizado nas aulas de Ensino Religioso, pois o mesmo se constitui de comparações diversas, e em geral contempla a diversidade religiosa, sendo um recurso que pode ser adequadamente usado na abordagem dos fenômenos como proposta para a disciplina. Esse método se constituía em suas origens como um método histórico comparativo que aos poucos foi sendo reestruturado e é tratado na atualidade como um caminho de abordagem dos fenômenos religiosos. Nesse sentido, realizamos neste trabalho, uma amostragem de um estudo comparado sob a perspectiva fenomenológica, ressaltando os aspectos dos ritos de iniciação nas três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo (na vertente anglicana) e islamismo. Desse modo, a nossa metodologia de investigação fundamenta-se no próprio estudo comparado, apoiado na teoria de Mircea Eliade caracterizando-se como pesquisa descritiva, bibliográfica, com abordagem qualitativa. Assim, apresentamos como resultado semelhanças e distinções presentes no processo iniciatório dessas vertentes religiosas, tratando respectivamente da circuncisão, batismo e shahada como ritos de iniciação de cada uma das religiões selecionadas. E também indicamos para o docente do ensino 132

Bolsista CAPES - Mestranda em Ciências das Religiões no Programa de Pós Graduação em Ciências das Religiões na Universidade Federal da Paraíba –PPGCR/UFPB – Integrante do Grupo de Pesquisa GEPAI (Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Religião e Antropologia do Imaginário). Orientada pela Profª Pós Dra. Eunice Simões Lins Gomes. E-mail [email protected]

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religioso esta possibilidade de abordagem que contempla e valoriza a diversidade cultural religiosa.

Palavras-chave: Circuncisão. Batismo. Shahada. Ritos de Iniciação.

1 Introdução Neste trabalho, buscamos apresentar os aspectos do estudo comparado da religião como método para área das ciências das religiões, e de forma mais específica, como uma proposta metodológica de abordagem do fenômeno no ensino religioso. Inicialmente tratado como um método histórico comparativo, o estudo comparado, tem suas origens associadas à Escola Italiana de História das Religiões, atrelada ao estudioso Rafaelle Pettazzoni. Porém esta perspectiva utilizada pelos historiadores das religiões recebeu críticas pelo também comparatista e fenomenólogo Mircea Eliade, pois em sua “morfologia do sagrado” o mesmo realizava a comparação de forma mais profunda, ressaltando a experiência com o sagrado e enfatizando a fenomenologia. Segundo ele “A fenomenologia da religião repete assim o estudo comparado das religiões, porém num nível mais profundo [...]”. (TERRIN, 2003, p. 23) Paden (2001, p. 130-131) aponta que “para comparativistas como Eliade, a religião gira em torno do sagrado” e para ele “o sagrado refere-se àqueles objetos focais que, para os iniciados, parecem dotados de poder e autoridade sobrehumanos [...] Qualquer religião é um sistema de meios de vivenciar o sagrado [...]”. Em outros termos, podemos dizer, que para Eliade não haveria (como era comum em seu tempo) a perspectiva de algum sistema religioso que devesse ser tratado ou visto como superior todos deveriam ser vistos como formas de se relacionar com o sagrado. Desse modo, para se compreender como se deu esse processo de transição do método histórico comparativo para a modalidade proposta por Eliade e também demonstrarmos como este método pode ser uma metodologia para o ensino religioso, estruturamos o nosso artigo em duas partes. Na primeira “O estudo comparado como método de abordagem no Ensino Religioso” trazemos uma síntese das suas características sob o aspecto fenomenológico e sua aplicabilidade neste componente curricular; na segunda “Perspectivas do rito de iniciação nas religiões monoteístas” trazemos um estudo comparado dos ritos de iniciação do judaísmo, cristianismo (na vertente anglicana) e islamismo, apontando suas semelhanças e distinções com os ritos da circuncisão, batismo e shahada, respectivamente. 2 O estudo comparado como método de abordagem no Ensino Religioso Consideramos que este método é um caminho epistemológico propício para o docente do Ensino Religiosos porque em função de seu espectro está pautado na abordagem da diversidade religiosa tendo em vista que não há comparações de um único sistema ou grupo é preciso pelo menos dois para que tal abordagem ocorra. Porém ressaltamos o cuidado que deva ocorrer por parte desses docentes para que não se faça comparações com viés valorativo ou de julgamento até porque “A comparação não é simplesmente uma questão de classificação mas, em última

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análise, uma ferramenta de entendimento. (PADEN, 2001, p. 135), ou seja, fazemos comparação para apreender o sentido e captar o entendimento dos fenômenos. De acordo com este autor supracitado o estudo comparado busca exercer seu papel sem “[...] a tendenciosidade interpretativa de qualquer posição específica, religiosa ou anti-religiosa. [...] as crenças religiosas são [...] expressões da visão de mundo de alguém, e não proposições a discutir em termos de sua verdade independente.” (PADEN, 2001, p. 133) Assim sendo, vislumbramos mediante a perspectiva comparativa um método de abordagem dos fenômenos religiosos que valoriza a diversidade por tratar com “igualdade” qualquer manifestação. Desse modo, justificamos a nossa opção em utilizar o método comparativo pois esta também é prerrogativa do Ensino Religioso abordar sem fazer juízo de valor. O docente não se deve estar preocupado com “as verdades religiosas”, mas, sim com o que elas proporcionam ou interferem na vida de seus praticantes ou não, em outros termos podemos dizer que sua preocupação deve centrar-se no relacionamento entre seus discentes independentemente de sua opção religiosa principalmente sendo diferentes uma das outras. Neste artigo também estamos realizando uma amostragem do estudo comparado propriamente dito e nesse ponto nos apoiamos no teórico e estudioso da religiões Mircea Eliade, por isso consideramos relevante também neste trecho apontar algumas de suas contribuições par o campo das ciências das religiões. Ele era visto como um essencialista que generalizava os sistemas religiosos, visando a demonstração da existência de um homo religiosus ideia essa refutada por muitos estudiosos da religião, inclusive em seu tempo, foi a prerrogativa de muitas críticas que o mesmo recebeu. Porém sua teoria não se resume à busca pela essência das coisas sagradas, ou mesmo o sagrado, de acordo com Paden Parte da contribuição de Eliade foi ter chamado a atenção para o modo como a religião se expressa por meio das linguagens do mito, do símbolo e do ritual, mostrando como a religiosidade pode ser entendida como meio de vivenciar o mundo mediante essas categorias. Por exemplo, a religião confere valor e significado a ações e objetos no mundo, vendo-os em termos de protótipos míticos. (PADEN, 2001, p. 129 – grifos nossos)

Desse modo, não podemos deixar de considerar que com sua contribuição os estudos das religiões passam a receber uma nova perspectiva de abordagem, superando a modalidade histórico-comparativa, que buscava “diferenças e as originalidades”, e a partir de Eliade, enfatiza-se as diversas formas de linguagem ou representação dos fenômenos religiosos. A partir dele outras instâncias da manifestação religiosa passam a receber visibilidade e não só sua história ou suas particularidades históricas. Um outro ponto relevante para que se busque valorizar esta nova perspectiva mediante Eliade foi o fato do mesmo tratar todas as manifestações religiosas sem acompanhar o pensamento evolucionista de sua época, e realizando um processo de comparação que não se apoiasse em juízos de valor, conforme verificamos abaixo [...] segundo a metáfora de Eliade, quando o naturalista estuda elefantes, ninguém pensa: “O elefante está certo ou errado?” Quando o geólogo estuda rochas, ninguém pensa: “As rochas estão certas ou erradas?” Nos estudos religiosos comparados 220

as rochas e os elefantes são as crenças e práticas sagradas das pessoas. Diferentes sistemas de símbolos sobre deuses, diferentes observâncias de culto ou meditação – eis “os fatos” cujas funções na vida precisam ser entendidas. (PADEN, 2001, p. 134) Conforme verificamos, para Eliade, todas as espécies de manifestações têm seu próprio valor para “os crentes”, logo não devemos hierarquizar nem as religiões nem suas formas de manifestação. Assim como, não se deve haver a preocupação com o aspecto da verdade, e sim a manifestação em si é o que realmente é importante. E esta também é a prerrogativa essencial para a realização de um estudo comparado, não se deve haver a preocupação com “as verdades das religiões” (pois, sabemos que cada uma apresenta a sua como a única verdade), sendo imprescindível a suspensão do julgamento. Segundo Terrin (2003, p. 22) “a fenomenologia da religião foi se diferenciando e se aperfeiçoando como método de estudo das religiões exatamente a partir do estudo comparado das religiões”, ou seja, a fenomenologia também tem seu fundamento apoiado no estudo comparado daí a nossa opção em realizar um estudo comparado com o aporte fenomenológico. Ambos os métodos se complementam e optam pela valorização do estudo dos fenômenos assim como a busca pelo seu entendimento. Ainda neste sentido de apontar as características da fenomenologia Croatto (2010) nos diz que Aplicada à(s) religião(ões), a fenomenologia não estuda os fatos religiosos em si mesmos (o que é tarefa da história das religiões), mas sua intencionalidade (seu eidos) ou essência. A pergunta do historiador é sobre quais são os testemunhos do ser humano religioso, a pergunta do fenomenólogo é sobre o que significam. (CROATTO, 2010, p. 25)

Nessa perspectiva, corroborando com o autor supracitado o papel da fenomenologia é captar “o sentido” das manifestações religiosas, o que justifica mais uma vez a nossa escolha. No entanto o autor nos alerta que esta captação de sentido não é para o fenomenólogo, mas, para o homo religiosus. Para ele a fenomenologia da religião se ocupa do “sentido das expressões religiosas no seu contexto específico; sua estrutura e coerência (sua morfologia); sua dinâmica (desenvolvimento, afirmação, divisões, etc.)” (CROATTO, 2010, p. 27) Para além desses critérios, ao realizarmos a comparação estamos nos aprofundando no entendimento de nós mesmos enquanto “um problema humano comum à todos nós”. Outro ponto relevante é atentarmos para o estudo da diversidade religiosa no qual estamos inseridos independente se temos uma crença ou não, estamos convivendo com aqueles que têm suas crenças e precisamos aprender a lidar com as diferenças. E talvez o primeiro o primeiro passo a ser dado para que esta convivência seja prazerosa e nos proporcione satisfação em sermos uma mesma espécie “humana” seja “conhecer” para não discriminar. Desse modo, “La religión comparada puede convertirse em La autoconciencia disciplinada de la vida religiosa Del hombre matizada y em desarrollo. 133 (SMITH, 1986, p. 82 – grifos do autor). Por fim, encerramos este primeiro ponto de nossa 133

“A religião comparada pode converter-se em autoconsciência disciplinada da vida religiosa do homem em desenvolvimento” (Tradução livre das autoras)

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argumentação com as justificativas do porquê fizemos a opção pelo método do estudo comparado das religiões mediante o aporte fenomenológico para a abordagem dos ritos de iniciação. Com o intuito de demonstrar ao docente de Ensino Religioso que o caminho da abordagem dos fenômenos pode e deve ser um recurso adequado para tratar dos temas deste componente curricular. 3 - Perspectivas do rito de iniciação nas religiões monoteístas Iniciamos este trecho de nossa exposição apresentando suscintamente a história de surgimento destes ritos concomitantemente apontando seus aspectos mitológicos. Desde o início de nossa exposição utilizamos de forma proposital a sequência da circuncisão, batismo e shahada, justificando que a tomamos por base como uma referência também a uma possível ordem cronológica. Em diversas literaturas encontramos a indicação de que a circuncisão remete a uma prática antiga além também de ser vista como um rito introdutório ao judeu. Ela pode apresentar diversas interpretações, mas em sua grande maioria reforçam a tese de um rito de iniciação, vejamos O ritual da circuncisão propicia tanto o ingresso ao grupo social, conferindo uma identificação étnico-religiosa, quando a criança recebe um nome hebraico através do qual será conhecido e chamado a participar dos rituais, como, por exemplo, ao ser convidado a ler um trecho das Escrituras. Ao seu nome individual é acrescentado o nome hebraico de seu pai sendo-lhe, assim, reconhecida sua ascendência e seu status tribal – Cohen (sacerdotal), Levi ou Israel. A circuncisão ou Brit Milá é uma exigência para a conversão ao judaísmo. Um rito religioso, mesmo que interpretado como tradição ou costume, é a porta de entrada através da qual o filho de mãe judia é incorporado à comunidade israelita, assim como o gentio convertido. (GALINKIN, 2008, p. 91 – grifos nossos)

De acordo com a exposição temos algumas “funções” atribuídas à circuncisão: ingresso ao grupo social, exigência de conversão, prática que faz parte da cultura e se estrutura como uma porta de entrada para a religião judaica. Nós consideramos que todas estas funções encontram-se integradas ao rito de iniciação, principalmente quando ressaltamos seu aspecto simbólico. A circuncisão é o sinal visível da fidelidade a que o judeu se submete, e podemos dizer que pelo fato de ser uma prática que permanece viva na comunidade judaica mesmo com o advento da modernidade, ela promove uma continuidade da aliança feita com o povo em seus primórdios sendo uma promotora da permanência da tradição. A circuncisão mesmo se apresentando com muitas funções na perspectiva de alguns autores ela se caracteriza principalmente pela promoção da iniciação e neste contexto Asheri (1995) nos demonstra que neste “pacto” se encontra uma espécie de “assinatura no contrato” entre Deus e seu povo. Deste modo ele aponta que A circuncisão, ou seja, a iniciação do judeu do sexo masculino na qualidade de integrante pleno do povo judaico, é praticada em obediência ao segundo dos 613 mandamentos da Torá: “Este é o meu pacto, que guardarei entre mim e vós e a tua semente depois de ti: que todo varão será circuncidado” (Gên. 17, 10) A palavra “pacto” mostra-nos imediatamente o significado da 222

circuncisão: é a nossa assinatura no contrato com Deus, com o próprio sangue, e o selo de sua assinatura fica evidente na sua carne, como um lembrete constante e indelével. (ASHERI, 1995, p. 45 – grifos nossos)

Nesta citação o autor nos aponta (conforme grifos nossos) os principais aspectos simbólicos da circuncisão como iniciação principalmente no que se refere ao seu significado, podemos dizer que se trata de uma inserção que prescreve uma aliança ou pacto usando o termo do autor que se constitui como um registro no próprio corpo. Neste sentido poderíamos relacionar a um sacrifício ofertado ao seu Deus. O menino judeu circunscreve em seu próprio corpo esta marca que será levada consigo para o resto de sua vida, é um caminho sem volta, uma demonstração de uma “fidelidade eterna”. Na exposição de Asheri (1995) também temos a referência mitológica ao rito da circuncisão no livro de Gênesis (cap. 17, versículo 10) que diz: “E eis a minha aliança, que será observada entre mim e vós, isto é, tua raça depois de ti: todos os vossos machos sejam circuncidados” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 55). Nesta passagem bíblica tem uma nota explicativa com a referência da circuncisão como um rito de iniciação, mas que se referia ao casamento e com este advento da aliança feita com Abrão (personagem bíblico que posteriormente será denominado de Abraão), o próprio Deus o instituiu como um sinal A circuncisão era primitivamente um rito de iniciação ao casamento e à vida do clã (Gn 34, 14s; Ex 4, 24-26; Lv 19, 23). Torna-se aqui “sinal” que relembrará a Deus (como o arco-íris, 9, 16-17) sua aliança, e ao homem sua pertença ao povo escolhido e as obrigações que daí decorrem. Entretanto, as leis fazem apenas duas alusões a essa prescrição (Ex 12, 44; Lv 12, 3; Js 5, 2-8). Ela só tomou toda a sua importância a partir do exílio (cf. 1Mc 1, 60s; 2Mc 6, 10). [...] (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 55 – Nota explicativa a)

Logo, neste trecho, identificamos a circuncisão como um rito significativo para os hebreus e que a partir deste contato “mitológico” entre Abrão e Deus ocorre sua instituição como uma marca registrada deste povo e sua posteridade. Ainda podemos apreender mediante as diversas passagens bíblicas indicadas que a circuncisão vai tornando-se presente em tempos distintos da história deste povo, mas que o advento do exílio ressaltou sua importância porque podemos considerar que a partir de então ela se torna também uma marca da identidade judaica. Já no cristianismo a circuncisão receberá novas interpretações e deixará de ser sinal da aliança sendo feito um novo pacto mediante o advento da pessoa de Jesus Cristo, e com ele a referência ao batismo como um novo modo de “assinar o contrato” com sua divindade. Ao se falar em batismo no cristianismo é necessário remeter ao seu fundamento mitológico que além de está vinculado à Jesus Cristo também se liga à pessoa de João Batista e à ele se deve uma das primeiras modalidades de batismo cristão: a imersão. Esse rito de imersão é um símbolo de purificação e de renovação. Era conhecido nos meios essênios, mas também em outras religiões (que associam os ritos de passagem, especialmente aos de nascimento e morte) além do judaísmo e suas seitas. [...] A imersão, hoje reduzida à aspersão, é por si só rica de muitas significações: 223

indica o desaparecimento do ser pecador nas águas da morte, a purificação através da água lustral, o retorno do ser às fontes de origem da vida. A emersão revela a aparição do ser em estado de graça, purificado, reconciliado com uma fonte divina de vida nova. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 126 - grifos nossos)

De acordo com os autores temos neste trecho pelo menos três modalidades de batismo (imersão, aspersão e emersão), mas, que não são as únicas, principalmente quando se ressalta o caráter simbólico do rito. Na referência bíblica sobre o batismo o próprio João Batista faz menção ao “batismo de fogo” (Mt 3, 11), o que os autores supracitados indicam que é uma interpretação simbólica dada ao rito e que “[...] os exegetas observarão que o fogo, meio de santificação menos material e mais eficaz do que a água, já no Antigo Testamento simboliza a intervenção soberana de Deus e de seu Espírito a purificar as consciências (Isaías, 1, 25)” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 126), o que nos encaminha para uma interpretação não literal mas, simbólica destas categorias de batismo. Ressaltamos que em nosso recorte estamos descrevendo sobre o batismo presente na vertente cristã anglicana e por isso não nos ocuparemos desta descrição minuciosa das muitas modalidades de batismo, mas atentaremos para o que temos presente neste sistema que selecionamos. Com o intuito de apresentar melhor este grupo e sua relação com este rito de iniciação cristã, iremos demonstrar quais são os tipos de batismo que eles praticam e já ressaltamos que para eles a forma como ele ocorre não é o mais importante, conforme nos indica Cavalcanti (2009) [...] os anglicanos praticam o batismo por imersão, infusão ou aspersão, tanto em mares, rios e lagos, quanto em tanques, piscinas e pias, seja ela corrente ou parada, morna ou quente, com gás ou sem gás, pois a água não salva, mas é um sinal externo para o que realmente conta: a fé no Senhor e Salvador Jesus Cristo. Os relatos históricos atestam a diversidade de formas nos primeiros séculos da Igreja. (CAVALCANTI, 2009, p. 41)

De acordo com o exposto não é a forma de realização do batismo que promove a graça, mas, é o viés da fé que torna o rito eficaz. Apesar da água ser um elemento simbólico significativo (sendo associada principalmente à questão da purificação em muitos sistemas religiosos), não é neste elemento que se concentra a “eficácia simbólica”134 do rito realizado pelos anglicanos para o ingresso na vida cristã, o principal pressuposto é a fé. Neste sentido destacamos que na vertente cristã anglicana temos o rito do batismo como um rito de iniciação, porém, dadas as suas especificidades não temos um só anglicanismo ou um só cristianismo, ressaltando-se neste grupo a prática de um só batismo, ou seja, ela é uma das denominações cristãs que não realiza o rebatismo. Conforme temos na referência encontrada no Livro de Oração Comum que contém a doutrina anglicana, [...] O ministro deverá certificar-se de que a criança para quem se pede o batismo não foi já batizada, "com água, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo"; pois o batismo assim realizado não se repete. Em caso de dúvida, usará a forma condicional [...] Cada 134

Tomando por empréstimo o termo de Claude Lévi-Strauss.

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criança a batizar terá, ao menos, um padrinho ou madrinha, que com os pais, a apresentam ao batismo, renovam o seu próprio compromisso para com Cristo e fazem as promessas em nome da criança. [...] (LOCB, 2008, p. 399 – grifos nossos).

Neste trecho reforça-se esta ideia de não realizar um novo batismo, uma vez realizado “com água em nome do Pai e do filho e do Espírito Santo” como acontece em muitas vertentes do cristianismo ele (o batismo realizado anteriormente) é aceito no anglicanismo. Além do Livro de Oração Comum, os pressupostos doutrinários do anglicanismo se fundamentam primeiramente nos chamados Artigos de Religião e neles encontramos a relevância do batismo enquanto sacramento e rito iniciático, sendo apresentado como um “sinal de profissão”, mas que ultrapassa esta condição e poderíamos analogamente aproximá-lo da circuncisão como uma “marca registrada na própria vida”, como nos apresenta Cavalcanti (2009) baseado no XXVII Artigo da Religião, de acordo com este fundamento doutrinário [...] o Batismo “não é só um sinal de profissão, e marca de diferença, com que se distinguem os cristãos dos que não o são, mas também, um sinal de Regeneração ou Novo Nascimento, pelo qual, como por instrumento, os que recebem o Batismo devidamente são enxertados na Igreja; as promessas de remissão dos pecados, e de nossa adoção como filhos de Deus pelo Espírito Santo são visivelmente marcadas e seladas, a Fé é confirmada, e a Graça aumentada, por virtude da oração a Deus”. [...] os anglicanos tanto batizam os novos convertidos adultos, como as crianças filhas ou netas de crentes, dentro da teologia da aliança, da promessa para a descendência [...] (CAVALCANTI, 2009, p. 41 – grifos nossos)

Temos nesta exposição a indicação de que para o cristão anglicano o batismo se tornou sinal da aliança tomado como “marca de diferença” de forma semelhante como ocorre com a circuncisão para o judeu. Além disso, temos o caráter simbólico da ação batismal como uma morte, descrito como um “novo nascimento”, o que nos aproxima da concepção eliadiana de “morte simbólica” presente no rito de iniciação, o que justifica a nossa opção pelo batismo como a iniciação nesta vertente cristã. Chevalier & Gheerbrant (2009) ainda nos lembram do caráter purificador que tem o batismo dizendo que “todos os passos da cerimônia iniciática traduzem a dupla intenção de purificar e vivificar” (p. 126). Poderíamos dizer que simbolicamente esta purificação proporciona esta renovação, este renascimento que acaba conduzindo à vivificação, ou seja, o batismo dá ao cristão, mediante sua ação purificadora a oportunidade do renascer e de manter viva a aliança entre o fiel e sua divindade. Esta morte simbólica oportuniza este renascer que será vivenciado em outra instância, que poderíamos indicar como num plano espiritual. Os autores reforçam esta tese quando apresentam as significações simbólicas da água que segundo eles tomam “três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação e centro de regenerescência” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 15), podemos dizer que estes três temas se integram nesta instância que chamamos de espiritual, possibilitando ao seu praticante uma mudança em termos eliadianos “ontológica”.

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Um outro aspecto relevante sobre o batismo anglicano é a concepção de sacramento135 esta classificação dada pelos anglicanos ao rito do batismo o aproxima ainda mais da concepção de “marca, registro, assinatura” como ocorre com a circuncisão, porque o sacramento tem esta característica de um sinal ou marca que será levado por toda a vida, conforme abaixo O XXV Artigo de Religião assim se posiciona sobre os Sacramentos: “Os Sacramentos, instituídos por Cristo, não são unicamente designações ou indícios de profissão dos cristãos, mas antes testemunhos certos e firmes, e sinais eficazes da graça e da bondade de Deus para conosco, pelos quais ele opera invisivelmente em nós, e não só vivifica, mas também fortalece confirma a nossa fé nele”. O termo Sacramento (= mistério) foi usado em toda História da Igreja do Oriente e do Ocidente [...] (CAVALCANTI, 2009, p. 40 – grifos nossos)

Logo, o sacramento tem este papel de se tornar uma marca registrada na vida do cristão, sendo um sinal visível que “opera invisivelmente”, ele proporciona uma relação de aproximação com a divindade sendo concebido como um “mistério” à operar na vida do crente. Desse modo, encontramos no batismo a mesma característica, ou de forma bastante semelhante à marca da circuncisão, como um registro que se subescreve na vida do fiel como uma marca identitária que o habilita a acessar todos os mistérios da religião. Quanto a Shahada como rito iniciatório é nossa forma de interpretação sobre um ato visto pelos próprios muçulmanos como um “ato muito simples, pois são proferidas umas palavras no ouvido da criança”136. Na verdade estas palavras ditas simples são a constituição de sua profissão de fé também chamada de seu primeiro pilar da fé. Lembramos que este rito é realizado pelo pai da criança , mas, quando adulto o muçulmano repetirá a sua profissão de fé por toda a vida. Nossa opção em tratar a Shahada como um rito iniciático se justifica em função da própria constituição das palavras presentes neste rito “La ilaha illa Allah wa Muhammad rasul Allah”, que significa “não existe outro Deus além de Deus e Maomé é Mensageiro de Deus”. Podemos inferir que nesta curta declaração ou proclamação o muçulmano deposita toda sua crença visualizando nestas palavras esta potencialidade de uma transformação de vida. Em casos de conversão na vida adulta, basta ser proferida mediante duas testemunhas e a partir de então o indivíduo torna-se um muçulmano e de uma forma muito simples também são proferidas ao ouvido do recém-nascido, podendo ser visto como uma espécie de sussurro. Esta profissão de fé é considerada “uma fórmula de consagração com o objetivo de lembrar que Deus é a única divindade” (CHEBEL, 2010). O que em nossa interpretação nos encaminha para uma possibilidade de rito iniciatório, interpretado por alguns como um rito de passagem, por se constituir numa espécie de separação entre “os de dentro e os de fora” da religião. Neste sentido de rito de passagem como um rito de separação ou preliminar, relembramos as considerações de Gennep (2011) que realiza uma classificação dos ritos. (Cf. ítem 1.1) 135

Os anglicanos reconhecem dois ritos como sacramentos: o batismo e a eucaristia; e os demais (confirmação, penitência, ordens, matrimônio, e unção dos enfermos, são ritos sacramentais ou sacramentos menores. (CAVALCANTI, 2009) 136 Informação verbal dada por uma muçulmana sunita.

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O autor nos auxilia nesta classificação da Shahada (literalmente testemunho) como um rito iniciatório porque mediante sua classificação trazendo os ritos preliminares ele aponta esta separação entre os pertencentes e os não-pertencentes à religião, pois em sua teoria ele apresenta estágios diferenciados sendo os de iniciação encontrados neste “primeiro estágio”, identificando um antes e um depois. Encontramos na Shahada estas características de um rito preliminar (separação) porque através dele encontramos uma transição para um novo ser, o que de forma análoga temos no cristianismo no rito do batismo. No islamismo este rito realiza-se em períodos indeterminados, podendo realizar-se na fase adulta, na qual o indivíduo ao proferir o testemunho da fé mediante a presença de testemunhas e de um imã (sacerdote) insere-se na comunidade islâmica como um muçulmano, proclamando Allah como único Deus e Muhammad como seu mensageiro, sendo repetida três vezes. E na infância, quando recém-nascido, esta profissão de fé é realizada pelo pai da criança, logo após o nascimento, ele profere em forma de sussurro em seu ouvido esquerdo o testemunho trazendo seu filho para a Umma.137 Ainda no sentido de justificar a opção por denominarmos a Shahada como um rito iniciatório, de passagem para um nascimento, para uma nova vida. No nascimento, ocorre pelo desejo dos pais, já na fase adulta ocorre pela própria iniciativa do “novo convertido”. Assim, pressupõe um novo nascimento para uma nova vida, trazendo esta conotação de rito de passagem, conforme verificamos na exposição abaixo Os ritos de passagem se associam às grandes mudanças na condição do indivíduo. As principais transições marcadas por esses ritos são o nascimento, a entrada na idade adulta, o casamento e a morte. Tais ritos costumam simbolizar uma iniciação. O nascimento é a iniciação na vida [...] (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2000, p. 28)

De forma simbólica constatamos na Shahada esta transição, um nascimento, para uma nova realidade por meio das palavras proferidas se busca esta “transformação”. A identidade muçulmana se coloca como fundamental neste elemento da doutrina islâmica. Ela (a shahada) propicia ao indivíduo, seja ele, adulto ou criança, a incorporação no universo religioso do islã, mesmo que ela seja vista como um rito simples, é também considerada um conteúdo doutrinal obrigatório, reservada suas peculiaridades e diferenças entre os diversos grupos que constituem a religião islâmica. Outro aspecto que ressaltamos que justifica a Shahada como um rito de iniciação é sua concepção de “primeiro pilar da fé”. Em diversas literaturas encontramos esta indicação sendo também conhecida como sua profissão de fé ela é considerada em praticamente todas os autores que tratam do islamismo como o primeiro pilar da fé islâmica e se constitui numa espécie de oração composta pelos dizeres “não existe outro Deus além de Deus e Maomé é Mensageiro de Deus (La ilaha illa Allah wa Muhammad rasul Allah). (FILORAMO, 2005, p. 48) Esta proclamação é vista como as duas principais verdades do islamismo, pois é necessário ter Allah como único e verdadeiro Deus e Maomé como seu profeta mensageiro, poderíamos dizer, em outros termos, que seriam as duas primeiras condições para se tornar muçulmano.

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Palavra utilizada para designar a comunidade islâmica.

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Neste sentido Jomier (2002) utilizará o termo dogma para designar estas “duas verdades” da religião islâmica, e ressalta que ele é cada vez mais aproximado e comparado do judaísmo e cristianismo. Segundo ele Esse dogma é evocado ou de maneira breve em fórmulas lapidares, ou de um modo detalhado quando se trata de exposições mais completas. [...] Ele é exigido de todo aquele que quiser aderir ao Islã: a recitação desta profissão de fé é suficiente, sem qualquer outra cerimônia. Uma vez que o Islã não comporta nenhum sacramento, portanto nenhum batismo, nada mais se exige, a não ser a presença de duas testemunhas oficiais, para legalizá-la. (JOMIER, 2002, p. 66-67 – grifos nossos)

De acordo com a exposição esta profissão de fé não é feita com cerimônia ou festejo mas, é de tal importância para o muçulmano que é tratado pelo autor como seu dogma. E isso se deve ao fato de nela encontra-se condensada “a fé do muçulmano”, ela se constitui de passagens diversas presentes no livro sagrado do Islã: o Alcorão. O autor nos auxilia na fundamentação mitológica do rito ao demonstrar em quais passagens se baseiam a profissão de fé do Islã Ó vós que credes, crede em Deus, no seu Enviado, na Escritura que Ele fez descer sobre seu Enviado e na Escritura que fez descer anteriormente! Todo aquele que não crer em Deus, nos seus Anjos, suas Escrituras, seus Enviados e no último Dia, está num descaminho infinito (Corão 4, 135/136; mesmo texto em Corão 2, 172/177 apud JOMIER, 2002, p. 68)

O autor nos indica ainda em outra parte de seu texto que esta “fórmula de fé” é retomada durante toda vida do muçulmano de forma mais alongada no chamado tashahhud que se fará presente na oração ritual proferida incessantemente no decorrer da vida. (JOMIER, 2002) Esta profissão de fé também é chamada de “unicidade divina” e de acordo com o autor ela “[...] Está à base de invocações que serão repetidas no curso da peregrinação; e na hora da morte, o crente faz questão de repeti-la com fervor especial.” (JOMIER, 2002, p. 95) 4 Considerações finais Chegando às nossas considerações finais neste trabalho, relembramos que nosso intuito era apontar as características do estudo comparado da religião enquanto método de extrema relevância para a área das ciências das religiões e também para o docente do Ensino Religioso porque nele encontramos subsídios que nos auxiliam na valorização da diversidade religiosa. E como amostragem de utilização deste método realizamos um estudo comparado dos ritos de iniciação nas três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo (anglicano) e islamismo. Deste modo, em nossa exposição buscando atender a estes objetivos, e assim, sintetizamos o nosso estudo comparado dos ritos ressaltando algumas semelhanças e distinções nas vertentes selecionadas conforme apresentamos a seguir:  Semelhanças – a mudança de status e/ou ontológica proporcionada nos três ritos; o caráter simbólico da “morte” (se morre de forma simbólica para algumas instâncias da vida e se (re)nasce para outras); sinal de conversão e/ou fidelidade; 228

 Distinções – a forma de realização de cada rito, ou seja, o caráter extrínseco; o uso da repetição apenas no caso da Shahada enquanto oração, enquanto que a circuncisão (no judaísmo) e batismo (no anglicanismo) não se repetem. Neste sentido, ainda sobre as semelhanças e distinções poderíamos dizer que estes ritos no que se referem ao caráter extrínseco do rito (observável), ou seja, em sua forma de execução eles se distinguem, mas, no sentido intrínseco (nãoobservável), no que se refere ao sentido de execução eles são no mínimo, semelhantes indicando uma passagem à uma nova instância da religião. Mesmo que estes ritos se façam presentes em mais de um sistema religioso como é o caso da circuncisão realizada tanto por judeus como por muçulmanos, ela possui sentidos diferentes para seus praticantes. Já no caso da iniciação isso não ocorre, eles se caracterizam da mesma forma ou de forma muito aproximada: conduzem os neófitos a uma posição dentro da comunidade e servem como marca e/ou registro do vínculo com sua divindade, sendo um sinal da aliança feita com ela. Enfim, comparamos porque “as formas e funções universais se tornam a matriz para perceber qualquer fenômeno religioso – e qualquer ato ou símbolo religioso é visto como um caso do fenômeno geral da religião”. (PADEN, 2001, p. 149), ou seja, sob a perspectiva do método comparado todo e qualquer sistema e/ou fenômeno religioso é passível de comparação. Afinal, não se compara para usar um pressuposto valorativo, mas, para ressaltar semelhanças e distinções, porque em muitos aspectos podemos ser iguais, e precisamos conhecer e respeitar aquilo no que somos diferentes. Desse modo, enfatizamos a perspectiva da valorização da diversidade e vemos neste método comparativo uma possibilidade de aplicação desta valorização tão necessária nos dias atuais para superar guerras e intolerâncias. Consideramos que o melhor caminho para superar as barreiras e entraves presentes na convivência entre crentes de distintas religiões e não-crentes encontra-se na falta de conhecimento. A ignorância sustenta as amarras que os separam e os distanciam uns dos outros. É dever de todos nós superarmos estas limitações e promover o diálogo, independentemente de opção religiosa, afinal somos “todos humanos”. Portanto, é preciso que cada dia mais nas salas de aula e em espaços diversos fazermos uso da valorização da diversidade seja ela religiosa, de gênero, social, política, etc.. É preciso termos consciência de que nossas diferenças são os que nos fazem únicos no mundo, e isso não é motivo de discórdia e sim de satisfação por sabermos que não encontraremos ninguém igual nós mesmos, mas, encontraremos pessoas que podem ser semelhantes e partilhar de nossas opções sejam elas religiosas ou não.

Referências ASHERI, Michel. O judaísmo vivo: as tradições e as leis dos judeus praticantes. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. 2 ed. revisada. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002. CAVALCANTI, Robinson. Anglicanismo: identidade, relevância, desafios. Recife: Edição do Autor, 2009.

229

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos:mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 24 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. Trad. Carlos Maria Vásquez Gutiérrez. São Paulo: Paulinas, 2001. ELIADE, Mircea. Iniciaciones místicas. Version castellana de José Matías Díaz. Madri: Taurus, 1989. _______, Mircea. Origens: história e sentido na religião. Lisboa: Edições 70, 1989. _______, Mircea. Tratado de História das Religiões. Trad. Fernando Tomaz, Natália Nunes. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GALINKIN, Ana Lúcia. Judaísmo e identidade judaica. In: Interações, Cultura e Comunidade. v. 3 n. 4. p. 87-98, 2008. GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc.; Trad. Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2011. JOMIER, Jacques. Islamismo: história e doutrina. Trad. Luiz João Baraúna. 3ª Ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002. LIVRO DE ORAÇÃO COMUM BRASILEIRO. (LOCB) Diocese do Recife: Igreja Anglicana do Cone Sul da América. Brasil, 2008. PADEN. Willian E. Interpretando o sagrado: modos de conceber a religião. Trad. Ricardo Gouveia. São Paulo: Paulinas, 2001. SMITH, Wilfred Cantwell. La religion comparada: a donde y por que? In: ELIADE, Mircea; KITAGAWA, Joseph M. Metodologia de la historia de lãs religiones. Buenos Aires: Paidos Orientalia, 1986. TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao estudo comparado das religiões. Trad. Giuseppe Bertazzo. São Paulo: Paulinas, 2003. _______, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. Trad. José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2004.

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Ensino Religioso: Da teoria à prática em sala de aula

José Carlos do Nascimento Santos138 Eunice Simões Lins Gomes139 RESUMO: Este artigo dá ênfase a práxis pedagógica do Ensino Religioso disciplina obrigatória para a escola e de cunho facultativo para o alunado, conforme a nova LDB 9.475 de 22 de julho de 1997, onde o Ensino Religioso é pensado como sendo uma disciplina curricular obrigatória das escolas públicas de ensino fundamental, vedadas quaisquer formas de proselitismo. Nosso objetivo consiste em desenvolver e aplicar a técnica de ensino “tapete dos símbolos” com a finalidade de identificar os símbolos das tradições religiosas. Percebemos in loco de que esta área de conhecimento requer um grande zelo na organização dos seus conteúdos como também na aplicabilidade dos mesmos. Tivemos como base teórica os ensinamentos método-teórico de Paulo Freire que nos afirma: A teoria sem a prática vira 'verbalismo', assim como a prática sem teoria, vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade. Nossa pesquisa é descritiva de campo e para análise utilizamos como base teórica as obras Pedagogia do oprimido e Pedagogia da autonomia de Paulo Freire e o materialismo dialético. Como primeiro resultado foi possível desenvolver a fundamentação bibliográfica proposta e estruturar a técnica de ensino, selecionar a escola campo, série e o conteúdo de acordo com os eixos temáticos proposto pelo PCNER. Constatamos de que é possível trabalhar técnica de ensino com os conteúdos propostos no PCNER-Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso de forma lúdica e prazerosa na sala de aula.

Palavras-chave: Ensino religioso. Práxis pedagógica. Símbolos. 138

Mestrando em Ciências das religiões (UFPB). Prof. Ensino Religioso. E-mail:[email protected] 139 Orientadora da Pesquisa do Mestrado Profª Pós Drª docente na graduação e pós-graduação em Ciências das Religiões PPGCR- DCR-CE-UFPB. Líder do grupo de estudo e pesquisa em antropologia do imaginário-GEPAI e-mail [email protected]

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1-INTRODUÇÃO

O ER é uma disciplina que faz parte da grade curricular de ensino como uma área de conhecimento. Falar em educação brasileira não se pode esquecer que esta disciplina faz parte da formação integral do cidadão. A prática desta disciplina geralmente está atrelada a uma realidade específica no tocante à religiosidade do docente. É uma realidade tendenciosa onde nas práticas pedagógicas fazem proselitismo realidade esta proibida pelo artigo 33 da LDB. O espaço escolar não o local ideal para o proselitismo, pois é um espaço público onde estão presentes as várias expressões de fé. Na verdade essa disciplina deve ser lecionada na rede pública de ensino, respeitando a diversidade religiosa existente na nossa sociedade, levando em consideração as concepções sobre o sagrado e como se relaciona com o transcendente. Neste artigo propomos de como o docente deve se comportar a cerca da metodologia que deve ser aplicada em sala de aula na disciplina de ensino religioso. A proposta é de que o docente una a teoria a pratica pedagógica, ou seja, por em prática todos os conhecimentos adquiridos sobre o fenômeno religioso presente nas diversas tradições religiosas presentes na nossa sociedade. Assim afirma Freire (1996): “A teoria sem a prática vira ‘verbalismo’, assim como a prática sem teoria, vira ativismo”. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade. Uma das dificuldades encontradas pelos docentes de ensino religioso é a falta de metodologia para serem aplicadas nas aulas de ensino religioso. Neste artigo é apresentada uma teoria muito significativa para o ensino dos símbolos das religiões. Com esta técnica de ensino queremos afirmar de que é possível sim inovar e fazer a diferença a cerca da metodologia que se deve aplicar em sala de aula. Como afirma Freire (2013) “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.” A proposta aqui é apresentar uma possibilidade de técnica pedagógica a ser aplicada na disciplina de ensino religioso como também verificar a aplicabilidade das teorias acerca do Ensino Religioso.

2-O ER NO CONTEXTO ATUAL

O ER no contexto da atualidade é uma disciplina que está no processo em construção principalmente acerca do seu objeto de estudo. Esta disciplina faz parte da nossa educação brasileira. A lei 9394/96 fora modificada pela lei 9475/97, passando a ter a seguinte redação: O ensino relig ioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas

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públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. § 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso."

De acordo com a nova redação houve um crescimento significativo em relação ao respeito à diversidade religiosa. É muito importante levar em consideração o respeito às várias religiões vigentes na nossa realidade. Respeitar a diversidade faz com que o ER seja vivenciado sem proselitismo, respeitando o jeito de pensar e de ser de cada cidadão. Como afirma Figueiredo (1995) “Construir um modelo pedagógico que permita ao educando cultivar uma abertura respeitosa para com as manifestações religiosas e culturais presentes no contexto social”. As salas de aula são compostas de várias expressões religiosas cabe ao professor lecionar a disciplina sem ferir as religiões de modo que trabalhe de forma ecumênica, ou seja, falar especificamente do fenômeno religioso presente nas tradições religiosas. Assim nos diz Junqueira: : O ensino religioso “pretende ser um serviço ao crescimento global da pessoa, mediante uma cultura atenta também à dimensão religiosa da vida (...) poderá responder a função própria da escola, que é chamada a favorecer nos alunos uma atitude de confronto, diálogo e a convivência democrática”. ( JUNQUEIRA,1998,p.102)

Com esta citação fica claro de que a pretensão didática é de desenvolver um ensino religioso voltado a educar para o respeito, à diversidade, a liberdade e uma convivência solidária onde todos se respeitam no mesmo ambiente escolar. Educar também através dos conteúdos programáticos, métodos e linguagens. Enfim, através da vivência de valores.

3- METODOLOGIA DO ENSINO RELIGIOSO Didaticamente o ER tem um tratamento de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais baseado em 3 eixos temáticos: Observação, reflexão e informação. A observação não é apenas uma experiência visual, mas diz respeito às condições externas e internas do observador, tais como idade, formação, história de vida, conhecimentos prévios etc. no caso do ER as observações feitas, por exemplo, a propósito de um determinado símbolo serão tão variadas quanto forem os 233

educando observadores e sua matrizes religiosas. O mesmo fenômeno, tomado como objeto de estudo, será observado diferentemente por professores e alunos. Isso não significa que a observação feita pelo professor deva se sobrepor a do (s) aluno (s), mas que elas podem se completar e se enriquecer. O professor age como orientador dessa observação seletiva para trabalhar os conceitos básicos do ER. A observação feita de ambas as partes deve acontecer de forma interativa. Diz-nos Freire. O fundamental é que o professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivadora, enquanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos.” ( FREIRE,1996, p. 86).

A reflexão é um procedimento que acompanha todo o processo, desde a observação até a informação. Na realidade não se trata de momentos isolados e estanques, mas de passos que se entrelaçam, se interligam numa dinâmica, num movimento constante. O professor pode encaminhar a reflexão com questionamentos, diálogos, problematizações que promovam a conscientização, o entendimento e a decodificação do objeto de estudo, no caso o fenômeno religioso. Estes reflexos devem estar sempre aguçando o educando a ser um ser pensante como diz FREIRE: “Satisfeito uma curiosidade a capacidade de inquietar-se e buscar continua em pé. Não haveria existência humana sem a abertura de nosso ser ao mundo, sem a transitividade de nossa consciência” (Freire. p. 88). Pela informação, o professor ajuda o aluno a se apropriar do conhecimento sistematizado, organizado, elaborado, para que possam passar de uma visão ingênua, empírica, fechada, dogmática, desarticulada e muitas vezes incoerente para uma nova visão decodificadora e explicitadora da realidade. 4-MODELOS DE ENSINO RELIGIOSO

4.1-MODELO CATEQUÉTICO A prática catequética faz parte da vida das confissões religiosas quando elas se sustentam na transmissão de seus princípios de fé, de suas doutrinas e dogmas. Na idade Média, a totalidade cultural da cristandade sustentada de alto a baixo pelos princípios doutrinais cristãos, catequizava por si mesma em suas produções culturais e os fiéis eram iniciados na fé por um processo de imersão. Nesse contexto, a catequese era levada para dentro das escolas confessionais e públicas, servindo de motivação espiritual, como base teórica e como estratégia metodológica para o ER. Em síntese, o quadro fica da seguinte forma:

Cosmovisão

Unirreligiosa

Contexto político

Aliança Igreja-Estado

Fonte

Conteúdos doutrinais

Método

Doutrinação 234

Afinidade

Escola tradicional

Objetivo

Expansão das Igrejas

Responsabilidade

Confissões religiosas

Riscos

Proselitismo e tolerância PASSOS,1996.

4.2-MODELO TEOLÓGICO Trata-se de uma concepção de ER que busca uma fundamentação para além da confessionalidade estrita, de forma a superar a prática catequética. A justificativa teológica do ER vem contextualizada e respaldada por uma cosmovisão religiosa moderna que supera a visão de cristandade e de expansão, e busca oferecer um discurso religioso e pedagógico no diálogo com a sociedade e com as diversas confissões religiosas. É um modelo, nesse sentido, moderno, na medida em que apresenta as questões religiosas em diálogo com as demais disciplinas dentro da escola e se esforça por promover o respeito e diálogo entre as religiões, dentro de um horizonte de finalidades ecumênicas. Segundo Passos( 1996) o quadro fica da seguinte forma: Cosmovisão Plurreligiosa Contexto político

Sociedade secularizada

Fonte

Antropologia, teologia do pluralismo

Método

Indução

Afinidade

Escola nova

Objetivo

Formação religiosa dos cidadãos

Responsabilidade

Confissões religiosas

Riscos

Catequese disfarçada PASSOS, 1996.

4.3- MODELO DAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Rompe com os dois anteriores em nome da autonomia pedagógica do ER; autonomia localizada no âmbito da comunidade científica do sistema de ensino e da própria escola. Trata-se do modelo mais ideal na visão de Passos, embora embutido em muitas propostas mais atuais de fundamentação do ER. Consiste em tirar as consequências legais, teórica e pedagógica da afirmação do ER como área de conhecimento. Trata-se de reconhecer a religiosidade e a religião como dados antropológicos e socioculturais que devem ser abordados no conjunto das demais disciplinas escolares por razoes cognitivas e pedagógicas. 235

Em síntese, o quadro abaixo demonstra este modelo: Cosmovisão

Transreligiosa

Contexto político

Sociedade secularizada

Fonte

As Ciências da religião

Metodologia

Indução

Afinidade

Epistemologia atual

Objetivo

Educação do cidadão

Responsabilidade

Comunidade científica e do Estado

Riscos

Neutralidade científica PASSOS,1996.

5-PERFIL DO DOCENTE DE ENSINO REIGIOSO

O ER tem como objeto de estudo: o fenômeno religioso. O fenômeno edifica a proposta do ER hoje mediante as diversas formas de se educar, levando em consideração primordial a experiência pessoa do ser humano e o sagrado. O ensino religioso desenvolvido em sala de aula deve ser transmitido com seriedade, pois se trata da vivência e de A busca constante do sagrado na vida dos educadores e educandos. O profissional de ER deve estar capacitado para lecionar esta disciplina, uma vez trata-se de estar abordando a religiosidade num sentido amplo e global. O perfil do educador deve conter os seguintes requisitos: 1. Ter o espírito de pesquisa; 2. Respeitar as demais tradições e manifestações religiosas; 3. Ter clareza quanto à sua própria convicção de fé; 4. Ter consciência; 5. Sensibilidade à pluralidade 6. Ser livre de todo e qualquer preconceito, 7. Amar incondicionalmente o ser humano. Vivemos numa realidade onde todas as áreas profissionais estão constantemente se reciclando da melhor forma possível, a fim de estar apto a exercer a função da qual optou para desempenhar na sua trajetória como profissional. Com relação ao ER não é diferente, pois o professor é chamado a participar de congressos, simpósios e conferências para assim atualizarem sobre as inovações e evoluções do ER na história educacional organizados pelo FONAPER. Diante da trajetória do ER podemos perceber de que é importante ser desenvolvido e até criar o espírito de tolerância na sala. Primeiro porque trata – se de conhecimento do fenômeno religioso, como diz o PROGRAMA NACIONAL DOS 236

DIREITOS HUMANOS, na PROPOSTA 110: “Prevenir e combater a intolerância religiosa, inclusive no que diz respeito a religiões minoritárias e a cultos afrobrasileiros”. É bom salientar de que temos raízes diversificadas com descendência afro. O educador deve ter consciência de que a questão afro-brasileira é obrigatória nas escolas. Segundo a Lei de nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Art. 26 – A: “nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro - brasileira”. Não só a questão afro com relação à religiosidade, mas também outras expressões religiosas deve ser questões para serem abordadas e aprofundadas em sala de aula. A realidade da diversidade religiosa na sala de aula é muito importante uma vez que carregamos nas nossas expressões religiosas acidentais muitas características orientais é o que denominamos de inculturação religiosa. É de fato uma verdadeira inclusão dos valores religiosos que nos unem. Segundo Libâneo (2003, p. 28) salienta que “como mediador, o educador deve propiciar condições favoráveis para a apropriação crítica, criativa, reflexiva, significativa e duradoura do conhecimento, condição para o exercício consciente e ativo da cidadania”. Ele alega também, diante das realidades do mundo contemporâneo, de que os docentes devem adotar novas atitudes em sala de aula. Assim afirma Libâneo: a) assumir o ensino como mediação - aprendizagem ativa do aluno com a ajuda pedagógica do professor; b) modificar a ideia de uma escola e de uma prática pluridisciplinar para uma escola e uma prática interdisciplinar; c) conhecer estratégias do ensinar a pensar e ensinar a aprender; d) persistir no empenho de auxiliar os alunos a buscarem uma perspectiva crítica dos conteúdos, a se habituarem a apreender as realidades enfocadas nos conteúdos escolares de forma crítico-reflexiva; e) assumir o trabalho de sala de aula como um processo comunicacional e desenvolver capacidade comunicativa; f) reconhecer o impacto das novas tecnologias da comunicação e informação na sala de aula; g) atender à diversidade cultural e respeitar as diferenças no contexto da escola e da sala de aula; h) investir na atualização científica, técnica e cultural, como ingredientes do processo de formação continuada; i) integrar, no exercício da docência, a dimensão afetiva; j) desenvolver comportamento ético e saber orientar os alunos em valores e atitudes em relação à vida, ao ambiente, às relações humanas, a si próprios. (LIBÂNEO, 2003, p. 29-45):

5- A PRÁTICA EDUCATIVA FREIRIANA O grande educador e patrono da nossa educação Paulo Freire apresenta nas suas obras Pedagogia do oprimido e pedagogia da autonomia um suporte pedagógicos essências para uma prática educativa libertadora e reflexiva. Na sua obra pedagogia do oprimido ele faz grandes afirmações. Afirmações estas de forma dialética de se trabalhar em sala de aula. O processo de interação entre professor e educando é de fundamental importância, assim diz Freire:

237

Quanto mais analisamos as relações educador-educandos, na escola, em qualquer de seus níveis( ou fora dela ),parece que mais nos podemos convencer de que mais nos podemos convencer de que estas relações apresentam um cárater. Especial e marcante – o de serem relações fundamentalmente narradoras, dissertadoras. ( FREIRE, 1987, p. 57)

Já na pedagogia da autonomia ele apresenta várias reflexões no tocante à prática docente afirma de que ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação. Afirma Freire:

A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres. Quão ausentes da democracia se acham os que queimam as igrejas de negros porque certamente, negros não têm alma. Negros não rezam. Com sua negritude, os negros sujam a branquitude das orações. ( FREIRE, 2013, p.37)

De acordo com a afirmação de Freire a prática educativa deve estar longe de qualquer forma de preconceito, pois o docente está lidando com uma diversidade de gênero, raça, cor, religião, enfim, trabalha com a diversidade de pessoas. Como afirma Freire ( 2013): “O diferente de nós não é inferior. A intolerância é isso. É o gosto irresistível de se opor às diferenças.”

6- TÉCNICA DE ENSINO TAPETE SIMBÓLICOS 

EIXO TEMÁTICO:

Os símbolos das tradições religiosas 

PENSAMENTO DO TEÓRICO

“A teoria sem a prática vira 'verbalismo', assim como a prática sem teoria, vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade.” ( Paulo Freire )



TÉCNICA DE ENSINO:

Técnica: Tapete simbólico Conteúdo: Os símbolos das tradições religiosas Objetivo Geral: Desenvolver habilidades de interação sobre os símbolos religiosos através da técnica de ensino o tapete dos símbolos. Objetivo: 238

  

Identificar através dos símbolos as religiões Dialogar sobre a importância da simbologia Conceituar os símbolos

Públivo-alvo: Alunos do Fundamental II Metodologia: Aula dialogada e expositiva Material didático: tapete, placas com símbolos, lousa, pincel e apito Estratégia:     

Organiza-se a sala de aula com as cadeiras em forma de círculo e o tapete de símbolos no centro. O professor apresenta os símbolos aos alunos e seu signicado Com a finalidade de verificar se o alunado absorveu a explicação o prfessor realiza a dinâmica do tapete. O professor inicia convidando 2 alunos e com os cartões emborcados na sua mão ele pede que cada um jogue o dado e o número que o aluno tirar será a quantidade de cartões que o aluno irá pegar da mão do professor. Em seguida, o professor dá o sinal com um apito para que os alunos coloquem as figuras de acordo com as figuras do tapete. Vence aquele que colocar primeiro as figuras sobre as mesmas que estão no tapete.

7-CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendeu-se com este artigo apresentar as teoria acerca do Ensino religioso como também a práxis pedagógica do ensino religioso. Em relação à prática fora apresentada uma proposta de atividade para ser aplicada na aula de ensino religioso. Ficou claro de que as aulas de ensino religioso devem ser livres de qualquer tipo de proselitismo. O espaço escolar é um espaço público onde deve ser levado em consideração e respeito à diversidade e a pluralidade religiosa vigente. O aspecto metodológico deve ser voltado para a observação contínua entre docente e discente no tocante o fenômeno religioso. Outra metodologia é a reflexão que dever ser vivenciada a partir do diálogo e da interação. E para finalizar os aspectos metodológicos temos a informação, ou seja, a codificação dos conteúdos programáticos dos PCNER. Entretanto, observando à práxis pedagógica do ER percebemos o quanto merece ser aperfeiçoado as metodologias vivenciadas e aperfeiçoamento em relação à formação docente. Para finalizar constatamos que um fator primordial para desenvolver quaisquer conteúdos é a ludicidade, a forma criativa e descontraída de apresentar um conteúdo em sala de aula.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL, (1988). Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Serviço Gráfico. , (1996). Lei nº 9.394/96, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Diário Oficial da União, 20 de dezembro de 1996, seção I BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. ______, Lei de diretrizes e Bases. Lei 10.639/03, de 09 de janeiro de 2003. ENSINO RELIGIOSO, capacitação para um novo milênio. O ensino Religioso na proposta pedagógica de escola caderno 11. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática pedagógica/ Paulo Freire 47ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2013.

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FT 4 (ESOTERISMO E INQUISIÇÃO)

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Repensando a Inquisição: Uma revisão histórica da atuação do tribunal do Santo Oficio

Anderson Cordeiro de Moura140 Maria de Jesus Santana Silva141

Resumo A inquisição foi um tribunal eclesiástico, instituído pelo papa Gregório IX em 1231. Seu objetivo era zelar pela doutrina da Igreja Católica, combatendo as chamadas heresias que se espalharam pela Europa a partir do século XII. O presente trabalho, analisa a atuação do santo oficio, propondo uma releitura sobre o assunto, desconstruindo algumas imagens pré- estabelecidas da inquisição, objetivando um maior distanciamento do que é fantasia e misticismo. PALAVRAS-CHAVES: Inquisição, Misticismo, Preconceitos, heresia. Resumen La Inquisición fue un tribunal eclesiástico, instituido por el Papa Gregorio IX en 1231. Su objetivo era asegurar la enseñanza de la Iglesia Católica, la lucha contra las llamadas herejías que se propagan a través de Europa desde el siglo XII. En este trabajo se analiza el rendimiento de la oficina santa, que propone una nueva lectura sobre el tema, la deconstrucción de algunas imágenes preestablecidas de la inquisición, que apunta a una distancia mayor que es la fantasía y misticismo

1 Introdução “Ante a opinião pública, a imagem da Inquisição representa o maior símbolo de atraso e escândalo. Até que ponto esta imagem é fiel à realidade?”. (João Paulo II. Vaticano, 15 de Junho de 2004. Online) Esta foi à pergunta do Papa João Paulo II, a um grupo de mais de quarenta pesquisadores, de diferentes países, reunidos no Vaticano para uma conferencia internacional sobre inquisição realizada entre os dias 29 a 31 de outubro de 1998. Este artigo procura responder a esta pergunta do Papa.

Ao longo dos anos, a

140

Pós Graduando do curso de Especialização em História do Brasil da FADIMAB-PE ([email protected]); 141

Professora Mestre em Ciências da Religião pela UNICAP. Coordenadora do Curso de Pós-graduação em História do Brasil da FADIMAB e Docente do curso de graduação em História da FADIMAB. ([email protected]). 243

inquisição é retratada como símbolo de intolerância, e violência, na qual o homem medieval estava inserido. Nesta perspectiva, procuramos, dar um novo enfoque a partir do imaginário popular. A famosa “caça as bruxas”, a perseguição aos grandes filósofos e cientistas, as mais variadas formas de tortura e a própria violência usada na execução de hereges nos “famigerados” autos de fé, despertam o interesse e a curiosidade de quem se depara com o tema. No entanto, sabemos que muita coisa foi silenciada. Nosso objetivo portanto, é através de estudiosos do tema e do já mencionado simpósio internacional sobre inquisição, ajudar a desconstruir algumas afirmações por nós, vistas como distorcidas, no que se refere à atuação do Santo Oficio procurando contribuir para uma nova interpretação historiográfica do assunto proporcionando uma visão mais abrangente do que teria sido, o Santo Oficio da Inquisição e em qual contexto histórico ele se inseriu.

2 Os Iluministas e a Inquisição Nos utilizamos de um ditado popular, bastante conhecido que diz: “Quem conta um conto aumenta um ponto.” Podemos dizer que este ditado também se aplica ao mundo acadêmico.

A História enquanto ciência também não esta imune a este

adágio. Isto, porque, não existe nenhuma produção historiográfica, que não carregue em si, o posicionamento do historiador. Não existe imparcialidade na história! No entanto, os fatos do passado não podem ser estudados com natural imparcialidade, como se nossas experiências cotidianas (Nossa vida) pudesse, ser conscientemente afastadas no momento da pesquisa que visa reconstruir o passado [...] Pois, na medida em que expõe/ explica o passado, o faz pelo presente, pela construção de categorias carregadas de presente. (HORN, 2009, p 59)

Neste sentido, percebemos que os estudos a cerca do Tribunal da Santa Inquisição teriam aumentado tantos “pontos” que propor uma nova interpretação parece uma contradição, ou um suicídio acadêmico. A imagem da Inquisição tal qual a conhecemos, fruto de uma historiografia extremamente influenciada pelo pensamento iluminista, contrario a Igreja; que considerando todo o período chamado de Idade Média como uma Era de “atraso” e “trevas” decidiu usar a Inquisição como 244

o maior símbolo da intolerância cristã que dominava o mundo e impedia o progresso da ciência (GONZAGA, 1994). A própria enciclopédia iluminista francesa de 1765 por exemplo afirmou: Sem duvida imputaram-se a um tribunal, tão justamente detestado, excessos de horrores que ele nem sempre cometeu; mas é incorreto se levantar contra a inquisição por fatos duvidosos e mais ainda, procurar na mentira o meio de torná-la odiosa (GONZAGA, 1994 ,p. 128).

Sem duvida a historia positivista confirmou a imagem da inquisição propagada pelos iluministas. Posteriormente a historiografia marxista, também hostil a igreja, usou a imagem deturpada da inquisição como uma das maiores provas do que a “alienação” engendrada pela Igreja pode provocar. Destas interpretações carregadas de “preconceito” contra a Igreja, originaram diversos mitos dos quais alguns deles, iremos tentar desconstruir neste artigo, propondo uma nova versão para esta historia.

3 Hereges, “bodes expiatórios” Geralmente, imagina-se o herege, como um miserável inofensivo e injustiçado, silenciado na fogueira por uma instituição injusta e perversa, comprovando assim, a intolerância e o obscurantismo medieval. “A de crer nesses detratores da Inquisição, todo o mal estaria com os seus juízes; todo o bem com os seus réus" (GONZAGA, 1994, p. 120). A historiografia oficial em geral, reduz a questão da heresia a uma mera intolerância religiosa. Tornando os chamados hereges, os mártires de uma instituição perversa. No entanto, precisamos esclarecer que os grupos heréticos, eram muitas vezes, “agressivos” e “perigosos” para a sociedade.

Somos naturalmente levados a apiedar-nos dos hereges, por representarem a parte fraca, que estava sendo maltratada. Sucedese, porém, que se eles porventura assumissem o poder, e passassem a dominar e adquirissem força para tanto, seguramente dariam, aos católicos o mesmo tratamento (GONZAGA, 1994, p. 115).

Os cátaros, por exemplo, tornaram-se uma forte ameaça não só para a Igreja, mas para toda a sociedade, pois eles pregavam e incentivavam a “endura” ingerindo 245

vidro moído ou venenos, abstendo-se de alimentos ou abrindo as veias durante o banho para libertar-se da vida corporal a fim de voltar a ser um “espírito puro” (GONZAGA, 1994). Os cátaros também assassinavam mulheres grávidas por considerarem que elas estavam prolongando o sofrimento humano na terra, também provocavam muito tumulto, atacando igrejas e fazendas, assassinando padres e religiosos. Em vista disso, o historiador protestante Henry Charles Lea afirma que: “Se o catárismo se tornasse dominante, ou pelo menos igual ao catolicismo, não há dúvidas de que sua influência teria sido desastrosa” (Bernard apud AQUINO, 1998, p. 72) Além do mais, vale esclarecer que estamos falando de um tempo em que, prevalecia a concepção teocêntrica do mundo. Por esta razão, os crimes de lesamajestade-divina, ou seja, aqueles cometidos contra a fé, era tida como a pior desgraça que alguém poderia cometer, e por isso devia ser punida com a morte. Gonzaga (1994) esclarece que, mesmo antes da fundação do tribunal do santo oficio, estes crimes eram julgados unicamente pelo poder civil, no entanto, o estado era movido muito mais por questões políticas do que religiosas; a intenção do Papa ao fundar um tribunal eclesiástico era de impedir a pratica de crimes políticos cometidos em nome da Igreja. O que mais tarde acabou acontecendo em alguns reinos, especialmente na península Ibérica. Temos uma certa dificuldade em entender o comportamento do homem medieval diante das heresias porque temos uma compreensão antropocêntrica do mundo. Existe uma nítida distinção entre aquilo que é crime daquilo que é pecado, na idade média não era assim! O poder secular também apreendia o dever de defender a Igreja e os valores da fé.

Neste contexto onde a Igreja e o Estado formavam uma só realidade social, a heresia não era vista pelo povo apenas como um erro religioso, mas também como um crime contra a sociedade. Era uma ameaça contra a ordem social porque esta se baseava na fé (AQUINO, 2012, p. 28 grifos nossos).

Ou seja, a heresia era vista como uma “praga” que necessitava ser eliminado do ceio da sociedade. O rei da França, por exemplo, Luis VII enviou ao papa um documento exigindo maiores previdências á fim de exterminar as heresias de seu reino: 246

Que vossa prudência dê atenção toda particular a essa peste (a heresia) e a suprima antes que possa crescer. Suplico-vos para o bem da fé cristã, concedei todos os poderes neste Campo ao Arcebispo (de Reimis) ele destruirá os que assim se insurgem contra Deus, sua justa severidade será louvada por todos aqueles que nesta terra são animados de verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo, as queixas não se acalmarão facilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana as violentas recriminações da opinião pública (AQUINO, op. cit. p. 86).

Como vemos a mentalidade da época não julgava menos grave o crime cometido contra Deus (heresia) do crime cometido contra o rei. Pelo contrario; se o crime de lesamajestade merecia a pena da forca, muito mais os crimes de lesa-majestade-divina, estes mereciam a pena da fogueira. Este era o pensamento comum da época. “Naquela época suscetível, talvez o adultério fosse mais suportável que a heresia” (GREEN, 2011. p.162). Era o pensamento comum da época, e se queremos compreender a atuação da inquisição, precisamos compreender primeiro o contexto histórico em que ele se insere. Apesar dos exageros cometidos por tribunais inquisitoriais, como no caso da península ibérica por exemplo, que transformaram os Judeus no alvo do processo inquisitorial, as fontes nos esclarecem que nem sempre os hereges foram apenas “bodes expiatórios” vitimas da intolerância de um “tempo de trevas”

4 Inquisição: Pioneira do uso da tortura e da fogueira na Idade Média. Um dos principais equívocos que consideramos a respeito do santo oficio, seria de que este tribunal foi responsável pela institucionalização da tortura e das penas de morte, sobretudo da fogueira na Idade Média. “Os censores do santo oficio se cinge a relatar as violências deste, como se constituíssem algo anômalo naquele tempo peculiar a Igreja, que somente nesta existisse” (GONZAGA, 1994, p. 119) No entanto, as penas de morte e a tortura eram comuns tanto no antigo império Romano, quanto no direito penal dos povos bárbaros que dominaram a Europa a partir do século V. O direito penal vigente na idade média por tanto, herdou as características provenientes tanto dos resquícios do antigo Império Romano, quanto dos povos bárbaros. Contudo no século XII, um sistema muito diferente de lei desenvolveu-se no continente. Baseado na lei romana acentuava a justiça punitiva, enfatizando

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penalidades, punições e a pena de morte. Seu objetivo era proteger e purificar o estado. Como essa lei era administrada pelo Estado e não pelas comunidades, tratava-se de uma lei impessoal, com os magistrados se reportando a superiores em aldeias e cidades distantes... O juiz tornou-se o iniciador das acusações, compilando provas contra suspeitos, interrogando o acusado em segredo, usando a tortura quando necessário para certificar-se da verdade, atuando sempre em nome do Estado (BARSTOW. Anne, 1995 p. 52).

A inquisição utilizou-se daquilo que era comum a mentalidade da época. Hoje, temos peritos criminais auxiliados pela tecnologia como os exames de DNA, exames de residuográfico, câmaras de vigilância etc. Que nos auxilia na resolução dos crimes. Além do mais, estamos amparados pela segurança das leis, do direito internacional etc. O homem medieval vivia em uma sociedade ainda marcada por violência, assaltos, fome e miséria. O direito criminal baseava-se ainda nos costumes bárbaros, as questões jurídicas eram resolvidas com os “ordálios” um tipo de prova judiciária usado para determinar a culpa ou a inocência do acusado através da intervenção divina ou por meio de duelos mortais, para que a “providencia divina” designasse o culpado (AQUINO, 2012. p.36). A tortura era usada em longa escala para arrancar confissões, e quase todos os crimes eram punidos com a pena capital. Não existia o sistema penitenciário como punição para crimes como hoje, isto foi uma invenção dos tribunais da inquisição para “amenizar” o numero dos condenados a morte, por isso o nome Penitenciaria: “Lugar de penitencia” (GONZAGA, 1993). Basta atentar, nas atrocidades da legislação criminal da Idade Média, para se ver quanta falta faziam os sentimentos de piedade nos homens de então. Esmagar sob a roda, meter em água fervente, queimar vivo, enterrar vivo, escorchar vivo, esquartejar vivo, eram os meios ordinários admitidos pelos criminalistas daqueles tempos para impedir as recaídas nos mesmos crimes, e para com estes exemplos meter medo às multidões, bastante refratárias aos sentimentos de humanidade (LEA, apud AQUINO. 2012, p.101).

Portanto, a inquisição agiu dentro dos padrões daquilo que era considerado aceitável em sua época. Sendo assim, não podemos afirmar que a tortura e a fogueira foram invenções dos tribunais inquisitoriais, pois encontramos nos procedimentos da inquisição uma maior passividade no uso da tortura e no numero dos condenados a pena capital. Completamente diferente dos tribunais seculares da época. A inquisição proibia, por exemplo, a tortura de mulheres grávidas, crianças ou 248

pessoas idosas, também eram proibidas torturar duas vezes a mesma pessoa o que não ocorria nos tribunais seculares. “Referem os historiadores que muitos criminosos, por isso, se faziam tonsurar, a fim de escaparem da justiça laica, muito mais severa, e passarem a alçada da religiosa de maior brandura.” (GONZAGA, 1993, p. 90). A tortura e a pena de morte, absolutamente reprovável para nossa cultura ocidental, era algo comum e aceitável naquele período. Segundo Foucault: Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física, o corpo supliciado é escamoteado, exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado no período compreendido entre 1830 e 1848 (2009, p.19- grifos nossos).

5 Milhões de mortos Quando se fala da inquisição, percebemos que para a mentalidade coletiva ela teria sido, uma verdadeira “maquina de matar” Ouve-se falar em milhares de mortos, números espantosos que estão sendo revisitados por pesquisadores. Podemos tomar como referência as Atas do grande Simpósio Internacional sobre a Inquisição, para atestar o quanto que estes números são fantasiosos.

O Simpósio conclui que as penas de morte e os processos em que se usava tortura, representam números pouco expressivos, ao contrario do que se imaginava, Constatou-se que os tribunais religiosos eram mais brandos do que os tribunais civis, que mataram milhares de pessoas (AQUINO, 2009, p. 23).

As atas do simpósio já foram usadas como fontes para diversos historiadores. Quanto aos números eles declaram:

Sobre a Inquisição Espanhola: A Inquisição na Espanha celebrou, entre 1540 e 1700, 44.674 juízos. Os acusados condenados à morte foram apenas 1,8% (804) e, destes, 1,7% (13) foram condenados em “contumácia”, ou seja, pessoas de paradeiro desconhecido ou mortos que em seu 249

lugar se queimavam ou enforcavam bonecos (AQUINO, 2012, p. 20 e 21). Sobre as famosas “caças às bruxas” Dos 125.000 processos de sua historia [tribunais eclesiásticos], a Inquisição espanhola condenou a morte 59 “bruxas”. Na Itália. 36 e em Portugal 4 ((AQUINO, op. cit.).

Como observamos, os dados do simpósio nos esclarecem que a tão falada “Caça as bruxas” e os “milhares de mortos” tão propagados são de certa forma fantasiosas.

6. Um tribunal puramente eclesiástico Diante dos relatos feitos anteriormente, ao instituir o tribunal da inquisição, a Igreja se encarregava de investigar e punir os crimes da heresia, no entanto, percebemos que o caráter religioso deste tribunal foi-se perdendo ao longo do tempo, e os tribunais da inquisição passaram a sofrer a interferência de reis e magistrados ambiciosos, o que muito prejudicou seu procedimento, esta é a propósito, uma das a principais razões pela qual o tribunal da santa inquisição seria duramente atacado.

A Inquisição nunca foi um tribunal meramente eclesiástico; sempre teve a participação (e participação de vulto crescente) do poder régio, pois os assuntos religiosos eram, na Antiguidade e na Idade Média, assuntos de interesse do Estado; a repressão das heresias (especialmente dos cátaros, que pilhavam e saqueavam as fazendas) era praticada também pelo braço secular, que muitas vezes abusou da sua autoridade. Quanto mais o tempo passava, mais o poder régio se ingeria no tribunal da Inquisição, servindo-se da religião para fins políticos (GONZAGA, 1993 p. 15).

Embora como já dito, muito do que se propaga seja de caráter fantasioso, não se pode negar que ouve muitos atos abomináveis praticados por Juízes inquisidores, e membros deste tribunal. Contudo, uma análise cuidadosa das fontes, considerando as contrariedades da época nos permite perceber que ao contrario do que se afirma a face tão cruel e assustadora da inquisição não se trata de uma questão puramente 250

religiosa encabeçada pela igreja. Mas antes de questões políticas. A exemplo de Frederico II da França: O zelo por vezes excessivo, que Frederico II mostrou na repressão da heresia, obedecia ao mesmo pensamento de dominar o poder eclesiástico, procurando ganhar prestígios na opinião dos fiéis e afirmando solenemente a própria autoridade [...] Ao mesmo tempo, o imperador planejava lançar na mesma fogueira os hereges e os seus inimigos pessoais e políticos. E assim o fez (ALEMIDA apud Aquino 2009, p.95).

Observamos também uma maior ingerência do poder secular sobre a inquisição nas inquisições ibéricas. Os reis católicos formaram um tribunal completamente independente, controlado pela Coroa sem a interferência do Papa. Esses tribunais foram marcados por exageros, cujos abusos foram condenados, reiteradas vezes pelos Papas.

O papel do papado na inquisição de Portugal e da Espanha foi, de fato, quase sempre moderado. O papado sempre relutou em autorizar os excessos da inquisição na península ibérica e foi desobedecido diversas vezes. Leonardo Donato, um viajante italiano, observou em 1573 que o papa “não se envolvia” com a inquisição espanhola e que Pio V era incapaz de se impor e conseguir um cargo para alguém de sua confiança. Até as vitimas da inquisição chegaram a reconhecer... quando

em 1587 Joana Roba, uma moura (descendente de um

mulçumano convertido) foi julgada em Valencia por ter dito entre outras coisas, que: “se em Roma o Papa permite que cada qual viva de acordo com sua fé, por que as coisas são diferentes na Espanha? (GREEN, 2011, p. 36).

O papa relutou muito antes de conceder os pedidos dos “Reis católicos” para estabelecer uma inquisição na Espanha, somente com a ameaça de ruptura com a igreja ele cedeu. “A resistência do papado a disseminação da Inquisição ressalta o caráter predominantemente político de suas versões ibéricas.” (GREEN, 2011, p 85) Na Espanha e posteriormente também em Portugal a inquisição se afastou completamente do seu objetivo central e passou a perseguir Judeus e Muçulmanos convertidos a força, o que causou profunda revolta: “A conversão obrigatória dos Judeus de Portugal foi vista pela maior parte da Cristandade como uma farsa grotesca da doutrina católica. A teologia católica tradicional rejeitava essas 251

conversões forçadas e pregava que as pessoas fossem chamadas para a fé através da catequese e da persuasão.” (GREEN. Ibidem. p 77-78) O que não aconteceu na península ibérica, pois o tribunal inquisitorial era controlado pelo poder civil sem a menor interferência da Igreja. A inquisição, infelizmente sofreu com a ambição de reis gananciosos ao longo da história, levando-o a se tornar um tribunal completamente diferente do seu objetivo inicial. Foi assim com Fernando e Isabel na Espanha, Frederico II da França, D. João III em Portugal etc. 7 Um tribunal injusto Um dos principais equívocos a cerca do tribunal do Santo Oficio, teria sido a de que ele foi um tribunal injusto e sedento por sangue. Os inquisidores são retratados de modo sádico, como homens que se divertem com o sofrimento dos acusados enquanto os vê sendo torturados. Tribunal em que, para cada acusado só restariam duas alternativas: Confessar o crime e ser condenado, ou negá-lo e ser torturado até a morte. No entanto, as fontes registram um desejo dos inquisidores, em convencer os acusados da gravidade dos seus atos e levá-los ao arrependimento e a conversão sem chegar à pena capital. Baigent e Leigh (apud AQUINO, 2012, p.136) “São unânimes em afirmar que em geral a sentença de morte era o ultimo recurso.” O historiador Carlo Ginzburg, por exemplo, ao analisar um conjunto de crenças populares assimiladas a feitiçaria, do Friuli ente os séculos XVI e XVII, descreve a preocupação do tribunal do santo oficio com o cuidado que os inquisidores devem ter no proceder dos processos inquisitoriais. Ele descreve o relato de um cardeal (Francesco Barberine) com as seguintes recomendações do Santo Oficio aos inquisidores: Vossa reverendíssima devera fazer diligencias judiciais minuciosas a fim de provar [os delitos de infanticídio], consultando os médicos que cuidaram das crianças quando estavam enfermas; interrogando-os diligentemente sobre a qualidade da doença, pra saber se a arte da medicina lhes permite dizer se a moléstia era ou podia ser natural; finalmente, interrogando-os sobre toda serie de males e acidentes, do inicio até o fim da enfermidade. Será preciso transcrever, por extenso, todos os exames nos autos do processo para que, se por imperícia os médicos tenham julgado que a morte ocorreu não por mal natural mas por malefício, outros médicos mais experientes, tendo tomado conhecimento de todos os 252

acidentes da mesma doença, possam saber, sem ter visto os pacientes, se ela decorreu de mal natural ou sobrenatural ( GINZBURG, 2010, p 171-172).

Estas instruções vem demonstrar que a inquisição de fato, ouvia os acusados, recorria a provas concretas para condenação, relatos de parentes, vizinhos etc. Até aplicar em ultimo caso a pena Capital, em muitos casos resumia-se a penitencias canônicas, peregrinação aos lugares santos, prisão domiciliar (emparedamento), assistir numero específicos de missas, jejuns, esmolas etc. a punição variava de acordo com o grau do crime cometido e do arrependimento demonstrado pelo acusado durante o processo.

As penas da Inquisição eram frequentemente atenuadas ou até apagadas. Não se deve crer, por exemplo, que todo herege que figura nos registros como condenado ao 'muro perpétuo' haja permanecido na prisão o resto dos seus dias (...) Quando os detentos caiam doentes, obtinham permissão para se ir tratar fora da prisão ou junto às suas famílias. Frequentemente também os inquisidores concediam atenuações e comutações de pena; por exemplo, a prisão era substituída por uma multa, ou uma peregrinação, etc. Essa pena flexível decorria forçosamente do caráter medicinal que lhe atribuía a Igreja (GHIRAUD apud GONZAGA p. 136).

Alguns historiadores demonstram também a intervenção dos Papas em casos específicos com relação ao proceder de inquisidores que agiam de maneira arbitrária. “A dependência (do santo oficio) em relação a Roma significava que o núncio papal intervinha com frequência para assegurar penas mais leves.” (GREEN, 2011, p 86) fato este, que desagradava as autoridades seculares, a influencia moderadora do papado era mal vista por João III (Rei de Portugal) Se alargarmos o nosso olhar para enxergar o contexto histórico em que a inquisição se insere e a mentalidade daquela época em que o crime contra Deus era mais grave do que o crime contra o Estado, conseguiremos compreender que os inquisidores, eram movidos por uma causa que eles consideravam justa, “Santa” e não por sadismo ou por vilania. O Tribunal da Inquisição pode ser considerado como um verdadeiro progresso, porque se substituía as matanças mais ou menos gerais e aos tribunais sem direito de graça, inexoravelmente apegados ao texto da lei, tais como os que estavam instituídos pelos decretos imperiais. Este tribunal admoestava por duas vezes antes de empreender qualquer devassa e ordenava a prisão só dos hereges obstinados e dos relapsos; aceitava o 253

arrependimento e contentava-se com castigos morais, o que lhe permitiu salvar muitas pessoas que os tribunais ordinários teriam condenados (CAULY apud AQUINO, 2012, p. 131-132).

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Uma verdadeira “Caça as bruxas” Ao contrario do que muitos ensinam, a inquisição não se ocupava

demasiadamente com o pecado da Bruxaria. Outro grande equivoco é relacionar a perseguição as bruxas com o período medieval, na verdade isto começa a acontecer com maior intensidade a partir do período denominado de Idade Moderna, e em grande parte pelos tribunais de repressão protestantes, especialmente os Calvinistas. Como no caso das bruxas de Salem. No caso do Santo Oficio, a sua maior preocupação eram com outros grupos heréticos como os gnósticos, os valdenses e Luciferanos. O crime de Bruxaria era uma preocupação secundaria do Santo Oficio.

A inquisição tratava os praticantes de magia com mais indulgencia do que muitos tribunais... Acreditando que essas crenças originamse da ignorância, insto é, de uma crença errônea no poder satânico, a Igreja queria corrigir e não destruir os praticantes (BARSTOW, 1995, p. 114).

Mesmo quando o crime de bruxaria era confirmado, a sentença nem sempre era a pena capital, mas muitas vezes algumas mortificações, penitencias, confisco de bens, banimento e outras formas de punição.

Os tribunais seculares, chocados com a sua indulgencia, contestaram o direito da Igreja de julgar essas questões, mas nunca obtiveram o controle delas. Especialmente na Itália, mostrando um intenso interesse pelas atividades de cartomantes, femininas e de magos masculinos, os inquisidores viam estas atividades mais como uma crença errônea do que como magia diabólica e procuraram converter os praticantes a uma forma de catolicismo aprovado pelo Papa. Assim sendo, as punições consistiam em penitencias, e em casos extremos, em açoitamentos e banimentos, mas não na morte (BARSTOW, Ibidem, p 111).

CONSIDERAÇÕES FINAIS 254

Esperamos que este trabalho possa fornecer uma nova visão da historia da Inquisição, talvez, a ideia de que a inquisição tenha sido um dos maiores desastres históricos já concebidos pelo homem permaneçam na mente de muitas pessoas por muito tempo. No entanto, diante das afirmações de diversos historiadores e de estudos modernos sobre o tema, podemos perceber que a inquisição, não representou o grande mal vivenciado pelo homem medieval como muitos fazem questão de retratar: “A Inquisição não foi uma organização arbitrariamente concebida e imposta ao mundo cristão pela ambição e pelo fanatismo da Igreja. Foi antes o produto de uma evolução natural, poder-se-ia quase dizer necessária, das diversas forças em ação no século XIII.” (AQUINO, 2012, p. 98). Encerramos com a declaração do cardeal Cottier a respeito do pedido de perdão do Papa João Paulo II, após o congresso internacional sobre inquisição, que disse: “Não se pede perdão por algumas imagens difundidas á opinião publica que fazem parte mais do mito que da realidade” (Zenit. Org- Vaticno- 15/06/ 2004).

REFERÊNCIAS

AQUINO, Felipe. Para entender a inquisição. 3.ed. Lorena-SP: Cléofas, 2009. BARSTOW, Anne Llewellyn. Chacina de feiticeiras: Uma revisão histórica da caça as bruxas na Europa. Rio de Jeneiro: José Olympio, 1995. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.

GONZAGA, João Bernardino. A inquisição em seu mundo. Saraiva, 1993.

4.ed. São Paulo:

GREEN, Toby. Inquisição: o reinado do medo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. GUINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: Feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das letras, 2010.

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HORN. Geraldo Balduino. O ensino de história e seu curriculum: teoria e método. 2.ed. Petropoles: Vozes, 2009.

JOÃO PAULO II. Carta do Papa João Paulo II ao cardeal Roger Etchegaray na apresentação do livro que reúne as actas do congresso internacional sobre a inquisição. Vaticano, 15 de Junho de 2004. Disponivel em: Acesso em: 12 mai. 2014.

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FT 5 (PERSPECTIVAS HISTÓRICAS, FILOSÓFICAS E FENOMENOLÓGICAS DAS RELIGIÕES)

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Perspectiva histórica do rito do apedrejamento em Raffaele Pettazzoni

Márcia Maria Enéas Costa – Graduada – UNINTER142 Ao longo da história da humanidade, o apedrejamento em suas inúmeras variáveis, sempre foi empregado como ato punitivo por crimes, considerados, dependendo dos casos, como graves ou menos graves. O nosso trabalho tem como objetivo, situar o apedrejamento além da visão de uma pena meramente punitiva ligada à esfera jurídica e penal, direcionando-o a uma perspectiva histórica, principalmente no que se refere ao aspecto relacionado ao elemento sagrado e religioso. Para tanto, utilizaremos o método histórico-comparativo e descritivo baseado em pesquisa bibliográfica. Dessa forma, usaremos os escritos “La Grave Mora” e “La lapidazione degli adulteri nell’America pré-colombiana” do estudioso italiano Raffaele Pettazoni. Esse autor aponta o ato do apedrejamento em diferentes épocas ao longo da história, confrontando-os a fatos e mitos históricos ocorridos ao longo da antiguidade, nos quais percebesse violência corporal, psicológica e de gênero relacionadas à religião. A partir dessas considerações, podemos indicar como resultado de nossa análise, que a ação do apedrejamento tem-se apresentado como ato punitivo e religioso, mas que se modifica no costume e na crença conforme seu tempo e espaço e consequentemente sofre modificações em seu aspecto punitivo e religioso ao longo da história, ou seja, esse ato recebe ressignificações passando de uma ação efetiva e prática para uma instância praticamente simbólica.

Palavras-chave: Apedrejamento. Histórico-comparativo. Religião.

1. Considerações iniciais

Desde os tempos mais remotos podemos aferir que a pedra era utilizada de diferentes formas, inclusive para praticar a morte. Cantarella (2011) aponta que mesmo antes de sabermos a história grega, a pedra era a única ferramenta que os caçadores usavam como instrumento para caça de seres vivos, dando origem a uma espécie de sacrifício sangrento. A autora ainda nos indica que, logo após que o “homo necans” efetuava a matança por apedrejamento, surgia nele uma sensação de culpa (CANTARELLA, 2011, p. 59, apud Burkert, 1981, p. 185). Sendo assim, o ato de matar por apedrejamento, passou a ser compreendido como um ritual, semelhante a um evento sagrado. Partindo do questionamento que envolve o apedrejamento como questão não só jurídica e penal, mas, sobretudo religiosa, pretendemos desenvolver nosso trabalho nos

Graduada em Processos Gerenciais – Integrante do Núcleo de Pesquisas Socioantropológicas da Religião e de Gênero – Socius – contato: [email protected]. 142

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reportando aos artigos La Grave Mora143 e La lapidazione degli adulteri nell’America precolombiana do estudioso das religiões Raffaele Pettazzoni144. Artigos estes publicados na revista Studi e Materiali di Storia delle religioni I (1925) e II (1926) - SMSR145, nos quais o autor aponta como o apedrejamento pode ser utilizado de formas diferenciadas. Deste modo, nosso artigo irá apresentar os aspectos simbólicos do apedrejamento presentes nestas obras, encontrando-se dividido em três momentos. No primeiro, intitulado La Grave Mora, pretendemos mostrar o significado dessa expressão na concepção de Raffaele Pettazzoni, em seguida trazemos o trecho Lapidazioni rituali nelle celebrazioni del Hagg no qual trazemos a peregrinação feita à cidade de Meca. Nela podemos perceber alguns aspectos do ato de apedrejar como uma ação às vezes comemorativa, repulsiva e/ou de renovação. Por fim, no trecho denominado La lapidazione degli adulteri nell’America precolombiana, iremos apresentar formas de apedrejamento utilizadas como punições reservadas aos casais adúlteros, e, para quem abusava sexualmente das jovens mulheres na cultura da civilização maia, antes do período histórico referente à chegada dos espanhóis.

1. La Grave Mora na concepção de Rafaelle Pettazzoni

A expressão La Grave Mora que quer dizer acúmulo de pedras, embora utilizada como título no artigo de Pettazzoni, não é o cerne de seu trabalho. O seu interesse está focado no ato que o antecede, que é o empilhamento da pedra em si, ou melhor dizendo, no apedrejamento. O autor partindo do acontecimento narrado na obra de Dante Alighieri, no canto III do purgatório, mostra através de um viés histórico-comparativo fatos ocorridos ao longo do tempo relacionados à ação de apedrejar. Inicialmente, Pettazzoni narra o ocorrido em 26 de fevereiro de 1266: a Batalha de Benevento, que foi um fato relevante no qual o autor encontra o rito do apedrejamento, como suporte para o desenvolvimento de seu artigo. Segundo o autor nesse momento Carlo d’Angiò, chefe do exército da França, escreveu ao Papa Clemente IV, informando sua vitória contra Manfredi, rei de Svevia, e que havia encontrado seu corpo entre os mortos na batalha. Manfredi era inimigo direto da igreja e sua morte tornava-se uma notícia valiosa para o Pontífice, fato este que para Carlo d’Angiò não interessava, pois para ele apenas importava cumprir as ordens do clero. De acordo com o cronista Giovanni Villani146, Manfredi, rei de Svevia, “Foi inimigo da Santa Igreja, do clero e dos religiosos, invadindo as igrejas como fazia seu pai”147 (PETTAZZONI, 1925, p. 2 - tradução livre da autora). Sendo assim, o fato de Manfredi ter sido excomungado pelo papa Alessandro IV, justificava a razão pela qual seu sepultamento não foi realizado de acordo os costumes católicos da época. Assim, Carlo d’Angiò evitou que o corpo do rei de Svevia fosse enterrado em terra sagrada e seu funeral deu-se ao pé da 143

Em português refere-se “pilha de pedras” Cf. do italiano (Fonte: http://www.treccani.it/vocabolario/tag/mora/) 144 Raffaele Pettazzoni nasceu em 1883 na cidade de San Giovanni in Persiceto, Bolonha-Italia, morreu em 1959 na cidade de Roma. Era formado em história, filologia, arqueologia e etnologia. Foi um dos primeiros estudiosos acadêmicos a propor um estudo laico e histórico-crítico da religião de forma universal, aplicando nos seus estudos o método histórico-comparativo. 145 Revista fundada por Raffaele Pettazzoni no departamento de história das religiões da Universidade de Roma La Sapienza. 146 Giovanni Villani - Cronista da cidade de Florência (n. 1280 - m. 1348). Redigiu a Nova crônica (post., 1537), que representa um dos documentos mais significativos da cultura italiana da época (Tradução nossa). http://www.treccani.it/enciclopedia/giovanni-villani/ 147 “Nimico fu di Santa Chiesa, e de’ chierici e de’ religiosi, occupando le chiese come il suo padre”. (PETTAZZONI, 1925, p. 2)

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ponte de Benevento. Nesta ocasião o autor ressalta o fato ocorrido logo após o sepultamento do rei Manfredi, no qual os soldados do exército francês arremessaram pedras sobre sua cova de forma solene e majestosa, o que dá ao apedrejamento ocorrido nesse contexto, algo de místico e simbólico ao mesmo tempo. (PETTAZZONI, 1925) Dessa forma, podemos perceber que o cadáver do rei Manfredi passou por um apedrejamento de forma ritual. O fato é que Manfredi, rei e chefe do exército de Svevia, foi sepultado de forma não digna de sua nobreza, tendo no âmbito da igreja e de seus sacerdotes justificação para tal ato. Nota-se nessa prática, nuances de uma execução de violência simbólica, pois o rei mesmo morto ainda foi apedrejado. O que pode ser compreensível ou aceitável para o contexto cultural em que ocorreu, pois, o apedrejamento como citado anteriormente recebe vários significados e/ou usos e neste caso serviu como demonstração do poder do clero sobre seu adversário. Desse modo, verifica-se nesse ato, nuances de violência. Porém, ressaltamos que essa ação pode receber diversos significados no âmbito cultural como uma ação às vezes comemorativa, repulsiva, de renovação e/ou de punição. Com isso, nos encaminhamos para outro ponto de nossa exposição, no qual apontamos algumas variações destas formas de apedrejamento encontradas na referida obra, das quais se destacam comemoração e repulsa conforme podemos verificar.

2. Lapidazioni rituali nelle celebrazioni del Hagg148 em La Grave Mora de Rafaelle Pettazzoni

De acordo com o exposto anteriormente Pettazzoni (1925) mostra que o ato de apedrejar recebe uma conotação de violência como também um caráter simbólico e ritual. Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 700) apontam que “Esses montes de pedras podem ter diferentes significações: ora a de simples signos que indicam um caminho, um poço, um túmulo etc.; ora um sentido comemorativo, recordando um acontecimento.” Para Pettazzoni as várias formas do ato de apedrejar podem ser entendidas dentro de um contexto cultural e religioso, conforme o mesmo irá exemplificar no contexto islâmico no qual o apedrejamento apresenta-se às vezes de forma comemorativa, repulsiva e de renovação. Mediante o exposto, destacamos o apedrejamento ritualístico que ocorre na peregrinação à Meca. Nela encontram-se características que a aproxima de uma expurgação e/ou liberação. De acordo com Pettazzoni (1925) na peregrinação à cidade de Meca é praticado um ritual de apedrejamento na celebração do hagg, no mesmo dia da chegada a Mina, ou seja, cada peregrino lança sete pedras, as quais eram recolhidas quando passavam na cidade de Muzdalifa entre Arafa e Mina, para serem lançadas contra o diabo grande (gamra), que é um amontoado de pedras. O diabo (saitan) no alcorão é aquele que deve ser apedrejado, e, na tradição do Islã, o apedrejamento na cidade de Mina é um ato comemorativo por Abraão ter triunfado contra Satanás afastando-o a pedradas. O autor aponta que a lapidação deveria existir para os árabes e outros semitas como ritual a parte ou como elemento constitutivo de cultos diversos no qual, segundo os mesmos, teria valor de repulsão e eliminação, isto é, valor de liberação. O apedrejamento é praticado também sobre as tumbas para distanciar as influências emanadas de determinados lugares e principalmente afastar a presença de certas almas.

148

Lapidações rituais nas celebrações do Hagg (tradução livre da autora)

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Corroborando com o autor Chevalier e Gheerbrant (2009) apontam que Segundo as tradições do Islã, no curso da peregrinação (Hajj), a pessoa deve dirigir-se a Mina e jogar seixos nos limites de Satã (Jimar). O costume de jogar pedras sobre um túmulo é muito difundido. A lapidação é considerada um meio de se lutar contra o contágio mau do erro e da morte. Esse rito mágico se islamizou: traz-se, em oferenda simbólica, uma pedra a um marabu. Tem-se o costume de jogar uma pedra sobre as pilhas de pedras para espantar as almas que retornam, a alma do morto, os djinns. Os doentes (especialmente as mulheres) que vêm pedir sua cura a um marabu esfregam a parte doente com uma pedra. Essas pedras não devem ser tocadas depois, pois o mal se transfere a elas e pode ser retransmitido por contaminação [...]. São erguidos no local de um assassinato ou em um local onde alguém morreu de um modo que inspira piedade (chama-se menzeh). Também se erguem menzeh sobre os túmulos nos cemitérios. Fazem-se, às vezes, juramento sobre uma pilha de pedras. (CHEVALIER; GHERBRANT, 2009, p. 700)

Percebemos mediante a citação acima que a lapidação apresenta diversos significados: luta contra o mal, oferenda, proteção contra djinns (criaturas ou espíritos benéficos ou maléficos), cura, representação de piedade e ainda local de juramento. Nesse sentido reforça-se a tese de Pettazzoni apontando os vários significados e/ou sentidos que possa receber a ação de apedrejar. Sendo assim, podemos observar que de acordo com a intensão, o ato de apedrejar apresenta um sentido ritual e simbólico, o que nos indica que a pedra e o ato do apedrejamento têm um papel importante para o homem, pois se apresentam de formas diferenciadas a depender do contexto cultural em que ocorre, sofrendo assim ressignificações conforme o tempo e espaço. Dessa forma podemos encontrar diversas modalidades do ato de apedrejar e, no caso que abordaremos adiante, veremos esse ato com característica de violência moral, psicológica e de gênero.

3. La lapidazione degli adulteri nell’America precolombiana149 de Pettazzoni como um caso de violência moral e de gênero

Neste trecho de nossa exposição verifica-se a ação do apedrejamento presente na cultura maia mediante o artigo La lapidazione degli adulteri nell’America precolombiana de Pettazzoni. Este artigo, publicado na revista Studi e Materiali di Storia delle religioni II (1926), enfoca qual era o tratamento reservado aos casais em caso de adultério no continente americano antecedentemente à chegada dos espanhóis. E nesse caso, percebe-se o significado do apedrejamento relacionado a religião, porém apresentado como um ato de violência moral, psicológica e de gênero, de acordo com a narração trazida pelo autor no referido artigo. Com intuito de demonstramos as várias formas da expressão ‘violência’ ressaltamos uma exposição sobre a concepção da mesma, como uma via subjetiva que traz consigo múltiplos significados conforme podemos verificar A semântica da palavra “violência” não é clara, a não ser que tomemos posição de imediato, por se tratar de uma palavra ampla demais e ambígua que consegue ocultar-se até nos meandros mais escondidos do viver. [...] As violências “sociais” são grandes e trágicas, apesar de hoje conseguirem se 149

“A lapidação dos adúlteros na América pré-colombiana” (tradução livre da autora)

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camuflar facilmente atrás da fachada do costume, do direito, da personalidade social. Conforme as palavras de Rousseau no Contrato social: “O homem nasceu livre e por toda parte está agrilhoado”. Infelizmente, flores artificiais e correntes verdadeiras! Pode-se tratar de violência física, psicológica, comunicativa, social, familiar etc. (TERRIN, 2003, p. 212-213)

Na citação acima temos algumas demonstrações de formas diferenciadas de violência, a qual apontamos apenas para justificar ao nosso leitor qual o modo de concebemos a violência moral e psicológica em nossa análise. Ademais, Pettazzoni (1926) relata as leis aplicadas em diversas situações em que podemos perceber a violência num perspectiva punitiva tanto para aqueles que praticassem delitos quanto para os casos de adultério e violência sexual contra mulheres. Nessa direção o autor esclarece que 150

[...] o adúltero era entregue ao marido ofendido para que o mesmo decidisse se o mataria soltando uma grande pedra sobre a cabeça, ou o perdoaria se quisesse, e para a adultera não era dada outra pena além da infâmia, que entre eles era uma condenação muito grave [...]. (PETTAZZONI, 1926, p. 283 apud Da Landa, 1900, p. 286 - tradução livre da autora)

Neste caso apresentado na “Lapidazione degli adulteri” percebemos o uso do apedrejamento como distinção de gênero, pois era aplicada como punição aos homens, diferente do que ocorria com as mulheres. Nota-se que entre os culpados de adultério, somente aqueles de sexo masculino eram eventualmente mortos por apedrejamento, sendo reservado para as mulheres outra penalidade mais sutil, a infâmia, que pode ser vista como uma punição moral e psicológica, a qual iria atormentá-las para sempre. Sendo assim, podemos inferir que no contexto cultura dos maia o ato de apedrejar possui também um caráter religioso velado de forma punitiva o qual segundo Lemos (2001,2002) A religião - em sua funcionalidade institucional – é considerada um dos instrumentos mais efetivos de controle social, [...] a religião e seu processo de socialização contribuem para uma construção simbólica de extrema eficácia e durabilidade no cotidiano dos sujeitos religiosos. Portanto, a produção de violência nas relações de gênero não é algo estanque, teve origem no tempo e no espaço.” (LEMOS, 2001, 2002, p.110)

Ainda nesse sentido apresentando o uso do apedrejamento como punição vinculado as leis, porém de caráter religioso, o autor aponta outro exemplo também inserido no mesmo contexto da cultura maia. Nesse caso Pettazzoni trata da punição a ser imposta aos homens que usassem de violência sexual contra as mulheres [...] quem violentasse uma jovem, era morto por apedrejamento, conta-se um caso em que o senhor de los Tutuxios tinha um irmão que foi acusado deste crime, o qual depois ter sido apedrejado foi encoberto por um amontoado de pedra [...]. (PETTAZZONI,1926, p.283 apud Da Landa, 1900, p. 286 tradução livre da autora)

Partindo dessa exposição o autor demonstra mais uma vez o aspecto sagrado encontrado na “pilha de pedra” que ocorre posterior ao ato do apedrejamento quando o criminoso foi encoberto para que todos fossem protegidos do mal praticado e além disso 150

O termo usado na tradução refere-se em nosso contexto à pessoa traída por adultério. (explicação inserida pela autora)

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proteger os vivos contra a volta do espírito do morto. Nesse sentido percebemos que esse costume de recobrir o cadáver com pedras, é muito semelhante com o ocorrido na “La grave mora” no sepultamento do rei Manfredi. Pettazzoni, mediante o exposto, apresenta por meio de comparações o aspecto presente na catarse (ato de liberação e purificação), ou seja, não é só apenas uma questão de punir, mas sim de proteger àqueles que não tinham cometido transgressões, o apenado ficava isolado (fora da cidade ou da terra sagrada) para que os demais, que viviam naquela comunidade, não fossem contaminados, ou, impedindo, como no caso referente à cultura maia, que o espírito do apedrejado voltasse para perturbar os vivos.

5. Considerações finais

Com intuito de apresentar os aspectos diferenciados e simbólicos do apedrejamento, ressaltamos que em alguns casos esse ato é usado como punição, em outros, como uma espécie de demarcação comemorativa, ato de liberação, repulsão, de renovação, etc. Para Pettazzoni (1925) esse rito possui um caráter religioso, porém de forma mais profunda e com outros elementos de acordo com o tempo e espaço que se fazem presentes no contexto social, cultural, político, etc. Na La Grave Mora percebe-se uma mensagem que antecede a própria pilha de pedras, pois é a ação de apedrejar que é o cerne da atenção para Pettazzoni, passando pelos diversos significados já apontados acima. Já no caso da La lapidazione degli adulteri nell’America precolombiana encontramos características de um ato que é prejudicial no âmbito psíquico, pois, carrega consigo nuances de opressão e discriminação no qual demonstra aspectos de violência moral, psicológica e de gênero existentes nesse ritual. Ainda ressaltando aspectos diferenciados do apedrejamento expomos em nosso artigo o ocorrido na peregrinação à Meca que consiste em ações positivas com um sentido de comemoração e liberação. Porém, percebe-se um consenso de que, esse ritual, é visto como uma ação de violência, seja ela física ou não, o que nos remete também à uma ação negativa. Assim, conseguimos perceber nas obras acessadas que o apedrejamento tem um sentido ambíguo, de acordo com cada contexto em que ocorre há um significado próprio. Diante do exposto, apontamos que o ato do apedrejamento citado nas obras, apesar de possuir um caráter de condenação, pode-se perceber motivações religiosas que ficam ofuscadas por ações de caráter punitivos pela prática de crimes que parecem ser apenas culturais. Desse modo, em nossas considerações finais nos posicionamos de acordo com Pettazzoni, uma vez que em nosso texto direcionamo-nos para a diversidade de significados do apedrejamento como rito religioso, que, ao ser praticado no âmbito civil, provoca violência moral, psicológica e de gênero apresentando-se conforme seu tempo e seu espaço sofrendo ao passar do tempo ressignificações simbólicas.

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Referências

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CANTARELLA, Eva. I supplizi capitali: Origine e funzioni delle pene di morte in Grecia e a Roma. Nova edição. Milão: Editora Feltrinelli, 2011. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 24 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. LEMOS, Fernanda. Discurso Religioso e Violência de Gênero – uma análise da Linguagem Episcopal no Periódico Conexão. Mandrágora, São Bernardo do Campo, SP: UMESPE, ano VII, nº 7/8, p.109-115, 2001/2002.

PETTAZZONI, Raffaele. Saggi di Storia delle Religioni e di Mitologia. 1. ed. Napoli: Editora Loffredo Editore Srl, 2013.

___________, Raffaele. La Grave Mora. Studi e Materiali di Storia delle religioni, v. 1, nº 1 Roma, p. 01-65, 1925.

____________, Raffaele. La Grave Mora. Studi e Materiali di Storia delle religioni, v. 1, nº 2 Roma, p. 01-65, 1926.

TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao estudo comparado das religiões. Trad. Giuseppe Bertazzo. São Paulo: Paulinas, 2003.

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Entre impressos e mantras: o movimento Hare Krishna nos jornais do Recife (1974-1984)

Leon Adan Gutierrez de Carvalho151

1. O movimento Hare Krishna

A manifestação do movimento Hare Krishna no Ocidente pode ser caracterizada como sendo parte dos novos movimentos religiosos que despontaram na década de 1960, e, no Brasil, no início dos anos 1970. Este foi introduzido através de uma instituição, a International Society for Krishna Consciousness (ISKCON)152, fundada em 1966 em Nova Iorque, pelo guru (mestre espiritual) indiano A. C. Bhaktivedhanta Swami Prabhupada. Foi no cenário polissêmico e multifacetado da década de 1960 que o movimento Hare Krishna despontou no Ocidente como algo inteiramente novo, mas, apesar disso, sua tradição teológica não é nova e se relaciona a uma das tradições do Hinduísmo, o Vaishnavismo Gaudiya153. O movimento Hare Krishna teria sido “a face mais visível das religiões orientais exportadas para o Ocidente durante as décadas de 1960 e 1970 e muito contribuiu para definir as representações populares sobre o Hinduísmo no período” (BRYANT; EKSTRAND, 2004, p. 1, tradução nossa). Assim, apesar de podermos classificar o Hare Krishna como um dos novos movimentos religiosos154, devemos considerar que sua tradição “não-ocidental” é bem mais antiga. A presença dos membros deste movimento tornou-se notória nas ruas de muitas cidades do mundo intrigando e atraindo a atenção de muitos em um 151

Mestrando em História Social da Cultura Regional pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Em português: Sociedade Internacional para Consciência de Krishna. 153 Esta tradição, que ficou conhecida como Vaishnavismo Gaudiya, foi estabelecida na Bengala (Índia) no século XVI pelo santo e místico Chaitanya Mahaprabhu (1486-1534) e por seus seguidores, constituindo-se como uma tradição de cunho teísta tendo a divindade Krishna como Deus Supremo (cf. BRYANT; EKSTRAND, 152

2004, p. 1-2). 154

O Movimento Hare Krishna e outros grupos surgidos no contexto dos anos 1960 em diante foram classificados por antropólogos e sociólogos como sendo parte dos Novos Movimentos Religiosos. Cf. Carozzi (1994), Camurça (2003), Albuquerque (2004), Souza (2004), Guerriero (2006) e detalhadamente analisado em um livro de ensaios americano (BROMLEY; HAMMOND, 1987).

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período de grandes transformações sociais, culturais, políticas e religiosas, especialmente nos países ocidentais, que causaram rupturas com concepções estabelecidas e propuseram formas alternativas de conhecimento, estilo de vida e espiritualidade, além de um intercâmbio cultural intenso. Muitas destas transformações foram atreladas ao que ficou conhecido como Contracultura155. O movimento Hare Krishna, enquanto movimento religioso, desenvolve sua maneira de ver o mundo com ênfase na prática espiritual e na “espiritualização” do cotidiano da vida de seus membros e na tentativa missionária de possibilitar esta vivência às pessoas não devotadas à Krishna (tido numa perspectiva teísta sendo o Deus supremo, criador, onipotente, onisciente e como deidade adorável). A principal prática espiritual de um devoto de Krishna é o canto (individual e coletivo) do mantra (hino) Hare Krishna156, além da leitura e difusão da literatura traduzida e comenta pelo seu fundador, Prabhupada. No Brasil e em Pernambuco, os primeiros membros do movimento Hare Krishna surgiram em 1973 e, a partir de 1974, jornais como o Diário de Pernambuco (Recife) iriam dedicar algumas de suas páginas a construir representações sobre o movimento Hare Krishna influenciando e sendo influenciados pela opinião pública e revelando os interesses de algumas mídias impressas em consolidar e solidificar determinadas imagens sobre os novos movimentos religiosos, como o movimento Hare Krishna. Segundo Roger Chartier (2002, p. 19), a análise das representações coletivas nos permite visualizar como os diferentes atores sociais traduzem suas posições e interesses objetivamente confrontados, descrevendo paralelamente a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse. Assim, para uma análise de fontes jornalísticas, também é válido lembrar que

“De qualquer modo, independente do jornal, o pesquisador que utiliza esse periódico como fonte não deve perder de vista que o mesmo nunca deve ser tomado com efeito de verdade, mas sim como representação de grupos sociais sobre si mesmos e a realidade que os cercam”(SILVA; FRANCO, 2010, p. 10).

Na década de 1970, em pleno processo de expansão, o Movimento Hare Krishna chegou à Região Metropolitana do Recife que se constituía (e constitui ainda) em um dos principais centros urbanos do país. Apesar de alguns praticantes do Hare Krishna terem chegado à região em 1973 para atividades missionárias (que não tiveram uma continuação sistemática), foi só no ano de 1977 que membros formais da ISKCON chegaram à cidade para abrir oficialmente seu primeiro templo. A relevância do espaço recifense para uma história das práticas Hare Krishna no Brasil é que foi a partir de Recife (dos 155

Segundo Guerriero (2009), o movimento da Contracultura teve seu início nos anos 1960 nos Estados Unidos e não se deu de forma integral no Brasil, mas, deixou marcas em nossa sociedade e seria melhor definido como um espírito de uma época. Uma das vertentes mais visíveis da contracultura teria sido o orientalismo, a busca de uma espiritualidade exótica, originária de um mítico Oriente primordial. Nele estaria presente uma maneira diferente de encarar a espiritualidade que buscava a vivência de uma espiritualidade interior, experimentada como algo profundo. 156 O mantra Hare Krishna é o seguinte: Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna Hare Hare / Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare,

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recursos humanos e técnicos ali concentrados) que outros templos e centros Hare Krishna foram abertos em outras capitais e cidades do Norte e Nordeste brasileiros, na transição das décadas de 1970 e 1980157. O movimento Hare Krishna pode ser configurado nesta época como sendo essencialmente monástico e missionário (com ênfase na ortodoxia e na reprodução do “modelo original”158), de estrutura administrativa centralizadora e vertical e de uma frágil, porém rentável economia baseada na venda de livros do Movimento. Este período se seguiu até a década de 1990 quando este antigo paradigma do movimento parece ter se tornado insustentável no Brasil diante das novas demandas e transformações sociais, culturais e políticas do mundo globalizado, entrando em um verdadeiro colapso estrutural159. De fato, estas mudanças não se fizeram repentinamente, senão que adentraram paulatinamente em um movimento religioso que se retraía e tentava manter sua plausibilidade (BERGER, 1985, p. 63) diante das inúmeras e complexas modificações ocorridas no mundo globalizado dos anos 1990. Silas Guerriero (2001, p. 50-55) defende que o Movimento Hare Krishna no Brasil, passou por três fases distintas. A primeira (1974-1977) iria marcar os anos iniciais do movimento quando os primeiros grupos Hare Krishna vieram ao Brasil de maneira isolada, constituindo informalmente as primeiras células de praticantes no país; o segundo momento se daria entre 1977 e os anos 1990 (sobretudo no ano de 1996), quando teria se dado a consolidação e expansão da ISKCON no Brasil, marcada pelo surgimento de templos em várias cidades brasileiras (incluindo Recife) e de uma forte presença missionária nas ruas, marcada principalmente pela distribuição dos livros de sua editora, a Bhaktivedanta Book Trust (BBT) – causando assim uma rápida ascensão e estruturação da ISKCON no Brasil. Segundo Guerriero (op. cit., p. 50-51), os membros da ISKCON e suas lideranças, tinham nesse período “a expectativa de um crescimento quantitativo expressivo que pudesse causar uma mudança em toda a sociedade. Tratava-se de mostrar a todos uma saída para a vida vazia e sem sentido que as pessoas vivenciavam”. Teria havido então, um terceiro momento que surge na conjuntura dos anos 1990, na qual “o movimento deixa de ser revolucionário e inovador, acomodando-se no interior de um campo mais amplo das demais denominações religiosas” (GUERRIERO, 2001, p. 51). Para este momento “contemporâneo” da história do movimento

157

Mais tarde este centro de irradiação do movimento seria transferido para a comunidade sede do Movimento Hare Krishna no Norte e Nordeste, a Fazenda Nova Vraja Dhama (Caruaru-PE), fundada em 1987. (Cf. CARVALHO, 2014, p. 3946). 158

Chamamos aqui de “modelo original” a formatação das práticas religiosas cotidianas e das formas de manutenção administrativas e econômica da ISKCON como instituídas pelo seu fundador, Prabhupada. 159 Esta “crise de identidade” vivenciada pela ISKCON foi aprofundada na tese de Adami (2013, p. 91-109).

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Hare Krishna no Brasil, observamos que um “novo paradigma” passa a ser, senão implementado integralmente, ao menos almejado pela instituição160. Seguindo este entendimento, o presente trabalho, parte de uma pesquisa ainda em andamento, fará uma análise da primeira fase (1974-1977) e de parte da segunda fase do movimento Hare Krishna (1977-1984) na cidade do Recife, evidenciando alguns dos conflitos vivenciados no período. Nosso trabalho de pesquisa se deu basicamente, com o uso de fontes jornalísticas e documentos da instituição pesquisados em sua sede regional na cidade de Caruaru-PE. Não pudemos deixar de perceber que, no contexto da constituição de um grupo local, as atividades missionárias que passaram a ser desenvolvidas pelo movimento Hare Krishna em Recife naturalmente expuseram seus membros ao crivo dos juízos de valor feitos pelos indivíduos e instituições da sociedade que tiveram contato com eles ou que intencionalmente buscaram um diagnóstico. A introdução de um movimento religioso que necessariamente carregava alguns aspectos de uma (possível) cultura indiana no contexto social local, inseriu de uma ou outra maneira elementos culturais distintos (estranhos, exóticos) ocasionando em “negociações”, (re)adaptações, (res)significações e, também, rejeições, induções e classificações acerca do que seria (ou o que deveria ser) o movimento Hare Krishna. Discursos carregados de exotização, estereotipia e estranhização sobre os membros do movimento Hare Krishna, sobre suas práticas, espaços, vestimentas, gestos, musicalidade e religiosidade, não eram incomuns. Certamente, ocorreram diversas situações de conflitos entre os religiosos e as famílias da sociedade local que buscavam reaver seus entes, principalmente os jovens, que abandonavam suas casas em busca da vivência monástica nos templos Hare Krishna desejosos de usufruir dos bens religiosos ofertados ou propostos nestes espaços sacralizados. Dessa forma, a existência do movimento Hare Krishna como instituição que poderia “doutrinar”, “treinar” ou “educar” pessoas da sociedade, parece ter causado “desconforto” entre algumas famílias recifenses nos termos de seus valores, percepções e padrões a cerca do que seria uma vivência social, cultural e religiosa adequadas para seus membros. Na década de 1970, quando muitos dos novos movimentos religiosos atuavam na Europa, Estados Unidos e América Latina, uma reação a estes grupos se deu por parte de alguns segmentos da sociedade, formado principalmente por famílias tradicionais que desejavam impedir que seus membros, principalmente os jovens, tomassem parte das vivências destes grupos que, à revelia de seus atores sociais, foram caracterizados como seitas161. A caracterização dos novos movimentos

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Este novo paradigma do movimento Hare Krishna estaria baseado no Desenvolvimento Congregacional (contrapondo-se a ênfase monástica), em uma flexibilização ou renovação de determinados conceitos e das práticas, busca de atividades econômicas sustentáveis (com ênfase na inserção social em detrimento da vida monástica) e busca de descentralização administrativa (Cf. CARVALHO, 2014, p. 52-57). 161 Além do movimento Hare Krishna, muitas outras instituições ou mesmo ideologias, filosofias e práticas espiritualistas foram classificadas como seitas, nos anos 1960 e 1990. Entre elas os adeptos da igreja do Reverendo Moon, os Meninos de Deus, as diversas práticas de yoga de gurus indianos (tradicionais ou não), entre outras, como analisadas por Birman (2005) e Giumbelli (2002).

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religiosos como “seitas” e de suas práticas como “lavagem cerebral” causou conflitos constantes no mundo Ocidental entre as famílias e instituições anti-seita de um lado, que utilizavam deste discurso para construir uma determinada representação destes movimentos e, de outro, os adeptos dos novos movimentos religiosos (e suas instituições) que tentavam configurar as suas próprias representações, gerando as lutas de representações (cf. CHARTIER, 2002, p. 17) que foram travadas no período. Dessa maneira, o movimento Hare Krishna foi classificado frequentemente por diferentes interlocutores, como os jornais, como sendo uma “seita”, com toda a imprecisão do termo. Não era incomum que os jornais utilizassem a dicotomia “igreja/seita” para diferenciar as religiões mais amplamente difundidas chamadas de “históricas”, das outras formas de religiosidade tidas como “seitas”, como se esses movimentos fossem a-históricos, como se não fossem válidos ou fossem invenções sem fundamento. Boa parte da utilização dos discursos que “batizaram” uma determinada prática religiosa como “seita” o fizeram num sentido de servir-se de um “instrumento de luta religiosa, ideológica e política” (PARKER in CIPRIANI et al, 1997, p. 79), efetuando uma simplificação e um reducionismo intencional à complexidade do fenômeno de novos movimentos religiosos. Assim, Parker (in CIPRIANI et al,1997, p. 85) define que “seria incongruente, por exemplo, considerar como ‘seita’ (um conceito derivado do de igreja) expressões de religiões orientais em países ocidentais, como de fato se fez amiúde com movimentos como o Hare Krishna” (PARKER in CIPRIANI et al, 1997, p. 89)162. Vejamos agora, uma análise sobre os primeiros anos do movimento Hare Krishna na região metropolitana da cidade do Recife.

A presença do Hare Krishna nas ruas e jornais do Recife

No início de janeiro de 1974, já havia a primeira tentativa de estabelecer um “templo” e restaurante Hare Krishna na cidade de Olinda, despertando a atenção de um público basicamente jovem e, provavelmente, de classe média163. Um casal de estadunidenses proveniente do Havaí que viera ao Brasil a fim de divulgar as vivências Hare Krishna de maneira espontânea, juntamente com alguns dos primeiros adeptos brasileiros (vindos de São Paulo) foram à cidade do Recife para tentar estabelecer um templo ou centro de pregação Hare Krishna. Por algum motivo ainda desconhecido por nós, estes primeiros integrantes do movimento no Estado, decidiram por se instalar na cidade de Olinda, região metropolitana do Recife. Um motivo provável, talvez tenha sido o fato de que eles não representavam a ISKCON, ou seja, não tinham sido enviados pela instituição oficialmente com o objetivo de fundar ali uma “missão” Hare Krishna e, assim, como missionários “independentes” ou “espontâneos” eles não dispunham de recursos financeiros que viessem além das doações coletadas

162

Carozzi (1994, p. 61), sugere que os pesquisadores acabaram adotando a expressão “novos movimentos religiosos”, considerada “mais genérica e menos carregada valorativamente” no decorrer dos anos 1980 e 1990. 163 A predominância de membros da classe média no movimento Hare Krishna é comumente relatada em análises de estudiosos do movimento. Cf. Gerriero (1989) e Rochford Jr. (1985).

269

com a venda de sua literatura. Esta falta de recursos pode ter motivado a instalação em Olinda onde os aluguéis seriam mais acessíveis que nos bairros centrais ou “nobres” do Recife. Vestidos com suas tradicionais indumentárias indianas e munidos com literatura própria do movimento para distribuir nas ruas da cidade (e pedir doações em troca) esses primeiros Hare Krishna a circularem em Pernambuco provavelmente despertavam a atenção por onde passavam, chamando a atenção também dos jornais. Na primeira reportagem sobre o movimento Hare Krishna em Pernambuco em um quarto de página, o Diário de Pernambuco iria relatar a presença dos religiosos no Bairro Novo, em Olinda, no que seria um “templo” instalado em uma “casa de praia” na Rua Pedro de Assis Rocha. Segundo a reportagem, os rapazes levavam “muito a sério a sua religião”, seriam “jovens”, “alegres” e “fazem questão de dizer que nada tem haver com os ‘hippies’”. Os “jovens” são fotografados em um quadro que sugere a meditação ou reflexão, em que eles se encontram cantando concentradamente. Nesta reportagem, de tom bastante amistoso e curioso em relação à novidade, o Hare Krishna é tido como “religião”, “religião de origem indu” (sic) e “religião indu” (sic) e ainda traça uma explicação sobre aquilo que seria necessário àqueles que quiserem “seguir a religião”, evidenciando o caráter de disponibilidade do leitor em escolher uma religião possível entre as demais (Diário de Pernambuco, 05/01/1974, p. 7). A segunda reportagem viria alguns meses depois em junho do mesmo ano e narraria a transformação daquele templo em um “restaurante místico”. A reportagem parece ter sido atraída pela inauguração recente do Sunshine Health Food’s que representaria uma “tendência de consumo de cunho religioso”. O líder do grupo e porta-voz parece querer apresentar uma imagem de “pureza” e de “comida saudável” para o seu restaurante e defenderia que o seu restaurante seria o “único no Recife que oferece uma comida saudável”, demonstrando a maneira como gostariam que fossem vistos. O restaurante de fato parecia ser uma tentativa de manter o programa missionário do grupo, mas a proposta principal parecia mesmo a de “discutir com todos a respeito das ideias de Krishna” (Diário de Pernambuco, 24/06/1974, p. 5). Uma característica interessante nessa edição é que o líder parece se apropriar das representações geralmente feitas ao movimento Hare Krishna, presentes também nesta mesma reportagem, em relação ao suposto caráter “oriental” do movimento religioso. A ideia de referir-se a alguém ou a um grupo identitário como “oriental” é deveras problemática já que o termo “oriental” é uma designação geográfica, e não uma definição cultural, como se todas as pessoas, práticas e culturas presentes no Oriente (que abrande uma diversidade cultural e étnica extremamente ampla) fossem iguais ou que representassem a mesma categoria. Muitas representações que partiram do Ocidente desde o século XVIII têm realizado um reducionismo intencional em relação à cultura e povos “orientais”164. O movimento Hare Krishna, apesar de suas origens indianas, tinha sido fundado por um guru indiano nos Estados Unidos e a grande parte de seus membros era de ocidentais que desenvolviam sua vida missionária no Ocidente, por e para ocidentais e, assim, não se via e não simpatizava com a ideia de ser visto como um “movimento oriental”. Em seu sectarismo, a ISKCON se via como um movimento “transcendental” que ia além das designações materiais. Mas, utilizando-se das representações que

164

Sobre discussão das representações do Ocidente sobre o Oriente, cf. (SAID, 2007).

270

pairavam sobre essa “religião hindu”, o líder Hare Krishna aproveitava o espaço aberto pela reportagem do jornal para astuciosamente165 convidar a todos a comer o “bom alimento do Oriente”. A próxima reportagem que se segue tem um tom menos amistoso, talvez em parte pelo tom proselitista que os “rapazes” tiveram ao condenar o “comodismo da vida moderna” (Diário de Pernambuco, 29/09/1975, p. 5). O mais notável é a mudança de perspectiva e a definição do movimento Hare Krishna já na manchete passa ser a de “seita”. Utilizando de comparações com elementos que pretendem mostrar a exoticidade dos cinco rapazes que “se espalharam pelos quatro cantos do Recife”, a reportagem diria que os “rapazes” teriam suas cabeças raspadas “à semelhança dos mongóis”. É interessante notar é que, a partir desta reportagem (com algumas poucas exceções) o movimento passaria a englobar o hall das “seitas”, a exemplo do que traz o discurso desta edição que defenderia que estes rapazes estariam “repetindo as mesmas palavras usadas por todas as seitas ainda pouco conhecidas”. A reportagem ainda definiria que os rapazes seriam denominados “gurus” e que eles “tumultuaram” as ruas por onde passaram (sem especificar que tipo de tumulto), que eles não teriam convicção nas palavras que usavam e que repetiam “eternos chavões” – sem explicar o que deveria ser um “chavão” e o que não deveria ser considerado como tal. Ainda seria dito que os rapazes teriam sido “admirados” por uns populares “boquiabertos”, “xingados” por outros e que “os gurus criticam tudo o que é material e de repente desaparecem no meio a multidão para não responderem as perguntas formuladas por aqueles que os ouvem”. Esta narrativa, um tanto teatralizada de uma atividade missionária típica do movimento Hare Krishna revela determinadas nuances de como os membros do movimento poderiam ser descritos pelos jornais e das representações destacadas para a apreciação do público leitor, ou seja, pelos clientes do jornal. A partir desta reportagem as demais seriam no humor de denúncia (e não mais de curiosidade) motivada pelo desconhecimento e pelo englobamento do Hare Krishna com outros novos movimentos religiosos que, independentemente de suas diferenças muitas vezes antagônicas, eram englobados no mesmo conceito de “seita”. No ano de 1974, o “restaurante místico” seria fechado pelo grupo local que teria voltado a São Paulo devido a problemas com o grupo de havaianos estabelecido naquela cidade. Mas teria deixado um grupo de simpatizantes pernambucanos e até o ano de 1977 grupos de missionários como os descritos na reportagem acima fariam passagens pela cidade de Recife. A segunda metade década de 1970 traria à tona na mídia nacional o problema das “seitas” e casos de pessoas que deixavam tudo para aderir a estes grupos pouco conhecidos, de mensagem e práticas estranhas, chocando a sociedade que professava valores tradicionais. Os jornais intensificariam então, a veiculação de reportagens com teor negativo sobre esses grupos e, que acontece em um caso específico com uma determinada “seita” logo afetaria a reputação de todas as “outras” por estarem sob o julgo da mesma classificação padronizante.

Institucionalização e intensificação dos conflitos

165

Utilizamos a ideia de “astúcia” conforme Michel de Certeau (2012, p. 51).

271

No final de 1977 e inicio de 1978, a ISKCON seria formalmente estabelecida em Recife, com estatuto próprio e um templo oficializado pela instituição. Todavia, a inauguração das atividades da ISKCON na cidade, apesar de ter sido realizado por um membro enviado pela instituição não contaria com seus recursos financeiros ou de um grupo de apoio. Apesar disto, o baiano Antônio Sérgio Ribeiro (também conhecido como Jagad Vichitra Das), que mais tarde apareceria nos jornais, parece ter realizado um trabalho de convocação do grupo remanescente de simpatizantes formados entre 1974 e 1977 e realizado uma pregação suficiente para constituir um corpus de membros necessário para instituir o templo que passaria a crescer durante toda a primeira década de 1980. Assim, em julho de 1978, monges Hare Krishna voltam a aparecer no Diário e, mais uma vez, o cenário é o das ruas do Recife. Em uma reportagem centralizada na página sobre as ruas de lazer do Recife, os Hare Krishna seriam descritos atuando como em um palco de teatro interativo onde cada gesto e palavras descritas parecem sugerir um espetáculo. “Que danado é isso?”, “Êta bando de malandros”, “olha aqueles doidos” teriam exclamado alguns populares ao verem dois adeptos Hare Krishna cantando na Rua da Palma. Formado o palco de curiosos eles teria se dirigido aos “espectadores” eles teriam oferecido um convite que dava direito a um jantar vegetariano em seu templo. Mas quando os “religiosos” tiraram de sua bolsa livros sobre meditação dizendo que custavam apenas “cinco cruzeirinhos” a roda teria sido logo desfeita. Hare Krishna, comerciantes ambulantes e vendedores de “santinhos” estariam segundo o jornal disputando o espaço público das ruas de lazer da cidade que estariam “assumindo características próprias de uma feira” (Diário de Pernambuco, 05/07/1978, p. A-5). Em 1978, uma tragédia botaria fogo nas discussões sobre a boa intenção das assim chamadas “seitas” e de suas atividades missionárias. A organização denominada Templo do Povo, coordenada por Jin Jones e instalada em uma comunidade na Guiana, teria cometido um suicídio coletivo que matou mais de 800 pessoas, entre adultos, crianças e idosos, chocando a opinião pública mundial e impulsionando o surgimento de organizações anti-seita, seja motivado por grupos de religiões tradicionais, seja pelas famílias ou mesmo pelo Estado. Todos os grupos que eram classificados como “seitas” sofreriam comparações com o Templo do Povo e um clima de suspeição se deu a nível mundial. Prevendo uma reação do tipo “efeito dominó”, o presidente do templo Hare Krishna no Recife, Jagad Vichitra teria se antecipado às discussões e distribuído uma “Nota à Imprensa” lamentando o ocorrido na Guiana considerando o ocorrido como “repugnante” e que a ISKCON “abomina tais bizarros atos de violência”. A nota solicitava ainda a Imprensa que não se referisse ao movimento Hare Krishna como “seita”, já que estaria assim vinculando o movimento aos “Meninos de Deus”, “Moonies”, “Cientologistas” e ao “Templo do Povo”. Segundo ele teria dito, o movimento estaria sendo “vítima de incompreensões” quanto a sua natureza religiosa, demonstrando dessa forma, a maneira como os membros do movimento gostariam de ser tratados e como eram geralmente representados (Diário de Pernambuco, 05/12/1978, p. A-7). O receio do aflito “presidente” não seria desprovido de fundamentos. De fato, no início de 1979, o Diário veicularia uma notícia internacional sobre as “seitas”, em que seu interlocutor, um especialista em “desprogramação” de membros de “seitas religiosas”, afirmava que “esse poder (para a prática de assassínio em massa ou suicídio coletivo), existe nas seitas da Igreja da Unificação, do Krishna, da Cientologia”, divulgando assim o sentimento de temor e de medo para com as “seitas” promovido pelas organizações anti-seita (Diário de Pernambuco, 03/02/1979, p. A-13). Durante a primeira metade da década de 1980, o movimento Hare Krishna seria representado nesse tom de suspeição como que fazendo um alerta à sociedade. Títulos sensacionalistas chamariam a 272

atenção dos leitores para o fenômeno que seria, segundo alguns, “uma das piores pragas deste século” (Diário de Pernambuco, 12/11/1981, p. B-1). Assim, manchetes como “Krishna: entre a religião e a lavagem cerebral”, “A suave invasão”, “Seita denunciada” e “Seita desvia personalidade das mocinhas”166 evidenciam a preocupação em estabelecer um debate mesmo internacional promovido pela mídia nos países ocidentais motivado pelo processo de ascensão desses grupos minoritários e a consequente ameaça dos “outsiders” aos grupos “estabelecidos”167. Esse processo de conflito entre grupos defensores de valores tidos como tradicionais e os novos movimentos religiosos introduzidos no Ocidente nesse contexto parece querer nos mostrar, além da ressignificação do elemento religioso na sociedade que se pretende secular (mas que não consegue ser plenamente), uma questão de choque de valores entre o “tradicional”, representado pelos valores culturais da família, da religião e da sociedade tradicionalmente aceitos na cultura ocidental e o “novo”, representado pelas formas de religiosidade, organização comunitária e visão de mundo desses grupos minoritários inseridos ou surgidos no Ocidente, como o movimento Hare Krishna. As fontes jornalísticas e as representações criadas ou circuladas no processo de edição dos jornais seriam extremamente importantes para uma percepção do projeto de adesão das mídias impressas diante destes debates e pela tomada de partido dos jornais diante dos conflitos entre esses grupos sociais evidenciando também os valores promovidos pela elite (financiadora dos impressos).

Considerações finais

O presente trabalho ainda não poderá tomar conclusões, mas, podemos perceber certos indicadores que demonstram resultados parciais da pesquisa. Entendemos que na história da ISKCON em Pernambuco e suas representações nos jornais houve uma fase inicial (1973-1977) marcada pelo pioneirismo dos primeiros devotos de Krishna e uma segunda fase (1977-1984) marcada pelo estabelecimento do movimento e por grandes conflitos nos jornais. De 1974 até 1978, o Diário de Pernambuco aparentemente relatou com curiosidade o grupo “exótico” de religiosos que se instalaram na região metropolitana. Mas, a partir de 1978, quando o primeiro templo foi formalmente constituído em Recife, a atividade missionária executada nas ruas da cidade se intensificou e com o debate internacional sobre o “problema das seitas”, sobretudo na primeira década de 1980, as representações sobre os religiosos e suas práticas passaram a ter um caráter mais taxativo, pejorativo e as reportagens do Diário de Pernambuco passaram a veicular temores, receios e preocupações sobre o Hare Krishna e outros movimentos religiosos categorizados como “seitas” evidenciando um projeto de deslegitimação de determinados grupos identitários.

166

Para não fragmentar demasiadamente a leitura do texto, colocamos aqui, na sequência, a citação das quatro respectivas edições que traziam as manchetes citadas: Diário de Pernambuco, 12/11/1981, p. B-1; Diário de Pernambuco, 14/03/1982, p. B-1; Diário de Pernambuco, 15/01/1984, Capa; Diário de Pernambuco, 15/01/1984, p. A-15. 167 Utilizamos aqui os conceitos conforme Elias e Scotson (2000, passim).

273

Esperamos que este trabalho possa ser tomado como uma contribuição, ainda que sucinta sobre o debate acerca dos novos movimentos religiosos nas décadas de 1970 e 1980 e, especialmente, sobre a história do movimento Hare Krishna no Brasil.

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276

Das mãos de Bezerra de Menezes à mediunidade de Chico Xavier: trajetos da reelaboração do Espiritismo no Brasil.

Fabiano Cesar de Mendonça Vidal168

O presente trabalho possui um olhar antropológico, de caráter essencialmente bibliográfico, e tem por intenção apresentar, com base nas ideias da antropóloga Sandra Jacqueline Stoll (2003), para quem o Espiritismo, no Brasil, é uma reelaboração original da doutrina fundada por Allan Kardec na França, a tese de que a obra Os Quatro Evangelhos – A revelação da revelação do advogado francês Jean Baptiste Roustaing, contemporâneo de Kardec, é de fundamental importância para a reelaboração do Espiritismo no Brasil. Natural de Bordeaux, Jean Baptiste Roustaing toma conhecimento da doutrina espírita elaborada por Allan Kardec ao restabelecer-se de uma enfermidade através da recomendação de um médico que lhe falara sobre as possibilidades de comunicação entre o mundo corpóreo e o espiritual (VIDAL, 2014, p.46-47). O estudo das obras de Allan Kardec causa grande impacto em Roustaing, que em parceria com a médium Emilie Collignon, produz a obra Os Quatro Evangelhos – A revelação da revelação, que lhe teria sido ditada pelos espíritos de João Baptista, Moisés, Mateus, Lucas, Marcos e João, sendo considerada por estudiosos da doutrina espírita, a exemplo de Herculano Pires e Júlio Abreu Filho (1973), Gélio Lacerda (1995), Krishnamurti de Carvalho Dias (2000) e Sergio Aleixo (2011) como o “primeiro cisma” do Espiritismo. Os Quatro Evangelhos pretendia responder, sob a ótica espírita, informações sobre a origem e natureza espirituais de Jesus169, que teria vindo à Terra em um corpo fluídico170, e não carnal, ou seja, tudo na vida de 168

Mestre em Ciências das Religiões – Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected] 169 Sobre a natureza de Jesus e seus poderes, Roustaing considerava que a obra de Allan Kardec pouco esclarecia a respeito. 170 O “corpo fluídico” é entendido por Allan Kardec como um corpo sem a coesão característica de corpos materiais, ou seja, “a vida, neles, não repousa no funcionamento de órgãos especiais, e neles não se podem produzir desordens análogas; um instrumento cortante, ou qualquer outro, ali penetra

277

Jesus, desde sua gestação por Maria e o sofrimento de sua morte na cruz haveria ocorrido apenas em aparência, concepção que posteriormente será rejeitada por Allan Kardec na Revista Espírita de 1866 e no livro A Gênese (1868)171. Outras teses roustainguistas também iam de encontro a princípios kardecistas: a reencarnação, de acordo com Roustaing, serviria como uma punição de pecados, se opondo ao ciclo evolutivo preconizado e defendido por Kardec, segundo a qual o espírito reencarnaria tantas vezes fosse necessário até atingir o estado de espírito puro, que não mais necessitaria reencarnar. Além disso, Roustaing afirmava que o futuro espiritual da humanidade estaria destinada à “Igreja do Cristo” e nas mãos do Papa (MAIOR, 2013, p.294). Desde sua chegada ao Brasil, o Espiritismo, em fase anterior à proclamação da República, foi severamente combatido pela religião oficial do Império, o Catolicismo, e foi necessário realizar um grande esforço na busca de sua legitimação em solo brasileiro. Considero a primeira tentativa nesse sentido, a criação, em Salvador, do periódico O Écho de Além-Túmulo (1869), idealizado pelo jornalista Luiz Olympio Telles de Menezes172, que defendia, em conjunto com seus companheiros do Grupo de Estudos Espiríticos da Bahia (ARRIBAS, 2010, p.63) a tese de que para ser espírita, não se fazia necessário abandonar a crença no Catolicismo, pois considerava o Espiritismo “uma filosofia de vida, uma conduta moral, que podia conviver, nesse momento, com o Catolicismo”173 (GOMES, 2012, p.155).

como num vapor, sem lhe ocasionar lesão alguma. Eis porque os seres fluídicos designados sob o nome de agêneres não podem ser mortos” (KARDEC, 2003, p.303) (Grifo original do autor). 171 Para Kardec, “Se durante sua vida Jesus tivesse estado nas condições dos seres fluídicos, não teria experimentado nem a dor, nem nenhuma das necessidades do corpo. (...) Se tudo nele era só aparência, todos os atos de sua vida (...) teria sido um vão simulacro, para enganar com relação à sua natureza e fazer crer no sacrifício ilusório de sua vida, uma comédia indigna de um homem honesto e simples, quanto mais, e por mais forte razão, de um ser também superior; numa palavra, teria abusado da boa fé de seus contemporâneos e da posteridade. Tais são as consequências lógicas desse sistema, consequências que não são admissíveis, pois resultaria em diminuí-lo moralmente, em lugar de o elevar” (KARDEC, 2003, p.304). 172 Criado como católico, Luiz Olympio Telles de Menezes é considerado pelo jornalista Luciano dos Anjos, um dos maiores defensores da obra de Roustaing no Brasil, como um adepto das teses roustainguistas, tendo feito, inclusive, a recomendação da leitura de sua obra: “O Sr. Roustaing, espírita sério, tem a probidade da franqueza e a virtude da abnegação. Recomendamos, portanto, a todos os espíritas sérios a leitura dessa obra incontestavelmente de um mérito real”. (ANJOS, 1993, p.158). 173 A tentativa de conciliar Espiritismo e Catolicismo por Telles de Menezes lhe valeu uma reprimenda por parte de Armand Théodore Desliens, da Societé Anonyme à parts d’intérêts à Capital Variable de La Caisse générale ET centrale du Spiritisme. Desliens considerava que “O Espiritismo não deve adstringir-se a nenhuma forma religiosa determinada; é, e deve permanecer uma filosofia progressiva e tolerante, abrindo seus braços a todos os deserdados, qualquer que seja sua nacionalidade e a crença religiosa a que pertençam” (FERNANDES, 2010, p.64).

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Exemplares de Os Quatro Evangelhos chegaram ao Brasil em 1870, ocasião em que se dá início a seu estudo e divulgação, não sem dificuldades, visto que ainda encontrava-se publicada em seu idioma original – o francês. Apenas em 1880, por ocasião da fundação da Sociedade Espírita Fraternidade, ocorreu a primeira tentativa de traduzi-la para o português, em um manuscrito feito por João Kall. De acordo com Barros e Martins, biógrafos de Roustaing, esta primeira tentativa de tradução não possuía o objetivo de uma futura publicação, o que ocorreria apenas em 1883, por iniciativa do Marechal Francisco Raimundo Ewerton Quadros, apenas um ano antes da fundação da Federação Espírita Brasileira – FEB (BARROS; MARTINS, 2005, p.560-561). Empolgado com o Espiritismo, em 24 de agosto de 1871 Telles de Menezes realiza a primeira tentativa de reconhecimento oficial do Espiritismo ao entregar, para o Vice-Presidente da Bahia, Dr. Francisco José da Rocha, requerimento onde pedia aprovação dos estatutos e autorização do que seria a Sociedade Espírita Brasileira. Um decreto de número 2.711, de 19 de dezembro de 1860 estabelecia que a aprovação por parte do governo de qualquer sociedade religiosa não-católica deveria ser submetida para a aprovação do Ordinário, D. Manoel Joaquim da Silveira, com quem Telles de Menezes polemizara alguns anos antes. D. Joaquim nega a aprovação ao afirmar que o Espiritismo era um “atentado formal contra a fé católica”, e que uma doutrina que possuía por objetivo contrariar a religião do Estado, só poderia ser contra esse mesmo Estado (VIDAL, 2014, p.12-13). Com o insucesso de Telles de Menezes em formatar um Espiritismo à brasileira no qual este dialoga com a doutrina católica, caberá a Bezerra de Menezes a elaboração de um discurso que tem, em Roustaing, o elemento necessário para viabilizar a formatação deste Espiritismo à brasileira idealizado por Telles de Menezes, uma vez que a obra roustainguista possui teses em comum com o catolicismo, a exemplo da virgindade de Maria, por também entender que Jesus não poderia nascer fruto de um pecado. Arribas considera que Bezerra de Menezes foi um (...) dos líderes e intelectuais mais importantes que trabalharam para a consolidação da doutrina espírita nos moldes ensejados pelo campo religioso brasileiro em formação. Não é à toa que foi e ainda é reconhecido pela designação de “Allan Kardec brasileiro”, justamente pelo fato de ter sido ele o “codificador” do espiritismo no Brasil, o seu organizador. A partir daí, a ideia de uma “doutrina religiosa” – enquanto corpo sistemático e organizado de princípios – só se tornou possível através de sua interpretação (ARRIBAS, 2010, p.136-137).

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Ainda de acordo com esta autora, coube a Bezerra de Menezes “não só o trabalho de selecionar, na obra de Allan Kardec, determinados aspectos em detrimento de outros, como também o de encandeá-los, juntamente com outras coordenadas externas à obra kardequiana, visando dar ao seu espiritismo certa coerência e ordenação dentro de uma nova conformação estrutural” (ARRIBAS, 2010, p.137) (Grifo nosso). De fato, é o que irá ocorrer após Bezerra de Menezes assumir pela primeira vez a presidência da Federação Espírita Brasileira, ocasião na qual seu mandato é encurtado em menos de um ano em função das disputas entre aqueles que enfatizavam o aspecto científico do Espiritismo e aqueles que, assim, como ele, eram denominados de místicos (SANTOS, 2004, p.24). A partir de 1890, Bezerra de Menezes realiza estudos no Grupo Ismael, de O Livro dos Espíritos de Allan Kardec e de Os Quatro Evangelhos de Roustaing. É a partir deste momento que Bezerra de Menezes, que antes pregava uma postura de unificação federativa do movimento espírita, passará a definir-se como um autêntico integrante da tendência religiosa do espiritismo, fato este que se torna evidente quando, em sua segunda passagem como presidente da FEB, instituirá a obrigatoriedade do estudo da oba de Roustaing, da qual se torna destacado defensor, em conjunto com O Livro dos Espíritos (ARRIBAS, 2010, p.175). É a partir desta decisão de obrigatoriedade do estudo de Os Quatro Evangelhos que a Federação Espírita Brasileira – FEB, dá início à construção de um discurso conciliatório entre as teses de Kardec e Roustaing, procurando demonstrar, de forma incisiva, que a obra roustainguista é um complemento necessário à obra de Allan Kardec. Com este objetivo, o novo discurso ganhará destaque entre os adeptos a partir das edições de Reformador e da obra Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, psicografia de Chico Xavier atribuída ao espírito Humberto de Campos (VIDAL, 2014, p. 56).

280

Fig. 01 – Exemplar de Reformador com o novo discurso Kardec-Roustaing desenvolvido a partir da decisão de Bezerra de Menezes em tornar obrigatório o estudo da obra de Roustaing em conjunto com O Livro dos Espíritos de Allan Kardec.

Nascido a 2 de abril de 1910 na cidade de Pedro Leopoldo, Chico Xavier, de formação católica, assumirá, anos mais tarde, o papel de médium espírita e terá atuação significativa para a legitimação da doutrina espírita em seu caráter religioso no Brasil, tornando-se “a principal referência do espiritismo no Brasil” (LEWGOY, 2004, p.11). Sua produção mediúnica teve ampla divulgação por parte da Federação Espírita Brasileira – FEB, que se utilizou do médium como agente representativo do enfoque doutrinário da instituição, mais voltado para o aspecto religioso do espiritismo,

tomando

como

base

doutrinária

o

discurso

Kardec-Roustaing

empreendido por Bezerra de Menezes. Não à toa, Lewgoy (2004, p.13) compreende Chico Xavier como “um personagem cercado de uma aura de sacralidade, modelo de uma proposta religiosa de alta ressonância na sociedade brasileira, tendo cumprido um papel central na criação de um espiritismo singularmente ‘brasileiro’”. Camargo (1961) já destacava a importância da figura de Chico Xavier na formação do “Espiritismo nacional”, equiparando-o, em termos de importância, ao próprio fundador da doutrina espírita, Allan Kardec: “Sua doutrina [de Chico Xavier] acentua o caráter religioso do Espiritismo, dando ênfase aos valores sentimentais e incrementando o movimento social e a caridade” (CAMARGO, 1961, p.05). Este autor também destaca que, apesar do impacto provocado pelas obras de Chico Xavier no movimento espírita, estas “não apresentam teoricamente o mesmo grau de autoridade que envolve os trabalhos de Kardec. Nos círculos espíritas mais 281

intelectualizados,

afirmações

por

ele

psicografadas



foram

discutidas

e

contestadas” (CAMARGO, 1961, p.05). Tais contestações de parte do movimento espírita partem do pressuposto de que as obras psicografadas por Chico Xavier não foram submetidas à metodologia de controle das mensagens dos espíritos idealizada por Allan Kardec, denominada de Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos (CUEE), amplamente explicitada por Kardec na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Além disto, há a acusação da influência da obra de Roustaing sobre Chico Xavier. O jornalista Luciano dos Anjos cita vários momentos da vida de Chico Xavier, assim como passagens de suas obras e cartas enviadas ao então presidente da FEB, Wantuil de Freitas174, em que este afirma e reafirma sua admiração e carinho pela obra do polêmico advogado de Bordeaux: “Como se todos estes depoimentos não bastassem175, devo assinalar que possuo, em minha biblioteca particular, o 1º tomo de “Os quatro evangelhos” devidamente autografado para mim” (ANJOS, 1993, p.87). Neste breve recorte acerca dos trajetos de reelaboração e legitimação do Espiritismo no Brasil, fica evidente para mim uma influência fundamental da obra de Roustaing na formatação deste Espiritismo à brasileira cujas características persistem até os dias atuais, onde a doutrina espírita é compreendida como religião e possui rituais definidos como a prática do evangelho no lar e da aplicação de passes176. Há, também, no movimento espírita brasileiro, uma verdadeira “adoração” aos médiuns espíritas, a exemplo de Chico Xavier e Divaldo Franco, em uma situação semelhante ao que acontece com a adoração aos santos da Igreja Católica. Entendo que o Espiritismo à brasileira é uma reconstrução original do modelo praticado na França, porém ressalto a importância de atores como Telles de Menezes, Bezerra de Menezes e Chico Xavier neste processo, por possibilitarem, cada um à sua maneira, à produção de um discurso Kardec-Roustaing difundido pela FEB que fez do Espiritismo “científico” pretendido por Kardec uma nova religião no campo religioso brasileiro, de forte influência católica e de Roustaing.

174

Estas cartas são reproduzidas e comentadas por Suely Caldas Schubert no livro Testemunhos de Chico Xavier. 175 O autor se refere ao fato de Chico Xavier ser adepto das teses de Jean Baptiste Roustaing. 176 Também conhecida por fluidoterapia, esta é uma técnica onde os médiuns, “usando fluidos energizados, utilizam para o tratamento das enfermidades físicas e espirituais.” (NÚCLEO ESPÍRITA NOSSO LAR, acesso em 27 jan 2016. http://nenossolar.com.br/).

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REFERÊNCIAS

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283

Acerca do papel da mulher no cânone páli

Derley Menezes Alves177

De modo geral, temos no cânone páli uma visão bastante positiva da mulher. O Buddha considerava que tanto mulheres quanto homens tinham iguais capacidades de atingir nibbana, o ponto mais elevado da vida espiritual no caminho buddhista, de acordo com a tradição theravada. Temos vários textos ao longo do cânone que apresentam monjas dando ensinamentos importantes, sendo elogiadas pelo Buddha ou mesmo na condição de arahant, libertas do sofrimento, saindo-se vitoriosas de um confronto com Mara, como no caso dos textos que compõem o Bhikkhuni Samyutta. No Majjhima Nikaya temos por exemplo o sutta 44, Culavedalla Sutta, que nos apresenta a monja Dhammadinna dando importantes ensinamentos ao seguidor leigo Visakha, nessa mesma coleção temos o sutta 73, Mahavachagotta Sutta, no qual o Buddha inclui monjas e leigas entre seus discípulos realizados, conforme a citação: 8. “Além do Mestre Gotama, há alguma outra bhikkhuni, discípula do Mestre Gotama que, realizando por si mesma através do conhecimento direto aqui e agora, entrou e permaneceu na libertação da mente e libertação através da sabedoria que são imaculadas com a destruição de todas as impurezas? ” “Não há apenas cem bhikkhunis ... quinhentas, mas muitas mais, minhas discípulas, que realizando por si mesmas através do conhecimento direto aqui e agora entraram e permanecem na libertação da mente e libertação através da sabedoria que são imaculadas com a destruição de todas as impurezas. ” Temos também um volume de versos compostos por monjas expressando sua realização espiritual, o Therigata, que faz par com os versos dos monges, o Theragata.

De outro lado temos passagens derrogatórias quanto ao status e papel da mulher, notadamente no Anguttara Nikaya e em algumas passagens do Vinaya. Bhikkhu Bodhi nos

177

Professor de filosofia do Instituto Federal de Sergipe, doutorando do Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões, Universidade Federal da Paraíba.

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diz, em sua tradução do Anguttara Nikaya que neste texto encontramos passagens misóginas que “nos atingem como discordantes, de mau gosto e simplesmente injustificadas”. De modo geral são pequenos suttas como por exemplo 4:80 no qual o Buddha diz que as mulheres não participam de concílios e assuntos públicos porque são “propensas à raiva, invejosas, miseráveis e insensatas”; em 2:61 ele diz que “mulheres morrem insatisfeitas e descontentes com duas coisas. Que duas? Intercurso sexual e dar à luz”; para encerrar temos 5:229 no qual se diz que os mesmos perigos de uma cobra negra: são impuras, de odor desagradável, assustadoras, perigosas e traem os amigos. Traçado este panorama inicial, gostaríamos de nos deter em uma passagem presente tanto no anguttara quanto no vinaya, o texto que fala sobre a instituição da sangha das monjas. Posto que neste texto temos o início de uma participação efetiva das mulheres na vida espiritual, o reconhecimento da parte do Buddha de que a capacidade para a iluminação transcende o gênero, bem como vários problemas quando situamos o relato no contexto geral do cânone entendo que este é o melhor ponto de partida para investigar o papel da mulher no cânone páli. Vamos começar o relato de instituição da ordem monástica das bhikkhunis178. Neste relato percebemos uma dureza nas palavras d Buddha que no mínimo causa estranhamento. Tais palavras são incompatíveis com alguém que não vê distinção entre homens e mulheres no que tange à busca pelo fim do sofrimento. O relato é mais ou menos como segue. Mahapajapati Gotami, tia e mãe adotiva do Buddha, desejava abandonar a vida da casa pela vida sem lar, quer dizer, tornar-se uma monja. Não havia ordem monástica para mulheres até então e o Buddha se nega por três vezes a conceder-lhe ordenação. Mahapajapati e algumas mulheres do clã de origem do Buddha então decidem por si mesmas raspar a cabeça, usar mantos amarelos e viver vidas de renúncia. Ela e as mulheres sakyas vão até onde o Buddha se encontrava e com pés feridos pela longa caminhada para diante da entrada e Ananda, vendo sua situação decide intervir. Ele pede para que o Buddha conceda a ordenação e novamente ele nega. Não satisfeito com isso, Ananda muda abordagem e pergunta: as mulheres são capazes de, ao ingressarem na vida sem lar, realizar os frutos do caminho contemplativo, desde entrante no fluxo (primeiro nível de realização) até arahants (objetivo supremo do caminho buddhista)? Ao que o Buddha responde: sim, elas são capazes. Ananda então arremata dizendo que tendo sido Mahapajapati ama de leite do Buddha, tendo sido de 178

O livro usado como referência para esta passagem é a coletânea feita pelo Bhikkhu Ñanamoli intitulada the life of the Buddha.

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tamanha ajuda, seria bom se as mulheres pudessem conseguir a ordenação. E Buddha muda de ideia. Muda de ideia mediante certas condições. A ordenação será concedida se Mahapajapati aceitar oito regras específicas para as mulheres. Após ela concordar temos uma ordem de bhikkhunis e o relato ainda põe na boca do Buddha as seguintes palavras: Se as mulheres não tivessem obtido a saída da vida em casa para a vida sem lar neste Dhamma e Disciplina declarado pelo Afortunado, a vida santa duraria mil anos. Agora que as mulheres o obtiveram, a vida santa durará apenas quinhentos anos. É importante entender que estas regras específicas tem o poder de iniciar a ordem monástica feminina ou impedir tal início, tudo depende da aceitação de Mahapajapati. Guardemos isto em mente e vejamos o parágrafo no qual tais regras são enunciadas. O Buddha impõe às mulheres as chamadas oito regras importantes, attha garudhamma que, aparentemente, colocam as monjas numa posição inferior no contexto do ensinamento buddhista. O texto diz o seguinte: Ananda, se Mahapajapati Gotami aceitar estes oito pontos capitais, isto irá contar como sua admissão completa. Estes são os oito pontos. Uma bhikkhuni, mesmo que admitida a cem anos deve prestar homenagem, erguer-se, saudar de modo reverente e cumprimentar respeitosamente um bhikkhu admitido naquele dia. Uma bhikkhuni não deve passar as chuvas onde não há bhikkhu. A cada quinzena uma bhikkhuni deve esperar duas coisas da Sangha dos bhikkhus; a indicação do dia de observar o Uposatha de cada quinzena e uma visita para exortação. No final do retiro das chuvas, uma bhikkhuni deve convidar ambas as sanghas para críticas em três aspectos, quais sejam, se algo impróprio em sua conduta foi visto, ouvido ou suspeitado. Quando uma bhikkhuni cometer uma ofensa grave, ela deve cumprir penitência perante ambas as sanghas. Uma aspirante em busca de admissão deve fazer isso em ambas as sanghas e depois de treinar nas seis coisas por dois anos. Uma bhikkhuni não deve achar falta ou abusar de um bhikkhu em nenhum aspecto. De hoje em diante não é permitido para bhikkhunis dirigir discursos para bhikkhus, mas é permitido aos bhikkhus dirigir discursos às bhikkhunis. Estas oito coisas devem ser honradas, respeitadas, reverenciadas e veneradas, e não devem ser desobedecidas enquanto vida houver.179 É preciso entender algo acerca da estrutura das regras no vinaya para que possamos analisar estas oito regras especiais. Antes de tudo, devemos ter em mente que as regras são organizadas em ordem decrescente de gravidade, portanto, começamos com comportamentos mais graves. Os nomes de cada conjunto deixam claro o tipo de ato e por vezes o tipo de

179

The life of the Buddha.

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punição implicado. O primeiro grupo chama-se parajika, ou seja, regras cuja desobediência pune-se com a expulsão da ordem. O segundo grupo é chamado de sanghadisesa, ou seja, normas cuja punição é a confissão diante da Sangha. O monge ao confessar entra num período de provação por tantos dias quantos a ofensa se manteve oculta. O terceiro grupo não é comum a ambas as sanghas, são regras específicas para monges. Em pali chamam-se de aniyata ou indeterminados ou a ser decidido. O ponto interessante dessas regras é que elas proíbem o monge de sentar com uma mulher, em um local secreto ou aberto, adequado ou não para atividades sexuais. De acordo com In Young Chung, tais regras depositam grande confiança nas mulheres, posto que, a ofensa recais sobre o monge, não sobre a leiga. Além disso, a punição poderia ser mais ou menos grave de acordo com o testemunho de uma seguidora leiga, que era tido em consideração com seriedade. O quarto grupo de regras chama-se nissaggiya, regras que dizem respeito a posses materiais. O quinto grupo chama-se pacittya e diz respeito quebra de bons atos. São ofensas mais leves resolvidas mediante a confissão. Na sequência temos pacidesaniya, ofensas relativas a comida e que precisam ser reconhecidas verbalmente. O sétimo grupo chama-se sekhiya, regras que dizem respeito a bom comportamento e etiqueta. A última categoria do que é comum a ambas as sanghas chama-se em pali de adhikarana samatha, ou seja, regras para decidir questões legais. Chegamos a última categoria, as regras especiais para as monjas, chamadas em pali de attha garudhamma as oito regras importantes. Se colocarmos estas regras no contexto do vinaya vemos que elas não se coadunam com o todo. As punições são desproporcionalmente severas, posto que a violação destas oito regras impede a ordenação, e encontramos pelo menos seis destas regras repetidas no capítulo que diz respeito a ofensas que demandam confissão apenas. Como pode a mesma regra impedir o ingresso na ordem e se resolver caso desobedecida mediante confissão, posto que todos os equivalentes se enquadram no conjunto de regras que exigem apenas confissão, ou pacittiya, como expiação? Usaremos aqui a tradução de Thanissaro Bhikkhu, posto que a tabela de In Young Chung apresenta ordem diversa pois ela usa o cânone chinês como base. Apresentarei as correspondências que fui capaz de cotejar com a edição citada. A segunda regra diz que uma bhikkhuni não deve passar as chuvas onde não há bhikkhu. Encontramos equivalente na regra 56: Caso uma monja passe o retiro das chuvas num local onde não se encontre nenhum monge, isso deve ser confessado.

287

A terceira regra diz que a cada quinzena uma bhikkhuni deve esperar duas coisas da Sangha dos bhikkhus; a indicação do dia de observar o Uposatha de cada quinzena e uma visita para exortação. Temos seu equivalente na regra 59: A cada quinzena, uma monja deve requisitar duas coisas da comunidade dos monges: a data do uposatha e exortação. Caso este período se exceda, isto deve ser confessado. A quarta regra diz que no final do retiro das chuvas, uma bhikkhuni deve convidar ambas as sanghas para críticas em três aspectos, quais sejam, se algo impróprio em sua conduta foi visto, ouvido ou suspeitado. Temos seu equivalente na regra 57: Caso uma monja, ao final do retiro das chuvas, não convide ambas as sanghas para críticas em três aspectos, quais sejam, se algo impróprio em sua conduta foi visto, ouvido ou suspeitado, isto deve ser confessado. A sexta regra diz que uma aspirante em busca de admissão deve fazer isso em ambas as sanghas e depois de treinar nas seis coisas por dois anos. Neste caso encontramos semelhança com duas regras, a saber, 63 e 64 que postulam o seguinte: 63: Caso uma monja patrocine a ordenação de uma noviça que não treinou dois anos nos seis preceitos, isto deve ser confessado. 64: Caso uma monja patrocine a ordenação de uma mulher casada por pelo menos doze anos, mas que não treinou por dois anos nos seis preceitos, isto deve ser confessado. A sétima regra diz que uma bhikkhuni não deve achar falta ou abusar de um bhikkhu em nenhum aspecto. Tal equivale à regra 52 que diz: Caso uma monja injurie ou insulte um monge, isto deve ser confessado. Cinco das oito regras especiais, cuja negação impediria a constituição da ordem monástica feminina têm similares que se resolvem mediante a confissão apenas, nada de expulsão da ordem ou cancelamento da ordem. Há uma evidente desproporção aqui. Segundo a narração do Vibhanga apresentada por Thanissaro Bhikkhu as monjas não aceitaram as regras especiais com docilidade de modo que o próprio Buddha introduziu nas pacittyias as regras 56, 59, 57, 63 (66), e 52. Não nos parece que esta explicação resolva o problema, posto que não parece fazer sentido introduzir regras de tamanha gravidade num conjunto cuja punição implica apenas confissão. Estas monjas indóceis já teriam dado causa a eliminação da ordem, de acordo com a fala do Buddha que apresenta as oito regras especiais. O fundamento e a desproporção das mesmas conforme o lugar que ocupem segue intocado.

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Precisamos dizer algo acerca das regras primeira e última agora. Elas claramente não fazem sentido no contexto do ensinamento do Buddha, posto que colocam o sexo acima das realizações espirituais como critério de distinção entre membros da sangha. O próprio termo para aquele que atingiu o ponto máximo da vida espiritual guarda em sua etimologia a noção de ser digno, a saber, arahant. Todo arahant é digno de veneração, logo, uma discípula mulher que seja arahant, por definição, é digna da mesma veneração que um discípulo arahant. Vinculado a isso a regra segundo a qual as monjas não devem dirigir ensinamento aos monges, pelo simples fato de serem mulheres se enquadraria na mesma crítica supracitada. Gostaria de apresentar de modo breve algumas observações feitas pelo monge e estudioso Analayo Bhikkhu. Neste momento gostaria de recorrer apenas a uma carta do monge para Ayya Thathaloka, de 2009 apresentando algumas considerações que nos ajudam a investigar a discriminação de gênero no cânone pali. O primeiro elemento a ser considerado, diz-nos ele, é o fato de estarmos lidando com o produto final de uma tradição oral. Isto sugere que não devemos descartar a possibilidade de ideias estranhas ao espírito do ensinamento terem influenciado e se misturado ao texto, especialmente na forma de comentários. Feita esta consideração, o estudioso apresenta duas orientações: tratar com cautela passagens individuais que apresentam conteúdo misógino, comparando-as com o conjunto e o espírito geral do cânone; entender que as regulações que apresentam discriminação de gênero são o resultado do ambiente da Índia antiga e sujeitos a revisão, o que não seria contra o ensinamento do Buddha, uma vez que se coaduna com o espírito pragmático presente no vinaya. É importante ressaltar que nem toda regra que trata da condição feminina é misógina. Naquele ambiente algumas regulações serviam para proteger a mulher de eventuais atitudes machistas e acalmar os descontentes com essa nova condição social da mulher oferecida pelo Buddha. Existem regras específicas das monjas, além das citadas no presente texto, que são específicas delas porque são mulheres, como por exemplo regras que lidam com a possibilidade de gravidez ou que impõem limites a suas peregrinações tendo em vista protegelas de assédios que, ao que parece, não eram raros. Devemos levar em consideração também o impacto que a ordenação feminina teve na Índia do tempo do Buddha. Ser monja significava se ver livre de toda subordinação da família e da tradição. As mulheres tinham, com a ordenação, a possibilidade de viver a vida 289

inteiramente para si mesmas, ao invés de servirem família, marido, filhos. Não é de estranhar que setores da sociedade tenham hostilizado estas mulheres. Há registros de ataques a monjas sob a acusação de serem prostitutas. Temos como exemplo o relato presente na pacittiya XVII (volume XIII, página 275 PTS edition) que descreve a reação de um brahmane diante de monjas que esperavam por permissão para se acomodarem. Ele diz: “Expulse estas prostitutas de cabeça raspada! ”. Neste sentido podemos pensar ainda que, mesmo estas passagens misóginas existindo e sendo adições posteriores, disso não se segue que houve má fé dos redatores e editores. Eles podem ter simplesmente adaptado as coisas a uma realidade hostil às mulheres e que por isso poderia prejudicar até mesmo a existência da comunidade, que depende completamente do suporte de leigos. Isto pode justificar parte dos textos com alguma eficácia, embora entenda que a situação das regras especiais se enquadre problematicamente pelo grau de contradição que elas apresentam com o conjunto do dhamma-vinaya. Por outro lado, sendo coerentes com esta ideia, adaptações podem ser feitas no que diz respeito a questão das mulheres na sangha em nossos dias. Apesar de todos os problemas pelos quais as mulheres ainda passam, vivemos em um mundo melhor que aquele do Buddha, de modo que me parece necessário e possível rever regras adaptando pragmaticamente a vida monástica a novas realidades. Conforme Analayo: No fim das contas, a tradição – que eu pessoalmente valorizo enormemente – só tem chances de sobreviver se for capaz de se ajustar a mudanças de circunstâncias sem perder o essencial. Tal pode ser realizado se nossa apreciação da situação se basear na clara consciência do que causa dukkha – em nós mesmos e nos outros – e o que leva a libertação de dukkha. Gostaria de encerrar este primeiro passo rumo a uma compreensão ampla do papel da mulher na sangha buddhista theravada deixando que uma de suas representantes fale. Selecionei um poema dos versos das anciãs, o therigatha. Vejamos como a monja Mutta descreve sua experiência de libertação. Eu estou liberta! Completamente liberta estou de três coisas enganadoras: do almofariz, do pilão, e de um marido desonesto. Estou liberta de nascimento e morte; tudo que conduz à existência renovada foi desenraizado.

E a monja Vimala, que antes era prostituta, assim descreve sua experiência. 290

Intoxicada por minha boa aparência, minha figura, beleza e fama, orgulhosa devido à juventude, eu desprezava as outras mulheres. Tendo este corpo decorado com muitos ornamentos, enganava os tolos, parada na entrada do bordel, como um caçador com a armadilha preparada, Exibia meus ornamentos. Revelava algo de minhas partes íntimas. De várias formas praticava a magia da sedução, rindo alto para a multidão. Hoje eu perambulo a esmolar alimentos com a cabeça raspada, e, envolta no manto externo, sentada ao pé de uma árvore, realizei o estado de nãopensamento. Todos os laços foram cortados, sejam divinos, sejam humanos. Eu aniquilei todas as impurezas; tornei-me calma, livre.180

BIBLIOGRAFIA

BODHI, Bhikkhu (trans.). The middle length discourses of the Buddha: a translation of the Majjhima Nikaya. Massachusetts: Wisdom Publications, 2005; ____________________. The connected discourses of the Buddha: a translation of the samyutta Nikaya. Massachusetts: Wisdom Publications, 2000; ____________________. The numerical discourses of the Buddha: a translation of the Anguttara Nikaya. Massachusetts: Wisdom Publications, 2012; ÑANAMOLI, Bhikkhu. The life of the Buddha. Kandy, Sri Lanka: Buddhist Publication Society, 1992; NORMAN, K. R. (trans.) Elders verses II. Wiltshire: Pali Text Society, 2007;

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Usamos para esta tradução a edição da PTS e a tradução feita por Thanissaro Bhikkhu no site www.accesstoinsight.org

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A construção do mito Ibiapina no jornal A Voz da Religião no Cariri

Noemia Dayana de Oliveira181 João Marcos Leitão Santos – Orientador182

1 Considerações Iniciais

As sociedades desde os tempos mais remotos se reportavam aos mitos para explicar inferências do cotidiano. É por esse motivo que eles são encarados como algo confortador, auxiliando o homem a lidar com as problemáticas impostas pela existência. No dizer de Buzzi (1974), o mito está inserido num plano diferente da lógica racional, o que implica que ele comporta uma diferente e profunda intuição compreensiva acerca da realidade. Cada período possui seus mitos, que estão presentes em discursos que agregam respostas a enigmas fundamentais da vida. Essas explicações partem de uma linguagem que está em constante diálogo com a realidade, porém toda e qualquer interpretação que for atribuída ao mito torna-se problemática, devido a sua característica de intelecção própria e autônoma. A existência dos mitos está ligada ao entendimento humano acerca da luta entre o que é do transcendente e o que é da condição humana, como comporta um pressuposto ético que realça a busca de entender e situar o bem ou o mau (BUZZI, 1974). Essa necessidade de compreender o que está entorno, nem sempre parte da concepção lógica ou material, implicando na impossibilidade de reduzir ou conceber a linguagem mítica através dos parâmetros científicos, ou, eventualmente, filosóficos. Atrelado a isso, surgem personalidades que a partir de suas ações despertam essa visão de mundo, e que até certo ponto fomentam a linguagem mitológica nos acontecimentos do dia-a-dia. Dentre as personalidades religiosas do século XIX, o Padre Ibiapina foi um dos primeiros missionários a surgirem no Norte (atual Nordeste) imperial do Brasil, atuando de forma material e espiritual entre os sertanejos carentes. Suas ações respondiam ao que deveria ser responsabilidade do poder público, uma vez que elas eram de direito e de assistência básicas. Tornou-se conhecido pela peregrinação em cinco províncias brasileiras, como também pela feitura de Casas de Caridade, hospitais, açudes, cemitérios e diversas outras obras, que foram administradas sob os olhares religiosos de seu idealizador. Os grupos que se dedicaram junto com ele nessa empreitada estiveram amparados pelas suas iniciativas, especialmente as mulheres pobres e as crianças órfãs e desvalidas.

181

Graduanda em História pela Universidade Federal de Campina Grande. Bolsista de Iniciação Científica/CNPq. 182 Doutor em História Social/USP. Professor da Universidade Federal de Campina Grande.

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Nesse sentido, nosso objetivo é analisar a concepção mítica em torno da figura do cearense José Antônio de Maria Ibiapina, através das produções do jornal A Voz da Religião no Cariri. Essa percepção mitológica em torno do apóstolo foi compreendida por meio dos estudos feitos por Karen Armstrong e por Arcangelo Buzzi. O fenômeno do no Brasil esteve, historicamente, atrelado aos modos de devoção do catolicismo popular no Nordeste, sendo apreendidos por meio das reflexões de Riolando Azzi e Gunter Paulo Suss. 2 A ação social do Padre Ibiapina

As peregrinações do Padre Ibiapina no interior do Brasil Oitocentista remontam aos anos entre 1860 e 1883, contudo, existem controvérsias sobre esse início, principalmente nas informações contidas na sua primeira biografia, produzida por Paulino Nogueira em 1888. Nesses escritos, o autor afirma que o trabalho social do apóstolo começa no ano de 1856, por conta da difusão do Cólera e da necessidade de serem construídos espaços para o tratamento da doença, como também cemitérios que comportassem as vítimas. Foi somente no ano de 1860 que as viagens de maior extensão ocorreram, passando inclusive a serem reconhecidas pelas autoridades políticas dos locais por onde o Padre Ibiapina passava. Na Parahyba do Norte o presidente Francisco de Araújo Lima afirma que Os relevantes serviços de estabelecer em cada uma dessas localidades [cidade de Areia e a vila de Alagoa Nova] a expensas dos particulares uma casa de caridade em favor dos indivíduos acometidos da epidemia [Cólera] reinante. Cabe-me a satisfação de levar ao conhecimento de v. exc. tão louvável e honroso procedimento do virtuoso sacerdote (MARIZ, 1980, p. 60). (Grifo nosso).

Essas construções, como explica o presidente, eram levantadas a partir de doações feitas ao Padre e a sua gente carente, que aonde chegasse arrecadaria valores significativos e aprontava as obras em pouco tempo. Nesse primeiro momento, o peregrino não desenvolveu grandes obras, sendo elas apenas de caráter emergencial. Mas ao longo dos 23 anos de atuação, levantou 22 Casas de Caridade em cinco províncias brasileiras, as quais são Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Piauí e Ceará as herdeiras desse trabalho. O nome do Padre Ibiapina ganhou força no Nordeste do Brasil, seja por motivo de sua ação social e religiosa, seja por conta da desaprovação do clero. Em 1870, ao ter sido destituído da posse das Casas de Caridade do Ceará pelo bispo D. Luís Antônio dos Santos, encerra suas atividades naquela província. Suas ações tinham o objetivo de sanar as dificuldades materiais, combinando a evangelização e o trabalho. Contudo, o clericalismo que exercia pressão no país desaprovava a participação de leigos em atividades religiosas, fator que colaborou para o enfraquecimento da manutenção e o fechamento das Casas de Caridade após a morte do missionário. A presença do Padre Ibiapina no interior do Brasil no século XIX impactou muitos homens e mulheres que se habituaram à ausência da assistência pública. O cenário social que viviam esses sertanejos era dos piores possíveis, o qual não 293

dispunha de assistência básica satisfatória. As obras e o trabalho evangelizador que ele realizou, tornou-o admirado por diversos grupos sociais, especialmente os mais necessitados. Além disso, apesar de ter sido destituído da posse de suas Casas no Ceará, ele foi reconhecido como milagreiro, por ter indicado banhos na Fonte do Caldas na Freguesia de Barbalha, atual cidade de mesmo nome.

3 Padre Ibiapina e a Fonte Miraculosa A partir dos estudos de Malinowsky, Buzzi sugere que “o mito é uma interpretação que possibilita a sociedade a viver os fatos numa unidade e coesão superior ao da lógica” (BUZZI, op. cit. p. 82). Nessa linguagem, as palavras definidas dizem o não-definido, aquilo que representa a experiência da impossibilidade, donde surge o discurso humano. Nas religiões monoteístas, o mítico aparece como uma divindade que é capaz de atuar e modificar as realidades históricas. Essa compreensão torna-se ainda mais visível nas experiências do catolicismo popular, cujos fiéis estabelecem relações praticamente íntimas com suas divindades ou referências. No século XIX aqui no Brasil surgiram figuras como o Padre Ibiapina responsáveis por despertar muitos seguidores em prol da necessidade material e espiritual que se alastrava pelos sertões. A interpretação das suas atitudes por parte dos fiéis, não se esgotavam na materialidade, mas ultrapassavam essa dimensão, chegando a se encontrar explicações míticas, a exemplo do que aconteceu na Fonte do Caldas/CE. Nas Crônicas das Casas de Caridade183, reunidas e organizadas primeiramente por Eduardo Hoornaert e, posteriormente, pelo Padre Ernando Teixeira, é possível encontrar traços dessa construção mitológica em torno do peregrino, fator que gerou desentendimento e desconfiança por parte do clero do Ceará em fins da década de 1860, como referido. Os textos aos quais vamos nos reportar são encontrados no jornal A Voz da Religião no Cariri, publicado de 1868 a 1870 na cidade do Crato, no Ceará. O periódico tinha o objetivo de divulgar as ações do Padre Ibiapina, bem como informar aos seus leitores dos acontecimentos religiosos da localidade. Já nas primeiras edições, consta-se a sessão Colaboração – Fonte Miraculosa, em referência a Fonte do Caldas da freguesia de Barbalha/CE. Um dos colaboradores das do jornal explica a formação geográfica dessa fonte: Em uma curva desta serra [Araripe] há um sítio chamado Caldas por ter sido o seu primeiro proprietário um senhor Caldas e esse nome estendeu-se a essa porção de serra e a grande fonte de que se trata. Na parte mais aguda dessa grande curva [...] surge, com capacidade de um côvado de altura e três de diâmetro, talvez formando uma bacia capaz de acomodar seis pessoas, a fonte do Caldas, que dá origem ao rio Salamanca, que rega a vila da Barbalha e deságua no Salgado, acima da cachoeira de Missão Velha (CARVALHO, 2008, p. 69). 183

Esse texto, publicado primeiramente em 1981, é um apanhado de escritos produzidos pelos amigos e seguidores do Padre Ibiapina em suas diversas missões pelos sertões do Norte (atual Nordeste) do Brasil. Em 2008, o Padre Ernando Teixeira atualizou esse texto com notas e comentários explicativos sobre a obra.

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Localizada no Cariri cearense, a fonte repercutia fama devido as suas águas cálidas, explicação que mais tarde o Padre Francisco Sadoc usou para explicar o nome dado ao lugar miraculoso. Além desse detalhe, a fonte passou a chamar a atenção das pessoas no ano de 1868, quando Luzia Pezinho por recomendação do Padre Ibiapina foi tomar banho naquelas águas, no intuito de curar-se de um mal. Luzia Pezinho, parda, casada, moradora na vila de Barbalha, paralítica das pernas há 3 anos, pede que a levem a presença do Reverendo Missionário. No dia 28 de Junho de 1868 vê realizado o seu desejo e achando ao encontro do Missionário Cearense, José Antônio de Maria Ibiapina que lhe passava na porta roga-lhe com a mais viva instância que lhe ensinasse o remédio de seu mal. – Eu não sou médico do corpo lhe disse o venerando Padre Mestre, o meu ministério é curar as almas. – Ah! Meu santo Padre, ensina-me retorquiu Luzia, sim, ensina-me o que quiser; eu tenho fé de ficar boa. – Pois bem, mulher, vá tomar 3 banhos na fonte do Caldas ao sair do sol. Luzia creu, foi ao lugar indicado no meio de uma carga e acompanhada de seu marido que também sofria de uma hérnia. Ambos foram ao banho e voltaram bons (A VOZ DA RELIGIÃO NO CARIRI, n. 2, 1868, p. 3).

Em resposta a essa atitude de cura, Luzia resolveu divulgar o que havia acontecido a ela, saindo de Barbalha com o Padre Ibiapina e seguindo-o por três meses em missões pelo interior do Ceará. Com essa “prova”, a Fonte do Caldas passou a ser visitada com maior frequência por diversas razões, com a presença de cem a duzentas pessoas por dia (CARVALHO, 2004, p. 70). Em decorrência disso, os vários fiéis que diziam ser curados pela fonte, recorriam ao jornal para tornar público o milagre, responsabilizando com veemência o reverendo. Figuras importantes também foram noticiadas n’A Voz da Religião do Cariri, dando testemunhos como prova do ocorrido. O Capitão Pedro Lobo de Menezes, amigo íntimo do Padre Ibiapina deu seu testemunho: Mais um curativo milagroso teve lugar na pessoa de uma escrava do Senhor João do Espírito Santo Correia. Esta pobre sofria há 3 anos de paralisia nas pernas, e para dar algumas passadas servia-se do cacete e da muleta... Foi tomar banhos na nascença do Caldas, onde se demorou três dias, lá deixou a muleta. Ontem aqui veio assistir missa, trazia o bordão, por que faltava algum equilíbrio nas pernas, que há tanto tempo não se exerciam. Os que a viram em sua enfermidade, julgaram-na boa (A VOZ DA RELIGIÃO NO CARIRI, n. 4, 1868, p. 3).

O caso dessa escrava torna-se interessante se comparado ao de Luzia. Embora as duas tenham sido acometidas do mesmo mal, ou seja, a paralisia, uma volta dos banhos na fonte completamente curada, enquanto que a outra ainda se mantém necessitada de instrumentos que a ajudem no equilíbrio. Nas Crônicas, assim como também no jornal, os editores afirmam que muitas pessoas foram ao 295

Caldas e voltaram igualmente mazeladas, um aspecto que evidencia a necessidade de se ter fé para alcançar a cura. Os casos de cura que responsabilizavam o Padre Ibiapina e a Fonte do Caldas se alastraram pelo sertão cearense, chegando aos ouvidos de seus superiores, que passaram a reprimi-lo por isso. Mais tarde, o próprio “milagreiro” considerou o que poderia se avaliar superstição ou não em relação a essa fonte (Ib. p. 70). Contudo, o jornal A Voz da Religião do Cariri se utilizou por mais de um ano das notícias advindas dessas curas para contribuir com a mitificação do Padre, como também para a venda de seus impressos. 4 Considerações finais

Padre Ibiapina peregrinou pelos sertões brasileiros por mais de vinte anos, acreditando que somente assim difundiria os ensinamentos cristãos e ajudaria aos necessitados. A sua formação eclesiástica lhe deu abertura para atividades no Seminário de Olinda, como por exemplo, os cargos de professor e de Vigário Geral, mas que foram sucumbidas pela opção do Padre Mestre em viajar, trabalhar e doutrinar as populações pobres dos sertões. Desenvolver um trabalho social como ele fez, resultou em diversas consequências, as quais nos detivemos a de mitifica-lo em relação aos acontecimentos oriundos da Fonte do Caldas. A Fonte Miraculosa, como ficou conhecida a fonte de Barbalha através dos depoimentos contidos no jornal A Voz da Religião no Cariri, atrelada as obras do Padre Ibiapina, representou para muitos homens e mulheres a cura e a esperança de novos tempos, em meio ao descaso que viviam do poder público e a sua inatividade. Por isso, o contexto em que se construíram esses discursos torna-se importante para entender a divinização desse personagem que concebeu muito mais a solução material, do que espiritual. Tal divinização reflete a sublimação da lógica racional para erigir uma compreensão da realidade que satisfizesse a necessidade de conhecer o processo do mau vencido pelo bem, mediado pelo curandeirismo atribuído ao padre nos processos de cura. Não era a cura compreensível sem a intervenção do padre. O mito então provê respostas reais ou imaginárias para a situação-sujeito de cada um dentro de ordem cósmica “enigmática”, como queria Buzzi (1974), e superior. Essas explicações se apropriariam da linguagem sagrada do catolicismo popular, e por isso era inteligível na narrativa que erigia o mito, compatibilizando o sagrado e o profano numa única realidade, com elementos reais ou imaginários, mas providos da interpretação necessária a intelecção própria e autônoma da concepção mítica. 5 Fontes S/A. A Fonte Miraculosa. Jornal A Voz da Religião no Cariri, p. 3, 13 dez. 1868. S/A. A Fonte Miraculosa (continuação). Jornal A Voz da Religião no Cariri, p. 3, 25 dez. 1868. 6 Referências ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. AZZI, Riolando. Catolicismo popular no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1978. 296

BUZZI, Arcangelo R. Introdução ao pensar: o ser, o conhecer e a linguagem. 3ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1974. p. 81-91. CARVALHO, Ernando Luiz Teixeira de. A missão Ibiapina: a crônica do século XIX e amigos do Padre Mestre atualizada com notas e comentários. Passo Fundo: Berthier, 2008. MARIZ, Celso. Ibiapina, um apóstolo do nordeste. 2. ed. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1980. SUSS, Gunter Paulo. Catolicismo popular no Brasil: Tipologia e estratégia de uma religiosidade vivida. São Paulo: Edições Loyola, 1978.

297

Acerca do papel da mulher no cânone páli

Derley Menezes Alves184

De modo geral, temos no cânone páli uma visão bastante positiva da mulher. O Buddha considerava que tanto mulheres quanto homens tinham iguais capacidades de atingir nibbana, o ponto mais elevado da vida espiritual no caminho buddhista, de acordo com a tradição theravada. Temos vários textos ao longo do cânone que apresentam monjas dando ensinamentos importantes, sendo elogiadas pelo Buddha ou mesmo na condição de arahant, libertas do sofrimento, saindo-se vitoriosas de um confronto com Mara, como no caso dos textos que compõem o Bhikkhuni Samyutta. No Majjhima Nikaya temos por exemplo o sutta 44, Culavedalla Sutta, que nos apresenta a monja Dhammadinna dando importantes ensinamentos ao seguidor leigo Visakha, nessa mesma coleção temos o sutta 73, Mahavachagotta Sutta, no qual o Buddha inclui monjas e leigas entre seus discípulos realizados, conforme a citação: 8. “Além do Mestre Gotama, há alguma outra bhikkhuni, discípula do Mestre Gotama que, realizando por si mesma através do conhecimento direto aqui e agora, entrou e permaneceu na libertação da mente e libertação através da sabedoria que são imaculadas com a destruição de todas as impurezas? ” “Não há apenas cem bhikkhunis ... quinhentas, mas muitas mais, minhas discípulas, que realizando por si mesmas através do conhecimento direto aqui e agora entraram e permanecem na libertação da mente e libertação

184

Professor de filosofia do Instituto Federal de Sergipe, doutorando do Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões, Universidade Federal da Paraíba.

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através da sabedoria que são imaculadas com a destruição de todas as impurezas. ” Temos também um volume de versos compostos por monjas expressando sua realização espiritual, o Therigata, que faz par com os versos dos monges, o Theragata.

De outro lado temos passagens derrogatórias quanto ao status e papel da mulher, notadamente no Anguttara Nikaya e em algumas passagens do Vinaya. Bhikkhu Bodhi nos diz, em sua tradução do Anguttara Nikaya que neste texto encontramos passagens misóginas que “nos atingem como discordantes, de mau gosto e simplesmente injustificadas”. De modo geral são pequenos suttas como por exemplo 4:80 no qual o Buddha diz que as mulheres não participam de concílios e assuntos públicos porque são “propensas à raiva, invejosas, miseráveis e insensatas”; em 2:61 ele diz que “mulheres morrem insatisfeitas e descontentes com duas coisas. Que duas? Intercurso sexual e dar à luz”; para encerrar temos 5:229 no qual se diz que os mesmos perigos de uma cobra negra: são impuras, de odor desagradável, assustadoras, perigosas e traem os amigos. Traçado este panorama inicial, gostaríamos de nos deter em uma passagem presente tanto no anguttara quanto no vinaya, o texto que fala sobre a instituição da sangha das monjas. Posto que neste texto temos o início de uma participação efetiva das mulheres na vida espiritual, o reconhecimento da parte do Buddha de que a capacidade para a iluminação transcende o gênero, bem como vários problemas quando situamos o relato no contexto geral do cânone entendo que este é o melhor ponto de partida para investigar o papel da mulher no cânone páli. Vamos começar o relato de instituição da ordem monástica das bhikkhunis185. Neste relato percebemos uma dureza nas palavras d Buddha que no mínimo causa estranhamento. Tais palavras são incompatíveis com alguém que não vê distinção entre homens e mulheres no que tange à busca pelo fim do sofrimento. O relato é mais ou menos como segue. Mahapajapati Gotami, tia e mãe adotiva do Buddha, desejava abandonar a vida da casa pela vida sem lar, quer dizer, tornar-se uma monja. Não havia ordem monástica para mulheres até então e o Buddha se nega por três vezes a conceder-lhe ordenação. Mahapajapati e algumas mulheres do clã de origem do Buddha então decidem por si mesmas raspar a cabeça, usar mantos amarelos e viver vidas de renúncia. Ela e as mulheres sakyas vão até onde o

185

O livro usado como referência para esta passagem é a coletânea feita pelo Bhikkhu Ñanamoli intitulada the life of the Buddha.

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Buddha se encontrava e com pés feridos pela longa caminhada para diante da entrada e Ananda, vendo sua situação decide intervir. Ele pede para que o Buddha conceda a ordenação e novamente ele nega. Não satisfeito com isso, Ananda muda abordagem e pergunta: as mulheres são capazes de, ao ingressarem na vida sem lar, realizar os frutos do caminho contemplativo, desde entrante no fluxo (primeiro nível de realização) até arahants (objetivo supremo do caminho buddhista)? Ao que o Buddha responde: sim, elas são capazes. Ananda então arremata dizendo que tendo sido Mahapajapati ama de leite do Buddha, tendo sido de tamanha ajuda, seria bom se as mulheres pudessem conseguir a ordenação. E Buddha muda de ideia. Muda de ideia mediante certas condições. A ordenação será concedida se Mahapajapati aceitar oito regras específicas para as mulheres. Após ela concordar temos uma ordem de bhikkhunis e o relato ainda põe na boca do Buddha as seguintes palavras: Se as mulheres não tivessem obtido a saída da vida em casa para a vida sem lar neste Dhamma e Disciplina declarado pelo Afortunado, a vida santa duraria mil anos. Agora que as mulheres o obtiveram, a vida santa durará apenas quinhentos anos. É importante entender que estas regras específicas tem o poder de iniciar a ordem monástica feminina ou impedir tal início, tudo depende da aceitação de Mahapajapati. Guardemos isto em mente e vejamos o parágrafo no qual tais regras são enunciadas. O Buddha impõe às mulheres as chamadas oito regras importantes, attha garudhamma que, aparentemente, colocam as monjas numa posição inferior no contexto do ensinamento buddhista. O texto diz o seguinte: Ananda, se Mahapajapati Gotami aceitar estes oito pontos capitais, isto irá contar como sua admissão completa. Estes são os oito pontos. Uma bhikkhuni, mesmo que admitida a cem anos deve prestar homenagem, erguer-se, saudar de modo reverente e cumprimentar respeitosamente um bhikkhu admitido naquele dia. Uma bhikkhuni não deve passar as chuvas onde não há bhikkhu. A cada quinzena uma bhikkhuni deve esperar duas coisas da Sangha dos bhikkhus; a indicação do dia de observar o Uposatha de cada quinzena e uma visita para exortação. No final do retiro das chuvas, uma bhikkhuni deve convidar ambas as sanghas para críticas em três aspectos, quais sejam, se algo impróprio em sua conduta foi visto, ouvido ou suspeitado. Quando uma bhikkhuni cometer uma ofensa grave, ela deve cumprir penitência perante ambas as sanghas. Uma aspirante em busca de admissão deve fazer isso em ambas as sanghas e depois de treinar nas seis coisas por dois anos. Uma bhikkhuni não deve achar falta ou abusar de um bhikkhu em nenhum aspecto. De hoje em diante não é permitido para bhikkhunis dirigir discursos para bhikkhus, mas é permitido aos bhikkhus dirigir discursos às bhikkhunis. Estas oito coisas devem ser honradas, respeitadas, 300

reverenciadas e veneradas, e não devem ser desobedecidas enquanto vida houver.186 É preciso entender algo acerca da estrutura das regras no vinaya para que possamos analisar estas oito regras especiais. Antes de tudo, devemos ter em mente que as regras são organizadas em ordem decrescente de gravidade, portanto, começamos com comportamentos mais graves. Os nomes de cada conjunto deixam claro o tipo de ato e por vezes o tipo de punição implicado. O primeiro grupo chama-se parajika, ou seja, regras cuja desobediência pune-se com a expulsão da ordem. O segundo grupo é chamado de sanghadisesa, ou seja, normas cuja punição é a confissão diante da Sangha. O monge ao confessar entra num período de provação por tantos dias quantos a ofensa se manteve oculta. O terceiro grupo não é comum a ambas as sanghas, são regras específicas para monges. Em pali chamam-se de aniyata ou indeterminados ou a ser decidido. O ponto interessante dessas regras é que elas proíbem o monge de sentar com uma mulher, em um local secreto ou aberto, adequado ou não para atividades sexuais. De acordo com In Young Chung, tais regras depositam grande confiança nas mulheres, posto que, a ofensa recais sobre o monge, não sobre a leiga. Além disso, a punição poderia ser mais ou menos grave de acordo com o testemunho de uma seguidora leiga, que era tido em consideração com seriedade. O quarto grupo de regras chama-se nissaggiya, regras que dizem respeito a posses materiais. O quinto grupo chama-se pacittya e diz respeito quebra de bons atos. São ofensas mais leves resolvidas mediante a confissão. Na sequência temos pacidesaniya, ofensas relativas a comida e que precisam ser reconhecidas verbalmente. O sétimo grupo chama-se sekhiya, regras que dizem respeito a bom comportamento e etiqueta. A última categoria do que é comum a ambas as sanghas chama-se em pali de adhikarana samatha, ou seja, regras para decidir questões legais. Chegamos a última categoria, as regras especiais para as monjas, chamadas em pali de attha garudhamma as oito regras importantes. Se colocarmos estas regras no contexto do vinaya vemos que elas não se coadunam com o todo. As punições são desproporcionalmente severas, posto que a violação destas oito regras impede a ordenação, e encontramos pelo menos seis destas regras repetidas no capítulo que diz respeito a ofensas que demandam confissão apenas. Como pode a mesma regra impedir o ingresso na ordem e se resolver caso desobedecida mediante confissão, posto que todos os equivalentes se enquadram no conjunto de regras que exigem apenas confissão, ou pacittiya, como expiação?

186

The life of the Buddha.

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Usaremos aqui a tradução de Thanissaro Bhikkhu, posto que a tabela de In Young Chung apresenta ordem diversa pois ela usa o cânone chinês como base. Apresentarei as correspondências que fui capaz de cotejar com a edição citada. A segunda regra diz que uma bhikkhuni não deve passar as chuvas onde não há bhikkhu. Encontramos equivalente na regra 56: Caso uma monja passe o retiro das chuvas num local onde não se encontre nenhum monge, isso deve ser confessado. A terceira regra diz que a cada quinzena uma bhikkhuni deve esperar duas coisas da Sangha dos bhikkhus; a indicação do dia de observar o Uposatha de cada quinzena e uma visita para exortação. Temos seu equivalente na regra 59: A cada quinzena, uma monja deve requisitar duas coisas da comunidade dos monges: a data do uposatha e exortação. Caso este período se exceda, isto deve ser confessado. A quarta regra diz que no final do retiro das chuvas, uma bhikkhuni deve convidar ambas as sanghas para críticas em três aspectos, quais sejam, se algo impróprio em sua conduta foi visto, ouvido ou suspeitado. Temos seu equivalente na regra 57: Caso uma monja, ao final do retiro das chuvas, não convide ambas as sanghas para críticas em três aspectos, quais sejam, se algo impróprio em sua conduta foi visto, ouvido ou suspeitado, isto deve ser confessado. A sexta regra diz que uma aspirante em busca de admissão deve fazer isso em ambas as sanghas e depois de treinar nas seis coisas por dois anos. Neste caso encontramos semelhança com duas regras, a saber, 63 e 64 que postulam o seguinte: 63: Caso uma monja patrocine a ordenação de uma noviça que não treinou dois anos nos seis preceitos, isto deve ser confessado. 64: Caso uma monja patrocine a ordenação de uma mulher casada por pelo menos doze anos, mas que não treinou por dois anos nos seis preceitos, isto deve ser confessado. A sétima regra diz que uma bhikkhuni não deve achar falta ou abusar de um bhikkhu em nenhum aspecto. Tal equivale à regra 52 que diz: Caso uma monja injurie ou insulte um monge, isto deve ser confessado. Cinco das oito regras especiais, cuja negação impediria a constituição da ordem monástica feminina têm similares que se resolvem mediante a confissão apenas, nada de expulsão da ordem ou cancelamento da ordem. Há uma evidente desproporção aqui. Segundo a narração do Vibhanga apresentada por Thanissaro Bhikkhu as monjas não aceitaram as 302

regras especiais com docilidade de modo que o próprio Buddha introduziu nas pacittyias as regras 56, 59, 57, 63 (66), e 52. Não nos parece que esta explicação resolva o problema, posto que não parece fazer sentido introduzir regras de tamanha gravidade num conjunto cuja punição implica apenas confissão. Estas monjas indóceis já teriam dado causa a eliminação da ordem, de acordo com a fala do Buddha que apresenta as oito regras especiais. O fundamento e a desproporção das mesmas conforme o lugar que ocupem segue intocado. Precisamos dizer algo acerca das regras primeira e última agora. Elas claramente não fazem sentido no contexto do ensinamento do Buddha, posto que colocam o sexo acima das realizações espirituais como critério de distinção entre membros da sangha. O próprio termo para aquele que atingiu o ponto máximo da vida espiritual guarda em sua etimologia a noção de ser digno, a saber, arahant. Todo arahant é digno de veneração, logo, uma discípula mulher que seja arahant, por definição, é digna da mesma veneração que um discípulo arahant. Vinculado a isso a regra segundo a qual as monjas não devem dirigir ensinamento aos monges, pelo simples fato de serem mulheres se enquadraria na mesma crítica supracitada. Gostaria de apresentar de modo breve algumas observações feitas pelo monge e estudioso Analayo Bhikkhu. Neste momento gostaria de recorrer apenas a uma carta do monge para Ayya Thathaloka, de 2009 apresentando algumas considerações que nos ajudam a investigar a discriminação de gênero no cânone pali. O primeiro elemento a ser considerado, diz-nos ele, é o fato de estarmos lidando com o produto final de uma tradição oral. Isto sugere que não devemos descartar a possibilidade de ideias estranhas ao espírito do ensinamento terem influenciado e se misturado ao texto, especialmente na forma de comentários. Feita esta consideração, o estudioso apresenta duas orientações: tratar com cautela passagens individuais que apresentam conteúdo misógino, comparando-as com o conjunto e o espírito geral do cânone; entender que as regulações que apresentam discriminação de gênero são o resultado do ambiente da Índia antiga e sujeitos a revisão, o que não seria contra o ensinamento do Buddha, uma vez que se coaduna com o espírito pragmático presente no vinaya. É importante ressaltar que nem toda regra que trata da condição feminina é misógina. Naquele ambiente algumas regulações serviam para proteger a mulher de eventuais atitudes machistas e acalmar os descontentes com essa nova condição social da mulher oferecida pelo Buddha.

303

Existem regras específicas das monjas, além das citadas no presente texto, que são específicas delas porque são mulheres, como por exemplo regras que lidam com a possibilidade de gravidez ou que impõem limites a suas peregrinações tendo em vista protegelas de assédios que, ao que parece, não eram raros. Devemos levar em consideração também o impacto que a ordenação feminina teve na Índia do tempo do Buddha. Ser monja significava se ver livre de toda subordinação da família e da tradição. As mulheres tinham, com a ordenação, a possibilidade de viver a vida inteiramente para si mesmas, ao invés de servirem família, marido, filhos. Não é de estranhar que setores da sociedade tenham hostilizado estas mulheres. Há registros de ataques a monjas sob a acusação de serem prostitutas. Temos como exemplo o relato presente na pacittiya XVII (volume XIII, página 275 PTS edition) que descreve a reação de um brahmane diante de monjas que esperavam por permissão para se acomodarem. Ele diz: “Expulse estas prostitutas de cabeça raspada! ”. Neste sentido podemos pensar ainda que, mesmo estas passagens misóginas existindo e sendo adições posteriores, disso não se segue que houve má fé dos redatores e editores. Eles podem ter simplesmente adaptado as coisas a uma realidade hostil às mulheres e que por isso poderia prejudicar até mesmo a existência da comunidade, que depende completamente do suporte de leigos. Isto pode justificar parte dos textos com alguma eficácia, embora entenda que a situação das regras especiais se enquadre problematicamente pelo grau de contradição que elas apresentam com o conjunto do dhamma-vinaya. Por outro lado, sendo coerentes com esta ideia, adaptações podem ser feitas no que diz respeito a questão das mulheres na sangha em nossos dias. Apesar de todos os problemas pelos quais as mulheres ainda passam, vivemos em um mundo melhor que aquele do Buddha, de modo que me parece necessário e possível rever regras adaptando pragmaticamente a vida monástica a novas realidades. Conforme Analayo: No fim das contas, a tradição – que eu pessoalmente valorizo enormemente – só tem chances de sobreviver se for capaz de se ajustar a mudanças de circunstâncias sem perder o essencial. Tal pode ser realizado se nossa apreciação da situação se basear na clara consciência do que causa dukkha – em nós mesmos e nos outros – e o que leva a libertação de dukkha. Gostaria de encerrar este primeiro passo rumo a uma compreensão ampla do papel da mulher na sangha buddhista theravada deixando que uma de suas representantes fale. 304

Selecionei um poema dos versos das anciãs, o therigatha. Vejamos como a monja Mutta descreve sua experiência de libertação. Eu estou liberta! Completamente liberta estou de três coisas enganadoras: do almofariz, do pilão, e de um marido desonesto. Estou liberta de nascimento e morte; tudo que conduz à existência renovada foi desenraizado.

E a monja Vimala, que antes era prostituta, assim descreve sua experiência. Intoxicada por minha boa aparência, minha figura, beleza e fama, orgulhosa devido à juventude, eu desprezava as outras mulheres. Tendo este corpo decorado com muitos ornamentos, enganava os tolos, parada na entrada do bordel, como um caçador com a armadilha preparada, Exibia meus ornamentos. Revelava algo de minhas partes íntimas. De várias formas praticava a magia da sedução, rindo alto para a multidão. Hoje eu perambulo a esmolar alimentos com a cabeça raspada, e, envolta no manto externo, sentada ao pé de uma árvore, realizei o estado de nãopensamento. Todos os laços foram cortados, sejam divinos, sejam humanos. Eu aniquilei todas as impurezas; tornei-me calma, livre.187

BIBLIOGRAFIA

BODHI, Bhikkhu (trans.). The middle length discourses of the Buddha: a translation of the Majjhima Nikaya. Massachusetts: Wisdom Publications, 2005; ____________________. The connected discourses of the Buddha: a translation of the samyutta Nikaya. Massachusetts: Wisdom Publications, 2000; ____________________. The numerical discourses of the Buddha: a translation of the Anguttara Nikaya. Massachusetts: Wisdom Publications, 2012; ÑANAMOLI, Bhikkhu. The life of the Buddha. Kandy, Sri Lanka: Buddhist Publication Society, 1992; NORMAN, K. R. (trans.) Elders verses II. Wiltshire: Pali Text Society, 2007;

187

Usamos para esta tradução a edição da PTS e a tradução feita por Thanissaro Bhikkhu no site www.accesstoinsight.org

305

Entre impressos e mantras: o movimento Hare Krishna nos jornais do Recife (1974-1984)

Leon Adan Gutierrez de Carvalho188

1. O movimento Hare Krishna

A manifestação do movimento Hare Krishna no Ocidente pode ser caracterizada como sendo parte dos novos movimentos religiosos que despontaram na década de 1960, e, no Brasil, no início dos anos 1970. Este foi introduzido através de uma instituição, a International Society for Krishna Consciousness (ISKCON)189, fundada em 1966 em Nova Iorque, pelo guru (mestre espiritual) indiano A. C. Bhaktivedhanta Swami Prabhupada. Foi no cenário polissêmico e multifacetado da década de 1960 que o movimento Hare Krishna despontou no Ocidente como algo inteiramente novo, mas, apesar disso, sua tradição teológica não é nova e se relaciona a uma das tradições do Hinduísmo, o Vaishnavismo Gaudiya190. O movimento Hare Krishna teria sido “a face mais visível das religiões orientais exportadas para o Ocidente durante as décadas de 1960 e 1970 e muito contribuiu para definir as representações populares sobre o Hinduísmo no período” (BRYANT; EKSTRAND, 2004, p. 1, tradução nossa). Assim, apesar de podermos classificar o Hare Krishna como um dos novos movimentos religiosos191, devemos considerar que sua tradição “não-ocidental” é bem mais antiga.

188

Mestrando em História Social da Cultura Regional pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Em português: Sociedade Internacional para Consciência de Krishna. 190 Esta tradição, que ficou conhecida como Vaishnavismo Gaudiya, foi estabelecida na Bengala (Índia) no século XVI pelo santo e místico Chaitanya Mahaprabhu (1486-1534) e por seus seguidores, constituindo-se como uma tradição de cunho teísta tendo a divindade Krishna como Deus Supremo (cf. BRYANT; EKSTRAND, 189

2004, p. 1-2). 191

O Movimento Hare Krishna e outros grupos surgidos no contexto dos anos 1960 em diante foram classificados por antropólogos e sociólogos como sendo parte dos Novos Movimentos Religiosos. Cf. Carozzi (1994), Camurça (2003), Albuquerque (2004), Souza (2004), Guerriero (2006) e detalhadamente analisado em um livro de ensaios americano (BROMLEY; HAMMOND, 1987).

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A presença dos membros deste movimento tornou-se notória nas ruas de muitas cidades do mundo intrigando e atraindo a atenção de muitos em um período de grandes transformações sociais, culturais, políticas e religiosas, especialmente nos países ocidentais, que causaram rupturas com concepções estabelecidas e propuseram formas alternativas de conhecimento, estilo de vida e espiritualidade, além de um intercâmbio cultural intenso. Muitas destas transformações foram atreladas ao que ficou conhecido como Contracultura192. O movimento Hare Krishna, enquanto movimento religioso, desenvolve sua maneira de ver o mundo com ênfase na prática espiritual e na “espiritualização” do cotidiano da vida de seus membros e na tentativa missionária de possibilitar esta vivência às pessoas não devotadas à Krishna (tido numa perspectiva teísta sendo o Deus supremo, criador, onipotente, onisciente e como deidade adorável). A principal prática espiritual de um devoto de Krishna é o canto (individual e coletivo) do mantra (hino) Hare Krishna193, além da leitura e difusão da literatura traduzida e comenta pelo seu fundador, Prabhupada. No Brasil e em Pernambuco, os primeiros membros do movimento Hare Krishna surgiram em 1973 e, a partir de 1974, jornais como o Diário de Pernambuco (Recife) iriam dedicar algumas de suas páginas a construir representações sobre o movimento Hare Krishna influenciando e sendo influenciados pela opinião pública e revelando os interesses de algumas mídias impressas em consolidar e solidificar determinadas imagens sobre os novos movimentos religiosos, como o movimento Hare Krishna. Segundo Roger Chartier (2002, p. 19), a análise das representações coletivas nos permite visualizar como os diferentes atores sociais traduzem suas posições e interesses objetivamente confrontados, descrevendo paralelamente a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse. Assim, para uma análise de fontes jornalísticas, também é válido lembrar que

“De qualquer modo, independente do jornal, o pesquisador que utiliza esse periódico como fonte não deve perder de vista que o mesmo nunca deve ser tomado com efeito de verdade, mas sim como representação de grupos sociais sobre si mesmos e a realidade que os cercam”(SILVA; FRANCO, 2010, p. 10).

Na década de 1970, em pleno processo de expansão, o Movimento Hare Krishna chegou à Região Metropolitana do Recife que se constituía (e constitui ainda) em um dos principais centros urbanos do país. Apesar de alguns praticantes do Hare Krishna terem chegado à região em 1973 para atividades missionárias (que não tiveram uma continuação sistemática), foi só no ano de 1977 que membros formais da ISKCON chegaram à cidade para abrir oficialmente seu primeiro templo. A 192

Segundo Guerriero (2009), o movimento da Contracultura teve seu início nos anos 1960 nos Estados Unidos e não se deu de forma integral no Brasil, mas, deixou marcas em nossa sociedade e seria melhor definido como um espírito de uma época. Uma das vertentes mais visíveis da contracultura teria sido o orientalismo, a busca de uma espiritualidade exótica, originária de um mítico Oriente primordial. Nele estaria presente uma maneira diferente de encarar a espiritualidade que buscava a vivência de uma espiritualidade interior, experimentada como algo profundo. 193 O mantra Hare Krishna é o seguinte: Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna Hare Hare / Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare,

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relevância do espaço recifense para uma história das práticas Hare Krishna no Brasil é que foi a partir de Recife (dos recursos humanos e técnicos ali concentrados) que outros templos e centros Hare Krishna foram abertos em outras capitais e cidades do Norte e Nordeste brasileiros, na transição das décadas de 1970 e 1980194. O movimento Hare Krishna pode ser configurado nesta época como sendo essencialmente monástico e missionário (com ênfase na ortodoxia e na reprodução do “modelo original”195), de estrutura administrativa centralizadora e vertical e de uma frágil, porém rentável economia baseada na venda de livros do Movimento. Este período se seguiu até a década de 1990 quando este antigo paradigma do movimento parece ter se tornado insustentável no Brasil diante das novas demandas e transformações sociais, culturais e políticas do mundo globalizado, entrando em um verdadeiro colapso estrutural196. De fato, estas mudanças não se fizeram repentinamente, senão que adentraram paulatinamente em um movimento religioso que se retraía e tentava manter sua plausibilidade (BERGER, 1985, p. 63) diante das inúmeras e complexas modificações ocorridas no mundo globalizado dos anos 1990. Silas Guerriero (2001, p. 50-55) defende que o Movimento Hare Krishna no Brasil, passou por três fases distintas. A primeira (1974-1977) iria marcar os anos iniciais do movimento quando os primeiros grupos Hare Krishna vieram ao Brasil de maneira isolada, constituindo informalmente as primeiras células de praticantes no país; o segundo momento se daria entre 1977 e os anos 1990 (sobretudo no ano de 1996), quando teria se dado a consolidação e expansão da ISKCON no Brasil, marcada pelo surgimento de templos em várias cidades brasileiras (incluindo Recife) e de uma forte presença missionária nas ruas, marcada principalmente pela distribuição dos livros de sua editora, a Bhaktivedanta Book Trust (BBT) – causando assim uma rápida ascensão e estruturação da ISKCON no Brasil. Segundo Guerriero (op. cit., p. 50-51), os membros da ISKCON e suas lideranças, tinham nesse período “a expectativa de um crescimento quantitativo expressivo que pudesse causar uma mudança em toda a sociedade. Tratava-se de mostrar a todos uma saída para a vida vazia e sem sentido que as pessoas vivenciavam”. Teria havido então, um terceiro momento que surge na conjuntura dos anos 1990, na qual “o movimento deixa de ser revolucionário e inovador, acomodando-se no interior de um campo mais amplo das demais denominações religiosas” (GUERRIERO, 2001, p. 51). Para este momento “contemporâneo” da história do movimento Hare Krishna no Brasil, observamos que

194

Mais tarde este centro de irradiação do movimento seria transferido para a comunidade sede do Movimento Hare Krishna no Norte e Nordeste, a Fazenda Nova Vraja Dhama (Caruaru-PE), fundada em 1987. (Cf. CARVALHO, 2014, p. 3946). 195

Chamamos aqui de “modelo original” a formatação das práticas religiosas cotidianas e das formas de manutenção administrativas e econômica da ISKCON como instituídas pelo seu fundador, Prabhupada. 196 Esta “crise de identidade” vivenciada pela ISKCON foi aprofundada na tese de Adami (2013, p. 91-109).

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um “novo paradigma” passa a ser, senão implementado integralmente, ao menos almejado pela instituição197. Seguindo este entendimento, o presente trabalho, parte de uma pesquisa ainda em andamento, fará uma análise da primeira fase (1974-1977) e de parte da segunda fase do movimento Hare Krishna (1977-1984) na cidade do Recife, evidenciando alguns dos conflitos vivenciados no período. Nosso trabalho de pesquisa se deu basicamente, com o uso de fontes jornalísticas e documentos da instituição pesquisados em sua sede regional na cidade de Caruaru-PE. Não pudemos deixar de perceber que, no contexto da constituição de um grupo local, as atividades missionárias que passaram a ser desenvolvidas pelo movimento Hare Krishna em Recife naturalmente expuseram seus membros ao crivo dos juízos de valor feitos pelos indivíduos e instituições da sociedade que tiveram contato com eles ou que intencionalmente buscaram um diagnóstico. A introdução de um movimento religioso que necessariamente carregava alguns aspectos de uma (possível) cultura indiana no contexto social local, inseriu de uma ou outra maneira elementos culturais distintos (estranhos, exóticos) ocasionando em “negociações”, (re)adaptações, (res)significações e, também, rejeições, induções e classificações acerca do que seria (ou o que deveria ser) o movimento Hare Krishna. Discursos carregados de exotização, estereotipia e estranhização sobre os membros do movimento Hare Krishna, sobre suas práticas, espaços, vestimentas, gestos, musicalidade e religiosidade, não eram incomuns. Certamente, ocorreram diversas situações de conflitos entre os religiosos e as famílias da sociedade local que buscavam reaver seus entes, principalmente os jovens, que abandonavam suas casas em busca da vivência monástica nos templos Hare Krishna desejosos de usufruir dos bens religiosos ofertados ou propostos nestes espaços sacralizados. Dessa forma, a existência do movimento Hare Krishna como instituição que poderia “doutrinar”, “treinar” ou “educar” pessoas da sociedade, parece ter causado “desconforto” entre algumas famílias recifenses nos termos de seus valores, percepções e padrões a cerca do que seria uma vivência social, cultural e religiosa adequadas para seus membros. Na década de 1970, quando muitos dos novos movimentos religiosos atuavam na Europa, Estados Unidos e América Latina, uma reação a estes grupos se deu por parte de alguns segmentos da sociedade, formado principalmente por famílias tradicionais que desejavam impedir que seus membros, principalmente os jovens, tomassem parte das vivências destes grupos que, à revelia de seus atores sociais, foram caracterizados como seitas198. A caracterização dos novos movimentos religiosos como “seitas” e de suas práticas como “lavagem cerebral” causou conflitos constantes no mundo Ocidental entre as famílias e instituições anti-seita de um lado, que utilizavam deste discurso para construir uma determinada representação destes movimentos e, de outro, os adeptos dos novos 197

Este novo paradigma do movimento Hare Krishna estaria baseado no Desenvolvimento Congregacional (contrapondo-se a ênfase monástica), em uma flexibilização ou renovação de determinados conceitos e das práticas, busca de atividades econômicas sustentáveis (com ênfase na inserção social em detrimento da vida monástica) e busca de descentralização administrativa (Cf. CARVALHO, 2014, p. 52-57). 198 Além do movimento Hare Krishna, muitas outras instituições ou mesmo ideologias, filosofias e práticas espiritualistas foram classificadas como seitas, nos anos 1960 e 1990. Entre elas os adeptos da igreja do Reverendo Moon, os Meninos de Deus, as diversas práticas de yoga de gurus indianos (tradicionais ou não), entre outras, como analisadas por Birman (2005) e Giumbelli (2002).

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movimentos religiosos (e suas instituições) que tentavam configurar as suas próprias representações, gerando as lutas de representações (cf. CHARTIER, 2002, p. 17) que foram travadas no período. Dessa maneira, o movimento Hare Krishna foi classificado frequentemente por diferentes interlocutores, como os jornais, como sendo uma “seita”, com toda a imprecisão do termo. Não era incomum que os jornais utilizassem a dicotomia “igreja/seita” para diferenciar as religiões mais amplamente difundidas chamadas de “históricas”, das outras formas de religiosidade tidas como “seitas”, como se esses movimentos fossem a-históricos, como se não fossem válidos ou fossem invenções sem fundamento. Boa parte da utilização dos discursos que “batizaram” uma determinada prática religiosa como “seita” o fizeram num sentido de servir-se de um “instrumento de luta religiosa, ideológica e política” (PARKER in CIPRIANI et al, 1997, p. 79), efetuando uma simplificação e um reducionismo intencional à complexidade do fenômeno de novos movimentos religiosos. Assim, Parker (in CIPRIANI et al,1997, p. 85) define que “seria incongruente, por exemplo, considerar como ‘seita’ (um conceito derivado do de igreja) expressões de religiões orientais em países ocidentais, como de fato se fez amiúde com movimentos como o Hare Krishna” (PARKER in CIPRIANI et al, 1997, p. 89)199. Vejamos agora, uma análise sobre os primeiros anos do movimento Hare Krishna na região metropolitana da cidade do Recife.

A presença do Hare Krishna nas ruas e jornais do Recife

No início de janeiro de 1974, já havia a primeira tentativa de estabelecer um “templo” e restaurante Hare Krishna na cidade de Olinda, despertando a atenção de um público basicamente jovem e, provavelmente, de classe média200. Um casal de estadunidenses proveniente do Havaí que viera ao Brasil a fim de divulgar as vivências Hare Krishna de maneira espontânea, juntamente com alguns dos primeiros adeptos brasileiros (vindos de São Paulo) foram à cidade do Recife para tentar estabelecer um templo ou centro de pregação Hare Krishna. Por algum motivo ainda desconhecido por nós, estes primeiros integrantes do movimento no Estado, decidiram por se instalar na cidade de Olinda, região metropolitana do Recife. Um motivo provável, talvez tenha sido o fato de que eles não representavam a ISKCON, ou seja, não tinham sido enviados pela instituição oficialmente com o objetivo de fundar ali uma “missão” Hare Krishna e, assim, como missionários “independentes” ou “espontâneos” eles não dispunham de recursos financeiros que viessem além das doações coletadas com a venda de sua literatura. Esta falta de recursos pode ter motivado a instalação em Olinda onde os aluguéis seriam mais acessíveis que nos bairros centrais ou “nobres” do Recife.

199

Carozzi (1994, p. 61), sugere que os pesquisadores acabaram adotando a expressão “novos movimentos religiosos”, considerada “mais genérica e menos carregada valorativamente” no decorrer dos anos 1980 e 1990. 200 A predominância de membros da classe média no movimento Hare Krishna é comumente relatada em análises de estudiosos do movimento. Cf. Gerriero (1989) e Rochford Jr. (1985).

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Vestidos com suas tradicionais indumentárias indianas e munidos com literatura própria do movimento para distribuir nas ruas da cidade (e pedir doações em troca) esses primeiros Hare Krishna a circularem em Pernambuco provavelmente despertavam a atenção por onde passavam, chamando a atenção também dos jornais. Na primeira reportagem sobre o movimento Hare Krishna em Pernambuco em um quarto de página, o Diário de Pernambuco iria relatar a presença dos religiosos no Bairro Novo, em Olinda, no que seria um “templo” instalado em uma “casa de praia” na Rua Pedro de Assis Rocha. Segundo a reportagem, os rapazes levavam “muito a sério a sua religião”, seriam “jovens”, “alegres” e “fazem questão de dizer que nada tem haver com os ‘hippies’”. Os “jovens” são fotografados em um quadro que sugere a meditação ou reflexão, em que eles se encontram cantando concentradamente. Nesta reportagem, de tom bastante amistoso e curioso em relação à novidade, o Hare Krishna é tido como “religião”, “religião de origem indu” (sic) e “religião indu” (sic) e ainda traça uma explicação sobre aquilo que seria necessário àqueles que quiserem “seguir a religião”, evidenciando o caráter de disponibilidade do leitor em escolher uma religião possível entre as demais (Diário de Pernambuco, 05/01/1974, p. 7). A segunda reportagem viria alguns meses depois em junho do mesmo ano e narraria a transformação daquele templo em um “restaurante místico”. A reportagem parece ter sido atraída pela inauguração recente do Sunshine Health Food’s que representaria uma “tendência de consumo de cunho religioso”. O líder do grupo e porta-voz parece querer apresentar uma imagem de “pureza” e de “comida saudável” para o seu restaurante e defenderia que o seu restaurante seria o “único no Recife que oferece uma comida saudável”, demonstrando a maneira como gostariam que fossem vistos. O restaurante de fato parecia ser uma tentativa de manter o programa missionário do grupo, mas a proposta principal parecia mesmo a de “discutir com todos a respeito das ideias de Krishna” (Diário de Pernambuco, 24/06/1974, p. 5). Uma característica interessante nessa edição é que o líder parece se apropriar das representações geralmente feitas ao movimento Hare Krishna, presentes também nesta mesma reportagem, em relação ao suposto caráter “oriental” do movimento religioso. A ideia de referir-se a alguém ou a um grupo identitário como “oriental” é deveras problemática já que o termo “oriental” é uma designação geográfica, e não uma definição cultural, como se todas as pessoas, práticas e culturas presentes no Oriente (que abrande uma diversidade cultural e étnica extremamente ampla) fossem iguais ou que representassem a mesma categoria. Muitas representações que partiram do Ocidente desde o século XVIII têm realizado um reducionismo intencional em relação à cultura e povos “orientais”201. O movimento Hare Krishna, apesar de suas origens indianas, tinha sido fundado por um guru indiano nos Estados Unidos e a grande parte de seus membros era de ocidentais que desenvolviam sua vida missionária no Ocidente, por e para ocidentais e, assim, não se via e não simpatizava com a ideia de ser visto como um “movimento oriental”. Em seu sectarismo, a ISKCON se via como um movimento “transcendental” que ia além das designações materiais. Mas, utilizando-se das representações que pairavam sobre essa “religião hindu”, o líder Hare Krishna aproveitava o espaço aberto pela reportagem do jornal para astuciosamente202 convidar a todos a comer o “bom alimento do Oriente”. A próxima reportagem que se segue tem um tom menos amistoso, talvez em parte pelo tom proselitista que os “rapazes” tiveram ao condenar o “comodismo da vida moderna” (Diário de 201 202

Sobre discussão das representações do Ocidente sobre o Oriente, cf. (SAID, 2007). Utilizamos a ideia de “astúcia” conforme Michel de Certeau (2012, p. 51).

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Pernambuco, 29/09/1975, p. 5). O mais notável é a mudança de perspectiva e a definição do movimento Hare Krishna já na manchete passa ser a de “seita”. Utilizando de comparações com elementos que pretendem mostrar a exoticidade dos cinco rapazes que “se espalharam pelos quatro cantos do Recife”, a reportagem diria que os “rapazes” teriam suas cabeças raspadas “à semelhança dos mongóis”. É interessante notar é que, a partir desta reportagem (com algumas poucas exceções) o movimento passaria a englobar o hall das “seitas”, a exemplo do que traz o discurso desta edição que defenderia que estes rapazes estariam “repetindo as mesmas palavras usadas por todas as seitas ainda pouco conhecidas”. A reportagem ainda definiria que os rapazes seriam denominados “gurus” e que eles “tumultuaram” as ruas por onde passaram (sem especificar que tipo de tumulto), que eles não teriam convicção nas palavras que usavam e que repetiam “eternos chavões” – sem explicar o que deveria ser um “chavão” e o que não deveria ser considerado como tal. Ainda seria dito que os rapazes teriam sido “admirados” por uns populares “boquiabertos”, “xingados” por outros e que “os gurus criticam tudo o que é material e de repente desaparecem no meio a multidão para não responderem as perguntas formuladas por aqueles que os ouvem”. Esta narrativa, um tanto teatralizada de uma atividade missionária típica do movimento Hare Krishna revela determinadas nuances de como os membros do movimento poderiam ser descritos pelos jornais e das representações destacadas para a apreciação do público leitor, ou seja, pelos clientes do jornal. A partir desta reportagem as demais seriam no humor de denúncia (e não mais de curiosidade) motivada pelo desconhecimento e pelo englobamento do Hare Krishna com outros novos movimentos religiosos que, independentemente de suas diferenças muitas vezes antagônicas, eram englobados no mesmo conceito de “seita”. No ano de 1974, o “restaurante místico” seria fechado pelo grupo local que teria voltado a São Paulo devido a problemas com o grupo de havaianos estabelecido naquela cidade. Mas teria deixado um grupo de simpatizantes pernambucanos e até o ano de 1977 grupos de missionários como os descritos na reportagem acima fariam passagens pela cidade de Recife. A segunda metade década de 1970 traria à tona na mídia nacional o problema das “seitas” e casos de pessoas que deixavam tudo para aderir a estes grupos pouco conhecidos, de mensagem e práticas estranhas, chocando a sociedade que professava valores tradicionais. Os jornais intensificariam então, a veiculação de reportagens com teor negativo sobre esses grupos e, que acontece em um caso específico com uma determinada “seita” logo afetaria a reputação de todas as “outras” por estarem sob o julgo da mesma classificação padronizante.

Institucionalização e intensificação dos conflitos

No final de 1977 e inicio de 1978, a ISKCON seria formalmente estabelecida em Recife, com estatuto próprio e um templo oficializado pela instituição. Todavia, a inauguração das atividades da ISKCON na cidade, apesar de ter sido realizado por um membro enviado pela instituição não contaria com seus recursos financeiros ou de um grupo de apoio. Apesar disto, o baiano Antônio Sérgio Ribeiro (também conhecido como Jagad Vichitra Das), que mais tarde apareceria nos jornais, parece ter realizado um trabalho de convocação do grupo remanescente de simpatizantes formados entre 1974 e 1977 e

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realizado uma pregação suficiente para constituir um corpus de membros necessário para instituir o templo que passaria a crescer durante toda a primeira década de 1980. Assim, em julho de 1978, monges Hare Krishna voltam a aparecer no Diário e, mais uma vez, o cenário é o das ruas do Recife. Em uma reportagem centralizada na página sobre as ruas de lazer do Recife, os Hare Krishna seriam descritos atuando como em um palco de teatro interativo onde cada gesto e palavras descritas parecem sugerir um espetáculo. “Que danado é isso?”, “Êta bando de malandros”, “olha aqueles doidos” teriam exclamado alguns populares ao verem dois adeptos Hare Krishna cantando na Rua da Palma. Formado o palco de curiosos eles teria se dirigido aos “espectadores” eles teriam oferecido um convite que dava direito a um jantar vegetariano em seu templo. Mas quando os “religiosos” tiraram de sua bolsa livros sobre meditação dizendo que custavam apenas “cinco cruzeirinhos” a roda teria sido logo desfeita. Hare Krishna, comerciantes ambulantes e vendedores de “santinhos” estariam segundo o jornal disputando o espaço público das ruas de lazer da cidade que estariam “assumindo características próprias de uma feira” (Diário de Pernambuco, 05/07/1978, p. A-5). Em 1978, uma tragédia botaria fogo nas discussões sobre a boa intenção das assim chamadas “seitas” e de suas atividades missionárias. A organização denominada Templo do Povo, coordenada por Jin Jones e instalada em uma comunidade na Guiana, teria cometido um suicídio coletivo que matou mais de 800 pessoas, entre adultos, crianças e idosos, chocando a opinião pública mundial e impulsionando o surgimento de organizações anti-seita, seja motivado por grupos de religiões tradicionais, seja pelas famílias ou mesmo pelo Estado. Todos os grupos que eram classificados como “seitas” sofreriam comparações com o Templo do Povo e um clima de suspeição se deu a nível mundial. Prevendo uma reação do tipo “efeito dominó”, o presidente do templo Hare Krishna no Recife, Jagad Vichitra teria se antecipado às discussões e distribuído uma “Nota à Imprensa” lamentando o ocorrido na Guiana considerando o ocorrido como “repugnante” e que a ISKCON “abomina tais bizarros atos de violência”. A nota solicitava ainda a Imprensa que não se referisse ao movimento Hare Krishna como “seita”, já que estaria assim vinculando o movimento aos “Meninos de Deus”, “Moonies”, “Cientologistas” e ao “Templo do Povo”. Segundo ele teria dito, o movimento estaria sendo “vítima de incompreensões” quanto a sua natureza religiosa, demonstrando dessa forma, a maneira como os membros do movimento gostariam de ser tratados e como eram geralmente representados (Diário de Pernambuco, 05/12/1978, p. A-7). O receio do aflito “presidente” não seria desprovido de fundamentos. De fato, no início de 1979, o Diário veicularia uma notícia internacional sobre as “seitas”, em que seu interlocutor, um especialista em “desprogramação” de membros de “seitas religiosas”, afirmava que “esse poder (para a prática de assassínio em massa ou suicídio coletivo), existe nas seitas da Igreja da Unificação, do Krishna, da Cientologia”, divulgando assim o sentimento de temor e de medo para com as “seitas” promovido pelas organizações anti-seita (Diário de Pernambuco, 03/02/1979, p. A-13). Durante a primeira metade da década de 1980, o movimento Hare Krishna seria representado nesse tom de suspeição como que fazendo um alerta à sociedade. Títulos sensacionalistas chamariam a atenção dos leitores para o fenômeno que seria, segundo alguns, “uma das piores pragas deste século” (Diário de Pernambuco, 12/11/1981, p. B-1). Assim, manchetes como “Krishna: entre a religião e a lavagem cerebral”, “A suave invasão”, “Seita denunciada” e “Seita desvia personalidade

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das mocinhas”203 evidenciam a preocupação em estabelecer um debate mesmo internacional promovido pela mídia nos países ocidentais motivado pelo processo de ascensão desses grupos minoritários e a consequente ameaça dos “outsiders” aos grupos “estabelecidos”204. Esse processo de conflito entre grupos defensores de valores tidos como tradicionais e os novos movimentos religiosos introduzidos no Ocidente nesse contexto parece querer nos mostrar, além da ressignificação do elemento religioso na sociedade que se pretende secular (mas que não consegue ser plenamente), uma questão de choque de valores entre o “tradicional”, representado pelos valores culturais da família, da religião e da sociedade tradicionalmente aceitos na cultura ocidental e o “novo”, representado pelas formas de religiosidade, organização comunitária e visão de mundo desses grupos minoritários inseridos ou surgidos no Ocidente, como o movimento Hare Krishna. As fontes jornalísticas e as representações criadas ou circuladas no processo de edição dos jornais seriam extremamente importantes para uma percepção do projeto de adesão das mídias impressas diante destes debates e pela tomada de partido dos jornais diante dos conflitos entre esses grupos sociais evidenciando também os valores promovidos pela elite (financiadora dos impressos).

Considerações finais

O presente trabalho ainda não poderá tomar conclusões, mas, podemos perceber certos indicadores que demonstram resultados parciais da pesquisa. Entendemos que na história da ISKCON em Pernambuco e suas representações nos jornais houve uma fase inicial (1973-1977) marcada pelo pioneirismo dos primeiros devotos de Krishna e uma segunda fase (1977-1984) marcada pelo estabelecimento do movimento e por grandes conflitos nos jornais. De 1974 até 1978, o Diário de Pernambuco aparentemente relatou com curiosidade o grupo “exótico” de religiosos que se instalaram na região metropolitana. Mas, a partir de 1978, quando o primeiro templo foi formalmente constituído em Recife, a atividade missionária executada nas ruas da cidade se intensificou e com o debate internacional sobre o “problema das seitas”, sobretudo na primeira década de 1980, as representações sobre os religiosos e suas práticas passaram a ter um caráter mais taxativo, pejorativo e as reportagens do Diário de Pernambuco passaram a veicular temores, receios e preocupações sobre o Hare Krishna e outros movimentos religiosos categorizados como “seitas” evidenciando um projeto de deslegitimação de determinados grupos identitários. Esperamos que este trabalho possa ser tomado como uma contribuição, ainda que sucinta sobre o debate acerca dos novos movimentos religiosos nas décadas de 1970 e 1980 e, especialmente, sobre a história do movimento Hare Krishna no Brasil.

203

Para não fragmentar demasiadamente a leitura do texto, colocamos aqui, na sequência, a citação das quatro respectivas edições que traziam as manchetes citadas: Diário de Pernambuco, 12/11/1981, p. B-1; Diário de Pernambuco, 14/03/1982, p. B-1; Diário de Pernambuco, 15/01/1984, Capa; Diário de Pernambuco, 15/01/1984, p. A-15. 204 Utilizamos aqui os conceitos conforme Elias e Scotson (2000, passim).

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O ADRO BARROCO E A HISTÓRIA DA ARTE: REFLEXÕES SOBREO ESPAÇO PUBLICO RELIGIOSO NA PARAÍBA COLONIAL

Michael Douglas dos Santos Nóbrega205 Wellida Karla Bezerra Alves Vieira206 Extrair uma pedra que o rio esculpiu, recuar na história do rio, descobrir o lugar certo da montanha de onde vem a pedra, extrair da montanha um bloco novo, reproduzir exatamente a pedra extraída do rio no novo bloco de pedra, é ser rio. (...) Para esculpir a pedra na verdade, tem-se que ser rio. (PENONE, 1980).

O Brasil é um país de dimensões continentais, a América portuguesa congregava um ambiente múltiplo e diferenciado. O território de proporções continentais propicia diversidade climática, de fauna, flora, solo, entre outras. A fachada litorânea foi a porta de entrada dos colonizadores no território brasileiro, e nesse cenário, está expressa a reinvenção do barroco europeu. O barroco dos séculos XVII e XVIII, ao se deparar com o cenário do além mar, encontra um espaço diferente do que ele costumava se expressar. Uma terra habitada por tribos indígenas nativas, que viviam culturas próprias e diferenciadas, cercada pela mata atlântica, e com total abstinência do que seria o mundo moderno, do qual os portugueses emergiam nas praias do atual litoral nordestino, há séculos atrás. Dentre as capitanias, que iriam se formar anos depois, o território da Paraíba é encontrado pelos, e pelas suas condições de acesso e ambientais, é escolhido para fundação de cidade. Em 1585 se inicia de fato a ocupação, com um acordo de conciliação realizado entre os portugueses e os índios tabajara, vindos dos sertões do rio São Francisco. O processo colonizador inicia as reduções indígenas, juntamente com a catequese dos mesmos, e os índios, que são peças fundamentais para os

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Doutorando em História pela UFG, Mestre e Graduado em História pela UFPB Mestre Em Ciências das Religiões pela UFPB, Pedagoga e Especialista em Psicopedagogia

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trabalhos na extração de árvore pau brasil, suportam a demanda inicial de força de trabalho, inicialmente nas matas e depois nos engenhos de cana de açúcar. Com o advento do açúcar, a capitania da Paraíba se torna um centro importante de comercialização desse produto, e os primeiros engenhos de açúcar começam a surgir no território da colônia, gerando lucros, e promovendo de forma paulatina a construção da capitania.

Figura 1:Mapa de autoria de JohannesVingboons (1640). Fonte: MARTINS, Dayse Luckwü in “A Paisagem da Antiga Paraíba através dos Mapas” Trabalho apresentado no 1º Simpósio Brasileira de Cartografia Histórica, em Paraty, maio de 2011.

Na figura 1, o mapa holandês explicita a organização espacial que as igrejas tomavam na cidade, e a partir daí, iniciavam suas construções. Entre os anos de 1634-1645, a capitania da Paraíba passa a ser dominada pelos holandeses. Os primeiros contatos com os holandeses se deram em 1625, antes da conquista do Nordeste, quando estes repelidos da Bahia, chegaram à Baía da Traição, em busca de água e mantimentos. Enfraquecidos, não chegaram para se alojar, mas levaram com eles alguns índios potiguaras, então já reduzidos pelos portugueses, porém ainda seus desafetos, que aculturados, lhes seriam úteis na guerra da conquista, entre os quais Pedro Poti, parente de Felipe Camarão. (PEREIRA, 2013, p. 31).

O domínio holandês na Paraíba durou onze anos, esse período foi bastante produtivo no tocante a produção de pinturas 207 e relatos, 208de cronistas 207

Como os trabalhos dos pintores flamengos Guilherme Piso, George Macgraf e Fran Prost, que retrataram cenas da fauna e flora e do espaço urbano na Paraíba. 208 Tais como os cronistas Gervásio Carpentier, Joannes de Laet, Adriaen van der Dussen e Gaspar Barleu.

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e dos governadores locais, tal como a obra de Elias Herckman, sob títuloDescrição geral da Capitania da Paraíba. As obras trazem consigo detalhes acerca do cotidiano da cidade e de suas construções religiosas. Com o fim do domínio holandês na Paraíba, Portugal retoma as rédeas econômicas e se depara com uma crise externa, relativa ao preço do açúcar. Essa implicação fez com que os sertões fossem explorados em busca de riquezas e metais preciosos. Nos séculos XVII e XVIII, a colônia continua sendo explorada economicamente por Portugal, nesse período a ampliação dos seus domínios é posta em ação, através dos bandeirantes. A nascente elite econômica e intelectual, constituída dos europeus e seus descendentes, e os mestiços que aqui iam construindo o patrimônio moral e econômico, foram incorporando, por interesse de classe, os ideais libertários surgidos na Europa e no resto do continente americano, que tinham como modelos as revoluções americana e francesa. (PEREIRA, 2013, p. 37)

Pouco mais tarde, a Paraíba é anexada a Pernambuco, tendo em vista as crises enfrentadas na Capitania devido a seca rígida, e ao declínio da produção açucareira. Essa fase é uma das mais complicadas na História da Paraíba, pois a crise econômica se refletiu em diversos estamentos da sociedade, em contrapartida, é nesse período que as principais construções religiosas são erguidas e reformadas. A análise historiográfica e documental sobre as construções religiosas barrocas na Paraíba mostram que ostentar grandeza e opulência, mesmo em condições desfavoráveis, é algo típico da sociedade barroca, isso explica a campanha decorativa que se instaurou nas igrejas do período. Dentro dessas construções, está o Convento Franciscano (figura 2).

Figura 2: Adro do conjunto franciscano de João Pessoa. Foto: Piedade Farias

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O Convento Franciscano em João Pessoa – PB é uma das joias da arte colonial no Brasil. Localizado no centro da capital paraibana, o complexo fundado pelos frades da ordem franciscana carrega consigo as mais diversas experimentações artísticas típicas do período Barroco, como a talha, pintura de tetos e azulejos. A presença do barroco na Paraíba se faz presente nas diversas construções coloniais. O uso politico do barroco na capitania contribuiu para a dominação e colonização. A persuasão é um dos principais sentidos que o barroco manifesta em suas experimentações coloniais. Na América Portuguesa a história se constrói de forma plural, devido à junção dos elementos que contribuíram para a formação da identidade e para a colonização do Brasil (THEODORO, 1997). Várias influências advindas da modernidade e com um sentido colonizador, vieram de Portugal para o Brasil, dentre as quais se pode destacar o Barroco, compreendido de uma forma mais ampla, como um estilo artístico e também um conceito de época (MARAVALL, 1975). O barroco penetra no território da colônia e se desenvolve absorvendo elementos locais e adaptando outros, trazidos da Europa, à realidade tropical (DIAS, 2001). Além de seu uso artístico, o Barroco ampliou seus próprios limites, adentrando as fronteiras dos campos da política, da religiosidade e da vida cotidiana. Trabalhar com o Barroco deste modo ampliado, que vai além das fronteiras do estilo artístico, possibilita que se incorpore às analises historiográfica e artística certos elementos que se tornaram fulcrais para a formação das identidades locais. No Novo Mundo português, o Barroco vai adquirir a peculiaridade de introduzir uma realidade dinâmica e de relações muito mais demarcadas do ponto de vista hierárquico, uma linguagem sofisticada, calcada em discursos visuais de caráter catequético e doutrinário que utilizavam elementos alegóricos e também a ideia de exemplos para a vida na Colônia. Nesse tipo de igrejas, a arte pública é encontrada inicialmente no cruzeiro, que é típico dos conjuntos franciscanos, logo em seguida no adro e sucessivamente na fachada da mesma. Esses espaços trazem em si imagens catalizadoras de emoções, e que foram inseridas naquele contexto com sentidos alegóricos. Essa cultura artística, expressa nessas manifestações, é responsável por transmitir informações que a igreja tinha a intenção de passar ao povo local. Sendo a igreja uma fonte incontornável de informação e uma instituição que “geria a identidade civil das pessoas” (CARVALHO, 2011, p. 34). Penetrando dessa forma nas mentalidades e nos comportamentos das populações. A cada instante, há mais do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem esperando para serem explorados. Nada é vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação aos seus arredores, às sequencias de elementos que a ele conduzem, à lembrança de experiências passadas. (LYNCH, 1997, p. 1)

Esses elementos inseridos na cultura artística são catalizadores de emoções e despertam no espectador sensibilidades circundantes das memórias pessoais. As igrejas são referências, tendo em vista que cada pessoa tem seu mapa, elas fazem parte da vida cotidiana da população. Dessa forma, cruzeiro, adro e fachada, são 321

elementos que estão acessíveis à população local e constituem exemplos de experimentações artísticas em espaços públicos religiosos. Entre esses três elementos arquitetônicos, um dos que chamam a atenção do público são os nichos azulejares que estão no adro da igreja. Esse adro se constitui em duas paredes a ladear o templo, revestidas de azulejos lusitanos representando a via sacra (BARBOSA, 1985, p. 20). Esses azulejos são configurados em seis nichos e estão encravados na parede do muro, cercados por colunas em cantaria. A temática desses paineis se refere à via sacra, sendo uma tradição da igreja por a via sacra no espaço público. Segundo Simões:

A azulejaria começa no impressionante adro, o maior do seu gênero, cujas paredes laterais foram completamente azulejadas com ladrilhos brancos ou enxaquetados de azuis. Nestas paredes abrem-se 6 nichos que têm, cada um, fazendo fundo, seu painel azulejado de 14 x 10. São de pintura azul-forte e no primor do desenho acusam cuidados reveladores de bom artista. Representavam outros tantos passos da Paixão de Cristo, estando alguns, infelizmente, mal tratados pelo tempo e pelos vândalos. Pertencem estes painéis ao artista autor do que está na sacristia da antiga igreja do convento dos Capuchos de Santarém (Portugal), da igreja da Misericórdia do Sardoal e de outros que primam pela correcção do desenho: o pintor aprendeu sem duvida na escola dos Oliveira Bernardes e este trabalho pode ser colocado em época próxima de 1720 quando, como vimos, se estava fabricando o convento. (SIMÕES, 1965, p. 211)

Como Simões nos fala, o adro 209do convento paraibano é o maioradro franciscano desse tipo, na América portuguesa, e carrega consigo diversas experimentações artísticas do período. 2.0 O adro barroco e suas significações estético-filosóficas O adro é um pátio localizado em frente, ou nas laterais das igrejas. Ele age como um ambiente receptor dos fieis, e é um local de transição, entre a cidade e o espaço religioso sagrado. Didi-Huberman, em seu livro Ser crânio (2009), reflete sobre a mentalidade do indivíduo humano e a falta de conhecimento das faculdades anatômicas mentais que cercam nossa cabeça, por isso o título tão propício ao trabalho. Através da anatomia do crânio, ele faz um paralelo com o ser presente na filosofia da arte, em busca de compreensões referentes ao ser artístico, a solidificação do pensamento e da linguagem. Desfragmentando as experimentações artísticas em busca de sua essência. Para o autor, o problema da obra de arte não está resumido à representação da imagem, e sim a reencarnação da mesma, que se constitui no jorro do artista, que torna visível esse corpo na obra de arte. Didi-Huberman se preocupa com o além do visível, o interior, ele nos fala de dobras, de escamações, escavações, prospecções, trata-se de uma investigação profunda sobre a anatomia do crânio e suas relações artísticas. 209

Segundo o livro dos guardiões do convento de Santo Antônio da Paraíba, as obras do adro foram de todo, concluídas em 1789 (conforme tabela 1, em anexo).

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Essa ideia de Didi-Huberman, está baseada em questionamentos de Leonardo Da Vinci, sobre o lado interno da caixa craniana. Da Vinci se preocupava com os sedimentos que preenchem o crânio e com os buracos e canais visíveis, os quais, segundo ele, levam as lágrimas do coração para os olhos (DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 21). A obra sendo desfragmentada, escamada, possibilita uma leitura interna da mesma, tal como o efeito desenrolar do caracol. Essas proporções escamosas foram muito observadas por Erwin Panofsky, e certamente contribuíram para seus estudos iconológicos sobre a imagem, e sua busca sobre o significado intrínseco dos símbolos e alegorias presentes nas mesmas. Na discussão sobre adro, Didi-Huberman cita Giuseppe Penone, que é conhecido por ser um escultor de adro. Penone nos fala sobre uma criação de formas; um processo de dynamis. Estaria inspirado na ideia filosófica de Heráclito, na qual, ninguém se banha duas vezes no mesmo rio? Penso que essa lapidação ocorre de forma espontânea, e única, tal como a água do rio faz com as pedras e com as margens. Os artistas sabem encarnar as questões mais essenciais. A maioria dos pintores representa uma caveira na base de seus crucifixos: porque no sacrifício do Deus flutua o fantasma do erro do homem. Assim essa caveira é geralmente vista como a de Adão em pessoa. Ela é o cálice de pecado que recolhe o fluxo de sua futura redenção. Ela é também, e antes de tudo, o lugar-nomeado da morte do Cristo: um crânio topônimo, um lugar de fundação para uma religião inteira. É o rochedo em forma de cabeça descarnada, sobre o qual ter-se-á escolhido fazer morrer um Deus – por contato, quero dizer, pelo contato dilacerante do golpe de lança infligido ao Cristo – à imagem do homem. (DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 40).

Fazendo um paralelo disso, com o adro franciscano na América portuguesa, podemos pensar que a presença do tema da via sacra, no adro, representando a morte e ressurreição de Cristo, faz com que o ad ro carregue esse sentido de caixa. Naquele determinado espaço, que se trata de um espaço introdutóriono qual o homem estaria se preparando para transcender religiosamente e encontrar a essência divina.Ressaltando que arte é lugar do comum, mas também exibe seus fantasmas, vê-se nesses nichos, um sentido catequético e de incentivo, que esses quadros passavam. 3.0 O espaço barroco na Paraíba colonial A paisagem construída, em associação com a paisagem natural, do vale do rio Sanhauá, compõem o cenário colonial em que o Conjunto Franciscano da Paraíba emerge. Construída nas proximidades de uma fonte de pedra calcária, o monumento exibe sua imponência e estilo, sendo considerado uma das perolas do barroco brasileiro. É nessa paisagem, que os moradores da Paraíba, exerciam suas expressões religiosas. O espaço nos antecede. O espaço antecedeu nossos ancestrais. O espaço prosseguirá depois de nós. Fossilizar os gestos certamente, ou provavelmente, realizados em um certo lugar reduz o uso potencial do espaço, mas marca o espaço mesmo. [...] Criar uma escultura, é um gesto vegetal: é o rastro, o percurso, a aderência em potência, o fóssil do gesto feito, a ação imóvel, a espera [...] - ponto de vida e ponto de morte. (DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 64)

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O adro é preenchido por azulejos enxaquetados de azuis e possui nas paredes laterais, seis nichos azulejares retratando os paços da paixão de Cristo, produzido por volta de 1720. Esses nichos azulejares recepcionavam os fieis, que se deparariam com a cena de grandstyleque espetáculo barroco proporcionava na nave central da igreja. Vinte e cinco metros de azulejos são encontrados nas paredes laterais da igreja, ilustrando a história de José do Egito, produzido na segunda metade do século XVIII. O fiel se torna elemento participante, de toda teatralidade barroca presente na igreja conventual, que parte do cheiro de mirra, propagado pelo atrito da sandália dos frades no piso da sacristia, chegando nas pinturas em perspectiva, que decoram o teto da igreja. É dentro desse cenário barroco, de harmonia artística e de diferentes obras azulejares, que os fieis realizavam suas atividades religiosas, tendo contato com o sagrado através da transcendência que o lugar propõe. Os fantasmas emergem dos azulejos e trazem a motivação para os habitantes da capitania, que possivelmente se viam representados nas dores do Cristo, mas acreditavam na redenção e na vitória final, tal qual o filho de Deus passou, segundo as escrituras bíblicas.

Figura 3: Jesus é preso no Getsêmani Foto: Michael Douglas dos Santos Nóbrega (2012)

O pintor azulejar, Policarpo Bernardes expressa em seus traçados os sofrimentos que Cristo passou na terra, no caminho da sua crucificação. Essas imagens são frutos das perícopes bíblicas encontradas nos livros dos chamados evangelistas, que foram Mateus, Marcos, Lucas e João, todos os livros estão presentes no Novo testamento da bíblia sagrada. 324

A expressão no rosto de Cristo transmite a passividade e benevolência do Deus encarnado na terra, que mesmo sofrendo carnalmente, estava conformado com sua obrigação, no intuito de cumprir as profecias dos profetas do Antigo testamento. Os pés descalços e as vestimentas do Deus também são expressões da simplicidade e humildade dele para com os homens. O rosto algoz dos dois soldados em cena deixam claro a maldade e a ferocidade dos mesmos diante da frágil posição de Jesus. Tendo em vista que a imagem fala por si, a recepção da obra seria tomada por cada indivíduo de uma forma diferenciada. A imagem do Cristo sofredor se encaixa, como uma luva, na história de vida de escravizados, negros ou indígenas, que sofriam maus tratos pelo sistema escravista colonial, mas que teriam que ter a fé, a paciência e a passividade, seguindo o exemplo do Messias.

Figura 4: Jesus perante Pilatos Foto: Michael Douglas dos Santos Nóbrega (2012)

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Figura 5: Jesus entregue aos soldados. Foto: Michael Douglas dos S. Nóbrega (2012)

Figura 6: Jesus rumo ao calvário. Foto: Michael Douglas dos Santos Nóbrega (2012)

Nasimagens acima o sofrimento de Cristo é exposto, nela encontramos sinais dos flagelos sofridos por ele e são encontrados em cena elementos típicos dessas torturas, como o caniço, o qual foi dado a Jesus pelos soldados, a coroa de espinhos, o manto púrpura, como também a cruz, que ele carregou durante a maior parte da via sacra, elementos que foram utilizados para causar dor, humilhação e vergonha.

Imagem 6: Jesus sendo flagelado

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Foto: Michael Douglas dos Santos Nóbrega (2012)

A imagem presente nesse nicho mostra Jesus novamente sendo torturado pelos soldados, vestindo o manto púrpura, preso e sendo açoitado. O ar de fragilidade e piedade com os soldados está presente na face do Cristo, face que é destoante com o rosto dos anjos, acima de cena, que sofrem pelos sofrimentos de Jesus. Esse nicho possui traços diferentes dos outros, como também a moldura da cena, caracterizando que o autor dos outros nichos, não é o mesmo desse, e sim algum aprendiz da oficina dos Bernardes. Tendo em vista que essa obra é heterogênea as demais.

Figura 7: A ressurreição de Jesus. Seu aparecimento as mulheres. Foto: Michael Douglas dos Santos Nóbrega (2012)

Nesse último nicho, Jesus aparece erguido, bem vestido e com uma forte presença na cena, tendo um anjo sobre sua cabeça, levando o cálice, que caracteriza o cálice das dores que está sendo apartado e o compromisso da volta de Cristo. Todos esses seis nichos estão presentes no adro da igreja franciscana e fazem parte do espetáculo barroco. Esses quadros trazem em si cenas de martírio e a cena da dita ‘vitória’ do Cristo, que está prestes a ascender aos céus. Os nichos mostram a angustia do processo criativo em busca de dar vida a esses personagens, tão importantes para a igreja que passava por uma fase de reestruturação. Pensando numa sociedade enfraquecida social e economicamente, as representações da via

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sacra caíram como uma luva a fim deincentivar os fieis à esperança de um futuro melhor. 4.0 Considerações finais O adro guarda sentidos e expressões do ser artístico. O adro franciscano da Paraíba, com sua combinação de experimentações artísticas barrocas carrega consigo a intensidade do ser. As obras carregam signos e fantasmas, que assombram individualmente os seus espectadores, e lhe trazem reminiscências próprias da cultura cristã ocidental. Na América portuguesa a Igreja fazia um nivelamento dos frequentadores de determinados espaços. Batizados não partilhavam do mesmo espaço com os não batizados, já os negros pagãos não dividiam os mesmos espaços dos negros batizados e dai por diante. A arquitetura e a arte colonial expõem essas práticas. Um dos exemplos está na formação arquitetônica da igreja, onde existiam espaços em que alguns negros tinham acessos, outros não. As comunidades religiosas tinham suas práticas exercidas em ambientes diferenciados, a partir da cor e raça dos seus fieis. No caso do Conjunto Franciscano da Paraíba houve intervenções arquitetônicas para atender os diversos públicos. Uma dessas intervenções se deu quando foi erigida uma capela em 1804, devotada a São Benedito, destinada às orações particulares dos escravos do convento. Escravos locais, se batizados, assistiam as missas no fundo da nave (NÓBREGA, 2013, p. 46). A galilé da igreja era destinada exclusivamente para catecúmenos, ou seja, ou não batizados, que se amontoavam para assistir as missas. Desses locais, o adro é um lugar de livre acesso. Colonos, escravos, índios, abastados, ou não abastados, frequentavam o mesmo lugar. O adro é parte do espaço público, que é definido pela circulação livre de todos os indivíduos, aquém de suas classes sociais e crenças. Na Paraíba colonial, brancos, negros e índios partilhavam do espaço do adro, mesmo que o utilizando apenas como um caminho de passagem, no qual os indivíduos iriam sendo impactados com a fachada da igreja, que é permeada de simbolismos e alegorias, com o cruzeiro e com os painéis azulejares que recepcionavam os indivíduos (OLIVEIRA, 2003, p.121). As sensibilidades são postas ao olhar sensível do espectador, através da intensidade das obras, que buscam gerar uma fantasia possível para lidar com o impossível do real. Levando em conta que a estética e os padrões sociais podem ser utilizados como base para a produção do conhecimento histórico e artístico. O adro barroco exercia na sociedade uma elevada influência e permeava o imaginário dos indivíduos excluídos tanto dos espaços internos da igreja, como da sociedade, cultivando neles sentimentos voltados à fé e ao amor, aliados ao conformismo e a esperança que cada um trazia dentro de sí.

5.0 Referências bibliográficas

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BARBOSA, Antônio. Relíquias da Paraíba: Guia aos monumentos históricos de João Pessoa e Cabedelo. Rio de Janeiro: Eu e você, 1985. BURKE, Peter. Testemunha ocular:história e imagem. Tradução de Vera Mª Xavier dos Santos. Bauru: EDUSC, 2004 [2001]. CARVALHO, Joaquim Ramos. Confessar e devassar: a Igreja e a vida privada na Época Moderna. In MATTOSO, José. (dir.) & MONTEIRO, Nuno (coord). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo do livro, 2011. DIDI-HUBERMAN, George. Ser crânio: lugar, contato, pensamento, escultura.Belo horizonte: C/ Arte, 2009. DIAS, Maria Cristina VerezaLodiet al (orgs.). Patrimônio azulejar brasileiro: aspectos históricos e de conservação. Brasília: MinC, 2001. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997. MARAVALL, José Antonio. La cultura del barroco: análisis de una estructura histórica. Barcelona: Editorial Ariel, 1975. MARTINS, Dayse Luckwü in “A Paisagem da Antiga Paraíba através dos Mapas” Trabalho apresentado no 1º Simpósio Brasileira de Cartografia Histórica, em Paraty, maio de 2011. MECO, José. Azulejaria portuguesa. 3. ed. Lisboa: Bertrand, 1989. ______________. A expansão da azulejaria portuguesa.Oceanos, Dossiê “Azulejos: Portugal e Brasil”, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, n.36/ 37, out. 1998/ mar. 1999, p.8-17. NÓBREGA, Michael Douglas dos Santos. O Barroco no Brasil: Culturas artística, histórica e historiográfica. DH/UFPB, 2013. Monografia. OLIVEIRA, Carla Mary S. O barroco na Paraíba:arte, religião e conquista. João Pessoa: Ed. Universitária/ UFPB; IESP, 2003. _______, et. al. (orgs.). Ensaios sobre a América Portuguesa. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2011. PEREIRA, Chico. Paraíba: Memória Cultural. João Pessoa: Grafset, 2013. SIMÕES, J. M. dos Santos. Azulejaria portuguesa no Brasil: 1500-1822. Lisboa: Fundação CalusteGulbenkian, 1965. THEODORO, Janice. “O barroco como conceito”. Revista do IFAC, Ouro Preto, IFAC/ UFOP, n. 4, dez. 1997, p. 21-29.

6.0 Anexos

ANO

GUARDIÃO

OBRA REALIZADA NO PERÍODO

1737

Frei Manoel da Trindade

Deu princípio ao forro da Igreja; fez um presépio na Via-Sacra e fez um paredão com duas arcadas de pedra por amparo do terreno da fonte.

1751

Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão

Fez a sacristia nova por detrás da capela com o salão de cima e via-sacra dos Terceiros; abriu a porta da Capela-mor; fez o arco de pedra da viasacra.

Frei Manuel das Chagas

Dourou a Capela-mor e pintou os 20 painéis da boca da tribuna; fez uma imagem de São Benedito com Menino Deus na mão e dourou o arco da dita Capela; forrou por baixo do côro, por

1753

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um relógio de bronze que mandou vir do Reino, dourou as sacras da dita capela; dourou as sacras da dita Capela e os altares de Nossa Senhora da Conceição e São Francisco. Frei Francisco de Santa Izabel Corrêa

Fizeram os caixões com seus respaldos e depositório na sacristia; fizeram de entalhe as duas capelas da sacristia.

1761

Frei Manuel de Nossa Senhora da Vitória

Fizeram um Santo Cristo; um túmulo de Damasco; dois Santos Cristos para altares colaterais com resplendores e cravos de prata; as imagens de S. José e São Brás; Um véu de ombros de Damasco; a forragem dourada do repositório; a carpintaria de uma banda sobre cinco pilares de pedra e da outra se fez um muro novo; fez um painel de São Pascoal para a portaria e outro das grandezas e excelências da Ordem, o que fica ainda na Casa do Pintor José Ribeiro.

1766

Frei Fernando de Santo Antônio

Fez-se a capela de Nossa Senhora das Dores.

1785

Frei Rosendo da Porciúncula e em 1787 entregou ao Padre Presidente in Capite Frei Antônio de Santa Eufêmia

Com 21 degraus de volta azulejou-se a parede das bandas com seu cunham em cada lado e sua pirâmide em cima e assim mais pirâmides nos dois nichos e sua Cruz; fez um salão onde estão as sinetas conventuais da Cela do Guardião; abriram-se mais 2 janelas e forrou-se de barrete o tal salão e pintou-se; nas 2 janelas do Coro puseram-se vidraças, pintaram-se de ver os caixilhos e puseram-se os claustros de pedra.

1787

Frei Manuel de Santa Teresa Miranda

Continuou-se o segundo corpo do adro e fizeramse esses por cima das paredes do adro; pintou-se o salão de novo, a Via-sacra, o forro do claustro.

1789

Frei Joaquim da Circuncisão Nobre

Conclui-se o Adro do Convento até o último degrau; mandou vir de Lisboa duas dalmáticas de damasco de ouro, brancas, duas planetas de veludo preto bandadas de ouro, quatro de damasco roxo; assim mais duas dalmáticas de damasco branco e duas do mesmo, roxas, tudo bandado de galão de retró cor de ouro; duas mais de veludo carmim, circundadas de ouro e uma manga da cruz, capa de asperges e frontal maior, tudo de veludo preto e bandado de ouro; colocouse a imagem de Nossa Senhora do Rosário no Capítulo por ter o cupim comido a antiga; mandou buscar de Lisboa uma balança com braços de ferro e pesos de bronze de duas arrobas.

1792

Frei (...) do Espírito Santo

Colocou-se um lustre de vidro no côro e azulejouse os muros dentro da Igreja.

Frei Joaquim da Purificação

Mandou fazer para a sacristia duas dalmáticas de verbutina preta com galões de ouro, dois ganipes de jacarandá com coxins de chamalote verde, uma bolsa de damasco para o Senhor da adoração, uma lâmpada de metal fino para a

1760

1795

330

Capela-mor fez quatro tribunas de talha para a referida Capela, azulejou-se a dita; dizeram os degraus do presbitério; azulejou-se a sacristia, Via-sacra, escada e salão próximo a esta e azulejou-se a metade do Adro; fez-se trono de talha e levantaram-se as tribunas todas; rasgaram-se os óculos da Igreja. Frei Francisco de São José Almeida

Fez-se o turíbulo.

1800

Frei José do Rosário

Fez-se um sacrário de talha no interior e exterior dourado; fez-se um dossel de talha dourado para a adoração no trono, ornaram-se os altares com três ternos de Sacras de vidro esmaltado, circularam-se de talha dourada; edificou-se a Capela de São Benedito até o complemento de suas madeiras; fez-se o peitoril com uma viasacra de painéis com seus vidros.

1802

Frei José de São João Evangelista

Dourou o Altar de São Benedito; mandou-se fazer uma lâmpada de latão para a portaria.

1835

Frei José da Assunção

Botaram-se ladrilhos e fechaduras nas portas da sacristia; botaram-se caixilhas novas e vidros nas janelas de coro; fez-se uma banqueta nova para o altar do Santo Padre; consertou-se a Capela de Santo Antônio de Tambaú, fez-se novo alpendre e encaibrou-se o do hospício; consertou a torre; restaurou-se e encaliçou-se a cumieira da Igreja e em três partes.

1838

Frei Luís das Dôres

Caiou-se o Convento menos a Igreja e seus corredores do mirante; fez-se o púlpito pintado e dourado e muitos consertos.

1840

Frei José da Assunção

Pôs grade de ferro na Igreja; encaliçou-se parte do adro; fez muitos outros consertos.

1841

Frei Antônio de Santa Ana

Consertou-se a casa do Adro, fez uma águia de pedra para o cruzeiro, encaliçou o adro dos degraus para baixo e outros consertos.

1798

331

CONFERÊNCIAS

332

333

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