Entre Justiça e Ética: Direitos humanos e democracia em sociedade pluralistas (monografia)

September 5, 2017 | Autor: Ilmar Amaral Jr | Categoria: Democracia Deliberativa, Teorias Da Justiça, Teoria do Discurso
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ILMAR PEREIRA DO AMARAL JÚNIOR

ENTRE JUSTIÇA E ÉTICA: direitos humanos e democracia nas sociedades pluralistas

Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia Fevereiro de 2013

ILMAR PEREIRA DO AMARAL JÚNIOR

ENTRE JUSTIÇA E ÉTICA: direitos humanos e democracia nas sociedades pluralistas

Monografia apresentada sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Garrido da Silva, à Faculdade de Direito “Professor Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), para obtenção do título de bacharel em Direito.

Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia Fevereiro de 2013

[FOLHA DE AVALIAÇÃO]

Dedico este trabalho aos meus pais, Ilmar e Rosimar, e à minha irmã Ana Paula, para quem minha graduação em Direito é a realização de um sonho; aos meus falecidos amigos Carlos Henrique, Leandro Augusto e Pedro Paulo, por terem me chamado a conhecer a vida.

AGRADECIMENTOS

Agradeço desmedidamente ao Prof. Dr. Alexandre Garrido da Silva, por ter conduzido, ao meu lado, a pesquisa que culminou nesta monografia. Devo-lhe a felicidade de ter encontrado meu caminho na vida acadêmica, devo-lhe pelos seus ensinamentos, não apenas teóricos, como também sobre como ser um grande acadêmico e um profissional respeitável. Sem o Prof. Garrido eu não teria desenvolvido este tema (o qual me intrigava, desde os primórdios da graduação em Direito) a partir da perspectiva filosófica e arrojada a qual tive acesso, e que hoje tanto me agrada e engrandece. E, sobretudo, sou grato ao Prof. Garrido por ter me estimulado a ser “eu mesmo” e valorizar minha espontaneidade criativa. Agradeço à Nina Benzaquen, à Isabella Benzaquen, ao Guilherme Henrique e ao Vini Menezes, que têm sido uma espécie de segunda família para mim – e cumprido este papel muito bem, diga-se! Agradeço aos meus queridos colegas e amigos do curso de graduação em Direito, com quem tive a feliz oportunidade de aprender através do diálogo livre, saudável e entusiasmado, em grande parte me influenciando a escrever este trabalho. Especialmente sou grato à Mariana Anselmo, ao Rafael Momenté, à Paula Fernanda, ao Diego Pimenta, ao Guilherme Bento, à Renata Leite, ao Ademir Almeida e, sobretudo, ao Stanley Marques, uma das pessoas com quem eu mais discuti estas imaturas – porém bem intencionadas – reflexões.

RESUMO Este trabalho adota como tema a relação entre direitos humanos e democracia nas sociedades pluralistas. A convivência de diversos grupos com identidades sociais e culturais específicas, bem como titulares de interesses antagônicos entre si, em uma mesma sociedade política regulada por uma Constituição, deve ser mediada por normas de direito. Neste nível, pretende-se analisar crítica e normativamente a tensão entre facticidade e validade no interior dos Estados pluralistas contemporâneos, a qual remonta ao embate entre direitos humanos com pretensões universais, garantidos às minorias, e a soberania de um povo situado historicamente, com pretensão à autodeterminação com base na compreensão de valores comuns intersubjetivamente compartilhados de uma comunidade concreta. A partir daí, é relevante demonstrar que tipos de arranjos institucionais derivam de uma compreensão discursiva do fenômeno político do pluralismo, do direito e da democracia, ressaltando o modelo de democracia deliberativa, o papel da Constituição do Estado pluralista e, inevitavelmente, tecendo uma breve abordagem sobre a legitimidade e o papel da jurisdição constitucional.

ABSTRACT

This work takes as its theme the relationship between human rights and democracy in pluralistic societies. The coexistence of diverse groups with specific cultural and social identities, as well as holders of antagonistic interests to each other, in the same political society governed by a Constitution, must be mediated by rules of law. At this level, we intend to analyze critically and normatively the tension between facticity and validity within the contemporary pluralistic states, which dates back to the clash between human rights with universal pretensions, guaranteed for minority, and sovereignty of a people historically situated, with intention to self-determination based on the understanding of the common values shared intersubjectively in a concrete community. From there, it is important to show what kinds of institutional arrangements derive from a discursive understanding of the phenomenon of political pluralism, law and democracy, highlighting the model of deliberative democracy, the role of the Constitution of a pluralistic State and, inevitably, weaving a brief approach on the legitimacy and role of constitutional jurisdiction.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 9 1. O PLURALISMO ENTRE JUSTIÇA E ÉTICA .............................................................................. 13

1. 1. Direitos humanos e autodeterminação moral: discurso de legitimação e a questão do universalismo ........................................................................................................................ 15 1.1.1. Discursos de legitimação e de aplicação dos direitos humanos ............................. 17 1.1.2. Princípio da universalidade dos direitos humanos: normas jurídicas versus normas morais ................................................................................................................... 21 1.1.3. Um discurso jurídico intercultural.......................................................................... 23 1. 2. Democracia e autorrealização ética: limites do constitucionalismo liberal na ordem democrática ........................................................................................................................... 25 1.2.1. Igualdade versus diversidade: o pluralismo na esfera pública .............................. 29 1.3. Direitos humanos versus democracia: o embate entre liberalismo e comunitarismo .... 31 1.3.1. Liberalismo: teoria da justiça como equidade ........................................................ 32 1.3.2. Comunitarismo: a política de reconhecimento ....................................................... 36 1.3.3. Teoria do discurso: entre Justiça e Ética ............................................................... 39 2. UMA TEORIA DISCURSIVA PARA A COMPREENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DA DEMOCRACIA .................................................................................................................................... 44

2.1. O giro linguístico na teoria social: pressupostos filosóficos e metodológicos da teoria do discurso ............................................................................................................................ 45 2. 2. Direito e moral em Habermas: entre o princípio moral e o princípio da democracia ... 48 2. 3. O princípio do discurso e a (re)construção do sistema dos direitos .............................. 51 2.4. Autonomia pública versus autonomia privada? A reconciliação entre direitos humanos e democracia no paradigma procedimental de Habermas..................................................... 54 2.5. Alexy e a teoria do discurso desenvolvida no âmbito do direito ................................... 58 3. AS QUESTÕES MULTICULTURAIS NA DEMOCRACIA DELIBERATIVA ........................... 62

3.1. Democracia deliberativa: definição, estruturas e críticas .............................................. 64 3.2. Constitucionalismo para uma democracia pluralista ..................................................... 69 3.3. O papel e a legitimidade da jurisdição constitucional nas sociedades pluralistas ......... 72 3.3.1. Legitimidade discursiva dos tribunais: deliberação e fundamentação .................. 74 3.3.2. Jurisdição constitucional: representação argumentativa versus modelo procedimental .................................................................................................................... 76 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................ 82 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................. 87

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INTRODUÇÃO

A teoria política moderna, que remonta a Kant e Rousseau, trata os direitos humanos e a democracia como temas concorrentes entre si, conforme se adote uma concepção liberal ou republicana de organização do poder político. A tensão entre autonomia privada, garantida sob a forma de direitos e liberdades subjetivas negativas do indivíduo perante o poder político, e autonomia pública, que se exprime nas liberdades positivas de deliberação e participação democrática empreendidas por um povo soberano, corresponde, no presente trabalho, à difícil relação entre direitos humanos com pretensões de validade universal e a autodeterminação das diversas identidades sociais e culturais das sociedades pluralistas contemporâneas. Um diagnóstico empírico das formas de convívio social contemporâneas evidencia o “fato do pluralismo” dentro da estrutura dos Estados democráticos (para utilizar a linguagem de Rawls), ou as sociedades pós-convencionais, onde não é mais possível justificar decisões coletivas em cosmovisões metafísicas ou religiosas tradicionais (na linguagem de Habermas). É possível, pois, falar em sociedades multiculturais ou mesmo em Estados pósnacionais. Discordâncias terminológicas por ora à parte, a convivência, dentro de uma mesma sociedade politicamente organizada, de grupos culturais, linguísticos, étnicos e religiosos distintos, que marca os Estados contemporâneos, sugere um desafio ao direito e às instituições do Estado de direito. Afinal, na ausência de uma base comum de costumes amplamente aceita para justificar as decisões e instituições jurídicas e políticas, é necessário recorrer ao medium do direito como estrutura de integração social e resolução justa e pacífica de conflitos. Daí a necessidade de instituir práticas oficiais e não oficiais que estejam no interesse simétrico de todos,1 em termos de interesses generalizáveis, e não com base naquilo que é “bom para mim ou para meu grupo”. Com efeito, o pluralismo das democracias contemporâneas exige que a perspectiva etnocêntrica de um eu ligado à cultura de uma tradição concreta se alargue, vez que a convivência com outras comunidades de valores é inevitável, e se deve dar em termos de solidariedade social, não na forma de atos de violência, opressão e subjugação.

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“A pretensão segundo a qual uma norma é do interesse simétrico de todos tem o sentido de uma aceitabilidade racional – todos os possíveis envolvidos poderiam poder dar a ele o seu assentimento, apoiados em boas razões” (HABERMAS, 2003a, p.137); conferir também CORTINA, 2009, p.138: “O conteúdo do diálogo é constituído pelos interesses que os diferentes indivíduos ou grupos consideram com direito suficiente para ser universalmente reconhecidos, porque possuem argumentos para defendê-los que podem ser compreendidos e ‘consentidos’ pode todos”.

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Da dialética moralidade/eticidade,

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é possível extrair a base conceitual dos

direitos humanos. A moral refere-se a questões de justiça: aquilo que é justo, do ponto de vista de uma ética do discurso, corresponde àquilo que puder obter o assentimento racional de todos os destinatários livres e iguais de uma norma instituída em um discurso hipotético não circunscrito no espaço. Em outras palavras, a justiça refere-se ao julgamento imparcial de interesses universais, generalizáveis a todo sujeito capaz de atos de comunicação. A ética, por outro lado, remonta a questões de valor, sobre quais bens são reconhecidos por uma comunidade concreta que se entende a respeito de sua própria identidade, comungando de uma tradição e história comuns. A eticidade concreta contenta-se com aquilo que é bom para os participantes de um discurso circunscrito a uma determinada comunidade de valores. Os direitos humanos, como princípios de caráter universal, possuem nítido conteúdo moral: correspondem a uma exigência de igual tratamento universal, operacionalizados pela forma de normas de validade deontológica independente de contextos culturais ou sociais particulares. Não obstante, a moderna doutrina dos direitos humanos, orientada pelas condições do pensamento pós-metafísco, rechaça uma fundamentação filosófica deste instituto que não remonte à autonomia dos próprios sujeitos – autores e destinatários dos respectivos direitos. E, inevitavelmente, há de se considerar que o sujeito que delibera sobre normais morais está inserido em um contexto histórico, logo, numa eticidade concreta. Tal aparente paradoxo é objeto da teoria do discurso de Jürgen Habermas: ao conceber autonomia pública e autonomia privada como co-originárias, o filósofo pretende reconciliar direitos humanos e democracia no contexto dos Estados de direito. Na estrutura do princípio do discurso estão implícitos os pressupostos comunicativos da linguagem, que regulamentam uma deliberação democrática entre parceiros do direito dotados de iguais liberdades de fala. Os sujeitos são, concomitantemente, autores e destinatários da regulamentação jurídica. Qualquer comunidade que queira regular sua convivência legitimamente pelos meios do direito, deve necessariamente institucionalizar um sistema de direitos (direitos humanos que se convertem em direitos fundamentais inscritos na constituição histórica de um Estado em particular). Nesta perspectiva, os abstratos direitos humanos de natureza moral se revestem de forma jurídica e do caráter obrigatório que dela deriva, sendo reinterpretados e ressignificados em modelos concretos por uma sociedade de parceiros do direito.

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A moral e a ética, do ponto de vista de uma teoria do discurso, se diferenciam à medida que esta se refere ao bem do indivíduo ou da coletividade, enquanto aquela tem a ver com justiça. Conferir HABERMAS, 2003a, p.23.

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Deste modo, o procedimento de formação legítima do direito agregará moralidade e eticidade. Entre discursos de justiça e discursos éticos, o conflito entre direitos humanos e soberania do povo (o núcleo da ideia de democracia) pode ser adequadamente solucionado num nível teórico, e, num nível prático, ao recorrer à institucionalização dos procedimentos discursivos. É típica da era contemporânea a ressonância das reivindicações multiculturais, quando os conflitos motivados por diferenças culturais, pela convivência forçada numa comunidade de estranhos, foram se agudizando até impulsionar lutas pelo reconhecimento de identidades sociais e culturais excluídas de um processo de integração política, exigências de tolerância e de inclusão do “outro”; por outro lado, o desejo de manter conservados os elementos básicos de uma democracia liberal, tais como as ideias de proteção da vida e da dignidade humana, de segurança individual e coletiva, de liberdade e igualdade do indivíduo, sintetiza-se na defesa do conceito geneticamente ocidental dos direitos humanos. Diversas razões para tal ressonância podem ser destacadas: (1) processos inversos de globalização, através dos quais as comunidades imigrantes do mundo não ocidental se estabelecem em Estados democráticos liberais e enfrentam suas reivindicações; (2) as configurações geopolíticas depois do fim do comunismo em 1989 na Europa Central e do Leste, e o surgimento do nacionalismo como uma força nos ex-países comunistas; (3) o surgimento da União Europeia e um novo regime de direitos; (4) as consequências imprevistas das políticas redistributivas nas democracias capitalistas e o auge das identidades de condição protegida para grupos culturais por meio de ditas políticas; e por último, (5) os modelos cambiantes de integração sociocultural e capitalista nas democracias liberais ocidentais (BENHABIB, 2006, p.192-193).

Haja vista o “fato do pluralismo” é relevante articular teorias e desenhos institucionais e sociológicos normativos que possam lidar satisfatoriamente com os conflitos que envolvem desacordos de índole cultural, ética ou moral básicos, dentro da estrutura liberal de um Estado de direito democrático, regido por princípios democráticos e inclusivos. Esta proposta trata-se não de uma ruptura, antes de um aperfeiçoamento e do desenvolvimento de princípios como da igualdade, da liberdade, da cidadania plena, da tolerância, e, em sentido amplo, do princípio democrático. Nas condições do pensamento pós-metafísico, a fundamentação de um regime político que promova a igualdade e a liberdade para todos, em contextos marcados por desacordos morais e éticos fundamentais, lança um desafio à filosofia jurídica, à filosofia política e à teoria constitucional – disciplinas em que se insere este trabalho. Outrossim, os problemas de ordem prática dos Estados pluralistas exigem modelos sofisticados de circulação do poder político, de práticas institucionais, de funcionamento de

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esferas públicas autônomas e atuantes, bem como de uma sociedade civil comprometida com questões públicas relevantes. Tais desígnios certamente pretensiosos só podem ser realizados, de maneira até mesmo aproximativa, através de intensas reflexões, que são levadas a cabo pelas teorias aqui apresentadas e debatidas. Primeiramente, apresentaremos um conceito crítico e normativo de direitos humanos e de democracia, atentos ao fato do pluralismo social e cultural das sociedades pósconvencionais; logo após, introduziremos, sucintamente, o debate entre liberais e comunitaristas, e a crítica de Habermas a cada uma das posições, buscando sintetizar o essencial das respectivas teorias e construir um pensamento que priorize igualmente autonomia pública e autonomia privada, participação política e direitos subjetivos individuais. Em segundo lugar, estudaremos o modelo de fundamentação da teoria do discurso de Habermas e a estratégia filosófica de que ele lança mão para dissolver a tensão entre autonomia pública e privada. Em terceiro lugar, é preciso problematizar como as questões multiculturais podem ser adequadamente tratadas numa democracia deliberativa, marcada por uma esfera pública autônoma e por instituições conformes aos pressupostos comunicativos da formação discursiva da opinião e da vontade. Finalmente, caberá esclarecer, brevemente, qual o papel da Constituição e qual a interpretação constitucional desejada em uma sociedade pluralista, inevitavelmente tecendo considerações acerca da legitimidade e do papel de uma jurisdição constitucional. Pretende-se, pois, analisar crítica e normativamente a tensão entre facticidade e validade no interior dos Estados pluralistas contemporâneos, a qual remonta ao embate entre direitos humanos com pretensões universais, garantidos às minorias, e a soberania de um povo situado historicamente, com pretensão à autodeterminação com base na compreensão de valores comuns intersubjetivamente compartilhados de uma comunidade concreta.

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1. O PLURALISMO ENTRE JUSTIÇA E ÉTICA

As democracias contemporâneas estão marcadas pelo fenômeno do pluralismo social, cultural e ideológico, que pode ser analisado segundo duas diferentes óticas: ora significa a diversidade das concepções individuais acerca da vida digna, ora assinala a multiplicidade de identidades sociais específicas culturalmente e únicas do ponto de vista histórico. As duas dimensões do pluralismo correspondem, respectivamente, ao significado adotado por liberais e comunitaristas.3 Com efeito, a visão de democracia dos liberais se aproxima mais da ideia de Justiça, conforme as raízes do pensamento kantiano, enquanto os comunitaristas, por vezes denominados republicanos, aproximam-se de uma democracia de matriz rousseauniana,4 em que se privilegia a ideia de Ética. Neste sentido, Justiça significaria o julgamento imparcial de interesses de todos segundo princípios de caráter universal, ao passo que Ética referir-se-ia à ideia de bem individual ou coletivo segundo valores compartilhados por uma comunidade historicamente situada. Não por outra razão, a “prioridade do justo sobre o bem”5 propugnada pelo liberalismo exige o domínio impessoal das leis fundado na garantia de direitos humanos conferidos a cada indivíduo, a fim de que ele possa perseguir livremente sua concepção acerca da vida boa. Em contrapartida, a auto-organização espontânea de uma comunidade que quer se entender sobre sua própria história, valores e aspirações conjuntas, quer dizer, sobre seu ethos, exige a participação da vontade soberana do povo em um processo de deliberação numa democracia – aqui, democracia liga-se à ideia radical de regime político onde o povo exerce seu poder, isto é, ao conceito de soberania popular. A tensão entre direitos humanos e democracia, vinculada a liberais e comunitaristas, é assim sintetizada por Habermas (2003a, p.133): Os direitos humanos e o princípio da soberania do povo formam as ideias em cuja luz ainda é possível justificar o direito moderno; e isso não é mera casualidade. (...) As tradições políticas surgidas nos Estados Unidos e caracterizadas como “liberais” e “republicanas” [no sentido aqui dado, republicano equivale a “comunitaristas”] interpretam os direitos humanos como expressão da autodeterminação moral e a soberania do povo como expressão da autorrealização ética. Nesta perspectiva, os 3

No âmbito da filosofia política contemporânea, podem-se destacar como proeminentes representantes do pensamento liberal John Rawls, Charles Larmore e Ronald Dworkin. A crítica comunitarista dirigida contra o liberalismo é comumente associada a nomes como Michael Walzer, Charles Taylor e Bruce Ackerman. Ver, a respeito, CITTADINO (2009). 4 Assenta HABERMAS (2003a, p.134): “De um ponto de vista geral, Kant sugeriu um modelo de ler a autonomia política que se aproxima mais do liberal, ao passo que Rousseau se aproximou mais do republicano”. 5 Ver ARAÚJO (2010), 91-117, onde, no capítulo intitulado “A prioridade do justo sobre o bem”, o autor analisa quem – entre Rawls e Habermas – melhor representaria o pensamento liberal na filosofia contemporânea, sobretudo no que diz respeito à herança kantiana.

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direitos humanos e a soberania do povo não aparecem como elementos complementares, e sim, concorrentes.

Pois bem, se os liberais descrevem as democracias modernas como sociedades onde coexistem distintas concepções individuais acerca do bem, enfatizando assim a existência de direitos humanos do indivíduo com sentido deontológico que permitam a cada um orientar o agir conforme sua própria convicção e seu projeto pessoal de vida, os comunitaristas, por outro lado, ressaltam a multiplicidade de identidades sociais e de culturas linguísticas, étnicas e religiosas presentes nas sociedades contemporâneas, defendendo a ativa participação do povo soberano no processo político de afirmação dos valores coletivos, rumo ao estabelecimento de um consenso ético. Acreditando ser possível integrar as duas dimensões de pluralismo em um só modelo teórico, Habermas advoga por uma teoria do discurso do sistema dos direitos que concilie autonomia pública e autonomia privada, isto é, que evidencie a co-originariedade da soberania popular e dos direitos humanos, de forma que ambos se pressuponham mutuamente. Deste modo, a concepção de pluralismo influencia decisivamente o modelo teórico a partir do qual cada corrente filosófica pretende articular o ideal de uma sociedade democrática justa e cooperativa com instituições igualmente justas. Tanto a garantia da autonomia privada do indivíduo quanto a exigência da autonomia pública das diversas identidades sociais e culturais culminam em distintas teorias da justiça e distintas compreensões acerca do papel do direito em uma sociedade plural. A despeito das discordâncias expostas, “liberais, comunitários e crítico-deliberativos acreditam que é possível formular e justificar um ideal de justiça – especialmente de justiça distributiva – adequado ao pluralismo do mundo moderno” (CITTADINO, 2009, p.2). Antes de analisarmos pormenorizadamente o debate filosófico e metodológico entre liberais, comunitaristas e crítico-deliberativos,6 esclareceremos o conceito de direitos humanos adotado neste trabalho, bem como a ideia de democracia proveniente da ampla crítica ao liberalismo hegemônico e sua concepção de democracia formal, na medida em que essas categorias estão ligadas à autodeterminação moral do indivíduo e à autorrealização ética dos grupos sociais. Isso porque a compreensão dos direitos humanos e da democracia é elemento central para a fixação da posição de liberais e comunitaristas no debate aqui colocado. 6

CITTADINO (2009, p.2) opta por caracterizar o pensamento de Habermas como “crítico-deliberativo”, designação que faz referência tanto à Teoria Crítica, da qual Habermas é um representante, quanto à ideia de deliberação pública da qual depende a formação racional da opinião e da vontade.

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1. 1. Direitos humanos e autodeterminação moral: discurso de legitimação e a questão do universalismo

A cultura ocidental incluiu definitivamente em sua concepção políticofilosófica o instituto dos direitos humanos. De acordo com esta concepção, um mínimo ético deve ser garantido nas relações verticais entre Estado e particulares, bem como nas relações privadas entre particulares,7 sob a forma de direitos, e, por conseguinte, com todas as implicações que dela resultam: a pretensão de efetividade apoiada no caráter coativo do direito, a legitimidade democrática pressuposta às normas jurídicas etc. Otfried Höffe (2000, p.165) aludiu aos direitos humanos como “a religião civil da Modernidade”. De um sentimento moral comum à cultura moderna, os direitos humanos passaram a premissa basilar dos Estados democráticos de direito,8 vistos atualmente como condição sine qua non para o exercício da democracia, tanto se posto em mente um conceito democrático liberal ou socialista. Esses direitos conformam um instituto jurídico que estabelece os limites de convivência entre os homens, já que os interesses intersubjetivos frequentemente se mostram divergentes, de modo a se propiciar uma relação desigual de forças, dando origem à opressão, à subordinação e à injustiça. Portanto, os direitos humanos tratam de definir condições de coexistência pacífica entre todos os homens, ao mesmo tempo em que estabelecem os limites ao pluralismo cultural e político na sociedade internacional; isto implica em que são conferidos a toda a comunidade de seres humanos,9 daí extraído um de seus pressupostos epistemológicos fundamentais: a universalidade. “No sentido jurídico-prático, a modernidade desenvolvera uma nova sensibilidade jurídico-moral; segundo ela correspondem a cada pessoa de qualquer cultura direitos irrenunciáveis” (HÖFFE, 2000, p.194). Sem prejuízo de eminentes críticas ao caráter universal10 dos direitos humanos, tal pressuposto é antes de tudo 7

Ver ALEXY (2008), p.523-542, em que o autor analisa o efeito perante terceiros ou eficácia horizontal dos direitos fundamentais, partindo da ideia de que os direitos fundamentais representam uma ordem objetiva de valores que se irradia por todo o sistema jurídico. Ainda, expõe três modelos de construções do efeito perante terceiros: o modelo de efeitos diretos, o modelo de efeitos indiretos e o modelo de efeitos mediados por direitos em face do Estado. 8 Cf. HÖFFE, 2000, p.168: “Na medida em que se reconheçam os três grupos de direitos humanos, não só os liberais direitos de liberdade, mas também os de participação democrática e, ademais, os direitos sociais, se pode qualificar de Estado constitucional democrático e de direito”. 9 Conforme definição de Luigi Ferrajoli (2001, p.19), “são ‘direitos fundamentais’ todos aqueles direitos subjetivos que correspondam universalmente a ‘todos’ os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade de agir (...)”. 10 Para analisar a tensão entre as correntes universalistas e o comunitarismo, conferir TAVARES, Quintino Lopes Castro (2005); também, SANTOS, Boaventura de Souza (2008), que preconiza a renúncia ao debate universalismo versus relativismo em prol de uma concepção intercultural dos direitos humanos.

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uma exigência de ordem etimológica: são direitos humanos, ora devem referir-se a todo aquele que seja humano, não apenas ao cidadão de uma sociedade política ou de um Estado singular. A positividade, isto é, o fato de os direitos humanos estarem incluídos no sistema jurídico, na forma de direito constitucional ou infraconstitucional, não é conceitualmente imanente e necessária à concepção de direitos humanos, a despeito de, como veremos a seguir, ter grande relevo, principalmente no âmbito da aplicabilidade. É preciso, ora, distinguir entre direitos fundamentais e direitos humanos. Aqueles são uma resposta política dos Estados democráticos à exigência da consideração de uma parcela mínima de direitos humanos do cidadão, na forma jurídico-positiva de direitos fundamentais básicos. Os direitos humanos deixam de ser apenas parte da moral jurídica universal e passam a integrar a Constituição, obrigando a atuação – positiva ou negativa – dos poderes públicos, convertendo-se agora em elementos do direito positivo de uma comunidade jurídica particular. Direitos humanos, pelo contrário, são direitos de origem supraestatal, não destinados à pessoa enquanto membro de um ente público concreto, mas antes como membro de uma comunidade mais ampla,11 ilimitada no espaço e transcendente das fronteiras políticas e nacionais que marcam a divisão geopolítica do mundo moderno. Por esta razão, há aqueles que afirmam direitos humanos como direitos morais: Direitos morais podem, simultaneamente, ser direitos jurídico-positivos; sua validez, porém, não pressupõe uma positivação. Para a validez ou existência de um direito moral basta que a norma, que está na sua base, valha moralmente. Uma norma vale moralmente quando ela, perante cada um que aceita uma fundamentação racional, pode ser justificada (ALEXY, 1999, p.60).

Sustentando opinião contrária, mesmo divergindo da natureza moral dos direitos humanos, ao atribuir-lhes caráter especificamente jurídico, Habermas assinala que sua validade permanece universal: “os direitos do homem têm por natureza um caráter jurídico. O que lhes confere uma aparência de direitos morais não é o seu conteúdo, nem por razões mais fortes, sua estrutura, mas o sentido de validade que ultrapassa a ordem jurídica dos Estados nacionais” (HABERMAS, 2002, p.222). Reconhecendo-se ou não sua natureza moral, os direitos humanos só se tornam obrigatórios quando tomam parte em um ordenamento jurídico e são reinterpretados em um processo de autodeterminação política que institucionaliza e dá forma jurídica aos direitos de gênese moral. Conforme se verá adiante, o fato de uma norma ser puramente moral não

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Cf. HÖFFE, 2000, p. 167-168.

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garante a exigência da conformidade de uma conduta externa à sua prescrição, pelo que se necessita de um sistema de direitos institucionalizado.

1.1.1. Discursos de legitimação e de aplicação dos direitos humanos

A efetivação dos direitos humanos está condicionada ao reconhecimento e à reciprocidade. Conforme visto, normas morais não subsistem sem que sejam reconhecidas intersubjetivamente como justas – portanto, sem que possam ser consideradas legítimas. De outro lado, o simples reconhecimento cria virtualmente o caráter de exigência: “os direitos humanos se legitimam a partir de uma reciprocidade; (...) a partir de um intercâmbio. E então contrai um dever humano quem realmente aceita dos outros prestações que se produzem unicamente sob a condição da contraprestação” (HÖFFE, 2000, p.201). Um interesse irrenunciável só pode realizar-se por reciprocidade, ou seja, quando encontrar-se bem definido aquele ao qual a contraprestação necessária à realização desse interesse se dirige. Às condições de reconhecimento e reciprocidade correspondem, respectivamente, discursos de legitimação e de aplicação. A finalidade de toda norma jurídica é a resolução efetiva dos conflitos e o fomento da cooperação social12, na medida em que sua pretensão de efetividade significa que o seu conteúdo normativo abstratamente formulado servirá de parâmetro das condutas humanas na realidade concreta. A aplicabilidade, logo, é categoria fundamental das normas jurídicas, e consiste na sua predisposição em realizar, no nível da realidade social, os objetivos inscritos na regra de direito. No entanto, na visão pós-positivista do direito, a aplicabilidade é um momento posterior ao da legitimação. Uma norma só é aplicável depois que tenha sido objeto de um procedimento racional de legitimação, a fim de que seu conteúdo possa ser encarado como motivação dos comportamentos humanos que se pautam na aceitabilidade de uma assertiva normativa. O empreendimento de legitimação firma-se como uma dimensão condicional e anterior ao empreendimento de aplicação do direito. O propósito essencial do pós-positivismo jurídico representado por Robert Alexy é oferecer uma justificação do direito mais aceitável que aquela oferecida pela tradição positivista. Para tal desiderato, primeiramente é admitida a vinculação conceitual entre direito e moral, mediante a inclusão de elementos morais no direito, tais como os direitos humanos 12

Cf. SEOANE, 2005, p. 6.

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básicos, que funcionam, na teoria alexyana, como o “núcleo essencial da justiça e do direito” (SEOANE, 2005, p.3). Tal reaproximação entre o direito e a justiça requer que aquele assuma uma pretensão de correção: “a institucionalização da moral e da correção implica a institucionalização da justiça, e esta implica a institucionalização dos direitos humanos básicos” (SEOANE, 2005, p.8). Dizer que o direito precisa ser justificado é, em termos técnicos, exigir que ele seja legítimo, o que põe em movimento um árduo empreendimento de legitimação filosófica. O discurso de legitimação almeja aduzir boas razões a favor da validade jurídica e moral das instituições e normas positivas, bem como conferir validez à facticidade do direito e justificar sua coercibilidade. “A reflexão filosófica sobre a legitimação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais tem como objetivo delimitar, em seus contornos gerais, um conjunto de ‘princípios fundamentais garantidores de um mínimo ético a ser respeitado pelo direito positivo’” (SILVA, 2000, p.13). A necessidade da legitimação dos direitos humanos, como etapa prévia à sua aplicação, é defendida por Gregorio Robles (1992, p.11-16) mediante quatro tipos de razões. Em primeiro lugar, há a razão do tipo moral: a implementação e a defesa dos direitos humanos devem pressupor seu reconhecimento moral, ou seja, que sua promoção tornará os homens e as instituições políticas, jurídicas e sociais mais justos. Os direitos humanos, desta maneira, tornam-se o principal referencial normativo de avaliação da justeza institucional. Em segundo lugar, existe uma razão do tipo lógico: a legitimação dos direitos humanos é algo intrínseco à sua própria delimitação concreta. Define, pois, o conteúdo de tais direitos, ao indicar quais são eles e por que foram elevados a uma categoria lógico-superior. Em terceiro lugar, há uma razão do tipo teórico, dirigida, precipuamente, ao filósofo do direito, que o lembra da principal função de sua práxis: o reconhecimento político e a implementação prática dos direitos humanos não podem ocorrer sem que antes reconheçamos sua validez com apoio na argumentação, propriamente uma tarefa da filosofia do direito. Por último, a razão do tipo pragmático induz a afirmar: não há sentido em lutar por algo injustificado ou que não seja idealmente reconhecido. Toda luta ou militância social encontra-se informada pela teoria. O empreendimento jusfilosófico de legitimação não constitui uma tarefa eminentemente acadêmica e desconectada da prática de defesa dos direitos humanos; muito pelo contrário, ambas – teoria e prática – se convergem no campo da complementaridade entre legitimidade e aplicabilidade. Como bem advertiu Richard Rorty (apud SILVA, 2000, p.35): “se o discurso de legitimação, enquanto modalidade de justificação racional dos

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direitos humanos, não contribui empiricamente para a proteção e promoção de tais direitos, não há motivo para tê-lo como verdadeiro”. Não obstante, algumas teorias parecem conceber os direitos humanos somente sob o ponto de vista teleológico de sua capacidade de eficácia social. É o caso do positivismo jurídico de Norberto Bobbio, no qual está declarada a renúncia ao empreendimento de legitimação:

Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apresar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados (BOBBIO, 1992, p.45).

Bobbio limita o âmbito da racionalidade à razão teórica, ao mesmo tempo em que inviabiliza teoricamente a legitimação. Sua proposição é um tanto incompleta, pois, além de dar lugar a uma lacuna metodológica, ao assumir um fundamento extremamente problemático dos direitos humanos, confunde legitimação com fundamentação “última”.13 Segundo Bobbio (1992, p.46), “pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solução atual na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (...)”. Ele reconhece na Declaração um consenso geral acerca da validade dos direitos humanos, um consenso histórico sobre um valor que é “tanto mais fundado quanto mais é aceito” (1992, p.47). Todavia, há de se levantar uma dúvida sobre a natureza desse consenso, que excluiu minorias relevantes do processo de discussão sobre direitos humanos, uma vez que a Declaração fora aprovada por apenas 48 Estados; além do mais, o suposto fundamento de Bobbio pressupõe a legitimidade a partir da positividade das normas, algo inconcebível ao tratar-se a validade dos direitos humanos a partir de sua legitimação discursiva. A patente confusão conceitual entre “legitimação” (ou justificação) e “fundamentação” reside na redução da filosofia dos direitos humanos ao jusnaturalismo, que pressupõe dados objetivos constantes, porém indemonstráveis, como a natureza humana, para a estruturação de suas teorias naturalistas do direito. Ora, legitimação e fundamentação pertencem a dois paradigmas teóricos distintos: enquanto a noção de legitimação contém uma

13

Cf. SILVA, Alexandre Garrido, 2002, p. 29-32.

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forte conotação dialógica e, portanto, argumentativa, apresentando-se como resultado de um esforço argumentativo de justificação de regras e princípios, a fundamentação apresenta-se com pretensões fortes de objetividade e de evidência, em busca de fundamentos últimos, absolutos, para o sistema de direitos. Os conceitos sob exame filiam-se, respectivamente, aos paradigmas do pós-positivismo (representado por bases epistemológicas não metafísicas e dialógicas) e do jusnaturalismo (de bases metafísicas e monológicas). O pós-positivismo é o marco teórico da estratégia de legitimação a ser apresentada; constitui a “sublimação” de duas grandes correntes do pensamento jurídico, diametralmente opostas: o jusnaturalismo e o positivismo. O jusnaturalismo, fundado na crença em princípios metafísicos de justiça universalmente válidos, passou a ser considerado anti-científico, e, por conseguinte, teve de conflitar-se com as críticas apontadas pelo positivismo, que buscava a objetividade científica perdida, ou negligenciada, pela filosofia naturalista, com apoio na equiparação do direito à lei positiva. Houve, a partir de então, um afastamento proposital entre direito e filosofia, que ocasionou a escassez dos debates sobre legitimidade e justiça. E são justamente estes debates fundamentais que o pós-positivismo veio resgatar, com a reaproximação entre o direito e a filosofia, construindo uma teoria dos direitos fundamentais edificada no fundamento moral da dignidade humana. “O póspositivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas” (BARROSO, 2008, p.7). A relação necessária entre direito e moral é o critério suficiente para distinguir uma teoria positivista de uma não positivista (ou pós-positivista): “Todos os não positivistas compartilham a opinião de que o conceito de direito deve ou deveria incluir elementos morais” (ALEXY, 2005a, p.20). O conceito pós-positivista de direito exige, além da eficácia social e da legalidade conforme ao ordenamento (elementos suficientes para a dogmática positivista), a correção moral do direito, que se manifesta mediante uma pretensão de correção: a realização de justiça de acordo com os imperativos de distribuição e compensação. A pretensão de correção moral requer fundamentabilidade, um dever geral e básico de fundamentação, que significa a afirmação de que a norma é materialmente correta e foi estatuída segundo um procedimento correto, a garantia de que existem motivos razoáveis para se cumprir a norma em questão, e a expectativa de que todos os destinatários da pretensão a reconheçam como correta.14 A correção prática e a fundamentação das normas de

14

Cf. ALEXY, 2005a, p. 35.

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ação são obtidas em discursos práticos, nos quais todos os potenciais destinatários de uma norma podem reconhecer racionalmente sua validade ideal. A teoria do discurso, desenvolvida no âmago da filosofia por Jürgen Habermas, e especificamente na filosofia do direito por Robert Alexy, filia-se ao paradigma póspositivista e reconstrói os direitos humanos sob uma nova linha de legitimação, não apoiada em categorias abstratas e essencialmente idealizadas, mas, ao invés disso, com base no agir comunicativo e na sua corporificação concreta mediante o uso da linguagem. O direito passa a ser compreendido como um processo de construção cultural, cuja legitimidade é apontada por meio do assentimento racional dos seus destinatários acerca de assertivas normativas criticáveis, construtivamente. Ao contrário do modelo de fundamentação do jusnaturalismo, que aduz a correção através da compatibilidade entre o direito posto e imperativos morais com conteúdo pré-concebido (direitos naturais), a teoria do discurso se contenta com um modelo procedimental de legitimação, ancorado nas estruturas comunicativas que permitem o alcance do consenso através do discurso. Delinear princípios com conteúdo excede a competência de um filósofo moral “procedimentalista”; este deve tão somente estabelecer as condições sob as quais as normas são procedimentalmente corretas, pois as normas materiais são assunto do homem comum participante dos discursos. “O conteúdo do diálogo é constituído pelos interesses que os diferentes indivíduos ou grupos consideram com direito suficiente para ser universalmente reconhecidos (...)” (CORTINA, 2009, p.138). O êxito do discurso depende precisamente do êxito da legitimação, e entende-se bem-sucedida a legitimação baseada em argumentos que podem ser confirmados por todos e qualquer um, em situações hipotéticas de discursos racionais.

1.1.2. Princípio da universalidade dos direitos humanos: normas jurídicas versus normas morais

Os direitos humanos, considerando inicialmente tratar-se de normas com caráter moral, não podem renunciar ao princípio da universalidade,15 sem prejuízo de perder seu caráter distintivo de outras normas de ação destinadas a regular a conduta humana. Esse 15

A linguagem é apontada como um elemento que fundamenta o universalismo na teoria da competência comunicativa de Habermas, com inspiração na gramática generativa de Noam Chomsky. “Sustentando a posição de que esses processos de aprendizagem se desenrolam de forma semelhante em todas as culturas – na medida em que a linguagem é o traço fundamental que nos singulariza em face dos outros símios – oferece Chomsky um programa de pesquisa, empiricamente fundamentado, capaz de justificar um elemento universalista comum a todos os homens” (MAIA, 2008, p.69).

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princípio “obriga os participantes do discurso a examinar normas controversas, servindo-se de casos previsivelmente típicos, para descobrir se elas poderiam encontrar o assentimento refletido de todos os atingidos” (HABERMAS, 2003a, p.203). Por conta desse teste de generalização, as regras morais devem assumir uma versão totalmente descontextualizada (culturalmente neutra) para que possam abarcar em seu conteúdo interesses generalizáveis ou transcendentais. Não significa, contudo, que se mantém a formulação doutrinária dos direitos humanos tal como fora empreendida pelo jusnaturalismo moderno dos séculos XVII e XVIII, de características atemporais (e a-históricas), absolutas e irrenunciáveis. O atual estágio da consciência epistemológica reconhece a historicidade dos direitos humanos (portanto sua temporalidade e relativa variação de conteúdo), refuta a fundamentação jusnaturalística a priori dos conteúdos morais dos direitos humanos e do mesmo modo reformula seu procedimento de legitimação com base nas categorias da intersubjetividade. O universalismo moral – na sua modalidade kantiana de imperativo categórico que se impõe à razão prática – é substituído pela racionalidade do agir comunicativo, que possibilita o consenso dialógico sobre valores morais. Tais questões, no entanto, serão tratadas pormenorizadamente adiante. Importante, no presente momento, é evidenciar quais características podem conferir a um juízo o predicado de “moral”, em contraste com juízos de outras categorias. A dimensão moral do homem refere-se àquela forma de julgar segundo padrões de bom ou mau, correto ou incorreto, justo ou injusto. Portanto a moralidade está presente, consciente ou inconscientemente, em toda ação humana como um dado constante. Certas condições genéricas permitem classificar essa forma especial de julgar como “moral”: a) os juízos morais são “prescrições”, pois tratam de regular a conduta humana; b) são prescrições que se referem a atos livres, responsáveis e imputáveis; c) aparecem como instância última e incondicionada da conduta; d) o discurso moral pressupõe razoabilidade, ou seja, que haja razões para seus mandados. Tais características, todavia, não são exclusivas de normas morais, estando presentes cumulativamente em normas jurídicas, sociais ou religiosas. O conteúdo específico do discurso moral, segundo Cortina (2009, p.90-91), inclui as seguintes notas: a) auto-obrigação: são morais as normas que o indivíduo aceita autonomamente, independentemente de imposições por parte de uma autoridade, são cumpridas internamente, em consciência (Kant); b) universalizabilidade dos juízos morais: os imperativos morais se apresentam como extensivos a todo homem; c) caráter incondicional das prescrições morais: toda justificação possível tem de estar implícita na própria prescrição. Assim procedendo, foi possível reconhecer a estrutura peculiar dos direitos humanos enquanto prescrições da conduta humana, imputáveis e passíveis de fundamentação

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racional. E, em contraposição a outras normas – de natureza social, técnica, religiosa ou jurídica – perceber seu conteúdo específico: são direitos cujo reconhecimento deve internalizar-se na própria consciência subjetiva, servindo ao mesmo tempo de parâmetro e de motivação da conduta externa daquele que age; são direitos conferidos a um número ilimitado de destinatários, que criam obrigações de respeito e cumprimento universalizáveis.

1.1.3. Um discurso jurídico intercultural

Certamente, a maior dificuldade teórica e prática de implementação dos direitos humanos tem índole intercultural. Como fundamentar os direitos humanos quando os interesses e visões de mundo a que eles atendem são os mais divergentes e, aparentemente, se encontram numa relação conflituosa de exclusão mútua? Qual o fundamento seguro a se assumir levando em consideração a variedade de concepções valorativas fornecidas pelas culturas no cenário internacional? Como os direitos humanos podem ser garantidos sem que subjaza a este processo relações de dominação, violência e desconsideração recíproca de identidades culturais desfavorecidas? Enfim, assentados os direitos humanos como predestinados a valer universalmente, como fazê-lo – com coerência e eficácia – diante do pluralismo social e cultural do mundo contemporâneo? Diante das dificuldades suscitadas por essas questões, poder-se-ia indagar sobre a real importância, ou mesmo a conveniência, da existência de direitos humanos universais investidos da pretensão de regular a convivência humana para além das situações juridicamente previstas no ordenamento internacional. Não obstante, sustenta-se aqui a tese de que é imprescindível a existência do instituto suprajurídico dos direitos humanos, acompanhado de discursos adequados de legitimação e de aplicação. Na atual configuração das relações políticas e econômicas na sociedade internacional, regidas pelo fenômeno da globalização16 e marcadas por todas as consequências que ele acarreta – principalmente o corrente interfluxo cultural – não podemos prescindir de um instituto que regule legitimamente o modo como essas relações se darão, posto que inevitáveis. Com efeito, deixamos a segurança institucional da modernidade, baseada no Estado-nação17 e nas formas 16

Anthony Giddens definiu a globalização como “o adensamento, em todo o mundo, de relações que têm por consequência efeitos recíprocos desencadeados por acontecimentos tanto locais quanto muito distantes. As comunicações de alcance mundial seguem por meio de línguas naturais (na maioria das vezes, por meios eletrônicos) ou códigos especiais (sobretudo o dinheiro e o direito)” (HABERMAS, 2002, p.144). 17 Apenas a partir das revoluções do final do século XVIII é que Estado e nação se fundiram para se tornar “Estado nacional”. Todavia, segundo compreensão da teoria política moderna, Estado e Nação são conceitos distintos que, não necessariamente, precisam estar associados. “Estado” trata-se de um conceito definido

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de associação política bem integradas e culturalmente homogêneas do liberalismo, e adentramos numa era marcada pelo Estado pós-nacional:18 tanto no nível das relações públicas e privadas internacionais, quanto no nível da convivência organizada em um mesmo Estado constitucional, o enfrentamento entre grupos portadores de visões e características culturais diferenciadas põe em xeque a capacidade de solução de conflitos relevantes com apoio no arcabouço conquistado pela modernidade. Segundo tese de Habermas (2002, p.129), “podemos nos orientar nesse caminho incerto rumo às sociedades pós-nacionais justamente segundo o modelo da forma histórica que estamos prestes a superar”. A superação do Estado nacional, a forma histórica a que Habermas se refere, exige pois um remodelamento das relações entre Estado e nação: novas formas de interação exigem novos modelos de composição de interesses. Posto o “choque de civilizações” como um fato sociológico inevitável, e o fechamento cultural como uma prática impossível dadas as atuais circunstâncias, as relações interculturais poderão se desenvolver sob duas formas: A) na forma imprevisível de relações conflituosas de violência; na ausência de uma base comumente aceita de valores e medidas para a solução de discordâncias, a relação intercultural se degenera em constantes práticas de dominação e subjugação, 19 nas quais decide quem se encontra provido de maiores condições de impor coativamente seu ponto de vista, sem o auxílio da racionalidade das práticas dialogantes. Em certa medida, o relativismo cultural extremo e sua conseqüente auto-imunização para as trocas culturais pode levar a isso.

juridicamente, e constitui-se sob as formas de integração e domínio do direito positivo. A Nação, de outro lado, “também tem o significado de uma comunidade política marcada por uma ascendência comum, ao menos por uma língua, cultura e história em comum” (HABERMAS, 2002, p.130). É evidente que, tendo em consciência a existência de várias e antagônicas subculturas dentro de um mesmo ordenamento jurídico soberano (em outras palavras, Estado), o ideal de um Estado nacional é totalmente impraticável em tempos de pluralismo, em que várias “nações” culturais habitam e coexistem num mesmo Estado democrático, com vistas a ter atendidas suas legítimas reivindicações específicas. 18 Neste sentido, HABERMAS (2002, p.129) define o conceito de Estado pós-nacional e suas razões históricas e geopolíticas: “A globalização do trânsito e da comunicação, da produção econômica e de seu financiamento, da transferência de tecnologia e poderio bélico, especialmente dos riscos militares e ecológicos, tudo isso nos coloca em face de problemas que não se podem mais resolver no âmbito dos Estados nacionais, nem pela via habitual do acordo entre Estados soberanos. Salvo melhor juízo, tudo indica que continuará avançando o esvaziamento da soberania de Estados nacionais, o que fará necessária uma reestruturação e ampliação das capacidades de ação política em um plano supranacional que, conforme já vínhamos observando, ainda está em fase incipiente”. 19 Cf. HÖFFE, 2000, p. 198-201. Höffe assenta que a força legitimante dos argumentos radica exclusivamente na sua neutralidade. Dentre argumentos neutros, destaca o da capacidade de violência: esta pode se demonstrar biológica e antropologicamente, pois pertence à condição humana. (Observe-se que “condição humana” não se confunde com “natureza humana”, conceito largamente utilizado no paradigma teórico do jusnaturalismo. Esta tem índole metafísica, enquanto aquela, antropológica). Dado que a capacidade de violência colide com interesses irrenunciáveis do homem – tal como o princípio da ação – esta deve ser evitada mediante o cumprimento de direitos humanos, que tratam de estabelecer as condições básicas da existência humana.

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B) na forma racional de diálogos práticos sobre questões morais. Aqui, é excluída toda forma de coação que não seja a do melhor argumento – aquele que possa encontrar maior assentimento racional entre participantes de um discurso presidido por regras da razão prática. A dominação e o imperialismo são substituídos pelo consenso racional obtido através do princípio do discurso. Neste campo os direitos humanos têm especial relevância: através de sua observância20 as relações humanas conterão seu potencial conflitivo negativo

e

passarão

a

dar

o

conteúdo

de

convicções

morais

compartilhadas

intersubjetivamente, capazes de fornecer razões para o agir orientado pelo entendimento mútuo. A permanente tensão entre os direitos humanos e as exigências da interculturalidade pode ser reduzida à tensão descrita inicialmente entre direitos humanos e soberania do povo de um determinado Estado. A ideia de soberania popular liga-se estritamente ao conceito de democracia, tal como o concebemos na teoria política. Isto nos leva ao próximo tema: a compreensão da democracia no crivo das teorias do constitucionalismo liberal e de sua crítica reformadora comunitarista.

1. 2. Democracia e autorrealização ética: limites do constitucionalismo liberal na ordem democrática

De uma perspectiva republicana tradicional, a democracia coincide com o dogma da soberania do povo: a formação democrática da vontade realiza-se sob a forma de uma auto-entendimento ético-político firmado entre sujeitos privados soberanos, que buscam, deliberativamente, renovar a pré-compreensão de modelo de comunidade culturalmente integrada ritualizada no ato de fundação da república. Utilizando-se de um método descritivo, Bobbio (apud HABERMAS, 2003b, p.27) considera a democracia como caracterizada “através de uma série de regras (...) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões envolvendo a coletividade e que tipo de procedimentos devem ser aplicados”.21 Ela abrangeria o conteúdo normativo dos sistemas políticos existentes nas sociedades ocidentais. No entanto, percebe-se, tendo em vista o fenômeno do pluralismo das formas de vida sociais e culturais, 20

Segundo argumento de Antonio Cavalcanti Maia, em tom conclusivo: “o maior ou menos respeito aos direitos humanos – tanto no âmbito do estado nacional, como na arena internacional – depende, em significativa medida, da capacidade de pressão de fiscalização exercida pela opinião pública nas diversas arenas constituidoras do espaço público” (2008, p.209). 21 O mínimo procedimentalista é preenchido pelas democracias à medida que elas garantem: a) a participação política das pessoas privadas; b) a regra da maioria como critério para as resoluções políticas; c) os direitos comunicativos usuais e d) a proteção da esfera privada. Conferir HABERMAS, 2003b, p.27.

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que o constitucionalismo liberal predominante como ideologia política norteadora das democracias implementadas e observáveis na atualidade tem sofrido duras críticas por parte dos movimentos políticos com potencial transformador na esfera pública. Desponta-se urgente no mínimo uma reforma em nível principiológico da compreensão das Constituições em contextos de pluralismo. O constitucionalismo ocidental está ancorado nos ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade”, inspirado pela ideologia defendida pelas teorias liberais e revoluções burguesas22 do século XVIII. A conhecida tríade liberal-burguesa encontrou sua maior expressão jurídico-positiva ao ser proclamada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948.23 Todavia, muito antes já se afirmava o ideal democrático dos direitos humanos, na forma de princípios morais com pretensão de validade universal. Desta forma, o conteúdo dos direitos humanos com pretensão universal corresponde intimamente à ideologia do liberalismo político. Tal afirmação aparentemente dogmática, no entanto, fora posta à prova pelas críticas teóricas do socialismo, tanto aquelas empreendidas pelas teorias do paradigma da redistribuição econômica, que postulavam uma extensão dos direitos humanos de modo a incluir-se no seu rol direitos sociais e econômicos, tanto as empreendidas pelas teorias pertencentes ao paradigma do reconhecimento – tais como o comunitarismo e, posteriormente, o multiculturalismo – cujo intuito era propugnar pela elevação dos direitos culturais à categoria de direitos humanos. A tensão que destarte irrompe no constitucionalismo ocorre em dois níveis. Em primeiro lugar, o postulado da universalidade de direitos do homem é questionado pelo comunitarismo, que assenta ser inviável a generalização de preceitos morais e jurídicos cosmopolitas, uma vez observada a relatividade de todas as culturas e a maneira peremptória pela qual os padrões concretos de vida comunitária influem na personalidade do sujeito. Em 22

“Mais especificamente, as exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária. ‘Os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis’, dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevê a existência de distinções sociais, ainda que ‘somente no terreno da utilidade comum’” (HOBSBAWM, 2009, p.91). Entretanto, o mesmo autor, em mesma obra (p.91), adverte a respeito dos reais interesses, em certa medida anti-democráticos, da classe burguesa que insurgiu na Revolução Francesa: “Mas, no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários”. 23 Inspirado pela ideologia reinante na Revolução Francesa, o art. 1° desta Declaração afirma: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Eles são dotados de razão e consciência e devem agir com espírito de fraternidade em relação uns aos outros”. No entanto, como se verá adiante, os princípios de liberdade e igualdade preconizados pelos documentos burgueses têm caráter estritamente formal, e objetivam introduzir uma sociedade livre no sentido da liberdade de Mercado, de iniciativa privada e de aquisição e manutenção da propriedade privada, bem como da liberdade contratual na realização de negócios jurídicos.

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segundo lugar, o multiculturalismo reformula o conteúdo da concepção de direitos humanos, que passa a ser integrada por elementos interculturais ou transculturais, numa ruptura com a tradição liberal eurocêntrica, acompanhada da proposição de modelos dialógicos de direitos humanos, construídos mediante diálogos interculturais entre as partes interessadas. Também é proposto o abandono do individualismo estrito, de modo a reconhecer direitos dos grupos sociais e culturais, e não apenas direitos subjetivos fundamentais, posto que o conceito de pessoa comporta duas dimensões: a dimensão do indivíduo e a dimensão do cidadão integrante de uma comunidade política. O pano de fundo multicultural é o marco histórico da legitimação e da aplicação dos direitos humanos nas condições do atual pluralismo social, cultural e ideológico, no qual os conflitos protagonizados pelos grupos culturais – étnicos, linguísticos, religiosos – evidenciam os limites do arcabouço teórico da modernidade, tanto do liberalismo político e econômico quanto do socialismo marxista. A luta das minorias excluídas pelo reconhecimento de suas identidades na esfera pública se põe como um desafio do constitucionalismo, o qual, imediatamente, deve abandonar a ideia de um Estado-nação culturalmente homogêneo e socialmente bem integrado, em prol da concepção pluralista da convivência – e não meramente coexistência – entre grupos que compartilham cosmovisões distintas e aparentemente irreconciliáveis entre si. O problema das minorias “inatas”, conforme tratado por Habermas, tem lugar quando “uma cultura majoritária, no exercício do poder político, impinge às minorias a sua forma de vida, negando assim aos cidadãos de origem cultural diversa uma efetiva igualdade de direitos” (2002, p.170). Dentro de uma comunidade democrática que garanta a igualdade formal de direitos para todos, pode eclodir um conflito cultural conduzido por minorias desprezadas contra a cultura da maioria. Por esse motivo, Habermas advoga pela inclusão das minorias em uma cultura política comum, apontando diversos caminhos para se chegar a uma inclusão24 com “sensibilidade para as diferenças”. E essa inclusão repercute inevitavelmente na dimensão constitucional dos Estados pluralistas. O direito constitucional, que cria e organiza a democracia pluralista, recebe o encargo da interação e da inclusão social, e da solução justa de conflitos travados dentro de uma estrutura democrática mais ampla. 24

Dentre os caminhos para chegar-se à “inclusão do outro”, Habermas (2002, p.172) aponta: “a divisão federativa dos poderes, uma delegação ou descentralização funcional e específica das competências do Estado, mas acima de tudo, a concessão de autonomia cultural, os direitos grupais específicos, as políticas de equiparação e outros arranjos que levam a uma efetiva proteção das minorias. Através disso, dentro de determinados territórios e em determinados campos políticos, mudam as totalidades fundamentais dos cidadãos que participam do processo democrático, sem tocar nos seus princípios”.

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As dificuldades de formação do consenso social se multiplicam quando em uma sociedade em processo de diferenciação multicultural se enfrentam formas de vida religiosa ou étnico-cultural incompatíveis sem que haja sido encontrada ainda a base jurídica comum capaz de suportar tal pressão (DENNINGER, 2005, p.37).

Para que cumpra seu desígnio de composição justa e correta dos conflitos de origem multicultural, o direito precisa assumir nas suas premissas de fundamentação pressupostos de desenvolvimento atentos à diversidade e à heterogeneidade moral, política e axiológica. O liberalismo se mostrou insatisfatório na tarefa de orientar as práticas jurídicas nos Estados constitucionais pluralistas. Por isso mesmo o jurista alemão Erhard Denninger apresentou um novo paradigma constitucional contemporâneo, composto pela tríade “segurança, diversidade e solidariedade”, que vem para substituir a antiga tríade elaborada na Revolução Francesa. Os dois modelos principiológicos em comparação possuem pressupostos teóricos distintos, que levam necessariamente a diferentes compreensões do papel de uma Constituição em face da realidade social. A epistemologia do liberalismo pode ser bem compreendida a partir da matriz filosófica kantiana, na tradição dos co-fundadores das modernas teorias contratualistas. O formalismo de Kant se justifica na medida da necessidade de se encontrar o imperativo moral universal, transcendente a propósitos empíricos, “porque nenhuma lei universal pode ser derivada de tais representações empíricas” (DENNINGER, 2003, p.25). Podem ser reconhecidos três pressupostos comuns das teorias contratualistas que fundamentam o constitucionalismo liberal: a) a autonomia do sujeito individual como centro da vontade e da ação, para quem direitos e deveres podem ser atribuídos; b) a universalização da razão, incluindo a razão prática, na base da qual as categorias de “direito universal” no que respeita à geração de normas, seus destinatários e o objeto das normas, bem como o conceito de bem comum, são tornadas conceitualmente possíveis em primeiro lugar; e c) a equalização de “sujeitos” (Unterhanen) (Kant, Hobbes) e citoyens (Rousseau) (DENNINGER, 2003, p.23).

O comunitarismo não se contenta com essa visão moral e política. Primeiramente, acrescenta a autonomia coletiva ao cenário de criação do direito, porque os sujeitos decidem não apenas o que é melhor para si, mas também em virtude do que é melhor para seu grupo social. A universalização das normas é rejeitada quando assume tão somente o fundamento da racionalidade comum, porque não faz sentido, de uma perspectiva comunitária, a abstração do sujeito e a consequente desconsideração de seu marco históricocultural. Do mesmo modo, o sujeito concreto, na globalidade de suas relações sociais, não

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pode ser tido com igual de uma ótica puramente formal, e o reconhecimento de sua identidade efetiva-se exatamente pelo princípio da diferença. De plano, não se rechaça absolutamente a possibilidade conceitual do “bem comum” social; pelo contrário, acredita-se no consenso sobre questões éticas, morais e pragmáticas controvertidas, mas desde que se preencham condições suficientes de dialogação concreta entre todos os participantes da sociedade afetados pelas respectivas decisões. O que ocorre é a descrença das minorias de que seus interesses possam ser defendidos de maneira adequada com a observância da regra da maioria como tradução fidedigna da vontade geral no espaço democrático. A ideia por detrás dessa visão é que um conceito consistente de bem comum é gerado, em certa medida, e automaticamente, tanto quanto permaneça possível que todos os “poderes sociais relevantes” tenham uma oportunidade de expressar suas perspectivas e preferências no processo de discussão. [...] A síntese de cada uma dessas perspectivas produz necessariamente uma concepção completa e apurada do bem comum (DENNINGER, 2003, p.31-32).

Portanto, ideais políticos como o bem comum e a própria democracia, no sentido da tomada de decisões políticas fundamentais revestidas do aspecto de normas jurídicas, não são possíveis sem um processo institucional (e mesmo informal) aberto, que garanta a participação de todos os pontos de vista da sociedade pluralista, em especial das minorias estruturais. Nesse processo, os atores sociais cumprem um duplo papel: de autores e destinatários das normas do direito.

1.2.1. Igualdade versus diversidade: o pluralismo na esfera pública

O constitucionalismo tem caminhado no compasso de uma transformação da concepção tradicional de igualdade: da igualdade formal para a igualdade material,25 a saber, uma compreensão da igualdade como diferença. A Constituição, a partir de então, cumpre o papel de dirimir reais situações de desvantagem e discriminação; mais do que nunca, pede-se que o tema da inclusão daqueles grupos de pessoas geralmente excluídas dos processos políticos seja elevado a uma categoria constitucional-positiva. Denninger assevera:

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Cf. ROSENFELD, Michel, 2003, p. 58-70, observações sobre os estágios históricos da igualdade: igualdade do estágio 3, na definição da “igualdade como diferença”. Segundo Rosenfeld, citando Habermas, a tríade de Denninger não funciona exatamente como alternativa à tríade liberal, mas apenas evidencia o que está implícito nesta em contextos atuais.

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(...) a ideia de que todos podem ser igualmente afetados pelo direito provou ser uma ficção. Os homens são afetados, pela mesma lei, diferentemente das mulheres; os cidadãos diferentemente dos estrangeiros; os idosos e deficientes diferentemente dos jovens e não-deficientes (DENNINGER, 2003, p. 27).

Indubitavelmente, esse contexto normativo recebe relevantes contribuições das políticas e teorias multiculturalistas, dos movimentos sociais e de outras modalidades de reivindicação pelo direito de ser igual, ou, em alguns casos, pelo direito a manter e ter reconhecida sua própria diferença. Trata-se de uma questão de justiça, uma vez que a igualdade enunciada pela tríade liberal-burguesa pode (e provavelmente o fará) provocar irreparáveis situações de injustiça, ao desconsiderar as necessidades especiais de determinados grupos humanos, sem as quais seus membros não terão condições mínimas de lograr êxito na convivência em sociedade. Há pelo menos duas formas de realizar justiça da perspectiva igualitária. A primeira consiste em pôr termo à desigualdade para remover a injustiça discriminadora; o paradigma clássico são as lutas das classes sociais subalternas por melhores condições de vida, buscando uma verdadeira equalização fática das condições sociais, realizada pelas políticas de redistribuição. Entretanto, há outras diferenças que, de modo algum, precisam ser superadas: a justiça realizar-se-á mediante o reconhecimento mesmo dessa diferença. É o caso das minorias étnicas, raciais e linguísticas, dos homossexuais e das mulheres, cujos interesses pressupõem que suas necessidades especiais e identidades diferenciadoras sejam de fato mantidas e consideradas, a fim de que possam fazer parte de uma comunidade política integrada e, assim, exercer as prerrogativas da cidadania. Neste caso, são convenientes as políticas de reconhecimento. Com efeito, os conflitos sociais que têm em sua base lutas por redistribuição e reparação de bens materiais podem ser resolvidos por decisões das maiorias das instâncias políticas; a situação, no entanto, torna-se mais gravosa quando se trata de conflitos de identidade, quando a existência da consciência de identidade de uma minoria aparece ligada a determinadas posições religiosas, ideológicas ou morais, não conduzindo a uma solução clara e permanente dos conflitos. A superação e a reforma das estruturas políticas e jurídicas da sociedade parecem ser a via mais segura, e inevitável, de dar conta da inclusão dos projetos de vida ideal das minorias na agenda política do Estado. O panorama em que esta “nova” tríade se demonstra apta a desenvolver-se é a esfera pública, âmbito que se situa entre o Estado e o Mercado, entrelaçamento de múltiplas formas de associação e organização, onde são criticamente tomadas as deliberações sobre questões gerais: atividades práticas da solidariedade e uma promoção efetiva da diversidade

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não são concebíveis em um espaço no qual não haja recorrentes momentos de deliberação, onde não se mantenha um processo político institucional aberto, cujos temas centrais sejam as questões públicas que interessam a todos os envolvidos na controvérsia. Para a promoção da diversidade, e para o deslinde eficaz das políticas de reconhecimento, tem de haver um nexo conceitual entre pluralismo e democracia deliberativa – modelo democrático presidido pela ética do discurso, conexão ideal entre política e fundamentação ética do exercício do poder. O modelo de democracia representativa, tão caro ao liberalismo, não é capaz de fomentar a prática argumentativa necessária para a integração social mediante o direito. A aparente tensão entre direitos humanos e democracia desagua no debate filosófico entre duas posições bastante definidas no cenário norte-americano: o liberalismo e o comunitarismo. Vejamos os principais pressupostos e implicações dessa discussão.

1.3. Direitos humanos versus democracia: o embate entre liberalismo e comunitarismo

O fenômeno do pluralismo é um pressuposto de toda a análise sobre a justiça, a democracia e o direito empreendida por liberais e comunitaristas. Tanto o liberalismo, representado neste trabalho pela teoria de justiça como equidade de John Rawls, quando sua tentativa de superação teorético-discursiva formulada por Jürgen Habermas, compartilham enquanto atitude metodológica e como fator constitutivo do processo político a exigência de imparcialidade nas questões práticas. As pessoas morais da teoria da justiça de Rawls devem ser ao mesmo tempo racionais e imparciais. E não é outro o escopo de Habermas senão instituir um procedimento para orientar a resolução imparcial de questões práticas em sociedades plurais. Lançando mão de uma metodologia construtivista,26 tanto a posição original de Rawls quanto o procedimento discursivo de Habermas traduzem-se como metodologias segundo as quais normas morais abstratas e universais podem ser concretizadas em um contexto histórico, através de uma deliberação prática. Precisamente contra a possibilidade de solução imparcial dos conflitos é que se volta o comunitarismo, principalmente a partir das reflexões de Michael Walzer e de Charles Taylor, uma vez que suas metodologias ressaltam que o particularismo das identidades sociais e culturais e o pluralismo dos valores autênticos e incompatíveis entre si sugerem somente 26

“A ideia central do construtivismo é que os juízos morais se justificam sobre a base de pressupostos procedimentais desta prática social em cujo contexto se formulam” (NINO, Carlos apud CITTADINO, 2009, p.97).

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desacordos irredutíveis a qualquer ponto de vista moral, ainda que mínimo. A correção de uma norma não deriva da imparcialidade de sua formulação, antes pelo exclusivo critério da sua efetiva aceitação pela comunidade histórica na qual produz efeitos. Essa divergência, além de resultar em relevantes consequências práticas com relação à compreensão do pluralismo nas democracias contemporâneas, subjaz à construção de diferentes edifícios teóricos:

a inexistência deste ponto de vista moral mínimo afasta Walzer tanto de Rawls quanto de Habermas. De outra parte, ainda que Walzer e Habermas -–ao contrário de Rawls – concordem quanto à impossibilidade de definir princípios substantivos de justiça – incompatível com a concepção de democracia deliberativa por ambos adotada –, são distintos, nestes autores, os contornos deste processo de deliberação democrática. Enquanto Walzer ancora a deliberação pública sobre um ethos comunitariamente compartilhado, Habermas configura a democracia deliberativa como a institucionalização de procedimentos necessários a um debate público que não encontra restrições. Se, mais uma vez, incluirmos Rawls neste debate, veremos que a sua concepção sobre o debate público o circunscreve ao espaço das questões constitucionais e de justiça fundamental. Temos, com efeito, três concepções distintas acerca do processo de deliberação pública: a proposta rawlsoniana de um “uso público da razão” limitado ao âmbito dos valores políticos; uma deliberação democrática limitada a um mundo específico de significações sociais, tal como formulada por Walzer; e, finalmente, a proposta de Habermas acerca de uma ética democrática cujo uso público da razão não encontra limites de qualquer espécie. Por trás destas divergências, o que está em jogo é não apenas a autonomia daqueles que participam destes processos deliberativos, mas também a complexa relação entre liberdade e igualdade (CITTADINO, 2009, p.128-129).

Vejamos, a seguir, uma exposição sucinta e não exaustiva dos principais fundamentos filosóficos e metodológicos que informam a teoria liberal de Rawls, a teoria comunitarista de Walzer, a teoria do reconhecimento de Taylor e a proposta de superação de dicotomias na filosofia política de Habermas.

1.3.1. Liberalismo: teoria da justiça como equidade

O fato do pluralismo refere-se à existência, em qualquer democracia, de uma diversidade de interesses pessoais e de perspectivas pelas quais as pessoas moldam sua compreensão sobre o mundo. A concepção liberal de pluralismo,27 em linhas gerais, está vinculada à figura do indivíduo como pessoal moral, capaz de orientar seu agir segundo sua 27

Segundo leciona Rawls, “o liberalismo enquanto doutrina política pressupõe que existem múltiplas concepções do bem, conflitantes e incomensuráveis entre si, cada uma sendo compatível, até onde possamos julgar, com a pela racionalidade dos seres humanos. (...) O liberalismo, tal como foi formulado no século XIX por Benjamin Constant, Tocqueville e Stuart Mill, aceita a pluralidade de concepções do bem incomensuráveis entre si como um fato da cultura moderna, com a condição, é claro, de que essas concepções respeitem os limites indicados pelos princípios de justiça” (2000, p.237-8).

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própria concepção acerca da vida digna, a qual pode ser válida ou não, na medida em que corresponda aos valores políticos constantes de um consenso sobreposto em uma sociedade bem ordenada. Nesta sociedade, convivem várias doutrinas compreensivas razoáveis28 (compreensive doctrines), de modo que a) todos os seus membros aceitam os mesmos princípios de justiça; b) suas instituições políticas e sociais realizam esses princípios e c) seus membros respeitam as regras de suas instituições básicas por compartilharem princípios de justiça comuns, de modo que “a unidade da sociedade poderia ser ao mesmo tempo possível e estável” (RAWLS, 2000, p.241). A ideia de sociedade bem ordenada pressupõe uma concepção política de justiça que a regula. Esta deve ser independente das diversas doutrinas compreensivas religiosas, filosóficas e morais professadas pelos indivíduos da sociedade pluralista e sujeitas à controvérsia, daí se dizer que a concepção política de justiça é neutra em face das diversas visões individuais de bem. Por contraposição ao liberalismo enquanto doutrina moral abrangente, a teoria da justiça como equidade tenta apresentar uma concepção da justiça política que esteja enraizada nas ideias intuitivas básicas da cultura política de uma democracia. Suponhamos que essas ideias têm possibilidades de ser sustentadas por todas as doutrinas morais que se contrapõem e são influentes numa sociedade democrática relativamente justa. Assim, a teoria da justiça como equidade busca precisar o núcleo central de um consenso por justaposição, isto é, de ideias intuitivas comuns que, coordenadas numa concepção política da justiça, se revelarão suficientes para garantir um regime constitucional justo (RAWLS, 2000, p.235).

Uma concepção política de justiça, que fundamenta a teoria da justiça como equidade, é uma concepção moral aplicável à estrutura básica de uma democracia constitucional moderna, isto é, aplicável a um certo tipo de instituições econômicas, sociais e políticas, sem a pretensão de reivindicar validade em termos de verdade num nível metafísico. A estrutura básica é constituída pelas principais instituições políticas e pela maneira como elas se articulam em um sistema unificado de cooperação social. Uma concepção política de justiça provém de certa tradição política, qual seja, das ideias intuitivas que estão na base das instituições políticas de um regime democrático constitucional. Se, conforme os pressupostos do liberalismo enquanto doutrina, nenhuma concepção moral pode reivindicar um fundamento reconhecido para uma concepção de justiça no âmbito do Estado democrático moderno, é preciso uma neutralidade (imparcialidade) desta concepção publicamente aceita com relação à ampla variedade de doutrinas abrangentes filosóficas, morais e religiosas. “De fato, esta [a 28

Rawls atribui três características às doutrinas compreensivas razoáveis: a) abarcam os mais importantes aspectos filosóficos, religiosos e morais da vida humana de maneira mais ou menos consistente e coerente; b) atribuem a certos valores uma primazia em particular; e c) permanecem estáveis ao longo do tempo, ainda que evoluam lentamente se há razões para tanto. Cf. CITTADINO, 2009, p.80.

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concepção política de justiça] deve ter em conta uma diversidade de doutrinas e a pluralidade das concepções do bem que se defrontam e que são efetivamente incomensuráveis entre si, sustentadas pelos membros das sociedades democráticas” (RAWLS, 2000, p.204). A concepção política de justiça está alinhada a uma concepção política de pessoa (pessoa como cidadão), segundo a qual os cidadãos consideram-se a si mesmos como livres e iguais em uma sociedade cooperativa. Eles são livres em três sentidos: a) são moralmente capazes de ter uma concepção do bem, e de revê-la e modificá-la em função de motivos pessoais e razoáveis; b) consideram-se a si mesmos como condição de fontes originárias de reivindicações legítimas, isto é, seus deveres e obrigações são originários do ponto de vista político desde que suas concepções de bem e doutrinas morais sejam compatíveis coma concepção pública de justiça; e c) são capazes de assumir a responsabilidade dos seus fins, capazes de ajustar objetivos e aspirações em função daquilo que podem razoavelmente obter, além de limitar suas reivindicações àquilo que os princípios de justiça permitem.29 Espera-se que a concepção política de justiça encontre ao menos um consenso sobreposto, ou seja, um consenso que inclua todas as doutrinas contrapostas. A justificação pública da concepção política de justiça ocorre quando “os cidadãos razoáveis endossam e publicamente justificam a concepção política de justiça, associando-a às suas diversas visões razoáveis acerca da vida digna” (CITTADINO, 2009, p.102-3), mas, como condição prévia à justificação pública – dialógica e intersubjetiva – Rawls prevê um processo monológico no primeiro nível de justificação da concepção política, em que se invocam razões não públicas. Trata-se de uma concepção contrafática, o procedimento da “posição original”, no qual os parceiros estão simetricamente situados e, sem conhecer sua posição social, por trás de um véu da ignorância, devem chegar a um acordo sobre as condições equitativas de convivência segundo princípios de justiça: Enquanto recurso de representação, a posição original celebra um acordo hipotético e a-histórico, no qual representantes de cidadãos livres e iguais definem os termos da cooperação social e estabelecem princípios de justiça apropriados para garantir a liberdade e a igualdade. Ressalte-se, entretanto, que enquanto recurso de representação a posição original é apenas um meio de reflexão. Rawls, como vimos, parte do pressuposto de que há uma ideia intuitiva implícita na cultura democrática que descreve a sociedade como um sistema equitativo de cooperação social entre pessoas livres e iguais que, por sua vez, são racionais – têm a capacidade de ter uma concepção de bem – e razoáveis – têm a capacidade de ter um senso de justiça. Esses cidadãos livres e iguais possuem plena autonomia política. No entanto, as partes, na posição original, enquanto pessoas artificiais, não possuem esta autonomia política

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Cf. RAWLS (2000, p. 225-232).

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plena, mas apenas uma autonomia que Rawls designa como racional, e que, como as partes, também é apenas um artifício da razão (CITTADINO, 2009, p.99).

Na condição de figura artificial, a autonomia racional permite que os cidadãos sejam imparciais com relação às doutrinas compreensivas razoáveis com que estão envolvidos. Para tanto, é necessário aquilo que Rawls designou por véu da ignorância,30 que separa as partes acordantes da posição original de suas próprias personalidades concretas, das contingências históricas e, consequentemente, de suas concepções acerca da vida digna, de modo que cada parte originária, ao desconhecer sua posição concreta na sociedade, seu status social específico, deliberará sobre os princípios de justiça em condições de imparcialidade. O objetivo do véu da ignorância é neutralizar o fato do pluralismo, a fim de definir os dois princípios de justiça enquanto equidade: (1) Cada pessoa tem direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades e de direitos básicos iguais para todos, compatíveis com um mesmo sistema para todos. (2) As desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas condições: em primeiro lugar, devem estar ligadas a funções e a posições abertas a todos em condições de justa (fair) igualdade de oportunidades; e, em segundo lugar, devem proporcionar a maior vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade (RAWLS, 2000, p.207-8).

Tomados em conjunto, os dois princípios regem as instituições básicas que efetivam esses valores, o primeiro tendo prioridade sobre o segundo. Quando os cidadãos reconhecem e afirmam a mesma concepção de justiça, obtém-se um amplo e geral equilíbrio reflexivo, de natureza intersubjetiva, isto é, cada cidadão leva em consideração o raciocínio e os argumentos de todos os outros, pois todos têm o dever cívico de atuar segundo princípios aceitos por cidadãos razoáveis. Entretanto, o procedimento da posição original é criticável devido ao seu caráter estritamente monológico, que cerceia os diálogos públicos através da utilização de razões não públicas. Os cidadãos, no exercício de seu poder político soberano, estão impedidos de decidir sobre temas constitucionais essenciais e de justiça fundamental com base em suas próprias convicções acerca do bem. Neste sentido coloca-se a crítica tanto do 30

“Devemos encontrar um ponto de vista – distanciado e não deformado pelos traços e pelos contextos particulares do quadro global – a partir do qual se possa atingir um acordo equitativo entre pessoas livres e iguais. É esse ponto de vista, com a característica particular que chamei de véu de ignorância, que constitui a posição original. E a razão pela qual a posição original não deve ter em conta as contingências do mundo social nem ser afetada por elas é que as condições de um acordo equitativo sobre princípios da justiça política entre pessoas livres e iguais devem eliminar as desigualdades na distribuição dos trunfos na negociação, os quais não deixarão de suscitar, nas instituições de qualquer sociedade, as tendências acumuladas naturais, sociais e históricas. Essas vantagens contingentes e essas influências acidentais vindas do passado não devem influenciar um acordo sobre os princípios que devem reger as instituições da própria estrutura básica desde o momento presente até o futuro” (RAWLS, 2000, p.219).

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comunitarismo quanto do procedimentalismo discursivo de Habermas,31 pois a construção de um ponto de vista imparcial não pode restringir o debate no âmbito das doutrinas compreensivas acerca do bem situadas no espaço privado, a partir do qual aconteceria uma deliberação pública confrontando valores éticos fundamentais e culminando na formação democrática da opinião e da vontade. Se a neutralidade significasse a exclusão das questões éticas do discurso político, este perderia sua função de transformação racional de enfoques pré-políticos, da interpretação de necessidades e de orientações valorativas, já que um acordo firmado discursivamente deve ser estabelecido tendo em vista as diferenças de opinião postas em discussão.

1.3.2. Comunitarismo: a política de reconhecimento

O comunitarismo de Walzer critica o universalismo liberal e assume compromisso com o particularismo histórico e social, a partir de sua utilização do termo pluralismo no sentido das múltiplas identidades sociais – em oposição às concepções individuais de bem –, da descrição da diversidade de identidades sociais e de culturas étnicas e religiosas que estão presentes em qualquer sociedade moderna e complexa. A fragmentação é a marca da sociedade liberal moderna. Disso decorre a prioridade conferida à comunidade em relação ao indivíduo, na medida em que este é essencialmente um ser produzido culturalmente. No espaço público, a compatibilização entre uma sociedade política democrática e o pluralismo cultural, étnico e religioso, que exprime uma variedade de valores incomensuráveis e incompatíveis entre si, defendidos por comunidade e grupos distintos, só é possível recorrendo-se à dimensão ético-política da democracia orientada à obtenção de um consenso axiológico.32 A existência de múltiplas identidades sociais e culturais por vezes em relação de antagonismo entre si conduz, numa sociedade multicultural, ao medo da perda de valores, tradições e crenças cultivados por cada subcultura do espaço democrático pluralista. Por essa conta se faz necessário o imperativo da tolerância: a tolerância é a única maneira através da 31

Para ter acesso às principais críticas de Habermas, em debate com Rawls, bem como à contenda pela herança contemporânea do legado racionalista kantiano, ver a parte II de “A Inclusão do Outro”, “Liberalismo político – uma discussão com John Rawls” em HABERMAS (2002, p.64-124). “Em face disso, sugiro que a filosofia se restrinja ao esclarecimento do processo democrático e do ponto de vista moral, à análise das condições para discursos e negociações racionais. Com esse papel, a filosofia não procede de maneira construtora, mas sim reconstrutiva. Respostas substanciais que é preciso encontrar aqui e agora, elas as deixará por conta do engajamento menos ou mais esclarecido dos envolvidos, o que não exclui, porém, que também os filósofos – no papel de intelectuais, não de especialistas – participem da controvérsia pública” (p.91-2). 32 Cf. CITTADINO, 2009, p.85-87.

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qual é possível neutralizar o medo que se encontra na raiz dos antagonismos. A intolerância é incompatível com a justiça, pois viola a identidade cultural, pressuposto que confere humanidade ao indivíduo. “Se o consenso definitivo é inalcançável e se estamos condenados a viver em meio ao conflito, é a tolerância política que faz da política democrática uma atividade permanente. É ela que obriga os indivíduos a argumentar, deliberar e assumir responsabilidades (...)” (CITTADINO, 2009, p.88). Da tolerância, resulta a obrigatoriedade do reconhecimento da diferença. Esse reconhecimento é fundamentado pelo princípio da igualdade universal, na medida em que o indivíduo enquanto ser definido culturalmente depende de suas identidades sociais, ao passo que estas dependem de uma política ininterrupta de reconhecimento igualitário. Deste modo, Charles Taylor (1994, p.85) estabelece a conexão entre reconhecimento e identidade: A tese consiste no fato de a nossa identidade ser formada, em parte, pela existência ou inexistência de reconhecimento e, muitas vezes, pelo reconhecimento incorreto dos outros, podendo uma pessoa ou grupo de pessoas serem realmente prejudicados, serem alvo de uma verdadeira distorção, se aqueles que os rodeiam refletirem uma imagem limitativa, de inferioridade ou de desprezo por eles mesmos.

O reconhecimento contém um caráter fundamental dialógico, não existindo se entendido monologicamente. Através do uso cooperativo e dialógico da linguagem (em sentido lato, incluindo outros modos de expressão, que não palavras, através dos quais nos definimos), as pessoas são conduzidas à sua própria autodefinição quando colocadas em convívio com os “outros-importantes”, também responsáveis na definição de nossa identidade. “Tornamo-nos verdadeiros agentes humanos, capazes de nos entendermos e, assim, de definirmos as nossas identidades, quando adquirimos linguagens humanas de expressão, ricas de significado” – sintetiza Taylor (1994, p.52). A formação e a manutenção de nossa identidade dependem, decisivamente, de interações dialógicas com os outros, já que identidade significa “de onde nós provimos; (...) o ambiente no qual nossos gostos, desejos, opiniões e aspirações fazem sentido” (TAYLOR, 1994, p.54). Portanto, o reconhecimento da identidade exige a preservação do ambiente cultural em que o indivíduo está inserido e forma sua personalidade. O estudo de qualquer outra cultura tradicional exige a premissa de que devemos igual respeito a todas elas. A presunção de igual valor de todas as culturas humanas, defendida por Taylor,33 chama atenção para o fato de que, se algumas culturas dinamizaram 33

Neste sentido conclui Taylor (1994, p.88): “Este pressuposto ajudaria a explicar por que é que as exigências do multiculturalismo se baseiam em princípios já estabelecidos de igual respeito. Se a não formulação do pressuposto é idêntica à negação da igualdade, e se da inexistência de reconhecimento advêm consequências

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sociedades inteiras durante considerável espaço de tempo, devem ter algo de relevante a nos ensinar a respeito de todos os seres humanos: As culturas que conceberam um horizonte de significado para muitos seres humanos, com os mais diversos caráteres e temperamentos, durante um longo período de tempo – por outras palavras, que articularam o sentido de bem, de sagrado, de excelente –, possuem, é quase certo, algo que merece a nossa admiração e respeito, mesmo que possuam, simultaneamente, um lado que condenamos e rejeitamos (TAYLOR, 1994, p.93).

Em contraposição à ideia de preservação de identidades sociais e culturais específicas, encontra-se o liberalismo típico que se generalizou na sociedade anglo-americana, defendido por nomes como John Rawls, Bruce Ackerman e Ronald Dworkin. Na linha da compreensão kantiana da dignidade humana, em que esta se iguala à autonomia, isto é, à capacidade de cada pessoa determinar para si mesma sua própria visão de uma vida boa, o liberalismo de tipo 1 defende uma sociedade liberal como aquela que não adota nenhuma visão substantiva em particular sobre o bem. Pelo contrário, é uma sociedade neutra com relação a cosmovisões específicas de grupos e pessoas, regida por um Estado que assegura a cada cidadão perseguir sua perspectiva de vida boa na base de um tratamento igualitário. Uma sociedade que assume objetivos coletivos, consequentemente, infringe este modelo. Nesse diapasão, Taylor sugere um liberalismo de tipo 2, uma reformulação do liberalismo incompatível com a noção de reconhecimento de grupos e identidades coletivas: Uma sociedade com objetivos coletivos fortes pode ser liberal, segundo esta perspectiva, desde que seja capaz de respeitar a diversidade, em especial quando considera aqueles que não partilham dos objetivos comuns, e desde que possa proporcionar garantias adequadas para os direitos fundamentais. Concretizar todos estes objetivos irá provocar, sem dúvida, tensões e dificuldades, mas não é nada de impossível, e os problemas não são, em princípio, maiores do que aqueles que qualquer sociedade liberal encontra quando tem de combinar, por exemplo, liberdade com igualdade ou prosperidade com justiça (TAYLOR, 1994, p.80).

Com efeito, o liberalismo não pode reivindicar neutralidade cultural completa, pois ele próprio consiste em um credo, isto é, ele próprio trata-se de uma doutrina compreensiva de mundo (para utilizar a linguagem de Rawls), inclusive incompatível com importantes para a identidade das pessoas, então pode-se dizer que existem motivos de peso para persistir na universalização do pressuposto como uma extensão lógica da política de dignidade. Da mesma maneira que todos devem possuir os mesmos direitos civis e de voto, independentemente da raça ou da cultura, assim devem todos usufruir do pressuposto de que as respectivas culturas tradicionais têm valor”. Todavia, tal posição é problemática, na medida em Taylor parece instrumentalizar as culturas: ao invés de declarar o valor “em si” de cada cultura, o pressuposto conduz à noção de que uma cultura é valiosa desde que traga alguma contribuição relevante para as outras culturas. Quer dizer, uma cultura tem valor na medida em que pode ser reconhecida arbitrariamente pelo outro. Conferir, neste sentido, WOLF (1994, p.99): “A necessidade de corrigir essas injustiças [de reconhecimento], por conseguinte, não depende da presunção de que uma determinada cultura é distintivamente valiosa para as pessoas exteriores à cultura”.

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alguns outros tipos de cultura. A reparação de injustiças por parte do Ocidente colonialista, e a necessidade de reconhecimento nas sociedades multiculturais com potencial de ruptura da integração social, exigem o declínio da postura de neutralidade em prol do reconhecimento do igual valor das diferentes culturas e subculturas alocadas em um mesmo Estado democrático constitucional. Na mesma esteira se posiciona Walzer, contra a pretensão questionável de neutralidade preconizada pelas vertentes liberais do pensamento político: Nem a concepção política de justiça nem a ética discursiva podem ser formuladas sem que determinados valores – indivíduos livres e iguais, ampla liberdade de pensamento e ação, prática da tolerância, garantia do respeito mútuo – estejam assegurados. De acordo com Walzer, estas exigências já integram uma forma específica de vida, pois os indivíduos que partilham destes valores “não saltam da mente de filósofos (...), nem da cabeça de Zeus. São criaturas da história” (CITTADINO, 2009, p.120).

Em contrapartida, Habermas realiza uma crítica com o intuito de denunciar a competição entre a proteção das identidades coletivas e a garantia de direitos e liberdades individuais subjetivos iguais, presente na política de reconhecimento de Taylor. 34 Para Habermas, o princípio dos direitos iguais tem de ser posto em prática mediante dois tipos combinados de política: de um lado, a consideração pelas diferentes culturas e a proteção da integridade das tradições e formas de vida que os membros de grupos discriminados podem reconhecer, e de outro, a universalização progressiva dos direitos individuais. Isso porque o reconhecimento público completo dos cidadãos exige respeito tanto por suas maneiras de ver o mundo compartilhadas intersubjetivamente, quanto pelas identidades únicas de cada indivíduo. Compilando apontamentos dirigidos tanto à teoria da justiça como equidade quanto à política de reconhecimento, é possível situar Habermas numa posição intermediária no contexto do debate entre liberais e comunitaristas. A contribuição habermasiana, que integra autonomia privada e autonomia pública, direitos humanos e soberania do povo, será introduzida a seguir.

1.3.3. Teoria do discurso: entre Justiça e Ética

Ambas as dimensões do pluralismo – os interesses individuais heterogêneos e as perspectivas ancoradas em valores – são incorporadas na concepção de pluralismo da teoria do discurso, através da equipromordialidade atribuída à autonomia privada e à autonomia 34

Cf. HABERMAS (1994, p.128).

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pública. Direitos humanos e democracia não estão em uma relação de concorrência entre si, antes estão compatibilizados ao nível do discurso. A teoria do discurso, portanto, não apenas resguarda o compromisso com os direitos tipicamente liberais de liberdade, inclusive com aqueles apresentados na teoria da justiça como equidade, como também exige “uma política do reconhecimento que proteja a integridade do indivíduo nos contextos da vida nos quais a sua identidade se forma” (HABERMAS, 1994, p.131), segundo a orientação comunitarista. No nível da teoria do discurso, portanto, há a compatibilização entre Justiça e Ética, conceitos até agora tratados como antagônicos pelas vertentes liberais e comunitárias da filosofia política. Um sistema de direitos tal como compreendido pela teoria do discurso incorpora não apenas direitos humanos universais na forma de direitos fundamentais, segundo uma perspectiva de julgamento imparcial de interesses atinente à ideia de Justiça. Também deve incorporar os objetivos coletivos que são confirmados nas lutas pelo reconhecimento. Todo sistema legal é a expressão de uma forma concreta de vida, e não somente a reflexão da satisfação universal de direitos básicos. Juntamente com as considerações morais sobre a Justiça, as razões éticas também entram nas justificações das deliberações legislativas. O que se destaca no processo de legislação democrática não é a neutralidade ética da ordem legal, mas sim o fato de a atualização dos direitos básicos ser inevitavelmente permeada pela Ética, dentro do horizonte de culturas, tradições, contextos de vida e experiências intersubjetivas compartilhadas, no qual os cidadãos tentam chegar a um acordo sobre seu próprio auto entendimento enquanto comunidade discursivamente integrada. Pois a teoria dos direitos não proíbe de modo algum os cidadãos de um estado democrático constitucional de confirmarem uma concepção do bem na sua ordem legal geral, uma concepção que ou já partilha ou acabou por concordar através da discussão pública. No entanto, proíbe-os de privilegiar uma forma de vida à custa de outros membros da nação (HABERMAS, 1994, p.145).

A formação discursiva da opinião e da vontade, contudo, serve como meio de autorreflexão da vida ética, pelo qual os sujeitos podem modificar tanto as convicções normativas das suas formas de vida específicas, quanto as suas concepções individuais sobre a vida digna, envolvidos em um processo de interação comunicativa orientado pela força do melhor argumento. Assim, Habermas objetiva evitar a abstração de um acordo racional tal como aquele firmado na posição original de Rawls, contextualizando as normas morais na eticidade concreta do mundo da vida, de modo que aquelas são interpretadas e ressignificadas à luz de

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valores culturais específicos. Nas palavras de Gisele Cittadino (2009, p.114): “a ética discursiva, universalista, requer uma certa correspondência com mundos culturais cujas instituições políticas e sociais já incorporam representações pós-convencionais da moralidade”. De tal maneira é que se estabelece uma mediação entre moralidade e eticidade, ou seja, entre princípios de justiça de natureza universal e valores éticos contextualizados em uma cultura concreta. Enumeraremos quatro características fundamentais da teoria do discurso, duas das quais podem ser atribuídas ao pensamento liberal, e duas atribuíveis a uma visão comunitária: a) individualismo; b) neutralidade; c) deliberação pública e d) reconhecimento. Com o auxílio da análise dessas categorias, objetiva-se evidenciar a posição intermediária que a teoria discursiva ocupa na querela entre liberais e comunitários. Inicialmente, Habermas (1994, p.125) afirma a Constituição do Estado de direito como um meio pelo qual os indivíduos formam voluntariamente uma comunidade legal de associados livres e iguais. A Constituição dispõe precisamente sobre os direitos que esses indivíduos devem garantir uns aos outros se querem ordenar sua convivência pelos meios do direito positivo. No fim das contas, “é uma questão de proteger estas pessoas individuais legais, mesmo se a integridade do indivíduo – tanto na lei quanto na moralidade – depende de as relações do reconhecimento mútuo se manterem intactas”. Logo, se deve haver uma preservação das culturas e formas de vida tradicionais, esse imperativo deriva, antes de tudo, da proteção dos interesses dos sujeitos conforme uma concepção do indivíduo como centro das reivindicações. Neste sentido pode-se atribuir certo caráter individualista à teoria do discurso. Em segundo lugar, a teoria do discurso encara o pluralismo das democracias contemporâneas como um elemento das sociedades pós-convencionais, nas quais tanto as concepções individuais de bem quanto os valores, costumes e tradições devem apresentar razões que sustentem sua validade social. Com efeito, o modelo de Estado nacional com uma população culturalmente homogênea tem cedido cada vez mais ao crescimento de uma multiplicidade de formas culturais de vida, grupos étnicos, confissões religiosas e diferentes imagens do mundo. E, numa sociedade pluralista com respeito à cultura e às visões de mundo, não é possível recorrer ao substrato aparentemente natural de um ethos homogêneo, compartilhado por um povo integrado em um nível pré-político, mas é necessário recorrer aos procedimentos da formação da vontade e da comunicação pública. “O plano da cultura política partilhada precisa desacoplar-se do plano das subculturas e de suas identidades, cunhadas de uma maneira anterior à política” (HABERMAS, 2002, p.141). Assim, a

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integração ética de sociedades pretensamente herdeiras de uma ascendência comum e de raízes históricas compartilhadas deve ceder a uma forma de integração política dos cidadãos que assegura fidelidade à cultura política comum, originada da interpretação dos princípios constitucionais a partir da experiência histórica de uma comunidade do direito. O recurso a uma ética substantiva que exprime determinada forma de vida não pode orientar o sistema dos direitos, que deve ser neutro no sentido da adoção de uma ou outra cosmovisão acerca do bem. Habermas (1994, p.152) se posiciona nesta linha: A neutralidade da lei vis-à-vis diferenciações éticas internas tem origem no fato de que nas sociedades complexas o todo dos cidadãos não pode mais ser sustentado por um consenso real de valores mas somente por um consenso nos procedimentos para a elaboração legítima das leis e do legítimo exercício do poder. Os cidadãos que estão politicamente integrados neste sentido partilham a convicção racional que a liberdade de comunicação desenfreada na esfera públicas política, um processo democrático para estabelecer conflitos, e o transporte constitucional de poder político fornecem uma base para inspecionar o poder ilegítimo e assegurar que o poder administrativo é usado no interesse igual de todos. O universalismo dos princípios legais reflete-se num consenso processual, que deve ser encaixado no contexto de uma cultura política historicamente específica através de um tipo de patriotismo constitucional.

Ao passo que os princípios de individualismo e neutralidade guardam compromisso com a visão liberal, a teoria do discurso também se apropria de elementos do comunitarismo, tais como a defesa da deliberação pública como forma de atingimento de consensos para a interpretação apropriada das necessidades de grupos específicos, e a exigência de reconhecimento de culturas específicas. As autonomias pública e privada do cidadão, portanto, são asseguradas pelo processo democrático, com intuito de possibilitar que “os afetados afirmem e justifiquem numa discussão pública o que é relevante para o tratamento igual ou desigual em casos típicos” (HABERMAS, 1994, p.134). A dimensão da intersubjetividade através do entendimento mediante o uso racional da linguagem é que confere legitimidade às decisões públicas e, inclusive, ao direito positivo. “Uma ordem legal é legítima quando salvaguarda a autonomia de todos os cidadãos a um nível igual. Os cidadãos são autônomos apenas se os dirigentes da lei também se puderem ver como os seus autores” (HABERMAS, 1994, p.139). Finalmente, Habermas concorda com a proteção de formas de vida e tradições nas quais as identidades se formam, na medida em que servem ao reconhecimento dos seus membros. Deste modo, o processo democrático de atualização dos direitos individuais deve se estender à garantia de direitos de coexistência para os diferentes grupos étnicos e para suas formas de vida culturais. Ressalva-se que o indivíduo se utiliza da deliberação como um meio

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de autorreflexão para criticar e manter em permanente transformação suas próprias tradições, pois a cultura está sujeita ao potencial transformativo presente nos discursos públicos tomados por cidadãos autônomos e desejosos de estabelecer consensos na base de uma busca cooperativa da melhor forma de entendimento possível. Nas sociedades multiculturais a coexistência de formas de vida com direitos iguais significa garantir a cada cidadão a oportunidade de crescer dentro do mundo de uma herança cultural, e garantir aos seus filhos crescerem nele sem sofrerem discriminação. Significa a oportunidade de confrontar esta e todas as outras culturas e perpetuá-la na sua forma mais convencional ou transformá-la; tal como a oportunidade de nos desviarmos dos seus comandos com indiferença ou romper com isso autocriticamente e depois viver acelerado por ter feito um corte consciente com a tradição, ou mesmo com a identidade dividida (HABERMAS, 1994, p.149).

Um amplo processo argumentativo democrático inclui, nesta medida, não apenas as concepções individuais sobre a vida digna, como também os valores sociais que configuram as identidades sociais. Dentro de uma sociedade pluralista, em meio à heterogeneidade e à diferença, o enfrentamento da violência e da opressão e a consequente resolução dos conflitos que ameaçam erodir a estrutura democrática devem-se ancorar em uma racionalidade prática, que submete a um processo de justificação as normas e as instituições. Considerada a teoria do discurso de Habermas como o modelo filosófico adequado para compreender as sociedades plurais, uma vez que incorpora as duas dimensões do pluralismo – a dimensão da proteção da autonomia privada e do exercício da autonomia pública – procede-se, agora, a uma exposição dos seus principais fundamentos teóricos, filosóficos, históricos e metodológicos, essenciais para a elucidação da proposta de compreensão dos direitos humanos e da democracia aqui apresentada.

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2. UMA TEORIA DISCURSIVA PARA A COMPREENSÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DA DEMOCRACIA

No domínio da ciência jurídica pós-metafísica, a legitimidade do direito resulta de um processo de autolegislação, no qual os integrantes da comunidade jurídica podem se entender em discursos racionais que estatuem normas. O emprego púbico da razão, portanto, evita o problema da fundamentação metafísica, característico das teorias do direito natural, pois justifica o sistema jurídico num processo de discussão autônoma em que os próprios cidadãos argumentam na base de seus ideais de justiça, suas concepções éticas e seus interesses, se afastando do paradoxo da heteronomia e vinculando indissociavelmente direito e democracia. Ao mesmo tempo, reinsere os argumentos morais no direito, afirmando que a legitimidade a partir da legalidade (um dogma do positivismo jurídico) só é possível quando as instituições estão autorizadas a agir obedecendo ao poder comunicativo, isto é, à “vontade política comum formada por intermédio de comunicação não coativa, ou seja, o poder legitimador do direito em sentido próprio, a ‘fonte de justiça’ do direito” (FORST, 2009, p. 185), que tem seu lugar numa esfera pública autônoma em relação ao Estado. Portanto, é possível situar a teoria do discurso no marco histórico-espacial das sociedades pós-convencionais,35 bem como no paradigma do pós-positivismo, motivada pela

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Chega-se ao nível pós-convencional através da apropriação de Habermas, na sua teoria da evolução social, do modelo da psicologia genética, pelo qual ele defende uma homologia estrutural entre a ontogênese da personalidade humana e o desenvolvimento da espécie, a partir dos estudos de psicologia cognoscitiva do desenvolvimento moral de Kohlberg, fundamentada em Piaget. As estruturas normativas possuem uma história interna, com base na qual os julgamentos morais são dependentes de atitudes cognitivas, sujeitos a um “aprendizado moral” segundo uma perspectiva evolucionista em três níveis. No primeiro nível, acentuado por uma perspectiva individualista concreta, o indivíduo encontra-se centrado em si mesmo, assumindo um ponto de vista egocêntrico. Neste primeiro estágio, a autoridade deriva de uma pessoa concreta, que utiliza-se da punição para obter obediência, caracterizado pela heteronomia e por uma moral instrumental individualista. No segundo nível, os indivíduos reconhecem o sistema social, ao se encontrarem normatizados por regras emanadas do grupo ao qual pertencem. Finalmente, no terceiro nível, a consciência moral desenvolve-se e se adequa a princípios morais universais, pelo fato de as decisões prático-morais serem vinculadas à noção de dever e referidas a princípios morais capazes de obter o reconhecimento de todos. No nível pós-convencional, as normas perdem sua autoridade tradicional e requerem justificação mediante o recurso a critérios universais. O alcance social deste nível seria uma potencialidade presente na história evolutiva do gênero humano, na lógica de uma sequência irreversível de estágios de desenvolvimento, que se dirigem para o aumento da autonomia de indivíduos e grupos; segundo a observação empírica, pode-se reconhecer que algumas instituições do Estado democrático de direito incorporam os princípios universais reconhecidos no último estágio de desenvolvimento. Neste sentido, à medida que os sujeitos morais são capazes de se distanciar criticamente em relação aos costumes e às práticas sociais arraigadas, reconhecem princípios universais tais como os direitos humanos (MAIA, p. 71-83).

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descrença pós-metafísica em princípios absolutos de orientação da razão prática, 36 de um lado, e pela necessidade da reativação das discussões sobre justiça na teoria jurídica, do outro, na tentativa de superação da dicotomia jusnaturalismo versus positivismo jurídico. A razão monológica do Iluminismo é substituída pela dialógica, à qual corresponde um modelo dialógico de fundamentação do direito e da moral: A única forma de fundamentação possível em nosso atual momento – a única forma de dar razão da existência e das pretensões de obrigatoriedade e de universalidade dos juízos morais – consiste em mostrar as estruturas comunicativas que possibilitam a formação do consenso (CORTINA, 2009, p. 130).

A teoria do discurso, além de possuir características universalistas, cognitivistas e deontológicas, apresenta-se como formalista, já que designa um procedimento através do qual um conflito de ação moralmente relevante pode ser julgado imparcialmente, sendo que os conflitos morais serão julgados pelos próprios interessados a partir de embates surgidos da própria vida social.37 Sua consequência necessária é a institucionalização de um sistema de direitos a partir do exercício comunicativo concomitante da autonomia pública e da autonomia privada dos cidadãos. Seguindo as reflexões de Jürgen Habermas e de seus críticos, a gênese lógica do sistema dos direitos é explicada com base nos argumentos seguintes.

2.1. O giro linguístico na teoria social: pressupostos filosóficos e metodológicos da teoria do discurso

A teoria social crítica de Habermas é uma ciência social metodologicamente reconstrutiva38 situada no movimento de reabilitação da filosofia prática que, a partir da década de 1970, reassumiu o compromisso com os problemas pertencentes ao âmbito da razão prática, a saber, da ética, da política e do direito. A reabilitação da filosofia prática, protagonizada por Habermas ao lado de John Rawls, acarretou o chamado “retorno ao 36

Ver SILVA, Alexandre Garrido, 2000, p. 27: “A legitimação dos direitos humanos não pressupõe um ‘dado’ – como por exemplo a ‘natureza’ do homem ou um mundo moral objetivo – mas uma perspectiva construtivista, isto é, uma validade que é construída no discurso por meio de argumentos”. 37 Cf. MAIA, 2008, p. 58. 38 O reconstrutivismo nas ciências significa que uma teoria é rearticulada a fim de melhor atingir a meta que ela mesma se fixou. Essas ciências afastam-se do viés tradicional, na medida em que produzem conhecimento não necessário, mas hipotético; não apriorístico, mas empírico; não absoluto, mas falível. Um exemplo eloquente de reconstrução sistemática no âmbito das ciências sociais é a Teoria do Agir Comunicativo. “Dialogando com os fundadores da sociologia, Weber e Durkheim, estribado na psicologia genética de Piaget, realizando uma crítica imanente de Adorno e Horkheimer, apropriando-se do conceito de sistema de Luhmann e utilizando-se da perspectiva funcionalista de Parsons, Habermas constrói o seu edifício teórico” (MAIA, 2008, p.67).

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direito”, valor de referência teórica da década de 1980. Sua indagação central consiste na questão “como é possível aferir a legitimidade das estruturas morais, jurídicas e políticas contemporâneas?”, para além da resposta até então hegemônica do positivismo, equiparando legitimidade à legalidade formal. Suas investigações passaram a girar em torne de três questões centrais: “1) o problema da fundamentação normativa da Teoria crítica da sociedade; 2) discussões concernentes à questão da legitimidade dos regimes políticos do capitalismo avançado; 3) reflexões sobre as possibilidades de funcionamento de uma democracia radical” (MAIA, 2008, p. 46 ). Na sua primeira tradição, a teoria crítica da sociedade foi largamente influenciada pelo fenômeno do desencantamento do direito por obra das ciências sociais. As análises filosóficas sobre o direito, que alojavam o sistema jurídico na condição de instrumento da integração social de uma sociedade bem ordenada pelo código do direito, perderam prestígio para as análises sociológicas que se dirigiam contra o prescritivismo do direito racional. Na tradição de Marx, “a sociedade burguesa transforma-se num sistema que domina anonimamente, sem levar em conta as intenções dos indivíduos, (...) submetendo a sociedade global aos imperativos econômicos” (HABERMAS, 2003a, p. 68). O modelo de uma socialização anônima não intencional substitui o idealismo de uma sociedade configurada segundo a vontade autônoma dos parceiros do direito. Numa sociedade domesticada pelos imperativos sistêmicos, a razão humana passa a ter caráter instrumental tecnocrático dirigido à autopreservação, definida por Horkheimer, Adorno e Marcuse como “a capacidade intelectual para a análise instrumental de objetos naturais” (FRANKENBERG, 2009, p.3). Este reducionismo funcional, no entanto, exclui a dimensão normativa da ação, em que as convicções morais e as orientações normativas são independentes da razão orientada a fins. A integração social não é gerada exclusivamente pela submissão a imperativos funcionais do capitalismo, não se podendo desprezar a comunicação política entre sujeitos e grupos sociais. Daí Habermas conduzir a teoria crítica para uma filosofia da linguagem, colocando a par do sistema o que chamou de mundo da vida, âmbito social onde se operam as comunicações levadas ao entendimento mútuo de sujeitos autônomos portadores de razão comunicativa, e não submetidos cegamente à dominação anônima da razão instrumental. A construção teórica de Habermas implica no conceito de dois níveis da sociedade: o ‘mundo da vida’, constituído por processos de compreensão de alcance comunicativo, e o ‘sistema’, como esferas de ação generalizadas, tais como o mercado e a burocracia estatal, funcionando segundo a lógica funcional da racionalidade objetiva (FRANKENBERG, 2009, p. 6).

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Quando a política tem de ser amplamente buscada de acordo com a razão instrumental, os projetos e interações humanas tornam-se estratégicos, e a ação coordena-se de modo egocêntrico exclusivamente para a consecução de fins individuais. Habermas propôs uma nova compreensão sobre o fenômeno da ação, sugerindo a ação comunicativa como domínio do mundo da vida que possibilita a busca de acordos sobre normas de interação social, a fim de alcançar um entendimento mútuo sobre fins e valores sociais. Para tanto, utilizou-se de um argumento transcendental-pragmático para mostrar que os princípios mais importantes da ação comunicativa estão pressupostos na comunicação linguística. A ideia central de Habermas no tocante à sua teoria da argumentação consiste na noção de “sistema de pretensões de validade”. Como ele afirma, “argumentos são meios através dos quais o reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade hipoteticamente erguidos por algum proponente pode ser alcançado (brought about) e assim opiniões são transformadas em conhecimento (MAIA, 2008, p. 93).

Na linguagem, em que as ideias estão incorporadas, é possível identificar a tensão entre facticidade e validade: a afirmação factual de signos e expressões linguísticas liga-se internamente com a pretensão de validade em termos de verdade destes. Todo aquele que leva a sério uma fala, enuncia assertivas com a pretensão de que elas sejam avaliadas em termos de “sim” ou “não” pelos seus destinatários, pois o que é válido precisar resistir às objeções factualmente levantadas pelos argumentos. “O conceito da validade ideal deve ser entendido como afirmabilidade racional sob condições ideais, portanto somente através da referência ao resgate discursivo de pretensões de validade” (HABERMAS, 2003a, p. 56). Essa tensão emigra para o mundo dos fatos sociais através do uso da linguagem orientada pelo entendimento, com que os atores coordenam suas ações (agir comunicativo) e estabelecem interações entre si, no que resulta um processo de entendimento em que as convicções compartilhadas intersubjetivamente formam o medium da integração social. O direito, que recebe o encargo da integração social mediante a função de estabilização de expectativas de comportamento coordenadas comunicativamente, reflete a tensão entre facticidade (dimensão descritiva da coerção imposta por sanções externas) e validade

(dimensão

normativa

da

força

vinculante

das

condições

racionais

de

fundamentação), inerente à linguagem, na tensão entre a positividade e a pretensão à aceitabilidade racional. Em outras palavras: ao mesmo tempo em que o direito se afirma faticamente e pretende validade social mediante coação, também reivindica a validade ideal das normas em termos de aceitabilidade racional dos sujeitos do direito, isto é, a capacidade de o direito ser justificado racionalmente em discursos práticos, mediante argumentos.

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Assim, o direito é uma espécie de meio geral que abrange todas as bases do sistema e da sociedade, transformando a comunicação do mundo da vida e formação de vontade social em uma linguagem capaz de ser compreendida em sistemas diferenciados (FORST, 2009, p. 181).

Em um mesmo modelo teórico, passa-se a compreender a normatividade expressa na dimensão da validade e a positividade expressa no campo da efetividade do direito. O consenso coloca-se então como fundamento das normas numa sociedade ordenada segundo o agir comunicativo. Mas não se trata simplesmente de um consenso fático, que leva em consideração apenas o interesse de seus participantes e exclui os possíveis interessados das decisões tomadas, sem nenhum compromisso com a sua racionalidade, e sim de um consenso ideal resultante de um procedimento que crie condições para a participação simétrica de todos os interessados. “O que legitima uma norma não seria a vontade dos sujeitos individuais, mas o reconhecimento intersubjetivo de sua validade, obtido por meio do único meio racional possível: o discurso” (CORTINA, 2009, p. 132). E esse reconhecimento só é possível na medida da observância do princípio do discurso: são válidas somente as normas de ação que possam ser aceitas por todos os possíveis implicados como participantes de discursos racionais, em uma situação ideal de fala.39 Para melhor compreensão do princípio do discurso, antes de tudo é preciso aclarar a relação entre direito e moral na teoria discursiva de Habermas, e de demonstrar como esse princípio pretende eliminar a oposição clássica entre autonomia pública e privada no nível da teoria jurídico-política.

2. 2. Direito e moral em Habermas: entre o princípio moral e o princípio da democracia

Diferentemente de Alexy, que vê na moral o substrato que fornece a pretensão de correção para o direito, e no direito a ordem reguladora de condutas com cuja decidibilidade e segurança a justiça moral é capaz de institucionalizar-se, Habermas enxerga moral racional e direito positivo numa relação de complementaridade. A tese de Alexy de que 39

A situação ideal de fala está contida na dimensão normativa, contrafática, do discurso. Impõe três exigências fundamentais: a não limitação à participação, a não violência, enquanto inexistência de coações e pressões externas, e a seriedade na busca cooperativa da verdade. Ela possui uma função regulativa, pois permite comparar os argumentos empíricos obtidos no discurso com as condições ideias da comunicação racional. Portanto, a situação ideal de fala não constitui um ideal de comunicação, mas simplesmente descreve as condições de legitimidade que os sujeitos capazes de linguagem e ação devem preencher nos discursos práticos racionais. Conferir a esse respeito (CITTADINO, 2009, p. 111).

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o discurso jurídico é um caso especial do discurso moral sugere uma falsa subordinação40 do direito à moral, como se aquele devesse unicamente positivar normas morais. Segundo Habermas (2003a, p.149-150), a moral tem relação apenas virtual com a ação, e sua atualização depende da disposição do ator para agir moralmente; a moral da razão exige apenas que ele forme seu próprio juízo, mas sem o vincular diretamente à ação. Para compensar as fraquezas de uma moral limitada em sua eficácia, a institucionalização de um sistema jurídico mostra-se um caminho que complementa a moral racional, já que proposições jurídicas contêm comandos imediatos para a ação. O sistema de direitos alivia a sobrecarga moral dos sujeitos, pois a normatividade do direito dispensa uma capacidade analítica que está além do indivíduo, qual seja, a de decidir por si só segundo um código binário de justo e injusto. Portanto, diferentemente de Kant, que propõe a visão de que o direito se fundamentaria na moral, Habermas toma uma postura de neutralidade do princípio do discurso, e, portanto, confere ao direito e à moral caráter de autonomia recíproca e cooriginariedade, um não servindo de fundamento ao outro, evitando, assim, problemas em que Kant incorreu na sua prodigiosa tentativa de fundamentar o direito diretamente no princípio moral do imperativo categórico.41 Embora Habermas se filie à tradição ética kantiana, afastando-se de uma concepção moral utilitarista, segundo a qual a moral busca o bem e o maior nível de felicidade possível, para derivar a moral da razão e vinculá-la com a ideia de justiça universal, seu método é diferenciado. Habermas procede à substituição da razão prática por uma razão comunicativa. Consequentemente, a relação entre direito e moral ganha novo status. O imperativo categórico é o princípio fundamental da ética de Kant, significando um teste de máximas: quando uma máxima, que é o princípio subjetivo da ação, puder ser universalizada, de modo que todos possam agir de acordo com ela, teremos uma lei moral que passou pelo teste do imperativo categórico. No entanto, a moral não admite coação para a prática de determinada conduta justa, o direito então servindo como sistema de ação que obriga determinada relação externa e prática de uma pessoa para com outra, na medida que suas ações influenciem umas às outras. O princípio do direito é transcrito no seguinte molde: “qualquer ação é justa se puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (GOMES, 2009, p. 203). O direito, 40 41

Cf. HABERMAS (2003, p. 291). Cf. GOMES, Alexandre Travessoni, 2009, p. 218, e, no que se segue, GOMES, 2009, p. 195-218.

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assim, se fundamenta na moral na medida em que deve passar pelo “teste do imperativo categórico”, e sua função principal seja a conformação formal e coativa de determinada conduta ao conteúdo de um imperativo moral que permita a coexistência de liberdades subjetivas. Uma ação em conformidade com o dever, mas não motivada pelo próprio dever (isto é, uma ação meramente legal), tem que ser provada moralmente digna em algum sentido, ou então o direito não pode ser justificado na teoria moral de Kant. (...) A validade do princípio do direito depende pois da validade do imperativo categórico: se o último não fosse válido, então a coerção, e consequentemente o direito, não seriam necessários” (GOMES, 2009, p. 203, p. 205).

No pensamento de Habermas, que assume as características de uma moral pósconvencional e pós-metafísica, o direito racional passa a ser regulado conforme uma racionalidade procedimental. O discurso passa a ser neutro, e, a depender do seu nível de referência, poderá originar normas jurídicas ou normas morais. A moral não pode mais ser o fundamento do direito, que passa a se fundar no discurso e, portanto, tem fonte de legitimação autônoma. O próprio Habermas (2003a, p. 142) assume que o princípio do discurso encerra um conteúdo normativo, uma vez que explicita o sentido da imparcialidade dos juízos práticos. Todavia, as ideias de imparcialidade e ausência de coação nos discursos são estruturas pressupostas ao próprio uso comunicativo da linguagem, não sendo possível chegar-se a uma norma de ação válida para todos os partícipes do discurso sem a observância dessas condições ideais. Assim como Kant, Habermas entende que a moral não pode cumprir o papel de integração social, e que é necessário que o direito, além de ser um conjunto de normas institucionalizadas, dotadas de maior racionalidade comunicativa, seja dotado de coerção, para que possa minimizar a possibilidade de dissenso. O princípio da democracia determina pois o processo de institucionalização normativa, em que há a participação de todos com iguais direitos na formação da opinião e da vontade: só podem ser considerados legitimamente válidas as leis jurídicas que possam encontrar o assentimento de todos os membros de direito num processo discursivo de instauração do direito (GOMES, p. 210).

Os discursos práticos sobre normas de ação ensejam pelo menos três questões de distintas naturezas: questões pragmáticas, questões ético-políticas e questão morais, cada uma das quais ensejando uma configuração específica de discurso, tendo em vista suas regras procedimentais, sua matéria e seu alcance. Questões ético-políticas são debatidas à luz da identidade comum compartilhada intersubjetivamente por uma comunidade; plantam discursos nos quais

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membros “procuram obter clareza sobre a forma de vida que estão compartilhando e sobre os ideais que orientam seus projetos comuns de vida” (HABERMAS, 2003a, p.201). As deliberações obtidas nestes discursos têm alcance circunscrito à comunidade de valores na qual eles foram empenhados, se referem às convicções coletivas dos grupos através de uma hermenêutica que se apropria criticamente das próprias tradições, com vista à escolha adequada de meios para atingir fins coletivos relevantes, com apoio nos valores e tradições consagrados. Questões morais, por outro lado, rechaçam o agir pragmático do ator motivado por preferências pessoais, ou por convicções internalizadas em grupos axiológicos específicos; têm a ver com justiça. Para estatuir uma prática justa, é necessário o “ponto de vista normativo, sob o qual nós examinamos a possibilidade de regular nossa convivência no interesse simétrico de todos” (HABERMAS, 2003a, p.203); o juízo moral repercute em e para todo homem, pois é de sua nota essencial referir-se à regulação da convivência de todos os homens na base de interesses generalizáveis, através de normas que podem ser exigidas a qualquer um em situações semelhantes, destinadas a garantir interesses com os quais qualquer um assentiria. Mandamentos morais são imperativos categóricos ou incondicionais, que podem transcender as barreiras culturais e geográficas das comunidades existentes: “em discursos morais, a perspectiva etnocentrista de uma determinada comunidade se alarga, assumindo a perspectiva abrangente de uma comunidade comunicativa não-circunscrita” (HABERMASa,2003, p.203).

2. 3. O princípio do discurso e a (re)construção do sistema dos direitos

O modo de articulação entre autonomia pública e privada conduz a um princípio do discurso. Enquanto, em um processo de autodeterminação racional, os sujeitos produzem o direito legítimo sendo-lhes garantidas liberdades subjetivas de ação (autonomia pública), conferem forma jurídica à autonomia privada, sem a qual estariam impossibilitados de exercer sua própria autonomia normativa. Normas de ação gerais se ramificam em normas morais e normas jurídicas. Tanto moral autônoma quanto direito positivo precisam ser objeto de fundamentação, a qual, num modelo baseado no discurso, é adquirida mediante a aceitabilidade racional de assertivas com pretensão de validade por partícipes de discursos, motivados pelas estruturas que tornam possível o uso da linguagem através do agir comunicativo. Em um nível de abstração – por ser, de início, indiferente à moral ou ao direito,

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encontra-se o princípio do discurso, que se refere a normas de ação em geral: “D: São válidas normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais” (HABERMAS, 2003a, p. 142). O princípio do discurso explica apenas como questões práticas podem ser julgadas imparcialmente e decididas racionalmente, observando um procedimento fundado na igualdade de competência comunicativa e na razoabilidade dos argumentos. O princípio do discurso pode converter-se em princípio moral ou em princípio da democracia, a depender do seu nível de referência: a questões morais ou a questões éticopolíticas. O princípio moral funciona como regra de argumentação para a decisão de questões morais, que extrapolam os limites históricos casuais, diferenciados socialmente, e ampliam os destinatários de suas prescrições num sentido universalista que requer a assunção ideal de papeis no interesse simétrico de todos; nesta perspectiva, há a regulação de uma comunidade concreta de sujeitos. Por sua vez, o princípio da democracia afirma as possibilidades de institucionalização do direito legítimo, num processo racional de formação política da opinião e da vontade, segundo o qual são legítimas as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito num processo de normatização discursiva; nesta perspectiva, há a regulação de uma comunidade abstrata, criada fictamente por virtude de estatutos jurídicos. O modo como autonomia privada e pública se entrelaçam na formação discursiva

da

opinião

e

da

vontade

acarreta

um

sistema

jurídico

estruturado

comunicativamente, no qual o princípio da democracia toma a feição da interligação entre princípio do discurso e forma jurídica. Tal é, para Habermas (2003a, p.158 e ss.), a gênese lógica de direitos: começa com a aplicação do princípio do discurso, segundo liberdades subjetivas iguais de ação, termina com a institucionalização jurídica de condições para o exercício da autonomia política. Deste modo, retrospectivamente, num processo circular que se retroalimenta, as liberdades subjetivas de ação produzem o direito legítimo e este define a forma jurídica da autonomia privada. As condições procedimentais de institucionalização do direito legítimo culminam em um sistema de direitos que “deve conter precisamente os direitos que os cidadãos são obrigados a atribuir-se reciprocamente, caso queiram regular legitimamente a sua convivência com os meios do direito positivo” (HABERMAS, 2003a, p.158). São categorias de direitos intrínsecas a um sistema de direitos estruturado comunicativamente (HABERMAS, 2003a, p.159-164):

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(a) Direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. São legítimas somente as regulamentações que conciliam a liberdade de ação de cada um com a dos demais, na forma de direitos fundamentais que protegem a autonomia privada dos sujeitos de direito. (b) Direitos fundamentais que resultam da configuração política do status de membro numa associação voluntária do direito. São direitos de participação política ampla e irrestrita no processo democrático de normatização discursiva, que garantem o exercício da autonomia pública dos parceiros do direito. (c) Direitos fundamentais decorrentes da possibilidade de postulação judicial e proteção jurídica individual. Têm caráter de garantia juridicamente organizada, com vista à proteção dos direitos subjetivos através da atuação de tribunais independentes e imparciais e do amplo acesso à jurisdição. (d) Direito à participação, em igualdade de oportunidades, dos processos de formação da opinião e da vontade. O sistema de direitos só faz sentido na medida em que os sujeitos destinatários de seus mandamentos possam se reconhecer como autores deles próprios, segundo o princípio da autolegislação. São os próprios civis que decidem como deve ser o direito juridicamente firmado pelo princípio do discurso, bem como sobre sua legitimidade e correção. (e) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente. Os pares do direito, enquanto sujeitos politicamente autônomos detentores do poder comunicativo, devem estar apetrechados dos meios materiais, culturais e econômicos que lhes garantam o exercício da competência comunicativa em situação de igualdade moral e política. O uso público das formas de comunicação asseguradas juridicamente faz supor que os resultados obtidos em deliberações submetidas à forma e ao procedimento correto são legítimos. Os direitos acima elencados servem como parâmetro norteador e limitador do legislador político soberano, o qual só pode legislar na medida em que garanta os elementos imanentes e necessários ao procedimento de criação do direito legítimo. O processo de legislação constitui, logo, o lugar próprio da integração social, com a condição de que possam participar dele cidadãos tidos como sujeitos de direito, portadores de amplas oportunidades de comunicação e participação política, cuja ação, antes de ser orientada pelo sucesso, deve orientar-se para o entendimento mútuo. O direito, desta forma, induz à “expectativa de que o processo democrático da legislação fundamente a suposição da aceitabilidade racional das normas estatuídas” (HABERMAS, 2003a, p.54), na

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medida em que os destinatários de suas normas consigam identificar-se num duplo papel de destinatários e seus autores racionais. Embora legitimidade e legalidade guardem entre si íntima conexão, Habermas (2003a, p.168) alerta contra interpretações equivocadas que possam entender a teoria do discurso como modalidade ética de um juspositivismo: “o surgimento da legitimidade a partir da legalidade não é paradoxal, a não ser para os que partem da premissa de que o sistema do direito tem que ser representado como um processo circular que se fecha recursivamente, legitimando-se a si mesmo”.

2.4. Autonomia pública versus autonomia privada? A reconciliação entre direitos humanos e democracia no paradigma procedimental de Habermas

A adoção de um paradigma procedimental42 de legitimação do direito foi essencial para desmistificar a pretensa oposição entre autonomia pública e autonomia privada no bojo da teoria política tradicional, que remonta a Kant e Rousseau. Concebido um paradigma jurídico como um “feixe de suposições elementares sobre o caráter, os princípios fundamentais, os objetivos e as possibilidades do direito” (ALEXY, 2009, p. 128), nota-se que o paradigma procedimental habermasiano,43 ao contrário dos paradigmas liberal e social, evita o comprometimento com quaisquer princípios substantivos que possam impedir a priori o exercício da autonomia política, bem como que os direitos fundamentais sejam dissolvidos pela tirania de um legislador soberano ilimitado. O procedimento legitimatório restringe-se a estatuir as regras que possibilitam a imparcialidade e a racionalidade do direito, na medida em que este possa ser aceito pelos cidadãos que cumprem o duplo papel de autores e destinatários, observada a estrutura básica da argumentação. Contudo, o paradigma procedimental não exonera os pensamentos fundamentais do paradigma liberal e do Estado social. Ele os coloca, antes, dentro de um novo contexto: o do procedimento democrático interpretado pela teoria do discurso. Isto se vê claramente no sistema dos direitos de Habermas (...) (ALEXY, 2009, p. 129).

Tanto o paradigma liberal quanto o do Estado social padeceriam do mesmo erro: uma concentração excessiva sobre a autonomia privada; o primeiro, através do princípio 42

“Este projeto ético não objetiva oferecer critérios conteudísticos objetivos, e, sim, procedimentos para a resolução de conflitos morais, na busca de soluções imparciais – núcleo da razão prática moderna. Todavia, pode, de fato, estabelecer critérios que permitam uma ‘(...) diferenciação entre interesses particulares e interesses universalizáveis’” (MAIA, 2008, p.63). 43 Na própria definição de Habermas (2003b, p.181), “paradigmas abrem perspectivas de interpretação nas quais é possível referir os princípios do Estado de direito ao contexto da sociedade como um todo”.

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da liberdade jurídica negativa que, além de não garantir a mesma proporção de autonomia prometida a todos, devido à condução à desigualdade fática, constitui uma limitação substancial à própria soberania de uma comunidade política que se autodetermina autonomamente; o segundo, através do princípio da justiça distributiva que, apesar de intencionalmente minimizar desigualdades fáticas produzidas pela liberdade econômica, culmina num paternalismo que prejudica a própria autonomia com suas intervenções antecipadas e impositivas. Em ambos os casos, a ideia da autoconstituição de uma comunidade política de parceiros do direito livres e iguais resta prejudicada. Percebe-se que a tensão entre facticidade e validade internalizada no direito migra para a realidade política na forma da tensão entre autonomia privada e autonomia política. Esta concorrência se baseia numa incompreensão da origem comum de autonomia pública e privada. Os direitos que protegem a liberdade subjetiva de ação dos indivíduos e os direitos à participação política, em igualdade de direitos, no processo e formação democrática da opinião e da vontade, devem ser explicados a partir de uma raiz comum, culminando numa relação de interdependência. A fundamentação de direitos humanos que limitam a soberania em um outro nível acima do processo político é antidemocrática e pressupõe que restrições com conteúdo moral serão impostas paternalisticamente ao legislador soberano. O projeto de conciliação da teoria do discurso, portanto, tem o intuito de evitar uma derivação do direito e da democracia diretamente de princípios morais pré-políticos. A autodeterminação política só será conquistada em um modelo em que os cidadãos cumpram um duplo papel de autores e destinatários do direito, no mais profundo sentido da autonomia pública. Esclarecer como o povo soberano pode deliberar sem, ao mesmo tempo, vilipendiar direitos humanos básicos é o grande avanço na teoria democrática pretendido por Habermas, a partir da configuração do princípio do discurso. De um lado, os direitos humanos funcionam como proteção do indivíduo perante um poder político potencialmente tirânico, pois quando existem, em uma comunidade jurídica, por motivos econômicos ou culturais, maiorias e minorias estruturais, toda decisão majoritária tomada em fóruns políticos aprofundaria essa separação. Daí ser necessário um conjunto de direitos humanos individuais dessas minorias estabelecidos antes e por fora do processo democrático. O poder absoluto do legislador soberano deve ser vinculado a uma permissão dos direitos humanos que devem proteger primariamente o indivíduo contra o poder político. Mas se, inversamente, isto significar que os direitos humanos gozam de primazia normativa perante o processo legislativo político, este não mais seria soberano (GÜNTHER, 2009, p. 220)

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Nem Kant nem Rousseau conseguiram explicar satisfatoriamente a tensão existente entre direitos humanos subjetivos do indivíduo e o princípio da soberania do povo, do legislador político soberano – princípios em cuja luz ainda é possível justificar o direito moderno. Dependendo da primazia que se dá a um ou outro princípio na configuração de uma sociedade de direito, estaremos diante de uma aproximação com o liberalismo ou com o republicanismo. Kant sugere um modelo de ler a autonomia política mais próximo do liberalismo. O princípio do direito é uma lei geral de liberdade que se legitima numa etapa anterior ao próprio estabelecimento do contrato social e, portanto, da autonomia política: os “direitos naturais” que precedem a vontade do legislador soberano são fundamentados moralmente. Ele partiu da ideia de que ninguém, no exercício de sua autonomia política, poderia aderir a leis que ao mesmo tempo privam seus direitos naturais que protegem a autonomia privada. O argumento liberalista mostra-se problemático no seguinte aspecto: os direitos humanos são, em sua origem, estritamente horizontais, portanto só podem ser atribuídos e concedidos mutuamente por todos os homens, cabendo aos próprios titulares dos direitos decidir sobre seu conteúdo. “É no sentido dos direitos humanos que também reside a auto-habilitação dos homens à sua autodeterminação, ou seja, sobretudo à interpretação e ao esgotamento dos direitos humanos” (GÜNTHER, 2009, p. 224). Rousseau, por seu turno, aproximou-se de uma posição republicana e interpretou a ideia da autolegislação numa linha mais ética do que moral, compreendendo a autonomia como a realização consciente da forma de vida de um povo concreto, dissolvendo o conteúdo normativo dos direitos humanos no modo de realização da soberania popular. E essa visão pressupõe necessariamente um “ethos homogêneo de uma comunidade particular que, com suas decisões majoritárias, discrimina ou exclui minorias” (GÜNTHER, 2009, p. 225), não alcançando o telos da democracia. O conteúdo normativo dos direitos humanos não pode surgir, como pensa Rousseau, na forma de leis gerais e abstratas, que permitem simplesmente regulamentações que garantem a todos as mesmas liberdades subjetivas. “O visado nexo interno entre soberania do povo e direitos humanos reside no conteúdo normativo de um modo de exercício da autonomia política, que é assegurado através da formação discursiva da opinião e da vontade” (HABERMAS, 2003a, p. 137). É através da vinculação aos direitos humanos que se possibilita a institucionalização jurídica da democracia, com inclusividade e abertura do processo democrático. Nesta linha, Wellmer (apud GÜNTHER, 2009, p. 226) assim definiu a relação dos direitos humanos com a democracia:

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Enquanto, por um lado, vinculam o discurso democrático, eles, por outro, têm sempre que ser produzidos primeiramente nele, ou seja, têm que ser reinterpretados e reimplementados; não pode haver nenhuma instância acima ou fora deste discurso que poderia decidir, ao fim, qual seria a interpretação e concretização corretas destes direitos fundamentais.

A co-originariedade entre autonomia privada e pública existe no nível da teoria do discurso, na medida em que os sujeitos do direito compreendem-se como autores e destinatários de um modelo de autolegislação, que pressupõe os direitos humanos como condições formais da institucionalização jurídica da vontade política discursivamente formada, na qual soberania do povo se converte em direito legítimo. Algumas objeções44 são levantadas no sentido de denunciar uma possível instrumentalização dos direitos subjetivos à liberdade para servirem unicamente como condição de um processo político legiferante, relativizado perante o direito democrático de participação e aos deveres comunicativos (ilocucionários) a ele vinculados. Klaus Günther (2009, p. 231 e ss.) responde à questão do risco de a liberdade comunicativa erodir as liberdades negativas num sistema estruturado pela teoria do discurso, utilizando-se de três argumentos: a) a liberdade negativa só é possível como o direito igual de cada indivíduo, não sendo imaginado como direito singular nem ilimitado de cada um. O caráter igualitáriodistributivo do direito à maior medida possível de iguais liberdades de ação subjetivas tem de resultar da autonomia política dos próprios atingidos, sendo concedido a todo indivíduo o direito de participar discursivamente dessa distribuição dos direitos; b) a liberdade negativa é uma condição indispensável para que a democracia opere deliberadamente e cumpra as exigências da criação de discursos racionais. A liberdade de informação, de vontade e de opinião autônoma é um pressuposto da racionalidade e, portanto, da prática de decisão racional; e c) os direitos de liberdade negativos não estão ameaçados por obrigações ilocucionárias de participação discursiva, pois incluem até mesmo o direito de se retirar ou não se envolver em discursos. O direito à desistência das obrigações da racionalidade comunicativa também é uma condição constitutiva destas obrigações, em atenção ao princípio da não coerção física. Entretanto, a recusa de alguém à participação democrática na legislação acarreta àquele o ônus de ser juridicamente obrigado a não violar o igual direito de liberdade de todos os outros, pois se ele não participa como sujeito ativo na construção do direito legítimo, este se apresente a ele unicamente na condição de ordenamento coercitivo.

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Esta objeção é levantada, entre outros, por John RAWLS (apud GÜNTHER, 2009, p. 231).

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Ademais, Rainer Forst (2009) indica uma solução para as controvérsias dirigidas ao fato de que Habermas, do ponto de vista liberal, não teria conferido uma fundamentação autônoma dos direitos humanos, colocando-os sempre à disposição do exercício do poder, apesar de não duvidar de sua natureza moral. A evitação desse problema está, segundo Forst, implícita na própria ideia de autolegislação no nível das normas morais, pois devido aos discursos morais evita-se a imposição paternalística de direitos humanos, demonstrando que eles próprios são originados num discurso em que os homens exercem sua autonomia política.

Com base em um princípio da justificação, de fundamentação teórico-discursiva e de autoentendimento normativo, segundo o qual normas reivindicadoras de validade universal e recíproca têm que ser justificadas de modo discursivamente universal e recíproco, resulta a possibilidade de uma construção moral “autônoma” de direitos humanos (como pretensões mutuamente não rejeitáveis); estes constituem o conteúdo central de uma construção, construção esta de característica discursiva, política e a ser institucionalizada juridicamente, de direitos fundamentais e respectivas normas de uma estrutura política básica. Estes direitos fundamentais são, assim, implicações necessárias de uma soberania política exercida legitimamente e nos moldes do Estado de direito, o que Habermas salienta, da mesma forma que são, conforme sua essência e seu próprio vigor, direitos morais que são configurados dentro de instituições políticas pelos próprios interessados, conferindo-lhes aí validade. A realidade jurídico-política não se defronta com normas morais “externas”, e sim tão somente com aquelas que uma estrutura política básica teria que poder apresentar ela mesma a fim de reivindicar legitimidade (FORST, 2009, p. 190).

2.5. Alexy e a teoria do discurso desenvolvida no âmbito do direito

Conforme já exposto acima, a teoria da justiça de Robert Alexy admite que o direito, enquanto forma de institucionalização da justiça, deve assumir uma pretensão de correção. O discurso apresenta-se como a via procedimental para a correção das regras e dos princípios do direito, e exige, para a sua concreção, os valores liberais da autonomia e da igualdade dos partícipes. As questões de correção e de justiça têm de ser racionalmente fundamentadas, e dita fundamentação tem seu lugar mediante o discurso. São traços essenciais de uma teoria discursiva da justiça a liberdade e a igualdade das pessoas, e a neutralidade e a objetividade dos argumentos. Isso conduz a dois graus: o caráter procedimental e o caráter ideal, que no caso da teoria jurídica da justiça são complementados e compensados com o caráter institucional e o caráter material (SEOANE, 2005, p.9).

A teoria do discurso viabiliza uma teoria procedimental da correção prática, que postula que a correção e, portanto, a validade de uma norma, é alcançada quando esta for

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resultado de um discurso prático racional presidido por regras da razão prática. Dentre essas regras, há aquelas integradas com um forte caráter dialógico ou discursivo, que garantem a liberdade e a igualdade necessárias ao discurso: (1) todos podem tomar parte no discurso; (2.a) todos podem questionar qualquer afirmação; (2.b) todos podem introduzir qualquer asserção no discurso; (2.c) todos podem exteriorizar seus critérios, desejos e necessidades; e (3) nenhum falante pode ser impedido de exercer a salvaguarda de seus direitos fixados em (1) e (2), quando dentro ou fora do discurso predomina a força (ALEXY, 2005a, p.61).

Podem ser enumerados três princípios fundamentais para a legitimação do direito (e, por conseguinte, dos direitos humanos) sobre a base do discurso; são eles os princípios liberais a) da autonomia, b) do consenso e c) da democracia. Do ponto de vista de sua fundamentação, o princípio da autonomia insere-se no pensamento moral kantiano, e pressupõe a capacidade do sujeito em ser o centro das auto-reivindicações de validade, e, do ponto de vista prático, requer que o direito de liberdade seja integralmente conferido aos participantes do discurso, de modo que eles possam expor suas razões, interesses e motivos, sob a forma de argumentos autênticos, em um momento discursivo que exclui definitivamente o uso da violência ou de qualquer meio de coação. Cada um tem o direito de julgar livremente o que é bom para si ou para seu grupo, e atuar neste sentido. O princípio do consenso “afirma que a igualdade e a universalidade dos direitos humanos constituem um resultado necessário do discurso, isto é, todos têm direito ao mesmo sistema básico de direitos humanos e fundamentais” (SILVA, 2000, p.47). Na tradição do pensamento habermasiano, Alexy reafirma a necessidade de que a validação de uma assertiva normativa seja reconhecida “por um auditório universal e infinito de sujeitos”, através de argumentos que se reputem válidos universalmente, isto é, que possam convencer racionalmente a todos e ensejar um consenso universal sobre um determinado enunciado. O excessivo rigor deste princípio pode minar ou prejudicar a facticidade dos discursos; no entanto, a universalidade de um sistema mínimo de princípios jurídicos fundamentais é justamente o resultado esperado de uma teoria procedimental de legitimação dos direitos humanos:45 a universalidade é conseqüência necessária, e não contingente ou ocasional, do procedimento discursivo, tanto no nível dos argumentos quanto no nível das normas obtidas da composição de razões aduzidas. Pelo princípio da democracia, infere-se que a realização dos ideais normativos inscritos na teoria do discurso somente se dará, de maneira aproximada, em um espaço democrático onde

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Cf. HÖFFE, 2000, p. 179-180: “confunde-se universalidade com uniformidade, ou melhor: se equiparam princípios jurídicos universais com o nivelamento das diferenças sociais e culturais”.

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estejam garantidos os pressupostos liberais de salvaguarda da autonomia comunicativa e as regras da razão prática suficientes para a operacionalização do discurso. Alexy distingue entre duas classes de legitimação teorético-discursiva: a direta e a indireta. A primeira classe é requisito para que a própria legitimação na base do discurso seja possível, consiste em direitos constitutivos da infra-estrutura jurídica dos discursos práticos, cuja não observância seria discursivamente impossível. São os pressupostos que garantem a neutralidade do procedimento discursivo: a liberdade, a igualdade, a recusa à violência, a participação democrática. Por outro lado, os direitos indiretamente legitimados pela teoria do discurso são aqueles obtidos pelo processo político que preenche as condições exigidas para o discurso, de forma que podem ser subsumíveis aos princípios da legitimação direta. Evidentemente, esses direitos são politicamente contingentes e dependentes da realidade histórica compartilhada por uma determinada comunidade jurídica, pois surgem como resultado de uma deliberação histórica, atrelada a momentos dados e precisos. Ao mesmo tempo em que um conjunto de princípios jurídicos universais constituem o núcleo de direitos humanos universais, uma grande margem é deixada para que as sociedade políticas em particular, ancoradas por esses princípios, deliberem sobre o conteúdo de direitos humanos que melhor lhes aprouver tendo em vista sua tradição, seus costumes e seus padrões éticos preponderantes. Aqui está uma grande vantagem promovida pela teoria do discurso: ela identifica-se como uma estratégia minimalista de legitimação dos direitos humanos, ou seja, ela não fornece um conceito demasiadamente inflacionado de direitos humanos, reportando a esta categoria “apenas aqueles que protegem interesses ou carências fundamentais, cuja violação ou não satisfação implica a morte, o sofrimento grave ou atinge o núcleo essencial da autonomia de seu titular” (SILVA, 2000, p.49). Por ser minimalista, tal conceito é mais resistente às objeções particularistas apresentadas pelas diferentes culturas, tradições e regimes políticos existentes na sociedade internacional, e reservam um maior âmbito de legitimação aos grupos sociais, às comunidades culturais que propugnam pelo reconhecimento da diversidade e ao Estado. Isso porque “o incontornável (e positivo) pluralismo de valores das sociedades contemporâneas representa um óbice a qualquer esforço de definição de critérios racionalmente fundados, capazes de guiar as escolhas que concernem ao domínio do bem” (MAIA, 2008, p.60). O cumprimento das regras do discurso apresenta-se como vantajoso, pois dá lugar a uma estabilização do direito maior e menos custosa que aquela que seria obtida pelo exercício constante e excessivo da força. Relembrando a lição de Habermas: os sujeitos

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privados obedecem às normas não porque elas obrigam coativamente, mas motivados pela sua confiança na legitimidade discursiva que nelas encerra. No entanto, embora não necessariamente, os direitos humanos se beneficiam de sua conversão à forma jurídica, para que exerçam e desenvolvam todo o seu potencial normativo. A teoria do discurso não oferece um procedimento infalível, que aponte um único caminho dentre uma variedade de opções normativas; daí a importância da decidibilidade que define o direito diante da necessidade de pôr termo aos conflitos. “As exigências morais da teoria do discurso, bem como outros valiosos fins éticos, somente podem ser concretizados em sociedades complexas e pluralistas por intermédio da organização e coordenação do direito” (SILVA, 2000, p.45). Pelo menos se reconhece que, se um direito está incluído no ordenamento jurídico, não restam dúvidas quanto à sua aplicabilidade, à sua disposição imediata em ser garantido nas relações sociais concretas, principalmente porque a positividade garante a reciprocidade. Deste modo, a positividade,46 embora não incida diretamente sobre a legitimidade dos direitos humanos, confere-lhes facticidade, na medida em que o direito positivo dispõe dos meios necessários para a aplicação da regra de direito; pode ser compreendida, portanto, como condição geral de aplicabilidade.

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Cf. HÖFFE, 2000, p. 167-168, a importante distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais: “Ali onde os direitos humanos passam a fazer parte da constituição, desde o qual obrigam então aos poderes públicos, estes, que antes eram apenas parte integrante da moral jurídica universalista, se convertem agora em elementos do direito positivo, em direitos fundamentais de uma comunidade jurídica particular”.

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3. AS QUESTÕES MULTICULTURAIS NA DEMOCRACIA DELIBERATIVA

A necessidade de criar modelos normativos advém da crença de que se pode transcender a realidade, de que os modelos institucionais postos já não comportam todas as soluções para os problemas enfrentados pelo homem. A democracia deliberativa é um modelo normativo de política democrática nascida da crítica consciente dos limites dos modelos republicano e liberal, os quais de certa forma têm sido objeto de divergência na teoria política quanto à sua qualidade de “modelo democrático adequado”. A teoria jurídica de Habermas mostra como os conteúdos ideais do princípio do discurso podem ser institucionalizados através de um sistema jurídico num contexto político. Ao mesmo passo em que a teoria do discurso exige a institucionalização de um sistema de direitos, o direito positivo permanece dependente dela como sua fonte de legitimidade: o direito e a política não podem ser entendidos como sistemas autopoieticamente fechados,47 mas precisam abastecer-se do poder comunicativo do público de cidadãos gerado nos contextos comunicacionais informais da esfera pública, nas associações e na esfera privada. A democracia deliberativa é o arranjo institucional formulado sob a base da ideia de discurso: o procedimento discursivo almeja determinar o conteúdo de um direito fundamental não exaurido na Constituição, a fim de possibilitar a coexistência pacífica dos titulares do direito em situações de conflito. Esta interpretação pode ocorrer no patamar de discursos nos contextos da esfera pública informal,48 ou no patamar das instituições democráticas oficiais. A interpretação dos direitos pelos tribunais constitucionais é condizente com este princípio, na medida em que deve “garantir ou, pelo menos, poder prometer justiça na fundamentação valorativa e verdade no reconhecimento” (DENNINGER, 2009, p. 44) ao decidir sobre o conteúdo de um direito fundamental. A noção de política deliberativa se funda na teoria do agir comunicativo, aqui já exposta sucintamente: a comunicação é voltada à intercompreensão; os discursos de entendimento mútuo, nos quais os integrantes de determinada comunidade política tentam obter clareza sobre o tipo de sociedade em que querem viver, são elementos constitutivos do

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Para um detalhamento da crítica de Habermas ao positivismo sociológico de Niklas Luhamann e sua compreensão dos sistemas autopoiéticos, ver HABERMAS (2003b, p.57-91). 48 Segundo Habermas, os componentes informais da esfera púbica geral são formados a partir do fluxo comunicacional que se movimenta nas várias esferas públicas que se organizam no interior de associações. Essa esfera pública informal tem a vantagem de ser um meio de comunicação isento de limitações, de modo que pode articular, de modo mais livre, os discursos de auto entendimento sobre interpretação de identidades coletivas. “A formação democrática da opinião e da vontade depende de opiniões públicas informais que idealmente se formam em estruturas de uma esfera pública política não desvirtuada pelo poder” (HABERMAS, 2003b, p.33).

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processo político em geral. O consenso racional apresenta-se como o viés compensatório para os conflitos que ocorrem no interior de uma mesma comunidade; para a harmonização dos conflitos não bastam os discursos éticos49 (como propõe o republicanismo) ou meras negociações ou acordos entre partidos (como no liberalismo), tão sensíveis à genealogia dos conflitos que repousam sua motivação em discordâncias fundamentais sobre princípios morais, religiosos e ideológicos, cuja não exigência de racionalidade no intercâmbio social é incapaz de estabelecer um vínculo de solidariedade estável. “O direito firmado politicamente, caso se pretenda legítimo, precisa ao menos estar em consonância com princípios morais que reivindiquem validação geral, para além de uma comunidade jurídica concreta” (HABERMAS, 2003a, p. 227). Por este motivo, Habermas sugere uma teoria legitimatória procedimental, que se restringe a regras discursivas e formas argumentativas que se orientam ao estabelecimento de um acordo mútuo, fundada no caráter formal da razão comunicativa, que possibilita um modelo de democracia com base “nas condições de comunicação sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais, justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo deliberativo” (HABERMAS, 2002, p. 277). O direito se legitima a partir de princípios e mediante procedimentos. A legitimação do procedimento jurídico exige o reconhecimento de todos os membros da sociedade como moral e politicamente livres e iguais, porque, se assim for, podem se reconhecer como sujeitos autônomos que sejam, ao mesmo tempo, destinatários das normas de direito e sujeitos ativos de sua produção. Quando se defrontam, no Estado democrático, concepções religiosas, morais e cosmovisões diferentes, carecemos da homogeneidade dos costumes e, portanto, de um fator extrajurídico de integração. É necessário o apelo ao direito como medium da regulação social: “o recurso a um procedimento institucionalmente assegurado de criação do Direito se converte no caminho razoável e ‘correto’ para que ao menos resulte possível alcançar um equilíbrio satisfatório” (DENNINGER, 2005, p. 42). A legitimidade deste procedimento repousa na medida em que é garantida a racionalidade, expressa na máxima aceitação dos argumentos por parte de todos os participantes do discurso, e a justiça, no sentido do equilíbrio razoável de interesses. Somente quando os conflitos resultam juridicamente delimitados por um procedimento é que podem assumir seu papel positivo de integração social, conduzindo a uma 49

Para Habermas, os discursos éticos se referem ao bem do indivíduo ou da comunidade, enquanto que os discursos morais se referem a questões de justiça mais amplas: “Diversamente do que se dá com questões éticas, as questões de justiça não estão relacionadas desde a origem com uma coletividade em particular”. HABERMAS (2002, p. 277).

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concepção pluralista da Constituição, frequentemente atualizada e renovada por novos consensos gerais. Em espaços marcados por conflitos morais acentuados, segundo Denninger, a integração social só pode ser obtida mediante normas de direito positivo, pois nos desacordos morais não há uma base comumente aceita e reconhecida de costumes suficiente para fomentar a convivência democrática. Neste sentido, as regras do procedimento jurídico devem ser objeto de um consenso democrático fundamental, acordadas, obedecidas e legitimadas por todos, reconhecidos estes como membros livres e iguais na formação do direito. Com efeito, a influência gerada nos fluxos comunicacionais da esfera pública política só pode se infiltrar no Estado de direito através dos mecanismos do processo democrático e do sistema político em geral, e o direito positivo contribui, naturalmente, para a redução da complexidade social: “o modo discursivo de socialização tem que ser implantado através do medium do direito. E os momentos que não são levados em conta pelo modelo de socialização ‘pura’ já estão incorporados, enquanto tais, no direito” (HABERMAS, 2003b, p.55). A seguir, serão mais bem investigadas as estruturas informais da democracia deliberativa, quais sejam: a esfera pública e a sociedade civil. Adiante-se que o espaço público trata-se de uma arena de interação discursiva, na qual os cidadãos deliberam acerca de seus assuntos comuns, consistindo em um lugar para a produção e circulação de discursos que podem, até mesmo, ser críticos com relação ao Estado. Esse conceito de espaço público permite melhor ter em vista as distinções entre aparato estatal, mercado econômico e associações democráticas.

3.1. Democracia deliberativa: definição, estruturas e críticas

Em busca de uma definição da democracia deliberativa, Seyla Benhabib (2006, p.179) assevera: [...] a melhor forma de entender a democracia é como um modelo para organizar o exercício público e coletivo do poder nas instituições mais importantes da sociedade, baseando-se nos princípios de que as decisões que afetam o bem-estar de uma coletividade podem ver-se como o resultado de um procedimento de deliberação livre e razoável entre pessoas consideradas moral e politicamente iguais.

A premissa básica da ética do discurso, chamada de metanorma por Benhabib, remonta à epistemologia habermasiana da teoria do discurso: são válidos apenas normas e arranjos institucionais que possam ser reconhecidos e confirmados por todos os interessados,

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em situações de argumentação específicas, que atendam a determinadas regras formais (situação ideal de fala), chamadas “discursos”. Da metanorma, são deduzidos dois princípios: o princípio do respeito universal e o princípio da reciprocidade igualitária. Por respeito universal, entende-se que o direito de participar dos discursos estende-se universalmente a todos os seres capazes de fala e ação, como também lhe são conferidos os direitos e deveres resultantes das normas legitimadas discursivamente; a reciprocidade igualitária reafirma a igualdade e a autonomia daqueles que possuem competência comunicativa e lhes confere o “mesmo direito” a iniciar atos de fala e prosseguir argumentando nos discursos públicos (BENHABIB, 2006, p. 180-4). Entretanto, tais princípios admitem diversas reconstruções normativas, e se contextualizam na medida em que são concretamente praticados em contextos jurídicos, culturais e sociológicos distintos. O aspecto “deliberativo” de determinado sistema democrático influencia simultaneamente duas instâncias da vida pública:50 tanto as instituições estabelecidas, como os órgãos executivo, legislativo51 e judiciário, quanto as atividades não oficiais das associações e movimentos sociais da sociedade civil. Ou seja, ao mesmo tempo em que a política deliberativa pode52 (e não necessariamente deve) servir de programa de ação para as instituições democráticas, pode também presidir a prática de debate na esfera pública, onde ocorrem as lutas multiculturais dos grupos que pretendem ter reconhecida sua identidade e resguardado seu valor nas condições da vida social. Estas lutas ampliam o significado dos direitos de igualdade, e postulam uma mudança que pode conduzir a algum tipo de ação coletiva, inclusive institucionalizada. À medida que o mundo da vida racionalizada favorece a manutenção de uma esfera pública autônoma, com forte apoio numa sociedade civil, a autoridade do povo se fortalece na medida em que este toma decisões nas controvérsias públicas, pois nas esferas públicas políticas “as relações de força modificam-se tão logo a percepção de problemas sociais relevantes suscita uma consciência de crise na periferia” (HABERMAS, 2003b, p.116). Neste momento, é preciso esclarecer os conceitos elementares para a compreensão das estruturas informais da democracia deliberativa, quais sejam, o

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Isto permite que Benhabib defina a democracia deliberativa como um modelo de “dupla via”. “Os pressupostos comunicacionais que permitem regular deliberativamente as contendas estão institucionalizados eficazmente em corporações parlamentares, permitindo que o processo democrático filtre argumentos e deixe vir à tona os que são capazes de produzir legitimidade” (HABERMAS, 2003b, p.71). 52 Para Benhabib, a ética do discurso deve ser compreendida não como um programa para orientar as práticas institucionais, mas antes como um modelo ideal de avaliação da legitimidade e da justiça das práticas – institucionais e não institucionais – já existentes. É claro que a ética do discurso pode vir a orientar a formação da vontade política institucionalizada do Estado, “sim e quando existir a vontade democrática dos participantes para faze-lo” (BENHABIB, 2006, p.194-195). 51

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conceito de esfera pública e de sociedade civil, a fim de elucidar o procedimento de elaboração de problemas no espaço público. O espaço público da teoria habermasiana é descrito como uma caixa de ressonância onde encontram eco os problemas a serem elaborados pelo sistema político. Nesta medida, a esfera pública é uma espécie de sistema de alarmes sensíveis no âmbito de toda a sociedade, o qual, além de perceber e identificar os problemas, deve problematizá-los e tematizá-los de modo eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar. A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana. (...) A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana (HABERMAS, 2003b, p.92).

De outra parte, a sociedade civil é composta por movimentos, organizações e associações que captam os ecos dos problemas sociais ressonantes na esfera privada e os transmitem para a esfera pública política. Através da atividade dos partidos políticos e da atividade eleitoral dos cidadãos, o sistema político se conecta com a esfera pública e com a sociedade civil, com a ressalva de que as instituições devem permanecer permanentemente sensíveis à opinião pública.53 E o modo pelo qual as associações conservam sua autonomia e espontaneidade é através do apoio num pluralismo de formas de vida, credos religiosos e subculturas. Assim conceitua Habermas (2003b, p.99), a respeito da sociedade civil: “o seu núcleo institucional é formado por associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida”. A sociedade civil pode ter opiniões públicas próprias capazes de influenciar a administração, os tribunais e o complexo parlamentar, obrigando o sistema político a modificar o rumo do poder oficial, funcionando a esfera pública como uma estrutura intermediária entre o sistema político e os setores provados do mundo da vida.

53

As opiniões enfeixadas no espaço público tornam-se opinião pública quando gozam de um amplo assentimento, resultante de uma controvérsia na qual propostas, informações e argumentos podem ser elaborados de modo mais ou menos racional. Ver HABERMAS, 2003b, p.94.

67

A noção de uma associação democrática na qual a justificação dos termos e das condições de associação procede por meio de argumentos e raciocínio público entre os cidadãos suscita algumas questão no que concerne à sua viabilidade como modelo políticoinstitucional concreto, ou até mesmo como teoria capaz de aliviar tensões amplamente debatidas na doutrina democrática. Algumas dessas questões são o risco de “tirania da maioria” e a irracionalidade, aqui brevemente abordadas. Um dos motivos da teoria da democracia deliberativa é designar um standard democrático que justifique valores e políticas anti-opressivos. Os processos democráticos são legítimos na medida em que encorajam a deliberação sobre questões específicas em fóruns adequados, no interesse simétrico de todos os interessados. “Os direitos da minoria são, neste sentido, defendidos internamente à democracia deliberativa como uma de suas precondições” (CUNNINGHAM, 2009, p. 211). A democracia deliberativa é disposta a gerar direitos liberais, que protegem a autonomia privada do indivíduo de ingerências do poder político, e pressupõe que os participantes da deliberação compartilhem atitudes de “respeito universal” e “igualdade recíproca”, pois enquanto esses princípios são observados o medo da tirania da maioria será infundado. No que respeita à racionalidade das decisões, ceticamente se pergunta se discursos públicos são suficientes para alterar preferências fixas egoísticas e irracionais de agentes que não se dispõem à prática de entendimento mútuo, bem como se decisões discutidas segundo as estruturas do discurso ideal são racionais no sentido de as mais justas e condizentes com o bem comum. A posição liberal insiste54 que as pessoas entram em deliberações, conclamadas quando há desentendimentos sobre o que devem ser as políticas públicas e como chegar a elas por meio de leis, sem qualquer expectativa de que suas preferências irão mudar nesse processo. Em contrapartida, aqueles engajados em práticas deliberativas devem estar preparados para alterar suas preferências numa atitude de autocrítica quanto a seus respectivos valores e preferências. O oferecimento mútuo de razões tem o afã de persuadir participantes de um discurso a adotar outros pontos de vista, uma vez que “um sistema democrático em bom funcionamento se fundamenta não em preferências, mas em razões” (SUNSTEIN apud CUNNINGHAM, 2009, p. 195). A democracia deve ser mais que um modo institucional de agregação de preferências fixas, para tornar-se um âmbito de prática da racionalidade argumentativa, no qual os debates públicos tenham influência sobre a opinião e a vontade de atores dispostos à mudança de perspectiva. Caso uma decisão não

54

Cf. CUNNINGHAM (2009, p. 195).

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possa ser tomada segundo os exigentes critérios de deliberação de justificação potencial a todo e qualquer interessado, uma votação poderá ser necessária. No entanto, tudo indica que essa votação será mais que a agregação de preferências fixas formuladas anteriormente à deliberação, pois nesta as razões reciprocamente fornecidas tornaram-se transparentes, informadas e aptas ao convencimento. Nas palavras de Habermas (2003b, p.72): As condições para uma formação política racional da vontade não devem ser procuradas apenas no nível individual das motivações e decisões de atores isolados, mas também no nível social dos processos institucionalizados de formação de opinião e de deliberação. Estes podem ser considerados como arranjos que influenciam as preferências dos participantes, pois eles selecionam os temas, as contribuições, as informações e os argumentos, de tal modo que somente os que são “válidos” conseguem atravessar, em caso ideal, o filtro das negociações equitativas e dos discursos racionais, assumindo importância para as tomadas de resolução. Isso implica uma mudança de perspectivas: passa-se da teoria da escolha racional para a da teoria do discurso.

Quando inexistem as condições complexas para um discurso livre e não coativo, a solução de conflitos políticos pode ser oferecida mediante negociações cuja conclusão leve a um compromisso capaz de conciliar os interesses em conflitos. A diferença entre o consenso e o compromisso, apontada por Habermas,55 consiste na possibilidade de os participantes aceitarem um acordo por diferente razões e interesses, mas que o núcleo do compromisso ainda assim seja mantido. Não obstante, as negociações devem se amoldar às condições de uma configuração procedimental justa, afins com uma forma pura de discurso:

(1) os participantes em uma negociação têm que se colocar de acordo na vontade declarada, constante e incondicional em procurar a solução do conflito pelas vias do direito, o seja, da normatização – sob a exclusão da ameaça ou do emprego da força. (2) Os participantes têm que se reconhecer – e, a esse respeito, não há diferença alguma com as condições do discurso – como ‘iguais”, isto é, como participantes com os mesmo direitos, com as mesmas chances de acesso e comunicação também em sua essência como diferentes e estrangeiros. (3) E, por último, algo difícil: dentro de uma comunidade política já constituída, (...) uma negociação só pode ser conduzida respeitando-se plenamente os princípios constitucionais fundamentais (DENNINGER, 2009, p. 58).

Para Frank Cunnigham (2009, p.198), a maior virtude da democracia deliberativa é justamente que ao “encorajar as pessoas a procurar bens comuns, a deliberação estimula e cria preferências que juntam as pessoas de forma cooperativa e incita a igualdade e o respeito mútuo”, pois os cidadãos são incentivados a conviver com desacordos morais básicos de uma maneira construtiva.

55

Cf. HABERMAS, 2003, p. 200-210.

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E são os próprios cidadãos, num modelo procedimental, que deliberam a respeito do que consideram ser o bem comum, encorajados pela prática argumentativa. Assim evita-se que uma concepção determinada de bem comum, majoritária, seja imposta paternalisticamente aos cidadãos a quem, na perspectiva da autonomia política, compete decidir sobre o conteúdo dos direitos que querem se atribuir. No atual marco do pluralismo social e cultural, a coexistência de uma multiplicidade de doutrinas ideológicas, religiosas e filosóficas sob uma mesma ordem constitucional, instaura na sociedade política conflitos que sugerem o abandono do modelo de “Estado-nação” pelo de “Estado pós-nacional”, ou de “Estado multi-étnico”. A resolução destes conflitos pode ocorrer pelas vias democráticas do discurso – e é aí que a democracia deliberativa possui relevância, pelo seu projeto de fomentar um consenso normativo entre posições políticas divergentes, mas que compartilham do mesmo interesse em obter soluções razoáveis para os dilemas apresentados como riscos para a estabilidade social; do contrário, tais conflitos, que outrora cumpririam um papel social positivo, podem acabar resultando em práticas constantes de violência – física ou psíquica – ou outras formas de desenvolvimento não democrático do potencial conflitivo. No Estado democrático de direito, abrigado por uma sociedade pósconvencional, a Constituição surge como um sistema de definição de procedimentos para a solução de conflitos morais, éticos e de interesse. Tal ideia nos conduz ao próximo tema: a função do constitucionalismo em uma sociedade pluralista.

3.2. Constitucionalismo para uma democracia pluralista

Habermas desenvolve uma proposta de patriotismo constitucional afastada tanto do republicanismo cívico proposto por Dworkin, como do constitucionalismo patriótico configurado por Ackerman. Contrariamente ao republicanismo cívico de Dworkin, o patriotismo constitucional vai além de um molde de integração entre pessoas privadas dotadas de direitos individuais e desejosas de manter seus interesses fixos frente ao aparelho estatal. Ao contrário do patriotismo configurado por comunitaristas e republicanos, o patriotismo constitucional não conta coma orientação da cidadania tendo em vista uma concepção compartilhada de bem comum. Em síntese, o patriotismo constitucional evidencia tanto a conexão interna entre autonomia pública e autonomia privada quanto a impossibilidade de recorrer a uma visão compartilhada de bem. Tanto liberais quanto comunitários defendem a

70

existência de uma Constituição e a sistematização de direitos fundamentais constitucionais. No entanto, cada qual assume compromisso com uma concepção de Constituição: os liberais compreendem a Constituição como garantia, enquanto os comunitários a enxergam enquanto projeto. Habermas, com efeito, sublima as dimensões de garantia e de projeto da Constituição em um modelo teórico que privilegia igualmente a defesa da autonomia privada e o exercício da autonomia pública. 56 A relação interna entre autonomia pública e autonomia privada se traduz na conexão intrínseca entre direitos humanos e soberania popular. Ao basear a legitimidade do direito no processo político deliberativo, Habermas revela seu compromisso com a capacidade de autodeterminação e de autorrealização ética de cidadãos plenamente autônomos, ao passo que, ao instituir um procedimento como condição para a legitimidade da produção de normas, revela, de outro lado, compromisso com a inviolabilidade dos direitos e liberdades de autodeterminação moral dos indivíduos. Neste processo de formação democrática da opinião e da vontade, os destinatários individuais das normas jurídicas podem reconhecer a si próprios como os autores racionais dessas normas. E, a conexão interna entre autonomia pública e autonomia privada não pode ocorrer sem o estabelecimento de um sistema de direitos, constituído pelos direitos que os cidadãos devem reconhecer a si mesmos caso queiram regular legitimamente sua convivência através do direito positivo, de modo a não haver direito legítimo sem as cinco categorias de direitos57 definidas por Habermas. O sistema de direitos nada mais é que uma leitura contextual de princípios universais de justiça, uma conformação concreta dos abstratos direitos humanos gerados em discursos morais, que passam a estar inscritos nas Constituições históricas. Assim sendo, “em mundos pós-convencionais, onde os indivíduos não integram sólidas comunidades étnicas ou culturais, são as Constituições que, incorporando um sistema de direitos, podem conformar uma ‘nação de cidadãos’” (CITTADINO, 2009, p.177). Precisamente a partir deste raciocínio, Habermas formula a concepção de patriotismo constitucional58 enquanto modalidade pós-

56

Cf. CITTADINO (2009, p.181). As cinco categorias de direitos que constituem necessariamente o sistema de direitos estão descritas nas páginas 53-54, supra. 58 A respeito da utilização específica do vocábulo patriotismo, posiciona-se Antonio Cavalcanti Maia (2008, p.180): “Essa forma específica de patriotismo – Verfassungspatriotismus – defendida por Habermas é bem diferente de nossa ideia habitual desse conceito, chegando a ser quase contra-intuitiva. Isso ocorre porque ela engloba um esforço de construção de uma ideia que desempenharia o papel de uma força motivadora, funcionando como um vetor de fortalecimento da união de populações em sociedades pluralistas contemporâneas, não respaldada em qualquer forma tradicional de apego relativo à região, à nação, ao território, ao idioma ou à história comum. Recusa-se, assim, às construções que procuram estabelecer pertencimentos prépolíticos como base essencial garantidora da solidariedade entre estranhos”. Diversamente do nacionalismo, o patriotismo constitucional separa a ideia de uma nação de cidadãos da concepção pré-política de sujeitos que 57

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convencional de conformação da integração social e da identidade coletiva de uma comunidade de associados livres e iguais. O desenvolvimento do conceito de patriotismo constitucional possibilitou um modelo coerente de identificação política, ao mesmo tempo substituto do nacionalismo tradicional59 baseado em um pertencimento étnico comum, e com caráter universalista, ancorado nos princípios republicanos e nos direitos humanos. Esclarece Habermas (apud MAIA, 2008, p.185): Em um nível nacional, encontramos o que nos Estados Unidos é chamado de “religião cívica” – um “patriotismo constitucional” que une todos os cidadãos independentemente de seus antecedentes culturais ou heranças étnicas. Trata-se de uma grandeza metajurídica, isto é, esse patriotismo é baseado na interpretação de princípios constitucionais universais, reconhecidos dentro do contexto de uma determinada história e tradição nacional. Tal lealdade constitucional, que não pode ser imposta juridicamente, enraizada nas motivações e convicções dos cidadãos, só pode ser esperada se eles entenderem o Estado Constitucional como uma realização de sua própria história.

Nessa perspectiva, o Estado-nação é substituído por um Estado democrático de direito que configura uma “nação de cidadãos” baseada numa cultura política comum: “(...) não é necessário amarrar a cidadania democrática à identidade nacional de um povo; porém, prescindindo da variedade de diferentes formas de vida culturais, ela exige a socialização de todos os cidadãos numa cultura política comum” (HABERMAS, 2003b, p.289). Ao apontar o patriotismo constitucional como forma de integração social geradora de solidariedade entre estranhos, Habermas estabelece uma nova relação de tensão entre o universalismo de uma comunidade jurídica igualitária e o particularismo de uma comunidade histórica de destino compartilhado, e pretende identificar “nos princípios e nos sistema de direitos que integram as Constituições democráticas uma forma solidária de integração social, capaz de assegurar o primado do mundo da vida sobre os subsistemas mercado e poder administrativo” (CITTADINO, 2009, p.180). Seguindo este raciocínio, conclui Habermas (2002, p.165): “essa leitura do republicanismo, feita segundo os princípios da teoria da comunicação, é mais

compartilham da mesma linguagem e da mesma cultura. Essa forma de patriotismo reconhece igual valor a todas as formas de vida e está comprometido com a inclusão das minorias na república. 59 A ambivalência entre universalismo e particularismo só pode se harmonizar com o ideal de um Estado democrático enquanto a interpretação etnocêntrica de uma nação integrada e homogênea ceder em prol de um conceito não naturalista de nação, o qual se amolda perfeitamente a uma autocompreensão universalista do Estado democrático de direito. Em lúcida crítica à ideia tradicional de nação, adverte Habermas (2002, p. 139): “a ideia de nação serviu muito menos para fortalecer as populações em sua lealdade ao Estado constitucional do que para mobilizar as massas em favor de objetivos que dificilmente se podem harmonizar com princípios republicanos”.

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apropriada do que uma visão etnonacionalista, ou mesmo comunitarista dos conceitos de nação, Estado de direito de democracia”. Compreendida a concepção de Constituição como procedimento e de patriotismo constitucional como forma de integração social e de criação de vínculos políticos entre cidadãos integrantes de uma mesma sociedade pluralista, passe-se adiante à análise do papel e da legitimidade da jurisdição constitucional de uma sociedade pluralista, vista sob o viés do procedimentalismo habermasiano e da teoria da argumentação de Robert Alexy – duas discrepantes visões sobre a aplicação da teoria do discurso a uma teoria do controle de constitucionalidade das leis.

3.3. O papel e a legitimidade da jurisdição constitucional nas sociedades pluralistas

Na linha de uma teoria discursiva do Estado de direito democrático, o sistema de direitos pressupõe uma organização com poder de sanção, para impor respeito às normas jurídicas legitimamente estatuídas. A partir daí surge o Estado, como instância central autorizada a agir em nome do todo, detentora do poder de emprego legítimo da coerção, com o fim de garantir a identidade coletiva juridicamente organizada. O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos têm que ser implantados, porque a comunidade de direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria programas que têm que ser implementados (HABERMAS, 2003a, p.171).

Enquanto o poder político é institucionalizado mediante o código do direito, normas secundárias de organização do Estado criam a divisão dos poderes segundo a diferenciação das funções estatais destinadas a retroligar o exercício do poder político ao poder comunicativo dos cidadãos. Ao passo que o legislativo fundamenta e vota programas gerais de ação e a administração implementa leis que necessitam de execução, a jurisdição “elabora o direito vigente sob o ponto de vista normativo da estabilização de expectativas de comportamento” (HABERMAS, 2003a, p.232), ao decidir no caso concreto sobre a aplicação do direito a conflitos de ação. A lógica da divisão dos poderes, logo, induz a uma cooperação funcional voltada à institucionalização do poder político conforme a forma jurídica. Haja vista sua peculiar posição na ordem estatal, os tribunais são revestidos de certas características específicas. Cabe-lhes a aplicação do direito vigente (legítima e faticamente) para a estabilização de expectativas de comportamento, e ainda a jurisdição

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constitucional, realizada através do controle de constitucionalidade das leis e dos atos administrativos, tanto por um órgão especial quanto difusamente pelo judiciário. O compromisso político fundamental assumido na Constituição, onde estão consagrados os fins coletivamente perseguidos por uma comunidade jurídica particular, é resguardado, assim, mediante a comparação abstrata a priori entre o texto legal e o texto constitucional, técnica esta decorrente do princípio da supremacia hierárquica da Constituição no ordenamento jurídico. Para o desempenho regular da função judiciária, aos tribunais é garantida a imparcialidade e cobrada a racionalidade das decisões. À justiça independente cabe aplicar o direito de modo a garantir simultaneamente a segurança do direito e a aceitabilidade racional das decisões judiciais. Por conta da blindagem conferida pela exigência de imparcialidade, os tribunais despontam de uma posição peculiar dentro da sistemática estatal, definida como contra-majoritária. O legislativo funciona segundo a regra da maioria; é eminentemente a instância majoritária: preocupa-se com números, não com argumentos. Sua atuação está envolvida pela barganha e pela disputa de posições políticas60 que representam segmentos específicos da sociedade, em detrimento do interesse das minorias. Em contrapartida, os tribunais são revestidos da garantia de imparcialidade, com o intuito de imunizá-los das disputas políticas tradicionalmente reservadas às instituições majoritárias, e do encargo da formulação de suas decisões com base em justificativas razoáveis, conferindo-lhes o caráter da racionalidade, pelo qual os tribunais estarão orientados ao consenso argumentativo no momento da decisão, e não às negociações61 segundo interesses capazes de se impor nos fóruns de debate público. Tendo em vista a formação discursiva da opinião e da vontade, o judiciário é a instância pública mais apta aos discursos orientados ao entendimento sobre questões éticas e morais relevantes, pois preenche os requisitos essenciais da situação ideal de discurso: racionalidade dos argumentos e liberdade e imparcialidade dos partícipes. Por isso ressalta-se, na perspectiva de uma concepção deliberativa de democracia, o papel fundamental dos tribunais para a garantia dos interesses das minorias, na forma de direitos e garantias legais e constitucionais. Os tribunais recebem o encargo de interpretar as leis e os princípios constitucionais de modo a assegurar a mais justa e razoável 60

FEREJOHN; PASQUINO (2009, p.47-49). “Os cidadãos, na maioria das democracias, esperam que os partidos políticos deixem claro algum tipo de programa ou metas que explicariam ou justificariam o programa político que estes buscarão implementar caso sejam eleitos”. 61 Ver a distinção entre discursos e negociações em Habermas, 2003a, p. 221-232. As questões de repercussão pública, cujos interesses são generalizáveis, não podem ser resolvidas por negociações.

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aplicação do direito, através de decisões devidamente motivadas que possam obter aceitabilidade racional por parte de seus destinatários e demais envolvidos, conforme os princípios procedimentais de legitimidade do exercício do poder na democracia deliberativa. Entretanto, comumente se questiona a legitimidade dos juízes para intervirem em questões políticas que tradicionalmente competem aos órgãos eleitos: a administração e o legislativo. Os tribunais, não obstante, são frequentemente apontados como portadores de uma legitimidade sui generis para atuar como representantes da sociedade, inclusive das minorias étnicas, culturais, religiosas, e das classes marginalizadas das instituições majoritárias.

3.3.1. Legitimidade discursiva dos tribunais: deliberação e fundamentação

A deliberação e a fundamentação racional são fontes indiretas de legitimidade democrática. Diferentemente do que acontece com os poderes democraticamente eleitos, os tribunais não são compostos por representantes escolhidos diretamente pelos cidadãos no processo democrático. A legitimidade de sua atuação remonta à prática de argumentação nos fóruns públicos, pelas quais os juízes lançam mão de argumentos constitucionais, legais e morais, mantendo a coerência do sistema jurídico, em busca do convencimento segundo a resgatabilidade racional dos motivos expostos, substituindo, deste modo, o voto eletivo por argumentos que podem ser compreendidos e acolhidos como as nossas próprias razões para agir. Uma decisão judicial é legítima na medida em que puder ser objeto de assentimento racional por parte de seus destinatários, que devem aceitá-la em um sentido normativo como seus próprios motivos. “A deliberação e a fundamentação racional são, assim, modos pelos quais as instituições não democráticas podem proceder para convencer o povo a apoiarem suas decisões” (FEREJOHN; PASQUINO, 2009, p. 49). As cortes, portanto, vão além de simplesmente tornar públicas suas decisões, justificando-as com base em argumentos que possam ser acolhidos pelos sujeitos de direito, aduzindo boas razões para a obediência de seus mandamentos, preenchendo a expectativa de que o agir público foi conduzido segundo critérios de deliberação pública racional. O agir público dos tribunais cria, portanto, a expectativa de fundamentação decorrente do aspecto democrático, pois os juízes (a maior parte deles) não foram eleitos e os argumentos sustentados em suas decisões – especialmente quando se trata de argumentos que se fundamentam em atos concretos de instituições que tenham sido eleitas – podem

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prover uma justificativa indiretamente democrática para os atos públicos. E mesmo quando não se consegue traçar o vínculo entre as deliberações jurídicas e os atos legislativos, se estas estão enraizadas em princípios morais e constitucionais que fundamentam o regime democrático ou que são pressupostos democraticamente pela população, a argumentação jurídica pode ser compreendida como democrática, de modo indireto ou transitivo (FEREJOHN; PASQUINO, 2009. p. 45).

A decisão judicial, neste caso, funciona como desdobramento do princípio democrático da soberania popular, na medida em que se pressupõe a concordância dos cidadãos integrantes da comunidade jurídica com relação às razões expostas nos discursos institucionalizados, ou, em outras palavras, a compatibilidade entre a motivação para o agir das instituições e a expectativa normativa dos sujeitos participantes de discursos formadores da opinião e da vontade na esfera pública informal. “Na linha da teoria do discurso, o princípio da soberania do povo significa que todo o poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos” (HABERMAS, 2003a, p. 213), num processo democrático destinado a garantir um tratamento racional de questões políticas. Trata-se de um fortalecimento das ramificações democráticas do Estado, uma vez que juízes com competência

deliberativa

argumentativamente.

aumentam

a

autoridade

do

povo,

ao

representá-los

62

A coerência do sistema jurídico é garantida por meio da argumentação sistemática sobre princípios. O discurso jurídico define a relação entre segurança jurídica e correção (relação transmutada da facticidade e validade para a hermenêutica jurídica), desenvolve o potencial de racionalidade a nível institucional e insere o procedimento argumentativo em uma teoria do Estado constitucional democrático, com a ressalva apontada por Habermas (2003a, p. 220) de que os discursos jurídicos referem-se naturalmente ao direito gerado legitimamente, e não apenas às normas jurídicas, pois inclui também argumentação moral e pragmática. A solução da tensão entre facticidade e validade que reaparece no nível do Estado de direito na forma da tensão entre direitos fundamentais e democracia consiste em uma práxis que una discursos institucionalizados e não institucionalizados: Em um Estado constitucional democrático, no qual vige o preceito “todo poder emana do povo”, a solução apenas pode consistir em que os argumentos do tribunal constitucional e os discursos dos cidadãos também sejam associados factualmente; só que esta associação também deve ser estendida a discursos institucionalizados, nos quais se manifesta a vontade dos cidadãos formada democraticamente. Por fim, trata-se da inserção da argumentação do tribunal constitucional no caminho total da

62

Cf. FEREJOHN; PASQUINO, 2009, p. 43-50.

76

“formação da opinião e da vontade: o informal e o institucionalizado” (ALEXY, 2009, p. 135).

O que se reivindica, portanto, é que os argumentos do Tribunal Constitucional estejam de acordo com as razões dos cidadãos caso eles se engajassem em um discurso jurídico-fundamental racional. Quando o processo de reflexão entre esfera pública, legislador e Tribunal Constitucional se harmoniza, há uma institucionalização bem sucedida de direitos humanos em um contexto democrático.

3.3.2. Jurisdição constitucional: representação argumentativa versus modelo procedimental

A questão central aqui posta é saber se as Cortes Constitucionais podem ser compreendidas como espaços de deliberação pública, abertos à participação dos interessados em prol de uma práxis argumentativa racional e democrática. Segundo Alexy (2005b, p.98), “o controle de constitucionalidade é a expressão da superioridade ou prioridade dos direitos fundamentais frente à legislação parlamentar”, sendo que a declaração de inconstitucionalidade implica que haja uma contradição entre uma lei e uma norma constitucional. A atividade do tribunal tem um caráter argumentativo ou discursivo, pois a exigência de fundamentação das decisões conduz a uma expectativa de correção dos juízos normativos, como também um caráter institucional ou de autoridade, pois o Tribunal não se limita a declarar algo, mas tem o poder de invalidar atos institucionais legislativos. Porém, para estabelecer uma relação entre controle de constitucionalidade e democracia, é necessário responder à pergunta “como se justifica o poder jurídico de um tribunal constitucional para invalidar atos do parlamento” (ALEXY, 2005b, p.98), a qual consiste na questão da legitimidade democrática do Tribunal Constitucional. No cerne do debate sobre jurisdição constitucional, situa-se o problema do equilíbrio entre a competência do tribunal e a do legislador. A propósito da tensão entre jurisdição constitucional e legislação, aduz Alexy (2008, p.546): Se a Constituição confere ao indivíduo direitos contra o legislador e prevê um tribunal constitucional (também) para garantir esses direitos, então, a atividade do tribunal constitucional no âmbito da legislação que seja necessária à garantia desses direitos não é uma usurpação inconstitucional de competências legislativas, mas algo que não apenas é permitido, mas também exigido pela Constituição.

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A reserva do controle de constitucionalidade dos atos legislativos a uma corte especializada cria o ônus da necessidade de legitimação dos atos das Cortes Constitucionais, as quais são responsáveis, em certa medida, pela atividade legislativa. Para tanto, os tribunais, que lidam com expectativas deliberativas, devem formular suas decisões com base em justificativas razoáveis. Na linguagem de Rawls (2000), as Cortes possuem caráter deliberativo exemplar, isto é, espera-se que elas forneçam razões e justificativas para suas decisões coercitivas: “o papel do tribunal não é meramente defensivo, mas também o de dar existência apropriada e contínua à razão pública, ao servir de exemplo institucional” (RAWLS, 2000a, p.286). Deste modo, o binômio deliberação/fundamentação constitui um aspecto essencial da jurisdição constitucional. Na teoria de Alexy, há espaço para a reconciliação entre controle de constitucionalidade e democracia: mesmo que aquele não conte com uma legitimação democrática direta, pode ser considerado como uma forma de representação do povo. A representação do povo no Tribunal é puramente argumentativa. Para Alexy, um modelo democrático adequado de representação deve necessariamente incluir a argumentação, o que significa que a democracia se torna deliberativa.63 O conceito de representação argumentativa contém uma dimensão ideal, vinculada às regras do discurso prático racional,64 pelo que “a representação expressa necessariamente uma pretensão de correção65” (ALEXY, 2005b, p.101). A pretensão de que as decisões dos tribunais são corretas induz à expectativa de que um número suficiente de pessoas aceitarão, em longo prazo, os argumentos esposados. Há, portanto, duas condições

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“A democracia deliberativa é um esforço para institucionalizar o discurso como meio para a tomada pública de decisões, tanto quanto seja possível” (ALEXY, 2005b, p. 100). 64 Sobre as regras gerais do discurso prático e as regras específicas do discurso, ver ALEXY, 2005b, p.61: “Um discurso prático é racional na medida em que se cumpram as condições da argumentação prática racional. Estas condições podem se dividir em dois grupos. As condições do primeiro grupo formulam regras que também são válidas para qualquer argumentação prática racional, independentemente da teoria do discurso. Entre elas figuram a não contradição, a universalizabilidade, no sentido do uso coerente dos argumentos empregados, a clareza linguístico-conceitual, a verdade empírica, a consideração das consequências e a ponderação. Essas regras valem também para monólogos. Para a teoria do discurso como teoria da justiça têm importância crucial as regras específicas do discurso. Estas tem um caráter não monológico. As mais importantes dispõem: 1. Quem pode falar pode tomar parte no discurso. 2.(a) Qualquer um pode questionar qualquer afirmação; (b) qualquer um pode introduzir qualquer afirmação no discurso; (c) qualquer um pode expressar suas opiniões, desejos e necessidades. 3. Não se pode impedir nenhum falante, mediante coação interna ou externa ao discurso, de exercer seus direitos estabelecidos em (1) e (2)”. 65 O conceito de pretensão de correção é crucial para o empreendimento jusfilosófico de Alexy. De acordo com a ideia de correção, o direito formula necessariamente uma pretensão de fundamentabilidade, que redunda em um dever geral e básico de fundamentação. A pretensão de fundamentabilidade, por sua vez, gera a expectativa de que todos os destinatários da pretensão reconheçam a norma jurídica como correta. Conferir ALEXY, 2005a, p.35.

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fundamentais para a existência de uma verdadeira representação argumentativa: a) a existência de argumentos corretos ou razoáveis e b) a existência de pessoas racionais dispostas a aceitar tais argumentos. E nesse sentido, conclui Alexy (2005b, p.102): O constitucionalismo discursivo, como um todo, é um empreendimento para institucionalizar a razão e a correção. Se existem argumentos corretos e razoáveis, assim como, também, pessoas racionais, a razão e a correção estarão mais bem institucionalizadas mediante o controle de constitucionalidade do que sem dito controle.

O Tribunal Constitucional, se e quando realiza uma correta representação argumentativa, pode ser visto como instância de reflexão do processo político, de forma que o vínculo entre os representados e representantes institucionaliza os direitos fundamentais no Estado Constitucional Democrático. No pensamento de Alexy, é a categoria da representação argumentativa que confere a legitimidade do Tribunal Constitucional para decidir acerca de questões jurídicas dotadas de alto teor político. Algumas críticas podem ser aduzidas ao modelo de representação argumentativa e seu suposto potencial legitimatório. Dentre as mais significativas, destacamse as objeções de Jürgen Habermas quanto a um modelo substancial de jurisdição constitucional, ao qual ele contrapõe um modelo puramente procedimental,66 cujo papel consiste basicamente em proteger os procedimentos democráticos necessários à livre formação da opinião e da vontade políticas na esfera pública. Isso significa que, para Habermas, o papel do Tribunal Constitucional é “tutelar o procedimento democrático e a forma deliberativa da formação política da opinião e da vontade” (BOTELHO, 2010, p.210), pois, se assim não for, o tribunal corre o risco de assumir o papel paternalista de regente da sociedade, tomando decisões que originariamente devem ser tomadas pelos cidadãos comuns, no âmbito do processo político democrático em uma esfera pública inclusiva e autônoma. Nesse diapasão, que se contrapõe à noção alexyana de representação argumentativa, à Corte é vedado “criar” o direito, cabendo-lhe apenas aplicá-lo, razão pela qual a fundamentação

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“O tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos. O esquema clássico da separação e da interdependência entre os poderes do Estado não corresponde mais a essa intenção, uma vez que a função dos direitos fundamentais não pode mais apoiar-se em concepções sociais embutidas no paradigma do direito liberal, portanto não pode limitar-se a proteger os cidadãos naturalmente autônomos contra os excessos do aparelho estatal. (...) Por isso, o tribunal constitucional precisa examinar os conteúdos de normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos comunicativos e condições procedimentais do processo de legislação democrático. Tal compreensão procedimentalista da constituição imprime uma virada teórico-democrática ao problema da legitimidade do controle jurisdicional da constituição” (HABERMAS, 2003a, p.326).

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normativa deve ser deixada para o âmbito do processo legislativo.67 Habermas (2003a, p.306) alerta sobre o risco de intervenções em competências legislativas para as quais a jurisdição não possui legitimação democrática: “no interior do sistema de direito, ela [intervenção] significa um crescimento de poder para a justiça e uma ampliação do espaço de decisão judicial, que ameaça desequilibrar a estrutura de normas do Estado clássico de direito”. Tais objeções teóricas chamam a atenção para um aprimoramento da noção de representação argumentativa. Segundo Habermas, deve haver cautela por parte do Tribunal Constitucional ao intervir nas resoluções legislativas, principalmente quando o controle da racionalidade não se referir aos procedimentos de fundamentação, mas aos argumentos substanciais. “Perante o legislador político, o tribunal não pode arrogar-se o papel de crítico da ideologia; ele está exposto à mesma suspeita de ideologia e não pode pretender nenhum lugar neutro fora do processo político” (HABERMAS, 2003a, p. 343). A suspeita de neutralidade do juiz poderia ser respondida ressaltando o caráter contramajoritário da jurisdição constitucional. Numa democracia, onde vigora a regra da maioria, sempre há o risco de o Legislativo, representando as maiorias, erodir direitos fundamentais ou desrespeitar os pressupostos procedimentais de deliberação democrática. O remédio da jurisdição constitucional sugere que ela “está claramente mais próxima de ideais discursivos que o processo político” (ALEXY, 2007, p.36). No entanto, tendo em vista as críticas formuladas por Habermas, percebe-se que a representação argumentativa, por si só, é insuficiente para conferir a legitimação democrática pretendida para os tribunais constitucionais. A exigência de fundamentação das decisões judiciais não torna a Corte mais democrática, se não houver abertura à sociedade de intérpretes. Enquanto os legisladores submetem-se ao controle da coletividade através do processo eleitoral, somente a abertura da Corte à práxis argumentativa (através da possibilidade de participação dos interessados no processo de construção da interpretação constitucional) pode tornar a exposição pública de razões um objeto do controle da coletividade. Deriva, pois, da noção habermasiana de jurisdição constitucional uma necessidade da: abertura da Corte Constitucional à participação dos interessados, com a fomentação de uma ampla circulação de informações e argumentos, atuando o Tribunal como garantidor do desenvolvimento harmônico dessa rede de liberdade comunicativas capaz de levar a construção de uma decisão fundamentada unicamente na força do melhor argumento (BOTELHO, 2010, p.212). 67

Cf. BOTELHO, 2010, p. 208.

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Por via da abertura à participação popular, um canal direto de comunicação entre tribunal e sociedade civil poderá ser estabelecido, de modo que uma genuína representação popular argumentativa venha a ser possível. A hipótese defendida neste estudo é de que a representação argumentativa pressupõe a abertura à participação popular no controle de constitucionalidade. Assim, vale a fórmula (ainda hipotética) segundo a qual a legitimação da jurisdição constitucional pode ser obtida mediante a combinação de representação argumentativa e abertura à participação. Ambas as condições devem ser preenchidas para fins de legitimação da autoridade da tomada de decisões políticas pelos Tribunais Constitucionais. Isso conduz, no nível teórico, a uma integração entre os conceitos de representação argumentativa de Robert Alexy e de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição de Peter Häberle. Häberle (1997, p.13) define a sociedade aberta de intérpretes a partir da seguinte tese: no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição.

Segundo essa noção hermenêutica inclusiva, todo aquele68 que vive no contexto regulado por uma norma é, indireta ou diretamente, intérprete desta; em uma sociedade pluralista, habitada por diversos grupos de interesses e identidades culturais específicas, tanto mais abertos devem ser os critérios de interpretação quanto mais diversificada ela for. A concepção de sociedade aberta traz importantes consequências para a hermenêutica constitucional, sobretudo a integração da realidade ao processo constitucional. O juiz não interpretará isoladamente, antes apoiado por colaboradores retirados dentre todas as forças públicas da esfera pública pluralista, que passa a ter força normatizadora. Ditas consequências revelam uma radical influência da teoria democrática na hermenêutica constitucional, através da qual pode ser obtida a legitimidade democrática de uma jurisdição que exerce representação argumentativa: “uma ótima conformação legislativa e o refinamento interpretativo do direito constitucional processual constituem as condições básicas para 68

Dentre os potenciais participantes da interpretação, Häberle inclui sistematicamente, no capítulo II: 1) as funções estatais; 2) participantes dos processos de decisão que não são órgãos do Estado (exemplos: autor e réu, terceiros interventores, peritos, pareceristas); 3) a opinião pública democrática e pluralista e 4) doutrina constitucional. Ver HÄBERLE, 1997, p. 20-23.

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assegurar a legitimação da jurisdição constitucional no contexto de uma teoria de democracia” (HÄBERLE, 1997, p.49). Para tanto, exige-se o aperfeiçoamento de mecanismos e procedimentos de inclusão dos interessados no processo constitucional, mediante instrumentos de informação dos juízes, tais como audiências públicas, amicus curiae e intervenções. Em síntese: somente mediante um processo institucionalizado de reflexão estabelecido entre sociedade civil e Tribunal Constitucional ocorrerá uma representação argumentativa com vistas a legitimar a atuação da jurisdição constitucional num nível político. Sabendo-se que as democracias atuais, da modernidade tardia, tratam-se de sociedade pluralistas, onde coexistem diversos grupos com identidades sociais e culturais conflitantes, bem como indivíduos com as mais diversas visões acerca da vida digna e de como orientar seus planos segundo suas concepções pessoais, é necessária a inclusão desses mais variados pontos de vista nos processos constitucionais. Somente assim será incrementada a racionalidade nas deliberações do Tribunal e a representação da sociedade civil pluralista por parte do Tribunal Constitucional, o que consiste num modo de fortalecer o princípio da soberania do povo e ao mesmo tempo de salvaguardar os direitos humanos, na medida em que se oriente o processo de decisão pública segundo uma teoria do discurso.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estamos diante do fenômeno do pluralismo social, cultural e ideológico, que marca a sociedade democrática em que vivemos. Toda discussão acerca da justiça, do direito e das instituições político que regem uma democracia devem ser empreendidas levando-se em conta o fato do pluralismo. Não é de outro modo a controvérsia que se dá entre liberais e comunitaristas na filosofia política. A concepção de pluralismo influencia decisivamente o modelo teórico a partir do qual cada corrente filosófica pretende articular o ideal de uma sociedade democrática justa e cooperativa com instituições igualmente justas. Tanto a garantia da autonomia privada do indivíduo quanto a exigência da autonomia pública das diversas identidades sociais e culturais culminam em distintas teorias da justiça e distintas compreensões acerca do papel do direito em uma sociedade plural. Enquanto os liberais descrevem as democracias modernas como espaços onde coexistem distintas concepções individuais acerca do bem, enfatizando assim a existência de direitos humanos do indivíduo com sentido deontológico que permitam a cada um orientar o agir conforme sua própria convicção e seu projeto pessoal de vida, os comunitaristas, por outro lado, ressaltam a multiplicidade de identidades sociais e de culturas linguísticas, étnicas e religiosas presentes nas sociedades contemporâneas, defendendo a ativa participação do povo soberano no processo político de afirmação dos valores coletivos, rumo ao estabelecimento de um consenso ético. Acreditando ser possível integrar as duas dimensões de pluralismo em um só modelo teórico, Habermas advoga por uma teoria do discurso do sistema dos direitos que concilie autonomia pública e autonomia privada, isto é, que evidencie a co-originariedade da soberania popular e dos direitos humanos, de forma que ambos se pressuponham mutuamente. Os direitos humanos e a democracia (entendida sob a ótica do princípio da soberania popular) são conceitos centrais para o debate ora exposto. Neste trabalho, assumese a posição – sujeita a controvérsias – de que direitos humanos são direitos com conteúdo e natureza moral, de origem supraestatal, não destinados à pessoa enquanto membro de um ente público concreto, mas antes como membro de uma comunidade mais ampla, ilimitada no espaço e transcendente das fronteiras políticas e nacionais que marcam a divisão geopolítica do mundo moderno. Tal posição que compreende os direitos humanos como direitos morais nos aproxima, neste aspecto, mais à teoria discursiva de Robert Alexy do que a de Jürgen

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Habermas, pois este filósofo assinala que os direitos humanos têm um caráter especificamente jurídico, embora mantenham o sentido da validade universal. Os direitos fundamentais, por sua vez, constituem uma concretização dos princípios universais de direitos humanos, abstratos e ainda não imersos em um mundo da vida cultural. Os direitos humanos deixam de ser apenas parte da moral jurídica universal e passam a integrar a Constituição, obrigando a atuação – positiva ou negativa – dos poderes públicos, convertendo-se agora em elementos do direito positivo de uma comunidade jurídica particular. A teoria do discurso, desenvolvida no âmago da filosofia por Jürgen Habermas, e especificamente na filosofia do direito por Robert Alexy, filia-se ao paradigma póspositivista e reconstrói os direitos humanos sob uma nova linha de legitimação, não apoiada em categorias abstratas e essencialmente idealizadas, mas, ao invés disso, com base no agir comunicativo e na sua corporificação concreta mediante o uso da linguagem. O direito passa a ser compreendido como um processo de construção cultural, cuja legitimidade é apontada por meio do assentimento racional dos seus destinatários acerca de assertivas normativas criticáveis, construtivamente. A teoria do discurso se contenta com um modelo procedimental de legitimação, ancorado nas estruturas comunicativas que permitem o alcance do consenso através do discurso, pois delinear princípios com conteúdo excede a competência de um filósofo moral “procedimentalista”; este deve tão somente estabelecer as condições sob as quais as normas são procedimentalmente corretas, pois as normas materiais são assunto do homem comum participante dos discursos. O êxito do discurso depende precisamente do êxito da legitimação, e entende-se bem-sucedida a legitimação baseada em argumentos que podem ser confirmados por todos e qualquer um, em situações hipotéticas de discursos racionais. Adota-se, de outro lado, um conceito deliberativo de democracia. Tanto o liberalismo quanto o comunitarismo sugerem modelos imperfeitos de democracia: um prioriza excessivamente a dimensão da proteção da autonomia privada através de liberdades prépolíticas, enquanto o outro privilegia desmesuradamente a autonomia pública ancorada em um ethos homogêneo de uma comunidade pretensamente bem integrada e pronta para alcançar um consenso ético. Ao contrário, buscando sintetizar ambas as posições como equiprimordias, Habermas desenvolve seu modelo de democracia deliberativa, no intuito de associar autonomia pública e autonomia privada dentro de um sistema democrático coerente. Ideais políticos como o bem comum e a própria democracia, no sentido da tomada de decisões políticas fundamentais revestidas do aspecto de normas jurídicas, não são possíveis sem um processo institucional (e mesmo informal) aberto, que garanta a participação de todos os pontos de vista da sociedade pluralista, em especial das minorias estruturais. Nesse processo,

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os atores sociais cumprem um duplo papel: de autores e destinatários das normas do direito. Para a promoção da diversidade, e para o deslinde eficaz das políticas de reconhecimento, tem de haver um nexo conceitual entre pluralismo e democracia deliberativa – modelo democrático presidido pela ética do discurso, conexão ideal entre política e fundamentação ética do exercício do poder. A teoria do discurso, além de possuir características universalistas, cognitivistas e deontológicas, apresenta-se como formalista, já que designa um procedimento através do qual um conflito de ação moralmente relevante pode ser julgado imparcialmente, sendo que os conflitos morais serão julgados pelos próprios interessados a partir de embates surgidos da própria vida social. Sua consequência necessária é a institucionalização de um sistema de direitos a partir do exercício comunicativo concomitante da autonomia pública e da autonomia privada dos cidadãos. O modo como autonomia privada e pública se entrelaçam na formação discursiva da opinião e da vontade acarreta um sistema jurídico estruturado comunicativamente, no qual o princípio da democracia toma a feição da interligação entre princípio do discurso e forma jurídica. Tal é, para Habermas, a gênese lógica de direitos: começa com a aplicação do princípio do discurso, segundo liberdades subjetivas iguais de ação, termina com a institucionalização jurídica de condições para o exercício da autonomia política. Deste modo, retrospectivamente, num processo circular que se retroalimenta, as liberdades subjetivas de ação produzem o direito legítimo e este define a forma jurídica da autonomia privada. As condições procedimentais de institucionalização do direito legítimo culminam em um sistema de direitos que deve conter precisamente os direitos que os cidadãos são obrigados a atribuir-se reciprocamente, caso queiram regular legitimamente a sua convivência com os meios do direito positivo. A co-originariedade entre autonomia privada e pública existe no nível da teoria do discurso, na medida em que os sujeitos do direito compreendem-se como autores e destinatários de um modelo de autolegislação que pressupõe os direitos humanos como condições formais da institucionalização jurídica da vontade política discursivamente formada, na qual soberania do povo se converte em direito legítimo. Somente quando os conflitos resultam juridicamente delimitados por um procedimento é que podem assumir seu papel positivo de integração social, conduzindo a uma concepção pluralista da Constituição, frequentemente atualizada e renovada por novos consensos gerais. Em espaços marcados por conflitos morais acentuados, a integração social só pode ser obtida mediante normas de direito positivo, pois nos desacordos morais não há uma base comumente aceita e reconhecida de costumes suficiente para fomentar a

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convivência democrática. Neste sentido, as regras do procedimento jurídico devem ser objeto de um consenso democrático fundamental, acordadas, obedecidas e legitimadas por todos, reconhecidos estes como membros livres e iguais na formação do direito. No atual marco do pluralismo social e cultural, a coexistência de uma multiplicidade de doutrinas ideológicas, religiosas e filosóficas sob uma mesma ordem constitucional, instaura na sociedade política conflitos que sugerem o abandono do modelo de “Estado-nação” pelo de “Estado pósnacional”. A resolução destes conflitos pode ocorrer pelas vias democráticas do discurso – e é aí que a democracia deliberativa possui relevância, pelo seu projeto de fomentar um consenso normativo entre posições políticas divergentes, mas que compartilham do mesmo interesse em obter soluções razoáveis para os dilemas apresentados como riscos para a estabilidade social; do contrário, tais conflitos, que outrora cumpririam um papel social positivo, podem acabar resultando em práticas constantes de violência – física ou psíquica – ou outras formas de desenvolvimento não democrático do potencial conflitivo. No Estado democrático de direito, abrigado por uma sociedade pósconvencional, a Constituição surge como um sistema de definição de procedimentos para a solução de conflitos morais, éticos e de interesse. Nessa perspectiva, o Estado-nação é substituído por um Estado democrático de direito que configura uma “nação de cidadãos” baseada numa cultura política comum. Ao apontar o patriotismo constitucional como forma de integração social geradora de solidariedade entre estranhos, Habermas estabelece uma nova relação de tensão entre o universalismo de uma comunidade jurídica igualitária e o particularismo de uma comunidade histórica de destino compartilhado, e pretende identificar nos princípios e nos sistemas de direitos que integram as Constituições democráticas uma forma solidária de integração social. Compreendida a Constituição como procedimento e o patriotismo constitucional como forma de integração social e de criação de vínculos políticos entre cidadãos integrantes de uma mesma sociedade pluralista, é preciso analisar a interpretação constitucional, através da legitimidade da atuação dos tribunais constitucionais e do papel da jurisdição constitucional numa sociedade pluralista, que tende a judicializar seus conflitos básicos. Para estabelecer uma conexão intrínseca entre jurisdição constitucional e democracia, se reivindica que os argumentos do Tribunal Constitucional estejam de acordo com as razões dos cidadãos caso eles se engajassem em um discurso jurídico-fundamental racional. Quando o processo de reflexão entre esfera pública, legislador e Tribunal Constitucional se harmoniza, há uma institucionalização bem sucedida de direitos humanos em um contexto democrático. A hipótese defendida neste estudo é de que a representação

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argumentativa pressupõe a abertura à participação popular no controle de constitucionalidade. Assim, vale a fórmula (ainda hipotética) segundo a qual a legitimação da jurisdição constitucional pode ser obtida mediante a combinação de representação argumentativa e abertura à participação. Ambas as condições devem ser preenchidas para fins de legitimação da autoridade da tomada de decisões políticas pelos Tribunais Constitucionais. Isso conduz, no nível teórico, a uma integração entre os conceitos de representação argumentativa de Robert Alexy e de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição de Peter Häberle. (Também neste aspecto, nos aproximamos mais da teoria discursiva de Alexy do que da visão procedimentalista de Habermas). Em síntese: somente mediante um processo institucionalizado de reflexão estabelecido entre sociedade civil e Tribunal Constitucional ocorrerá uma representação argumentativa com vistas a legitimar a atuação da jurisdição constitucional num nível político. Sabendo-se que as democracias atuais, da modernidade tardia, tratam-se de sociedade pluralistas, onde coexistem diversos grupos com identidades sociais e culturais conflitantes, bem como indivíduos com as mais diversas visões acerca da vida digna e de como orientar seus planos segundo suas concepções pessoais, é necessária a inclusão desses mais variados pontos de vista nos debates democráticos do espaço público, e inclusive nos processos constitucionais institucionalizados. Somente assim será incrementada

a

racionalidade nas deliberações do Tribunal e a representação da sociedade civil pluralista por parte do Tribunal Constitucional, o que consiste num modo de fortalecer o princípio da soberania do povo e ao mesmo tempo de salvaguardar os direitos humanos, na medida em que se oriente o processo de decisão pública segundo uma teoria do discurso.

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