Entre Legenda e História: A representação do \"tirano\" Ezzelino III nas hagiografias antonianas.

June 26, 2017 | Autor: Gustavo Gonçalves | Categoria: Late Middle Ages, Medieval History, Hagiography, Canonization and sanctity
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1 Entre Legenda e História: A representação do "tirano" Ezzelino III nas hagiografias antonianas. Ezzelin, cuja melancolia só se curava com o espectáculo da morte, e que tinha paixão pelo vermelho do sangue, assim como outros homens têm pelo vermelho do vinho - filho do Demónio, como era vulgarmente designado, trapaceara o pai aos dados quando jogava a própria alma – Oscar Wylde.

Boa tarde a todos e todas. Meu nome é Gustavo da Silva Gonçalves e apresentarei o trabalho “Entre Legenda e História: A representação do "tirano" Ezzelino III nas hagiografias antonianas”. Este conjunto de reflexões faz parte de abordagens iniciadas em 2012, estando inserido no projeto de pesquisa ‘Os Tempos de Santidade’ coordenado pelo professor Igor Salomão Teixeira. O foco deste trabalho é analisar a questão da tirania expressa na figura de Ezzelino III Da Romano nas hagiografias sobre Antônio de Pádua. Tirano ou tirania: ambos se constituem como palavras de uso recorrente no vocabulário cotidiano. De igual modo há um emprego deste conceito nas abordagens históricas, sendo motivo de discussão e debate tanto na Grécia quanto em Roma, por exemplo. Como indica Newton Bignotto, foram os gregos os primeiros a buscar reflexões acerca da legitimidade dos governos. Aristóteles é um dos pensadores que mais refletiu sobre as formas de organização do social.. No que concerne ao caso específico dos tiranos, os pensamentos de Sólon e posteriormente de Heródoto foram fundamentais para a “invenção da tirania”, mesmo que se tenha inicialmente uma visão depreciativa desta forma de governo1. Para o estudo em questão, é importante afirmarmos que a tirania é um conceito histórico, suscetível a modificações e adaptações em dadas circunstâncias espaciais e históricas. Cabe-nos fazer algumas interrogações: o que este conceito significou em um contexto de instabilidade política? Quais os entrelaçamentos são possíveis de realizar entre o tirano e a Cúria romana? 1

BIGNOTTO, N. O tirano e a cidade. São Paulo: Discurso Editorial, 1998, p. 38-39.

2 Ao apresentar o trabalho a seguir, estamos dispostos a contribuir para os estudos medievais ao analisarmos as composições hagiográficas sobre Santo Antônio de Pádua – a saber, a Legenda Assídua (1232?) e a Legenda Benignitas (1280). Além disso, mencionamos outras obras contemporâneas e posteriores a estas, como os escritos de Rolandino de Pádua e Salimbene de Adam. Acreditamos que a análise deste corpus permitirá apresentar uma interpretação do período e sobre o conceito de tirania no contexto de atuação política de Ezzelino III Da Romano. Visamos salientar que as hagiografias podem nos auxiliar a uma interpretação histórica de diferentes conjunturas e suas modificações ao longo do Duecento. De igual modo sustentamos que neste período não há tamanha diferenciação entre as vitae e crônicas, ou seja, encontram-se em certa reciprocidade e contato, já que no contexto do Duecento uma determinada circularidade permitia suas interações, tal como Antonio Rigon afirmou2. 1. A política da Península Itálica: a Cúria Romana frente às instabilidades do período. Apesar de haver modificações quantitativas e qualitativas ao longo do Duecento, é imprescindível atentarmos para alguns enfoques que antecederam este período histórico. De um lado temos as novas ordens mendicantes – que conforme David Foote afirma, foram mais catalizadoras de um processo já em curso dos séculos precedentes do que inovadores em aspectos teológicos3, ao passo que do outro a própria organização político-social da região. As tratativas sobre as liberdades citadinas são elementares para se compreender, por exemplo, a Paz de Constança de 1183. Para esse momento, Mario Ascheri aponta que “a Liga Lombarda não renegava o império em si, mas aquele império que quisesse fazer-se tirano,

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RIGON, A. Dal libro alla folla: Antonio di Padova e il francescanesimo medioevale. Roma: Viella, 2002, p. 99. 3 FOOTE, D. Mendicants and the Italian Communes in Salimbene’s Cronaca. In: PRUDLO, D. (org.). The Origin, Development and Refinement of Medieval Religious Mendicancies. Leiden: Brill, 2011, P. 199.

3 que quisesse retirar as “liberdades” adquiridas há tempo”4. Como se vê, desde o século XII houve uma preocupação acerca das liberdades e a legitimidade de um dado regime político. Contudo, isso não quer dizer que não houvesse interações entre “o poder de muitos” e “o governo de um”: como bem demonstrou Enrico Artifoni, o paulatino desenvolvimento das comunas e do regime de popolo foi calcado por permanente instabilidade e necessidade impostas pelas contingências sociais, o que também representou uma vasta produção jurídica acerca do estatuto e legitimidade desta forma de governo5. Devido a esta conjuntura afirmamos que se deva atentar para o importante papel ideológico conferido à Igreja no Duecento, aspecto fundamental por forjar determinada visão do tirano e da tirania, que mutatis mutandis, paulatinamente se assimilou às noções de heresia e de demonização daquele. Em outras palavras, torna-se pouco fecundo analisar as conjunturas políticas do Regnum Italicum neste dado momento sem considerar o próprio desenvolvimento e atrelamento à Igreja. Conforme assinala Patrick Gilli, “o papel da religião e das instituições eclesiásticas foi considerável, ao fornecer modelos e uma gramática que as comunas souberam copiar. Não há autoridade sem alguma porção sem alguma porção de sagrado”6. Tais questões se inserem no fluxo das modificações realizadas a partir da Cúria Romana no decurso dos séculos XII-XIII. Também é neste momento em que o papado realiza uma maior sistematização dos procedimentos de canonização, tendo início no limiar do século XII e sendo aprofundado por Inocêncio III (1198-1216) e Gregório IX (1227-1241). Conforme pontua Julien Terry, estas transformações são frutos das propostas de Gregório VII

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ASCHERI, M. La “Pace” di Costanza (1183), fondamento delle libertà cittadine nel Regno d’Italia, e i suoi giuristi. In: Initium, 15, 2010, p. 216. 5 ARTIFONI, E. Tensioni sociali e istituzioni nel mondo comunale. In: TRANFAGLIA, N.; FIRPO, M. (orgs). La storia. I grandi problemi dal medioevo all’età contemporanea. Torino: UTET, 1986 6 GILLI, P. Cidades e sociedades urbanas na Itália Medieval (séculos XII-XIV). Campinas: Editora da Unicamp; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 19.

4 (1073-1085), mas que adquirem forma nos séculos posteriores. Em sua interpretação, “a noção de teocracia é perfeitamente adequada para designar esse período […] A Sé Apostólica se esforçou, por outro lado, de impôr a espada espiritual sobre a espada temporal”, sendo o pontificiado de Gregório IX um dos primeiros a sedimentar este processo7. Foi neste influxo em que Antônio de Pádua conviveu, palco de diferentes embates e instabilidades políticas, em muito colaboradas pelos dois pilares de análise desta apresentação: a Igreja Católica e os regimes políticos compreendidos por “tirania”. 2. Ezzelino, o infiel? A tirania na encruzilhada da história e da Igreja. Passemos às análises das hagiografias. Em primeiro lugar, pode-se afirmar que a Assídua é contemporânea à canonização de Antônio, também sendo escrita por um autor que, embora desconhecido, possui profunda identificação com Pádua. Temos aí um primeiro indício: de acordo com Andrea Tilatti, esta hagiografia possui inspirações dentro da ordem franciscana, o que engendrou em um “relacionamento de simbiose entre o culto dos santos locais e as instituições […] com as modificações das realidades político-institucionais”8. Se considerarmos que a Assídua é a base comum para as hagiografias antonianas subsequentes, tal como assinalou Maria Cândida Monteiro Pacheco9, identificaremos nestas a transmissão do ideal “paduano” e a proposta de construção da santidade a partir deste gênero literário. Na leitura da Legenda Benignitas, diversos adjetivos são empregados para representar a imagem de Ezzelino: cão raivoso, inimigo de Deus, pérfido, cruel, etc. Neste encontro ocorre a suposta conversão de Ezzelino, já que este mostrou, daquele momento em diante, 7

THERY, J. Le triomphe de la théocratie pontificiale du IIIe concilie du Latran au pontificat de Boniface VIII (1179-1303). In: CERVINS, M.M.; MATZ, J.M. (orgs.). Structures et dynamiques religieuses dans les sociétés de l’Occident latin (1179-1449). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2010, pp. 17-18. 8 TILLATI, A. L’Assidua: ispirazione francescana e funzionalità patavina. In: Il Santo, XXXVI, 1996, p. 67-68. 9 PACHECO, M.C.M. Santo António de Lisboa: Da Ciência da Escritura ao Livro da Natureza. Lisboa: IN-CM, 1997, p. 17.

5 uma suposta devoção ao santo10. Contudo, esta conversão não encontra respaldo histórico, pois em uma carta datada de 1 de setembro de 1231 o então papa Gregório IX busca convencer Ezzelino III a abandonar os projetos de conquista e converter-se através da misericórdia de Cristo11. Prosseguindo com a análise das hagiografias, há de se mencionar as Florinhas de Santo Antônio: tendo sido influenciada pela Legenda Prima de Antônio, o compositor também nos informa sobre o encontro, utilizando similares expressões para representar Ezzelino, já que sua campanha na região esteve impregnada de matanças e sangue 12. De igual modo nos é legada esta imagem de Ezzelino a partir da Legenda Raimondina: mesmo que esta não mencione o contato entre os personagens supracitados, informa-nos o caráter tirânico de Ezzelino. É importante frisar que nesta Legenda encontra-se o relato do embate entre as partes, que com o auxílio da santidade antoniana, possibilitou a vitória de Pádua13. Se as atribuições depreciativas são recorrentes nas hagiografias, de modo similar a Cúria romana se empenhou em assimilar Ezzelino como herege, e, posteriormente com a figura do diabo. Na bula Cum de summo, de 1 de setembro de 1231, ou seja, pouco tempo após a morte de Antônio, lemos que Ezzelino é aproximado à figura de Satanás, além de causar infortúnios a população cristã.14 Tomando outro exemplo, a bula de excomunhão de Ezzelino, a Truculentam de 1254 representa-o como um “homem inumano”, que não

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LEGENDA BENIGNITAS. Disponível em: http://files.santo-antonio.webnode.pt/200001546c0e60c1db1/Fontes%20Antonianas%20III%20-%20IIA.pdf. Acesso em 22 de setembro de 2015, p. 35. 11 VERCI, G. Storia degli Ecellini. Bassano: s.n., 1776, p. 235. 12 LIVROS DOS MILAGRES OU FLORINHAS DE SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Introdução e tradução de Frei Fernando Felix Lopes OFM. Disponível em: http://files.santo-antonio.webnode.pt/200001550c0548c0cf4/Fontes%20Antonianas%20III%20-%20IIIC.pdf. Acesso em 22 de setembro de 2015. P. 100 13 LEGENDA RAIMONDINA. Introdução de Frei Henrique Pinto Rema OFM. Tradução de Frei Fernando César Moutinho OFM. Disponível em: http://files.santo-antonio.webnode.pt/200001547843b18534d/Fontes%20Antonianas%20III%20-%20IIB.pdf. Acesso em 22 de setembro de 2015, p. 88-89. 14 VERCI, G. Op. Cit., p. 236.

6 satisfeito com a derrubada de sangue, visava também a ruína da via espiritual, isto é, a Igreja15. Também podemos considerar os escritos de Salimbene de Adam que mostra Ezzelino como filho do diabo e da iniquidade, ou sendo mais temido que Nero e até mesmo o diabo dada a sua crueldade16. Na Cronica de Rolandino de Pádua se lê uma assimilação com o Anticristo, em que este autor também se empenhou em mostrar os combates para a libertação da cidade, e em termos similares são encontrados na Chronicon Marchiae do fim do século XIII17. Em meio a este grande número de documentos que representam a “tirania” de Ezzelino, como podemos buscar uma interpretação histórica deste conjunto e o que tendem a assinalar? Mesmo que seja aplicado ao Trecento italiano, afirmamos que o conceito de “mutação senhorial” é fulcral para o entendimento deste período. Nas análises de Andrea Zorzi, a comuna e a tirania não são necessariamente excludentes. Ou seja, esta proposta entende que houve uma modificação política que se apresenta paulatinamente menos brusca, o que pode ter engendrado em uma pluralidade de forças em disputa no espaço político entre os séculos XIII e XIV18. Também foi neste período que se questionou acerca do bem comum comunal, sendo tal quesito um dos pontos nodais para desenvolver determinada visão de que governos senhoriais governavam para fins próprios19. Se no Trecento esta interpretação foi mais bem sistematizada com os tratados de Bartolus de Sassoferrato, em um momento precedente se teve uma interação e correlação de forças. 15

THERY, J.; GILLI, P. Le combat contre les Hohenstaufen et leurs allies. In: THERY, J.; GILLI, P. (orgs.). Le gouvernement pontifical et l’Italie des villes au temps de la théocratie (fin XII-XIV e s.). Presses Universitaires de la Mediterranee, 2010, p. 93 16 SALIMBENE DA ADAM. Cronica. Ed. Giuseppe Scala, 1999, 951p. Disponível em: http://www.alim.dfll.univr.it/alim/letteratura.nsf/%28testiID%29/076037D3E6734610C1256DEC003D0A23!op endocument. Acesso em 22 de setembro de 2015, p. 281. 17 CHRONICON MARCHIAE TARVISINAE ET LOMBARDIAE. Ed. L.A. Botheggi. Città di Castello: Lapi, 1914, p. 18. 18 ZORZI, A. La questione della tirannide nell’Italia del Trecento. In: ZORZI, A. Tiranni e tirannide nel Trecento italiano. Roma: Viella, 2013, p. 16-17. 19 ZORZI, A. Op. Cit., p. 29.

7 Como havíamos exposto anteriormente, a Igreja exerceu profunda influência nesta transformação. Ao vermos nesta instituição um dos elementos a serem considerados para análise, tendemos a concordar com Patrick Gilli na medida em que esta mobilizava uma essência religiosa para fins políticos20. De acordo com Sylvain Parent, foi a partir de Inocêncio III (1216), ou seja, contemporâneo a Antônio, que se relacionou com maior intensidade a tirania com a má governança21. Este fato não deixa de ser notável na medida em que lemos uma carta deste mesmo papa endereçado ao potentado de Pádua, em que defendeu a centralidade e necessidade da cidade na manutenção do equilíbrio político na região22. Ou seja, entende-se uma profunda interdependência entre hagiografia e controle político, resultando naquilo que Andrea Tilatti identificou como identidade paduana da Legenda Assídua, mas que pode facilmente ser aplicada às subsequentes graças à influência daquela nas posteriores hagiografias. 3. Breves conclusões: Antônio como serviçal da Igreja? As hagiografias antonianas desempenharam um papel fundamental no Duecento e séculos subsequentes: a manutenção e a propagação do culto do santo, mas também serviram como instrumentos que afirmassem determinada política da Igreja. Conforme assinala André Luis Miatello, “a hagiografia acabou se tornando, também, veículo de propaganda de determinada política urbana que, a uma só vez, entrecruzava as Ordens, o papado e os governos citadinos”23. Para dar sustentação a este argumento, retomemos a análise da Assídua: em nenhum momento há a menção à atuação de Antônio na região de Verona,

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GILLI, P. Op. Cit., P. 51 PARENT, S. “Tyrannica pravitas”. I poteri signorili, tra tirannia ed eresia. Riflessioni sulla documentazione pontificia (XIII-XIV secolo). In: ZORZI, A. Tiranni e tirannide nel Trecento italiano. Roma: Viella, 2013, p. 132. 22 VERCI, G. Op. Cit., pp. 155-158; RIGON, A. S. Antonio da “Pater Padue” a “Patronatus Civitatis”.Disponível em: http://www.persee.fr/doc/efr_0223-5099_1995_act_213_1_4936. Acesso em 22 de setembro de 2015. 23 MIATELLO, A.L.P. Santos e pregadores nas cidades medievais italianas: Retórica cívica e hagiografia. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013 21

8 território sob domínio ezzeliano visando a libertação do conde Rizzardo de São Bonifácio, que tinha amplo contato com Pádua. Por que omitir este fato? Podemos concordar com Luciano Bertazzo, que em sua análise, atribui a esta legenda uma função antiezzeliana24. Mas podemos ir além desta defesa. Dois motivos podem ser acrescentados: o primeiro é a característica monumental destes artefatos literários, sendo atravessado por diferentes disputas que acabaram por constituí-los. Entrelaçado a este ponto há a representação da tirania de Ezzelino que, sendo assimilada com a figura diabólica, esboça uma clara luta entre o bem e o mal. Se hoje são entendidos enquanto conceitos metafísicos, na conjuntura do século XIII possuiu conotações políticas e ideológicas, pois o tirano, paulatinamente assimilado com o demônio, necessitava ser combatido pela Igreja, que capitalizando em torno do santo a sua imagem, encontrou diferentes instrumentos para levar a cabo suas políticas. Neste momento é crucial retomarmos as observações de Patrick Gilli, o qual vê o uso de motivações religiosas para fins estritamente políticos da Igreja. Afinal de contas, não é possível afirmar que a Igreja, a legítima detentora das chaves dos reinos dos céus, mobilizou a devoção a fim de conter elementos que minasse a sua unidade?

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BERTAZZO, L. Per una storia del rapporto tra frati minori e santità civica. In: MUSCO, A. (org.). Francescani e la politica. Atti del Convegno internazionale di studio. Palermo: Biblioteca Francescana, 2007.

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