Entre labirintos e curto-circuitos: notas para uma leitura contemporânea da tradição crítica \"paulista\"

June 5, 2017 | Autor: Pedro Cazes | Categoria: Sociologia Brasileira, Florestan Fernandes
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Entre labirintos e curto-circuitos: notas para uma leitura contemporânea da
tradição crítica "paulista"[1]
"Eu sei, você sabe o que é frustração
máquina de fazer vilão"
Racionais MC's

1. Há sempre um misto de arrogância e presunção quando perguntamos pela
"atualidade" de um autor, ainda mais de um "clássico", como se esta pudesse
ser mensurada a partir de alguma posição segura do observador/juiz do
"atual". Ao invés dessa fórmula, nos perguntamos aqui pelo significado de
uma leitura contemporânea da tradição crítica que vem sendo chamada de
"escola sociológica paulista".
Gostaria, porém, de sustentar que o primeiro passo para uma leitura
sobre a "atualidade" de uma tradição intelectual não deve começar por
saltar o contexto histórico de sua formulação e, de modo mais ou menos
imediado, chapar as formulações passadas em um cenário do presente. Sabemos
o quanto de arbitrariedade pode vir por aí. Portanto, sustento que a
contextualização é uma ferramenta indispensável para o tipo de pergunta que
levantamos aqui. Até porque o próprio Florestan Fernandes sempre ressaltou
a ligação umbilical entre o tipo de sociologia que praticava e os impasses
de uma era que denominou – em livro de 1962 – como de "revolução social".
Resta saber qual contextualização nos interessa. Problema cabeludo que
obviamente não responderemos diretamente, estando atravessado pelo texto
uma tentativa de pensar o contexto na própria fatura interna dos conceitos
sociológicos, na própria maneira pela qual a sociologia tenta ordenar e dar
forma à realidade social.

2. Associando a sociologia tal como produzida a partir de sua
institucionalização universitária com os modos de "imaginação sociológica"
presentes no chamado "ensaísmo" anterior, um conjunto de pesquisas tem dado
centralidade ao que podemos chamar de paradigma da "formação" (Arantes,
1997; Ricupero, 2008). De fato, o desenvolvimento de uma linguagem
propriamente sociológica no Brasil não está separada do processo mais amplo
de "construção nacional", na medida mesmo em que as interpretações
sociológicas do país não funcionavam como "descrições externas", mas
participavam das disputas políticas mais amplas sobre o sentido que o
processo de "desenvolvimento" deveria tomar. Podemos dizer que elas
contribuíram, ao seu modo, para a constituição de uma "comunidade de
expectativas imaginadas" (como Paulo Arantes, fundindo Benedict e
Koselleck, define a inteligência brasileira envolvida naquela tarefa de
superação do atraso).
Resumindo numa síntese, Paulo Arantes associa a vigência desse
paradigma da "formação" aos
"grandes esquemas interpretativos em que se registram tendências reais na
sociedade, tendências às voltas, não obstante, com uma espécie de atrofia
congênita que teima em abortá-las, apanhava-se naquele corpus de ensaios
sobretudo o propósito coletivo de dotar o meio gelatinoso de uma ossatura
moderna que lhe sustentasse a evolução" (Arantes, 1997, p.11-12).

Pela descrição acima entende-se que se trata de uma noção ao mesmo
tempo descritiva e normativa, expressando um horizonte que corria "na
direção do ideal europeu de civilização relativamente bem integrada"
(Idem). O importante aqui é destacar como tal normatividade estava
envolvida em uma forma de "temporalização da história" específica. Afinal,
as interpretações do Brasil sempre envolveram, de alguma maneira, um duplo
movimento: por um lado, trata-se de construir um diagnóstico do que veio a
se formar ao longo do passado colonial, escravista e rural; por outro, não
se deixava de indicar um vir-a-ser, um prognóstico do que o país deveria se
tornar, envolvendo os impasses da constituição de uma sociedade moderna. Ou
seja, por um lado um diagnóstico dos fatores do "atraso", de um país que
ainda não era (uma nação, uma democracia, etc.), e por outro a tentativa de
desvendar os vetores que nos levariam rumo ao "encontro marcado" com a
civilização.
Ainda que o paradigma da "formação" esteja impregnado de uma visão
quase teleológica, não buscaremos discutir suas virtudes ou problemas per
se. Interessa-nos somente abrir, por essa via, uma entrada na avaliação da
tradição crítica que nos perseguimos, pois acredito que é exatamente o tipo
de "semântica histórica" envolvida no conceito de "formação" que nos parece
estranho hoje[2]. No entanto, antes de decretar pura e simplesmente a
inatualidade de tal tradição, me parece mais interessante investigar, a
partir das problematizações que podemos identificar ao longo da própria
obra de Florestan Fernandes e nas críticas um tanto indiretas que recebeu
de Maria Sylvia de Carvalho Franco, um movimento de virada negativa quanto
às expectativas de "plena realização" da ordem social "moderna" que
tentaremos descrever com a ideia de "sintaxe da frustração" (Arantes,
2004). Quero, portanto, perguntar em que medida essa figurações da
frustração na sociologia brasileira de alguma maneira anunciam algo que
temos vivido de modo mais intenso ultimamente.

3. Sem podermos aqui construir as devidas mediações para chegarmos ao nosso
objeto de discussão propriamente dito, gostaria apenas de sugerir que a
tradição crítica a que estamos nos referindo emergiu diretamente daquele
paradigma da "formação" e de seu solo semântico, como aliás mostram um
conjunto de pesquisas recentes da área de pensamento social brasileiro.
Podemos dizer que, com o avanço da institucionalização e
sistematização das Ciências Sociais no Brasil, a reflexão sobre o problema
da "construção nacional" se materializou, no grupo de pesquisadores que
foram associados ao longo da segunda metade da década de 1950 e na primeira
de 1960 à cadeira de Sociologia I cujo comando passava diretamente para as
mãos de Florestan Fernandes, no plano de uma sociologia das mudanças
sociais. Mesmo não sendo unívoco o sentido e o lugar conferido à tal
problema no conjunto de trabalhos produzidos naquele ambiente
institucional, a centralidade do problema da mudança social na obra de
Florestan Fernandes permite organizar em torno dele toda sua produção
intelectual.
Para resumir em uma fórmula simples a estratégia de pesquisa que
parece ter orientado a investigação da mudança social nos trabalhos de
Florestan Fernandes, talvez possamos dizer que ela se faz 1) no nível
teórico: pela saturação máxima do contraste entre as ordens sociais
"tradicionais" e "modernas", postas analiticamente face a face; 2) no nível
da pesquisa empírica: na análise dos modos pelos quais os processos
sociais, na medida mesmo em que não implicavam ruptura, imbricavam uma na
outra, criando um análise que valoriza sobretudo as tensões envolvidas na
própria combinação daqueles incompatíveis. Tentaremos justificar essa
proposição ao longo do texto, tendo vista sobretudo aquela boa indicação de
Gabriel Cohn (1986), para quem a perspectiva de Florestan Fernandes se
caracteriza, dentro do pensamento crítico radical, por ter sempre procurado
imprimir à sua reflexão uma marca "especificamente sociológica".
Como bem mostrou Antonio Brasil Jr. (2013) na sua análise das
transformações pelas quais o problema do "desenvolvimento" e da mudança
social passou nas formulações de Fernandes, podemos distinguir
analiticamente três momentos/formulações, sequenciados de acordo com o que
o autor chama de "rotações de perspectiva": "demora cultural", "dilema
social", e "capitalismo dependente". Em linhas gerais, tal sequência –
ainda que não corresponda a uma periodização estritamente cronológica dos
textos de Florestan – aponta para o gradual abandono de qualquer
perspectiva de linearidade ou automatismo para pensar a mudança social em
países periféricos, abandonando o "otimismo" que marcava a teoria
sociológica hegemônica à época, conhecida por "sociologia da modernização".
Gostaríamos de nos apoiar na sistematização produzida por Brasil Jr. já
que, obviamente, não temos como passar em revista a enorme obra de
Florestan nas poucas páginas desse trabalho. Queremos apenas destacar
alguns elementos particularmente importantes no que tange à construção de
sua perspectiva mais geral, marcada pela referência à "história" e à
"totalidade", como lembra Elide Rugai Bastos (2002) em seu texto seminal
sobre a "escola sociológica paulista" .
O horizonte daquela primeira forma de conceber o problema do "atraso"
já continha alguns elementos que me parecem particularmente importantes
para toda a reflexão de Fernandes sobre o tema. De fato, buscando uma
perspectiva macro-histórica, o autor caracteriza em linhas mais gerais o
processo de mudança social pelo qual passava o Brasil – em textos dos anos
1950 – como o processo de absorção/transplantação da "civilização moderna"
(Fernandes, 1979a). Com isso o autor visava colocar o "caso" brasileiro em
chave generalizante já que o desenvolvimento "deve ser encarado através de
um grupo de sociedades que compartilhe um mesmo padrão de civilização, e as
diferentes possibilidades que este oferece às sociedades que o compartilham
para realizar um destino social historicamente comum" (2008, p. 146, grifos
nossos). A ênfase na "transplantação" aponta para o fato do moderno não
florescer, no Brasil, por geração espontânea, ainda que tenhamos orbitado a
"civilização moderna" desde a colonização, sendo antes transplantado de
acordo com as etapas da absorção/modernização das estruturas internas
(instituições, relações de produção, mentalidades), associadas sobretudo ao
Estado-nação e à organização propriamente capitalista das relações sociais.
O acento na descontinuidade pode ser vislumbrada na análise
sociológica que Fernandes – a partir de sua colaboração com Roger Bastide e
o grupo de pesquisadores envolvidos, no âmbito da Cadeira I de Sociologia
da USP, na pesquisa sobre relações raciais patrocinada pela UNESCO ao longo
da década de 1950 – realiza sobre a sociedade escravista colonial
brasileira. Lidos em conjunto, esses trabalhos caracterizam, resumindo em
linhas gerais, aquela sociedade como uma ordem estamental e de castas[3],
de estruturas rígidas e pouco plástica, avessa aos dinamismos do
capitalismo e da sociedade moderna. Ainda que o sistema colonial estivesse
ligado ao capitalismo comercial, tanto as relações de produção escravistas
quanto o patrimonialismo decorrente da organização política colonial
impediam qualquer racionalização da produção no sentido propriamente
capitalista, encetando uma mentalidade "pré-capitalista" no modo de
administrar os negócios e nas formas de dominação social. Ou seja, ainda
que ligada a uma etapa inicial do desenvolvimento do capitalismo, o
tradicionalismo congênito daquela ordem social impediria sua adaptação às
transformações sociais trazidas pelo desenvolvimento e expansão interna do
capitalismo. É por isso que a crise do "Antigo Regime" se configura como
problema central de investigação, principalmente porque ela permitia
desvendar como elementos dessa antiga ordem se perpetuavam como obstáculos
– como o preconceito racial, a monopolização da riqueza e do status social,
entre outros – para a consolidação de uma ordem social competitiva.
Aqui já entrevemos algumas características fundamentais da sociologia
praticada por Florestan Fernandes. De fato, ainda que o autor estivesse em
busca de uma interpretação crítica que evitasse o apologismo à que levavam
às explicações dualistas do país, Fernandes foi resolutamente contrário à
dissolução das tensões entre as formas de organização do poder e das
relações sociais decorrentes de uma sociedade escravista e do "capitalismo
industrial" a partir de uma funcionalidade do ponto de vista da exploração
econômica ou da manutenção da dominação de classe. Pelo contrário, como é
patente em todos os seus trabalhos de análise histórica, o autor sempre
está preocupado com o papel construtivo tanto das ideias – analisadas em
prisma Manheimiano de acordo com suas polarizações "utópicas" e
"ideológicas" – quanto do conjunto de valores associados à "civilização
moderna" na conformação do padrão de funcionamento das relações sociais. Em
suas análises do papel do liberalismo na "revolução encapuçada" da
Independência, da função da educação na socialização de agentes sociais
embutidos dos valores democráticos, ou mesmo dos mecanismos de ajustamento
psico-social do negro na situação de anomia a que foi lançado no pós-
abolição – em todas essas análises vemos valorizadas analiticamente as
modificações no horizonte de orientação da ação dos atores sociais, sempre
medida em termos do grau de saturação histórica em que podiam preencher as
funções sociais a eles atribuídas pela visão sistêmica.
Afinal, por que Florestan Fernandes colocava o problema da passagem
da sociedade escravista para a sociedade de classes nos termos da passagem
de uma "ordem estamental e de castas" para uma "ordem social competitiva"?
Para o autor essa mudança não podia ser pensada somente como passagem do
trabalho escravo para o trabalho livre, ela encetava uma transformação na
totalidade do sistema social. Como apontamos mais acima, se o
desenvolvimento era pensado como conjunto de "modificações relevantes para
a realização do tipo social que lhe seja inerente ou para qual tenda de
forma irreversível" (Fernandes, 1979a, p.317), precisamos decifrar como o
autor constrói seus "tipos" e pensa tal "tendência" à sua realização.
Vejamos, primeiramente, como o autor conceitua esse "padrão de
civilização" moderna, construto mais amplo e abstrato a partir do qual seus
"tipos" são construídos:
"a expansão orgânica da civilização baseada na ciência e na tecnologia
científica requer, essencialmente, a universalização e o respeito pelos
direitos fundamentais da pessoa humana, a democratização da educação e do
poder, a divulgação e a consagração de modelos racionais de pensamento e
ação, a valorização e a propagação do planejamento em matérias de interesse
público etc." (Fernandes, 1979a, p.322-3).
Esse retrato propriamente iluminista da civilização moderna – parente
da descrição parsoniana dos padrões universalistas sob os quais repousa o
sistema das sociedades modernas – sustenta sua visão sobre a "sociedade de
classes" que, por sua vez, se dividia em dois tipos sociais – a "ordem
social competitiva" (característica dos países capitalistas) e a incipiente
"ordem social planificada" (característica dos países socialistas em
construção). Como a discussão sobre as sociedades socialistas abriria todo
um outro campo de problemas, concentremo-nos no conceito de "ordem social
competitiva". Com esse conceito Fernandes queria qualificar a sociedade de
classes a partir da ideia que a "ordem social competitiva" era fundada na
universalização de direitos e que, portanto, tendia a democratizar o poder,
a riqueza e o status social.
Para compreendermos o papel central que tal categoria cumpre no
esquema analítico de Fernandes podemos recorrer ao artigo "Sobre o conceito
de sistema social" de 1965, reunido em Elementos de sociologia teórica
[1970]. Nesse texto, Fernandes define o "sistema social" de forma
abrangente como "a teia de atividades, ações ou relações sociais,
reciprocamente ajustadas e interdependentes, que delimita estruturalmente e
configura dinamicamente uma totalidade social integrada" (1974, p.89). O
tipo de ajustamento interno do sistema seria definido pelo "padrão de
integração e diferenciação estrutural-funcional", responsável pelos
requisitos de equilíbrio e dinamismo interno, consistindo sempre em uma
construção analítica a partir da abstração dos fatores mais essenciais que
atuam na conformação de determinado tipo de sociedade.
Para estudar o padrão de integração do sistema o autor chama atenção
para o conceito de "organização" como um "elemento de confluência e de
síntese" (Idem, p.95). A organização do sistema social denotaria "os
princípios segundo os quais as atividades, as ações e as relações sociais
tendem a ajustar-se de modo recíproco e interdependente" (Idem, p.101).
Assim, o padrão de integração social seria definido por princípios de
ordenação e ajustamento inscritos na "organização" do sistema - por
exemplo, na sociedade de classes o princípio da "competição" assumiria essa
função de organizar as relações sociais, levando a um sistema erigido sobre
a máxima do "desempenho" que tenderia a democratizar o poder.
Vemos, portanto, como a construção do tipo social ao qual tenderia a
sociedade brasileira está assentado na ideia de totalidade estabelecida a
partir do princípios axiológicos responsáveis pela organização do sistema.
Ora, tal privilégio do sistema de valores está plenamente de acordo com a
valorização das componentes normativas da ação social. A partir daí, a
racionalidade será sempre medida pelo grau em que realiza tais princípios
axiológicos do sistema. Porém, sua efetivação na prática dependeria da
realização numa determinada "estrutura", entendida como "as formas
assumidas por tais princípios, quando eles são considerados ao nível da
reciprocidade e da interdependência das atividades, ações e relações
sociais de indivíduos ou agentes sociais concretos" (Ibidem). Logo a
"estrutura" diria respeito ao modo como os requisitos inerentes ao padrão
integração da ordem social vigente se concretizam socialmente. Por isso, a
"estrutura" diz respeito à dimensão mais histórica do sistema, na medida em
que as suas flutuações em cada caso e diacronicamente exprimem "os graus de
aproximação dentro dos quais os princípios organizatórios vigentes e,
portanto, válidos axiologicamente, encontram eficácia prática em escala
coletiva" (Idem, p.105).
Ora, tais conceitos permitiam a Florestan Fernandes pensar a
experiência brasileira numa chave generalizadora: o Brasil seria um caso do
tipo de ordem social competitiva, limitada pelas estruturas sociais
herdadas do Antigo Regime que não haviam sido desfeitas pela revolução
burguesa. É assim, grosso modo, que Fernandes interpretava os "impasses",
"dilemas" e "obstáculos" ao desenvolvimento no conjunto de pesquisas sobre
o processo de industrialização que surgiram a partir da criação do Centro
de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT), em 1962. A análise do
empresariado industrial, que deveria ser a ponta de lança da modernização,
buscava investigar de que maneira a atuação desse grupo cumpriria, ou não,
os papéis sociais a ele associados para a máxima expansão e consolidação da
ordem social competitiva. Portanto, basicamente até o momento do golpe de
1964, o descompasso entre industrialização e democratização aparecia,
quanto à conformação do empresariado, na chave da "irracionalidade". O
comportamento desse grupo ainda se basearia em "padrões de mando e de
obediência predominantemente herdados da sociedade patrimonialista",
fazendo com que "qualquer atitude expressa ou ações do operário, que
parecem colidir com os interesses da empresa, dão origem a avaliações
agonísticas, no fundo das quais o trabalhador se vê potencialmente
representado como uma espécie de inimigo natural da ordem pública e do
progresso social" (Fernandes, 1979a, p.79). Até no "afã do ganho" se
expressaria o modo como opera "irracionalmente" a empresa industrial
brasileira, já que ela buscaria "níveis máximos e espoliativos de lucro",
atuando sempre sob motivos e atitudes estritamente "egoístas" e
"particularistas" (Idem, p.79-81). Como se vê, o descompasso entre o
comportamento social concreto e os valores sociais do sistema axiológico –
o ser e o dever ser da burguesia – dava base ao que Fernandes chamou de
"dilema social" brasileiro: a preservação de práticas "arcaicas" (oriunda
da orientação patrimonialista da ação) impedia que o empresariado
preenchesse minimamente suas funções revolucionárias na passagem para a
ordem social competitiva.
Trata-se, portanto, de uma explicação que via no tradicionalismo –
identificado com o atraso da preservação irracional de uma ordem social
incompatível com o moderno – um entrave para o pleno deslanche da
civilização moderna. Como sabemos, a ênfase na irracionalidade dessa
preservação do passado no presente levou até mesmo a que Florestan falasse
em uma "resistência sociopática à mudança" (1976b) para identificar a
aversão doentia, por parte das camadas dominantes, a qualquer tipo de
inovação no sentido da mínima democratização. Patologia que produzia,
inclusive, uma desconexão entre os "interesses de classe" da burguesia e
suas atitudes manifestas de defesa da manutenção das desigualdades, com o
sufocamento do mercado interno, inversão de capitais, etc. Como chama
atenção Brasil Jr.,
"Esta maneira de colocar o problema revela uma tensão básica na
argumentação de Fernandes. Pois, de um lado, ela salienta a força dos
elementos "tradicionais", posto que dinamizados pela "situação de classe"
dos círculos sociais dominantes. Por outro, ele coloca estes mesmos
elementos no campo dos ajustamentos "irracionais", roubando lhes no mesmo
passo a potência histórica que eles pareciam conter. (...) É como se esta
persistência de uma orientação conservadora, "irracionalizando" o sistema
social como um todo, não pudesse permanecer indefinidamente não obstante as
evidências em contrário. Assim, ainda que problematize a visão dualista das
relações entre "tradição" e "modernidade", assim como as relações lineares
entre desenvolvimento e democracia, Fernandes acaba repondo, noutros
termos, uma perspectiva de futura "sincronização" da "sociedade de
classes". (Brasil Jr., 2013, p.222-3)

4. Isso posto, para sermos minimamente justos com Florestan Fernandes é
necessário trazer à tona o modo como inquiriu, nas suas pesquisas reunidas
no livro A Integração do Negro na sociedade de classes [1964], a efetivação
conflituosa daquela ordem social competitiva do ponto de vista dos setores
subalternos. Partindo da perspectiva do grupo social que esteve em pior
posição para se integrar à sociedade de classes emergente com a passagem
para o trabalho livre assalariado, Fernandes está sempre inquirindo a
"ordem social competitiva" a contrapelo, através das promessas que ela não
cumpre para as camadas populares – afinal, aí seria testado o potencial
democratizante da sociedade de classes. Ao longo da pesquisa, que envolveu
a participação e colaboração com as associações políticas e culturais do
movimento negro na São Paulo dos anos 1950 (ver Medeiros da Silva, 2011),
Fernandes sempre valorizou os aspectos "construtivos" positivos da
participação política das camadas populares, ainda que alguns anos depois a
sociologia uspiana fosse tomada pelo debate do populismo, que torna mais
problemática a relação entre política e camadas populares.
Portanto, gostaria de chamar atenção para o fato de Florestan
Fernandes, ao formular de modo tão abstrato o conceito de "sistema social",
privilegiando os princípios axiológicos, trabalhar de modo tão
inconformista e subversivo com a perspectiva da "integração social" típica
do funcionalismo. É como se revelasse, na análise do processo histórico
brasileiro, que a realização do sistema social precisasse ser feita sempre
contra a ordem, pelo protagonismo dos movimentos que vem de baixo, capazes
de subverter aquela combinação escabrosa de tradicionalismo com verniz de
progresso que neutralizava e falsificava as insígnias do progresso com que
a sociedade moderna se legitimava. Basta ver que o otimismo que a teoria
trazia quanto às tendências inerentes à modernização se ligava, por sua
vez, à valorização dos movimentos negros e à defesa da escola pública como
vetores ou portadores capazes de forçar a plena realização daquela ordem
social.
Assim, podemos concluir lembrando a definição que o próprio Florestan
Fernandes, em momento posterior, deu à sua perspectiva teórica: "uma
intelligentsia sociológica calibrada por uma fixação utópica" (1980, p.43).
De fato, a mudança social é estudada a partir da permanente expectativa de
universalização de um princípio de integração-diferenciação social capaz de
realizar o requisito de coerência interna do sistema social, eliminando de
vez os resquícios "arcaizantes" da antiga ordem social e "sincronizando" a
sociedade de classes. Por isso se tratava de um problema de ritmo da
mudança, de combate às forças da "resistência sociopática" à marcha da
história, cuja direção ainda se mantinha unívoca. Como a dinâmica
societária e o processo histórico pareciam ir contra tal expectativa,
Florestan Fernandes foi obrigado a rever seus esquemas teóricos.

5. Porém, antes de passarmos à última fase do pensamento de Fernandes,
gostaria de indicar como, dentro do grupo de pesquisadores associados a ele
na cadeira de Sociologia I, surgiram tentativas mais consistentes de
desestabilizar o dualismo "tradicional" x "moderno", bem como de propor
outra sociologia histórica. Nos trabalhos de Maria Sylvia de Carvalho
Franco, sobretudo no seu livro Homens Livres na Ordem Escravocrata [1969]
(fruto da tese de doutorado orientada por Florestan Fernandes) – em que
analisou as relações entre homens livres no Vale do Paraíba do século XIX –
e na tese de livre-docência O Moderno e suas diferenças, defendida em 1970,
a autora trava um debate um tanto implícito com o seu orientador, cujas
crispas talvez possam ser aproveitadas aqui.
De modo geral, a análise de Franco se realiza a partir de dois
movimentos articulados: a inscrição do Brasil no processo mais amplo de
formação do capitalismo e a recusa do diagnóstico de "ordem tradicional". A
autora recusa aquele procedimento que já encaixava a formação da sociedade
brasileira em conceitos gerais pré-formatados ("tradicional" x "moderno"),
cuja temporalização associava o país ao "atraso", à antítese do moderno, já
que eles abstraíam a sequência histórica particular aos países do núcleo de
desenvolvimento histórico do capitalismo, transformando-a em esquemas
supostamente "universais" de mudança social. Em Homens Livres e noutros
artigos, Franco se empenha em mostrar como aqui nem a escravidão foi
incompatível com formas capitalistas de organização da produção, e nem as
formas de dominação que se estabeleceram entre os homens livres pobres e os
fazendeiros podem ser descritas como "estamentais" e "patrimonialistas", já
que foram marcadas pela fragilidade das associações morais (compadrio,
dependência, etc.) num mundo onde o nexo econômico – as relações de
interesses – atravessou a sociedade de ponta a ponta. Valorizando a
sequencia histórica particular analisada, ela mostra como a relativa
indiferenciação social advinda do passado de pobreza generalizada da região
paulista se conectou positivamente com a formação de um "homo economicus
tosco" (Franco, 1969, p. 204). Assim, analisando os processos sociais do
ponto de vista em que foram vividos pelos atores envolvidos, a autora
mostra como dominação burguesa e dominação pessoal se fundiram na conduta
do fazendeiro, que se beneficiou do poder quase ilimitado para a violência
de uma acumulação primitiva baseada no regime escravista.
Inserindo a historicidade na análise sociológica por uma via distinta da de
Fernandes, através de uma combinação entre uma perspectiva de totalidade e
uma valorização das conexões de sentido particulares, forjadas nas
contingências de processos históricos específicos, o trabalho de Franco se
orientava no sentido de apreender, a partir do Brasil, o processo mais
geral de formação capitalismo. De fato, algo se passa no próprio
procedimento de definição do que deve ser tomado como "capitalismo" quando
o objetivo é analisar o processo de sua formação. A proposição de Franco
presente na tese de doutorado de 1964 é ousada, propõe a pensar o
capitalismo como uma "formação aberta": (Franco, 1964: 36). Perseguindo o
fio condutor que permitiria pensar esse processo en train de se faire,
propõe a autora, então, que devemos "pensar globalmente o movimento de
constituição do sistema capitalista mundial" (Ibidem) para não se
fragmentar a realidade em partes que, dissociadas, compõem distintos
modelos abstratos, por onde se esvaem seus nexos históricos, sua vinculação
causal.
De certo modo, ao trabalhar com um conceito "mínimo" de capitalismo – em
que se articula uma visão weberiana do capitalismo como orientação racional
da conduta visando o lucro contínuo e crescente, de forma regular e
planejada, com uma visão marxista do capitalismo como um sistema de
relações sociais fundado na valorização do capital numa sociedade em que se
generaliza a forma mercadoria dos produtos do trabalho – a autora busca
manter o espectro largo o suficiente para apanhar a diversidade de
situações que confluem contraditoriamente, num "feixe de determinações", na
formação desse sistema, algo que talvez possa ser aproximada das tentativas
contemporâneas de construção de uma sociologia global a partir de
"histórias conectadas" (Bhambra)[4].

6. Se o fechamento político da ditadura militar forçou uma rotação de
perspectiva quanto à questão do "desenvolvimento", levando Fernandes a
abandonar, a partir de A Revolução Burguesa no Brasil [1975], qualquer
perspectiva linear e progressiva da mudança social, essa alteração não
desmanchava aquele diagnóstico sobre a incompatibilidade do nosso "Antigo
Regime" com o moderno capitalismo industrial, até porque, do ponto de vista
do sistema social, o tipo da sociedade de classes, fundada em direitos, é
incompatível com a ordem estamental, fundada sob privilégios sociais e pela
monopolização da renda, do poder e do prestígio. O problema é que o
processo histórico de transição aqui não se resolvia por rupturas, como
seria de se esperar tendo em vista o pressuposto de sua incompatibilidade,
mas por acomodações. Com a última rotação de perspectiva, Fernandes passava
a valorizar o elemento político da conexão entre "tradicionalismo" e
capitalismo que tirava-a da chave da irracionalidade e trazia-a para uma
explicação mais próxima do marxismo, na medida em que a divisão do sistema
capitalista em "centro" e "periferia" produziria efeitos para a própria
conceitualização da sociedade de classes.
Como mostra Antonio Brasil Jr. (2013), a síntese teórica produzida por
Florestan Fernandes ao final da década de 1960 partia em dois o "tipo" da
"sociedade de classes", capitalismo "autônomo" e "capitalismo dependente".
A revolução burguesa nos países dependentes funcionaria sob a máxima da
descolonização mínima e modernização máxima (Fernandes, 2006a: 209),
implicando na compatibilização de Antigo Regime e sociedade de classes, em
que a estrutura social limitaria a absorção das dinâmicas societárias da
sociedade moderna. Mais especificamente, o "capitalismo dependente"
implicaria num controle político do processo de mudança social pelas
classes dominantes, visando conter, restringir e sufocar ao máximo as
pressões democratizantes da sociedade de classes. A preservação de formas
de monopolização da renda e do poder em plena sociedade de classes aparecia
agora como parte de uma ordem social marcada pela heteronomia, em que a
própria burguesia, exprimida entre as demandas sociais e os imperativos do
capitalismo mundial, só pode optar pela "ordem" visando preservar a
estrutura social e seu próprio poder. Mais do que isso, o padrão
autocrático-burguês de modernização ainda se via reforçado pelo
desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista, na medida em que o
"capitalismo monopolista" reforçava e reencontrava, agora no ponto mais
avançado, a limitação de qualquer promessa democratizante (Fernandes,
2006a, parte III).
Tendo em vista a discussão realizada gostaríamos de chamar atenção
para o relativo encontro entre as duas perspectivas, ainda que por caminhos
opostos. Trabalhando com um conceito "mínimo" de capitalismo, mais próximo
da visão weberiana mas de certa forma contra Weber, Maria Sylvia de
Carvalho Franco conectava dominação pessoal e dominação burguesa,
desestabilizando tanto sua suposta incompatibilidade quanto as expectativas
"civilizatórias" (democratizantes) do desenvolvimento capitalista. Enquanto
Florestan Fernandes, utilizando o conceito mais "diferenciado" ou
"saturado" historicamente, conecta autocracia e capitalismo monopolista,
concorrendo para o mesmo efeito de fechamento político e para a defesa do
socialismo como única via de realização do moderno. Encontramos aqui a
reviravolta que a tradição crítica paulista imprime às interpretações
dualistas do Brasil, como aponta Elide Rugai Bastos: "em lugar de uma
explicação linear, opera como se as duas pontas do continuum ["atraso" e
"moderno"] se encontrassem e esse encontro gerasse, simultaneamente, o
objetivo, a unidade de pesquisa, o desafio à compreensão, a busca por um
suporte teórico e o método de investigação" (2002, p.186).
Assim, ainda que por caminhos distintos e discordâncias claras quanto
ao lugar e ao calibre das tensões do processo histórico, ambos os autores
parecem ter certa concordância no que diz respeito a uma certa dinâmica de
"circuito fechado" que o capitalismo impunha ao Brasil – formalizando uma
"sintaxe da frustração" (Arantes, 2002) que gostaria de sugerir como a
maior contribuição dessa tradição crítica para nossa reflexão
contemporânea.

7. Podemos encaminhar nossas reflexões finais aproveitando a imagem
sugerida por Brasil Jr. (2013) quando contrapõe a concepção do
"desenvolvimento" como uma linha reta – pressuposta pela "sociologia da
modernização" – e como um labirinto – tal como seria possível destacar das
análises de Florestan Fernandes (e Gino Germani) quanto à marcha
ziguezagueante da revolução burguesa no contexto periférico, em que se
frustravam as expectativas de conciliar modernização econômica com
democratização política e social.
De fato, levar a sério a imagem do labirinto significa realmente
abrir mão de um télos, e mesmo de uma direcionalidade unívoca. O labirinto
visto de cima é só um exercício de paciência. Visto de dentro, porém, o
labirinto é puro desespero e aflição já que perdemos as próprias
referências capazes de apontar a direção. Transpondo para o problema que
nos interessa: a imagem do labirinto implica em assumir que simplesmente
não sabemos onde o processo vai dar, o que exatamente se "desenvolve", e
perdemos ainda a própria referência a partir da qual se estabeleceria a
distinção entre "progresso" e "regresso", pressuposto da visão de
Fernandes. Ora, esse problema se coloca por dentro do próprio esforço de
"generalização" característico da sociologia: como construir um "tipo" que
não fixe em um "destino" uma configuração social que, no mesmo passo que é
desenhado pela mão do sociólogo, é desmanchado pelo curso da história
"real"? Me parece que o que está trabalhando "por dentro" o debate de
Franco com Fernandes é a própria impossibilidade de fixar um conjunto de
atributos em um tipo (pelo menos na sua apreensão generalizadora), dado que
o desencontro crônico que marca a análise das revoluções burguesas na
periferia do capitalismo – que simplesmente não podiam abrir mão do modelo
"clássico" – parece forçar o reconhecimento da própria historicidade das
formas de dominação burguesa e de luta de classes, ainda mais no momento em
que se fala de "brasilianização do mundo", quando a nossa "imperfeição" se
generaliza.
O problema daquela perspectiva "sistêmica" com que trabalhava
Florestan Fernandes é que as mediações conflituosas e violentas (e
contingentes!) entre a dimensão dos "valores" e os resultados
democratizantes da ordem social competitiva ficam sublimadas: ou seja, o
caráter profundamente violento da luta de classes nos países de revolução
burguesa "clássica", fazendo lembrar os traumas da "abertura" da OSC pelos
debaixo e a relativa solidariedade entre a ordem estamental e a nova ordem
burguesa também por lá[5]. Como se também Fernandes tivesse sido vítima
daquela miragem que cristalizou as conquistas do chamado "Estado de bem-
estar social" num patamar quase natural a ser alcançado com o "pleno
desenvolvimento" do capitalismo. Aliás, do ponto da sociedade "neoliberal"
que temos hoje é surpreende como a generalização da competição como
princípio de coordenação das relações sociais aparece sempre para Florestan
com um sentido emancipatório e democratizante. Minha hipótese é que isso
acontece pois ele mantém fixos dois parâmetros: tanto as formas de
solidariedade típicas da sociedade nacional – garantindo um horizonte de
reconhecimento intersubjetivo comum –, quanto as formas de solidariedade de
classe. Por isso a competição pode ser pensada sempre se dando entre grupos
sociais no acesso à renda, poder e prestígio. Ora, o que nos parece claro
hoje é que a competição é inseparável do processo de individualização,
levada ao máximo no mundo em que vivemos, que joga as desigualdades sociais
estruturais na chave da concorrência individual. Ou seja, a competição não
se faz somente entre os grupos mas dentro deles, entre os próprios
trabalhadores – e, portanto, pode operar no sentido da
dessolidarização/desagregação social.
Daí também que essa visão idealizada da transformação da força de
trabalho em mercadoria recoloque aquele aparente "ponto cego" de Fernandes
sobre o sistema social moderno: o fascismo. Para o autor, do moderno só
parece sair um vetor inequivocamente democratizante, por mais frustrado que
ele seja repetidamente, no plano dos processos históricos, pela aliança
entre estruturas sociais "arcaicas" e capital monopolista "avançado".
Podemos chegar agora a uma visão mais acurada da relação entre teoria
e história em Florestan Fernandes. Me parece que, se ele nunca abandonou
totalmente o tipo de temporalização da história envolvida na ideia de
"progresso", é porque, ainda que em comparação com a "sociologia da
modernização" sua perspectiva implicasse no adensamento histórico da
análise, o conjunto de valores que formariam o sistema axiológico
característico do "padrão de civilização" moderno permanecem fixos e
inalterados, pairando acima da história. Na realidade, esse sistema de
valores nunca chega a ser estudado na sua construção social, ele sempre é
pressuposto, já que se tratariam de potencialidades "inerentes" ao padrão
de civilização, como tantas vezes repetiu. Por isso, quando o capitalismo
monopolista apaga, mesmo no "centro", a possibilidade de realização do
moderno, o socialismo se torna a única chama a manter acesa aquela
expectativa emancipatória – ainda que todo drama esteja em reconhecê-lo
como necessário ou contingente (do ponto de vista do processo histórico),
dado que o labirinto também pode levar ao esgotamento das energias utópicas
(Habermas, 1987).
De certa maneira, Maria Sylvia de Carvalho Franco sempre manteve uma
posição mais negativa quanto ao que chama de "promessas civilizatórias" do
capitalismo as quais mesmo o esquema "capitalismo autônomo" x "capitalismo
dependente", envolvido na divisão "centro" x "periferia" típica da teoria
da dependência, teria aderido:
Esse novo dualismo vai padecer exatamente dos mesmos prejuízos políticos e
práticos já indicados: uma valorização tácita da industrialização, na
verdade do capitalismo e de seus conteúdos civilizatórios, no pressuposto
de que traga consigo o progresso das instituições democráticas burguesas.
(…) Desloca-se, assim, o foco da crítica teórica e política da essência do
capitalismo, de suas determinações universais presentes nas situações
particulares, para estas últimas, vistas discretamente. Como resultado
desta nova figura da mesma noção de progresso acima referida, vemos
revalorizados os componentes da cultura capitalista: aparecem reforçadas as
representações abstratas da democracia burguesa (Franco, 1976: 64)[6].
Ou seja, mesmo a perspectiva do "desenvolvimento desigual mas
combinado", projetaria na periferia uma espécie de realização imperfeita ou
insuficiente da sociedade de classes – algo, aliás, que o próprio Florestan
Fernandes certamente admitiria, visto que até o final da vida falava no
"tipo rústico de sociedade de classes" que se desenvolveu no Brasil (2006b,
p.170). Por outro lado, Franco não chegou a construir categorias analíticas
alternativas que pudessem substituir os pares "centro" x "periferia".

8. Já a ideia de "circuito fechado", que mencionamos acima, parecia
fornecer, para Florestan Fernandes, uma imagem mais acurada do tipo de
dinâmica associada à modernização capitalista no Brasil. De fato,
dialogando com as formulações recentes de Paulo Arantes poderíamos sugerir
que a imagem de circuito fechado, quando lida à luz da distinção entre
"espaço de experiência" e "horizonte de expectativas" de Koselleck, parece
indicar esse rebatimento do segundo no primeiro, essa dobra produzida numa
"era da emergência", que também pode ser lida como uma era de "expectativas
decrescentes" (Arantes, 2014) – talvez um outro nome para se referir aquilo
que, visto do patamar moderno de expectativas, se anunciou como frustração,
sobretudo para aqueles que souberam ver nos tempos sombrios das ditaduras
sul-americanas não a suspensão mas a conclusão daquele processo de
modernização capitalista.
Se for esse o caso, resta agora se perguntar, na nossa mais nova
crise, de qual frustração estamos falando. Afinal, se a crise expõe algum
tipo de desilusão, de frustração das expectativas compartilhadas, vale
lembrar que o patamar de tal horizonte de expectativas não se mantém
inalterado ao longo do processo histórico. Pelo contrário, se as
coordenadas da política mudam de época pra época, é também porque tais
patamares se alteram dramaticamente, de forma que seríamos levados a
perguntar quais expectativas se frustram nessa nova rodada. Curiosamente,
aqui a "inatualidade" da sociologia de Fernandes revela sua "atualidade"
política. Acredito que, no momento em que tem se falado do fim de vários
"ciclos" - da "nova república", do PT, e etc. - vale a pena reler os textos
de Florestan das décadas de 1980 e 1990 quando, participando da fundação do
PT e da Assembléia Constituinte, desferia um olhar dissonante para o
processo de redemocratização, chamando atenção para sua vinculação completa
com aquele velho esquema de acomodações sem rupturas de que foi feita a
"modernização" brasileira, onde a única perspectiva para a reviravolta
crítica seria a de questionamento da ordem pelos movimentos sociais
organizados.
Assim, poderíamos sugerir que a atualidade dos textos de Florestan
Fernandes dos anos 1980/90 está no potencial crítico que permite flagrar o
rebaixamento de um patamar histórico de expectativas que se consolida,
enquanto horizonte da política, na lenta transição para a "nova república",
toda ela marcada pelo signo da conciliação. Seu inconformismo e
radicalidade, que pareceu no momento de euforia da "abertura"
excessivamente negativo para companheiros de esquerda (Coutinho, 2005, p.
263), revela-se fundamental para revermos de quais ilusões foram feitas as
últimas expectativas que agora estão indo ao chão. Afinal, à pergunta "o
que resta da modernização conservadora?", talvez possamos responder: nada.
Não porque ela realizou sua promessas, mas porque ela se completou. A
visualização de uma "normalização da mudança social", que foi possível para
Fernandes quando o regime militar frustou as altas expectativas anteriores,
pode bem anunciar a passagem de uma era política das grandes
transformações, para uma era da "gestão" do social. Afinal, quando as
próprias forças sociais do "campo popular" realizam plenamente seu destino
histórico e, chegando ao poder, se transformam nos melhores gestores das
políticas sociais de administração da pobreza e de inclusão com pacificação
social, toda feita na base do consenso e da desmobilização social,
articulando agronegócio e sindicatos, militarização e empreendedorismo dos
pobres, talvez tenhamos visto que o pior pesadelo de Fernandes esteja
simplesmente concretizado.
Mas, como não poderia deixar de ser, a imagem de circuito fechado não
deixa de invocar também o encontro explosivo entre a preservação das
desigualdades e a modernização capitalista, como se do encontro entre as
duas pontas do continuum saíssem faíscas. Como esclarecia no prefácio de
seu livro com tal título,
"circuito fechado constitui uma equação metafórica de um dos ângulos da
situação que prevalece graças aos tempos retardados da revolução burguesa.
A história nunca se fecha por si mesma e nunca se fecha para sempre. São os
homens, em grupos e confrontando-se como classes em conflito, que 'fecham'
ou 'abrem' os circuitos da história. A América Latina conheceu longos
períodos de circuito fechado e curtos momentos de circuito aberto. No
entanto, o modo pelo qual se dão as coisas, nos dias que correm, revela que
o 'impasse de nossa era' não consiste mais no caráter perene da repressão e
da opressão. Os que reprimem e oprimem nestes dias lutam para impedir o
curto-circuito final (...)" (Fernandes, 1976a, p.5)
Desse ponto de vista, a atualidade crítica dessa tradição que fez da
periferia um ponto de vista (Bastos, 2002), tanto metodológico quanto
político, mantém-se de pé, mas conquanto lembremos que, se a "frustração" é
o fermento da situação revolucionária (Fernandes, 2006b, p. 190), ela
também é uma "máquina de fazer vilão", como lembra Mano Brown.

Referências bibliográficas:
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Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
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Conrad, 2004.
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Socialismo ou barbárie: Rosa Luxemburgo no Brasil. São Paulo: Instituto
Rosa Luxemburgo Stiftung/Estação das Artes, 2008.
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São Paulo: Boitempo, 2014.
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RICUPERO, B. Da formação à forma: ainda as "idéias fora do lugar". Lua
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SANTANA, F. A. Teoria sociológica e realidade brasileira: possibilidades de
produção de conhecimento teórico a partir de dois debates da sociologia
brasileira. Dissertação de Mestrado, UNIFESP, Guarulhos, 2014.


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[1] O presente texto pretende ser uma discussão livre a partir dos
resultados da dissertação de mestrado (Cazes, 2013) na qual busquei
reconstituir a sociologia histórica investida na interpretação do Brasil
realizada por Maria Sylvia de Carvalho Franco, indicando o modo como
intervinha nos principais debates sociológicos de sua geração. O ponto de
chegada daquela dissertação – uma tentativa de esclarecimento das
principais tensões entre a perspectiva de Franco e a de seu orientador
Florestan Fernandes – pareceu-me uma boa entrada para a reavaliação crítica
da "escola sociológica paulista", alvo que pretendo avançar no presente
trabalho. Nesse sentido, mais do que uma demonstração rigorosa dos
materiais analisados, serão feitas sugestões críticas que partem do
pressuposto de um conhecimento básico das formulações dos autores
trabalhados. Assim já esclarecemos, também, a expressão um tanto enganosa
presente no título: trataremos especificamente da tradição intelectual que
tem sido chamada de "escola sociológica paulista" e não da tradição crítica
– cujo espraiamento para além da sociologia stricto sensu seria necessário
tratar – "paulista" em geral.
[2] Tal como vem sendo apontado por uma série de reflexões
contemporâneas. Cf. Arantes, 2008; Nobre, 2012.
[3] Explicando: a ordem social seria organizada de acordo com critérios
estamentais entre as camadas de homens livres; e de acordo com critérios de
castas na relação entre "brancos" e "negros" (Fernandes, 2006a).
[4] Como explora de modo consistente o trabalho recente de Santana
(2014).
[5] Como observa Brasil Jr. (2013), aquela bi-partição do "tipo" da
sociedade de classes – "capitalismo autônomo" x "capitalismo dependente" -
forçava uma reconsideração da ideia de "sistema", que deixava de ser um
recurso analítico a disposição do sociólogo e passava a formalizar, nos
seus pressupostos, uma experiência histórica determinada. Daí que,
aparentemente abandonando seus antigos pressupostos, o autor afirme que "a
revolução burguesa [clássica] não previa uma sociedade mais ou menos
aberta. Foram os proletários, lutando com firmeza, que abriram a ordem
burguesa, aprofundando uma revolução que a própria burguesia interrompera
no momento em que se tornara classe dominante. Desse ângulo, a democracia
burguesa das nações capitalistas centrais é uma conquista dos de baixo"
(Fernandes, 2006b, p.146)
[6] Vale lembrar, porém, que enquanto a vertente de FHC da teoria da
dependência rumou à uma teoria do "autoritarismo", defendendo as virtudes
do desenvolvimento dependente e associado, Florestan Fernandes se manteve
crítico a essa posição, defendendo o socialismo como única via para
democratização real no capitalismo dependente. (Fernandes, 1979b)
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