Entre lendas e rendas: algumas reflexões sobre os contos de fadas de Marina Colasanti

August 9, 2017 | Autor: Susana Ventura | Categoria: Retold Fairy Tales, Modern Fairy Tales
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Entre lendas e rendas: algumas reflexões sobre os contos de fadas de Marina Colasanti Susana Ventura

Além de Olinda ainda se encontra quem rendas tece e tece fendas, emendas, emblemas e gemas, [...] Além de Olinda, ainda se encontra quem lendas tece. ( José Eduardo Gramani – Além de Olinda)

Em ensaio publicado em 20011 Ana Maria Machado refletindo sobre texturas, tecer e textos, nos traz sua interpretação para duas versões de um conto popular -

coletadas

ambas pelos irmãos Grimm - conhecido por “Rumpelstiltskin”. A diferença básica entre as duas versões é a seguinte: enquanto na primeira delas, publicada em 1810, à heroína da história, uma jovem moça, é entregue um fardo de linho para fiar, porém ela inexplicavelmente só consegue fazer fios de ouro a partir dele, na segunda versão, publicada em 1857, o que se passa é que o pai da jovem, um humilde camponês se vangloria publicamente da habilidade ( em realidade inexistente) da filha de tecer palha e transforma-la em ouro. Em ambos os casos, a mocinha, que não tem a possibilidade de realizar a tarefa impossível, serve-se da ajuda de um homenzinho mágico, uma espécie de duende, que lhe oferece ajuda em troca de um preço bem alto – a entrega de seu primeiro filho, o que no entanto, é minimizado pela personagem, visto que passa por um grande apuro do qual depende sua sobrevivência, o que é muito mais imediato que o futuro de um hipotético filho, que jamais virá sequer a existir caso ela não possa se ver livre da tarefa. Diz Ana Maria Machado: Na primeira versão, a moça se desespera porque só consegue fazer ouro. Na segunda, porque não consegue. Na primeira, ela sabe que só vale alguma coisa se conseguir tecer e fabricar seu próprio tecido – e a ajuda do homenzinho lhe garante que, mesmo sem conseguir, pode se casar com um príncipe. Na segunda, os tempos são outros: saber tecer já não vale

mais nada, ela precisa fazer o impossível para seguir as regras que os homens ( ao pai e o rei) inventaram. Mesmo que para isso tenha que se submeter às condições impostas por outro homem – o que a “ajuda”. Não que a moça da primeira versão não soubesse que ouro era valioso. Mas, realisticamente, sabia que suas chances de viver bem estavam ligadas ao que conseguisse criar com seu trabalho – e não a um milagre ou magia.2

A afirmação de Ana Maria Machado de que a heroína precisa fazer o impossível para seguir as regras que os homens ( o pai, o rei) inventaram fez com que, uma vez mais dentro de nosso estudo sobre os contos de fadas de Marina Colasanti, nos voltássemos para o elenco de pais, reis e maridos dos contos3 e nos perguntássemos quais as regras que eles inventaram. As respostas nos surpreenderam e então fomos mais longe e perguntamos: o que as heroínas dos contos de Marina Colasanti fizeram em resposta às tais regras? Comecemos com as regras ditadas por pais, maridos ou reis. Em “Um espinho de marfim”, o rei e pai da princesa, vendo um unicórnio que ronda os jardins da filha, manda caçá-lo para si. Sem sucesso, queixa-se com a jovem, que promete capturá-lo. No entanto, após o “trato” firmado, ela se apaixona pelo animal. O pai regressa em cobrança de sua promessa - nos mesmos moldes do que ocorre no mencionado “Rumpelstiltskin” – e ela desesperada percebe que o preço a pagar é caro demais. Em “A primeira só”, o rei e pai da princesa ( filha única), responde às lágrimas de solidão da filha dando-lhe como única companhia um espelho. Numa brincadeira ele se quebra. Em “Sete anos e mais sete”, novamente o rei e pai da princesa ( outra filha única), não concordando com o príncipe por quem ela se apaixona, utiliza-se de recursos mágicos para adormece-la, em “Entre a espada e a rosa”, a princesa que não quer se casar acorda pela manhã com uma barba em volta do rosto. O pai, enfurecido, expulsa-a do palácio. Em “Como um colar”, o pai manda caçar o pássaro – único amigo de sua filha de quatorze anos, que jamais abrira os olhos e a qual todos consideram cega – pois este comera as pérolas com as quais pretendia mandar fazer um colar para a princesa. Em “Longe como o meu querer”, por fim, o pai nota a filha silenciosa ao jantar e obtendo dela a confissão da paixão por determinado jovem, não hesita em mandar decapita-lo, e entrega sua cabeça à filha, em uma bandeja de prata, retirando-se “sem esperar resposta, sem sequer procurá-la em seus olhos”.Os maridos embora muito menos numerosos nos contos de Marina Colasanti, não ficam atrás

em inventividade. O marido d’ “A moça tecelã”, uma vez tendo descoberto o poder mágico de criação do tear da esposa, ordena a confecção de inúmeros bens, inclusive um palácio com uma torre, onde a aprisiona junto de seu tear para que continue a trabalhar incessante e incansavelmente para satisfazê-lo. O rei e marido de “Entre leão e unicórnio” viaja montado no unicórnio de sonho da esposa e logo se aborrece de todo o resto, inclusive da própria esposa, da qual só quer que, todas as noites, adormeça bem rápido.Em “Debaixo da pele, a lua”, o rico comerciante que se casa com a bela e pálida moça, se assusta com o brilho de sua pele e a devolve, temeroso de que ela terminasse por brilhar mais com sua luz do que ele com seu dinheiro. Para a devolução faz as seguintes (falsas) alegações: que ela luzia para impedi-lo de dormir, e que, desta forma, o levaria à morte. Em “Sem asas, porém”, todas as mulheres de uma aldeia estão proibidas de comer carne de aves, para que não se corra o risco das asas subirem-lhes ao pensamento. Por fim, em “Luz de lanterna, sopro de vento”, a mulher que aguarda em casa o marido que está na guerra é surpreendida com a volta deste não retornado em definitivo, nem de visita, mas tão somente para repreendê-la porque a luz que ela mantém acesa durante as noites tira-lhe o sono. As respostas femininas a tais regras são dignas de nota e seguem a ordem inicialmente indiciada acima: Você quer o unicórnio? Eu me imolo com o chifre dele, o que é igual a: “eu me mato”; O espelho, minha única companhia, se quebrou, eu me atiro às águas do lago, atrás de minha própria imagem, o que é igual a: “eu me mato”; Você me põe para dormir? Eu sonho e me liberto pelo conteúdo do meu sonhar; Você me expulsa porque eu tenho uma barba? Eu compro uma armadura e um cavalo, abdico de minha feminilidade e luto como um guerreiro; As pérolas são o que há de mais importante e meu amigo vai morrer por isso? Eu abro meus olhos pela primeira vez e saio na neve, morrendo com ele; Você decapita o homem que eu amo e joga o corpo dele no rio? Eu me entendo com o que restou dele, faço serviço braçal e galopo em direção ao mar, para tentar encontrar corpo e cabeça finalmente unidos; Você me prende para tecer-lhe riquezas sem fim? Eu o desteço, desfazendo minha tapeçaria; Você me quer apenas para viajar pelas noites montado em meu unicórnio? Eu o prendo nos meus sonhos para sempre; Você me devolveu por medo do meu brilho? Eu fujo para onde meu brilho não seja punido; Não posso comer aves? Uma única vez é o bastante e eu saio andando em busca de minha vida; Você diz que meu amor e minha dedicação atrapalham? Lute sem isso, então.

Duras regras, as inventadas pelos pais, reis e maridos dos contos de Marina Colasanti, respostas duras das heroínas que têm de confrontar-se com o impossível. Poucas são as possibilidades pois, contrariamente ao que ocorre nos contos tradicionais, as heroínas colasantianas praticamente nunca recebem ajuda mágica ou externa. É notável a ausência da figura materna nos contos: em cinqüenta e sete contos, temos a figura da mãe em apenas três deles: “Uma ponte entre dois reinos”, “ Como um colar” e “De suave canto”. A mãe de “Uma ponte entre dois reinos” primeiro poda e em seguida explora o talento da filha, que lhe rende riquezas em preciosos rubis advindos das gotas de sangue que brotam na cabeça da moça a cada fio de cabelo que ela retira a pedido da mesma mãe, que, sem piedade, inventa necessidades mil que demandam a retirada dos inquebrantáveis fios. Em “Como um colar” a mãe da princesa que nunca abriu seus olhos é simplesmente omissa, uma figura meramente decorativa no conto. A mãe do jovem Taim, uma aldeã, é a única que pode ser descrita como a típica boa mãe dos contos de fadas, pronta a ajudar e colaborar com elementos para a jornada que o filho pretende empreender. De resto, as princesas, jovens aldeãs, tecelãs, jovens pescadoras, independentemente de classe social, estão normalmente sujeita às adversidades sem que recebam ajuda. Até a figura tradicional da fada madrinha, que aparece no conto “Sete anos e mais sete”, se alia ao rei, pai da jovem apaixonada, e não à mesma, como seria de se esperar. Em “Um cantar de mar e vento”, a talentosa jovem pescadora, que se serve de seu canto para a pesca, é invejada e odiada pelos demais pescadores e não tem aliados humanos. Colocada em perigo pela sabotagem de seu barco, ela conta com a ajuda de peixes e golfinhos, que conseguem salva-la temporariamente do trágico destino que lhe fora preparado pelos homens de sua aldeia. A jovem princesa de “Entre a espada e a rosa”, é expulsa pelo pai do palácio porque, da noite para o dia, vê-se barbada. Ela deixa o castelo vestida de mulher, com uma pequena trouxa com suas jóias. Por não conseguir trabalho devido à sua estranha aparência, ela vende suas jóias em troca de uma armadura com elmo e troca o anel que fora de sua mãe por um cavalo. É a única menção a uma herança materna em praticamente toda a obra analisada. O anel da mãe, herança tipicamente feminina e que pode apontar para os laços com a feminilidade e a ancestralidade da jovem é trocado por um cavalo, que vai fornecer-lhe a necessária mobilidade para trabalhar e transportar essa mulher disfarçada em guerreiro, que não retirará a armadura e elmo até quase o final de sua história. A personagem de “A moça

tecelã” vive solitária em sua casa simples, dedicando-se a seu trabalho, primeiro um prazer, depois uma tortura sem descanso e sem a possibilidade almejada dos filhos que desejava ter, a jovem não recebe nenhum tipo de apoio ou ajuda externo que minimizem seu sofrimento ou ofereçam alternativas. Em “Sem asas, porém” e “Luz de lanterna, sopro de vento” são ainda mulheres simples, aldeãs, que sofrem sozinhas a solidão de destinos que lhe são impostos de maneira a não deixar margens a discussões. Finalmente, duas mulheres nobres: uma princesa outra rainha, respectivamente em “Longe como o meu querer” e “Entre leão e unicórnio” , que estão entre as únicas do universo estudado que podem contar com ajuda, mas que, ainda assim, é apenas a ajuda prática que pode ser dada pelas pagens/ aias encarregadas de servi-las. Não aparecem mães, avós, tias, fadas que possam oferecer conforto e ajuda. A presença de irmãs – uma possibilidade de relacionamento de solidariedade – é restrito a poucos contos, mais precisamente seis, sendo que em três deles o relacionamento descrito é o da rivalidade. Em “Além do bastidor” uma das irmãs borda a outra, imobilizando-a e aprisionando-a no bordado. “Fio após fio” nos mostra duas fadas, irmãs e rivais, em que uma transforma a outra em aranha, sendo que esta também a aprisionará ao final. Este conto tem uma particularidade interessante: está entre os poucos contos – em verdade apenas quatro41 em todo o conjunto – em que as personagens são nominadas. Dos quatro, dois – “Fio após fio” e “ Onde os oceanos se encontram” abordam a rivalidade entre irmãs levada às últimas conseqüências, no último deles por uma disputa amorosa. Conforme já abordamos em outra parte de nosso estudo sobre os contos de fadas colasantianos, em praticamente todos os contos as personagens são inominadas, aludidas pelo papel social desempenhado ( princesa, cozinheira, tecelã, pescadora), o que reforça, a nosso ver, sua condição simbólica. Mas gostaríamos de retomar o fio de nosso texto exatamente enfocando, como no início do ensaio, a condição de tecelãs ou tecedoras das personagens femininas de Marina Colasanti. O fiar, tecer e costurar aparecem com freqüência na obra, porém, para o âmbito destas reflexões, gostaríamos de trazer à baila os contos: “Além do bastidor” , “ Fio após fio”, “Um espinho de marfim” , “A moça tecelã”, “Entre leão e unicórnio” e “Uma ponte entre dois reinos”. Em “Além do bastidor” e “ Fio após fio”, temos a situação de dois pares 1

“Fio após fio” ( UITA) possui duas fadas irmãs: Nemésia e Gloxínia; em “Onde os oceanos se encontram” (DR) encontramos duas ninfas irmãs: Lânia e Lisíope; em “De suave canto”( LMQ), o jovem rapaz tem o nome de Taim; o tirano de “No castelo que se vai” chama-se Ráiç.

de irmãs que bordam. Em “ Um espinho de marfim” a princesa tece, já em “ A moça tecelã” o próprio título nos coloca frente à frente com a atividade de tecelã desenvolvida pela personagem e, em “ Entre leão e unicórnio” será a costura a ter o papel primordial no desenlace da trama. Outro tipo de tecelagem, similar à descrita em “Um espinho de marfim”, será primordial em “ Uma ponte entre dois reinos”. Outro tipo de fio, no entanto, sobressai-se numa primeira leitura dos contos onde a condição feminina é tratada mais diretamente na obra de Marina Colasanti: o cabelo. Nos seis contos que acabamos de elencar, os cabelos têm papel primordial nos últimos dois deles: em “Um espinho de marfim” a rede de ouro utilizada pela princesa para aprisionar o unicórnio é tecida a partir dos fios de seus cabelos. Vemos aí uma herdeira da linhagem da mocinha de “Rumpelstiltskin” em sua primeira versão: capaz de transformar os fios dourados de seus cabelos, pela fiação, em uma rede de ouro. Já a jovem de “Uma ponte entre dois reinos”, dona de cabelos que não podiam ser cortados, fortíssimos, era a única que podia tira-los de sua cabeça, e dar-lhes as mais diversas destinações: varal para roupas, trançado em viveiro para pássaro e por fim, material para construção de ponte sobre um abismo. Desta vez, não há a tessitura de manto dourado, porém, a cada fio de cabelo tirado da cabeça, uma gota de sangue, surge, rola e se transforma em um valioso rubi. No entanto, há, nos dois casos, um preço a pagar pelo talento exercido, preço este não relacionado à possibilidade da criação de riqueza demonstrada em ambos os casos. Em “Um espinho de marfim”, após aprisionar o unicórnio, a jovem se apaixona por ele, e se dá conta de que, novamente, está diante do impossível: como ser, ao mesmo tempo, fiel à promessa feita ao pai e ao amor ao unicórnio, que, muito provavelmente, será morto por ele? Em “ A ponte entre dois reinos”, a mãe da jovem inventa necessidades inexistentes com a finalidade de ficar com os rubis, que se acumulam em seus bolsos. Mas, lembremos que estes são derivados de sangue, provindo da cabeça da personagem5. A jovem com seu unicórnio também retira a riqueza com que tece a rede de ouro de sua cabeça. Chamada pelo rei, a moça dos longos cabelos inquebrantáveis,6 resolve ajuda-lo a construir a ponte, colhendo para isso alguns fios de seus cabelos – contrariando as ordens maternas – no entanto, mantendo a preocupação de guardar os rubis e entrega-los à mãe. Não contente com isso, a mãe quer também a glória pelo trabalho da filha e, desejando ser a primeira a passar pela ponte, é derrubada por seus passos demasiado duros para ponte tão delgada e

pelo peso dos rubis em seus bolsos. A jovem então, apoiada de leve na mão que lhe é oferecida pelo rei, atravessa a ponte, sob aplausos. A jovem com seu unicórnio não tem a mesma sorte e, após uma noite cantando acompanhada de seu alaúde, imola-se abraçandose ao espinho de marfim da testa do unicórnio. Temos então, um caso de transcendência mágica: o unicórnio, que existia em função dela, transforma-se num feixe de lírios e a jovem em mancha de sangue, únicos vestígios encontrados pelos que entram no quarto. O unicórnio marca presença também em “Entre leão e unicórnio”, onde a jovem rainha tem um leão como guardião de seus sonhos. O fato, uma vez descoberto pelo rei, é solucionado por este – por sugestão da sonhadora – pela amputação das patas do leão, o que liberta os sonhos da rainha. Porém a imaginação da rainha, uma vez liberta pode trazer problemas e o rei desperta uma noite cercado por beija-flores e abelhas, o que, curiosamente, apavora o rei (o mesmo rei que, recorde-se, decepou com uma espada, sem nenhum medo, as patas do leão) , que se esconde sob os lençóis – comparados a uma mortalha - até o despertar da rainha. Algum tempo depois surge o unicórnio. Interpelada a rainha conta ao rei que o animal é a montaria da sua imaginação e que galopa pelas noites sem que ela tenha sobre ele qualquer tipo de controle. Sem medo, na noite seguinte, o rei monta o unicórnio e viaja noite adentro. Tão rica e variada se mostra essa viagem, que o rei se desinteressa de todo o resto e espera ansioso, todas as noites, que sua mulher adormeça para viajar livremente montado no unicórnio. A rainha, que chega a ficar “doente, quase, de tanta desatenção”7 arquiteta um plano e pede à sua mais fiel dama de companhia que, tão logo ela adormeça, costure bem firme, com fio de seda, as patas do leão de volta no lugar. Ocorre, porém, que a fiel dama adormece antes e quando costura as patas do leão, o rei se encontra ausente, em uma viagem que, doravante, será permanente. “A moça tecelã” é com certeza um dos contos mais significativos da obra da autora. Nele a atividade feminina do tecer está mais claramente colocada e permite muitas leituras. A jovem, solitária, que é capaz de tecer a realidade em seu tear. Em harmonia com a natureza, ela tece um tapete que “nunca acabava”. Tendo todas as necessidades satisfeitas, a jovem tecia, sendo tecer sua única atividade e a única que também deseja desempenhar. No entanto, vem o tempo em que se sente só e tece para si um marido, imaginando já, na seqüência, filhos. No entanto, uma vez descoberto “o poder do tear”, o marido se esquece de todo o resto e a escraviza. Veja-se que, embora possuindo o poder de tecer tudo o que

deseja, inclusive seus alimentos e até mesmo um marido, a jovem no entanto, não pode sozinha tecer filhos, precisando do marido para tanto. Ela tece, sem parar e sem descanso, todos os bens que o marido passa a exigir, inclusive um palácio, com uma torre, onde ele pretende esconde-la ( ou prende-la? ) para que ela continue, em segredo, o infinito tecer. No entanto, o equilíbrio entre a tecelã e a natureza foi rompido, embora tecer continue a ser sua atividade de eleição, chega o tempo da tristeza, ela se perde dos movimentos naturais aos quais sempre estivera atenta: “A noite chegava e ela não tinha tempo para arrematar o dia”8. Passa a ser máquina de tecer, objeto da produção das riquezas exigidas pelo marido.Ela então, como Penélope, espera o anoitecer e, segurando sua lançadeira ao contrário, destece tudo o que tecera, inclusive o marido, que acorda tarde demais, e não tem sequer o tempo de se levantar, a ponto justo de ver “o nada” subir-lhe, implacável, pelo corpo. Ao final do conto, a jovem retoma sua atividade, novamente em harmonia com o mundo externo. Podemos notar que, em “Um espinho de marfim”, “Entre leão e unicórnio”, “Uma ponte entre dois reinos” e “A moça tecelã” , grande parte dos problemas apresentados – aprisionar o unicórnio, acabar com os passeios noturnos do rei, fazer a ponte, ter um marido e depois livrar-se - são resolvidos pelo fiar, costurar, tecer e, por último, pelo destecer. Nos dois outros contos, “Além do bastidor” e “Fio após fio”, as irmãs bordadeiras se configuram como rivais. Em “Além do bastidor”, uma jovem borda em um bastidor, um bordado que, dia a dia, vai surgindo de suas mãos livremente, sem risco – e aqui podemos tomar a expressão em dupla acepção: a comum da ausência de perigo, e a específica das tarefas do bordado, onde a bordadeira normalmente risca o pano, planejando antes do início do trabalho o rumo que este irás tomar. Porém, tal qual a moça tecelã, ela se afeiçoa cada vez mais a seu trabalho, até que passa “ a gostar dele mais do que de qualquer outra coisa”. Então, no dia em que, após bordar uma árvore carregada de suculentos frutos, “sua boca se encher do desejo daquela fruta nunca provada”, ela se descobrirá, de repente, dentro da obra, situação que se irá repetir até que a irmã um dia, pegando o bordado e vendo-a dentro dele, fixará a irmã no jardim, cortando em seguida a linha. Já as bordadeiras de “Fio após fio” bordam lado a lado, mas uma delas, insatisfeita com seu trabalho, transforma a outra em aranha, garantindo-se, assim, um fornecimento permanente de um fio de qualidade, com o qual passa a bordar com satisfação. No entanto, quando dá seu trabalho por terminado

descobre-se presa num casulo de fios prateados do qual não consegue se libertar, enquanto a irmã - aranha, esquecida da prisioneira, fia e tece, pacientemente ao redor do castelo. É notável a dedicação e o amor pelo trabalho que demonstram as personagens de “Além do bastidor”, “Fio após fio” e “A moça tecelã”, a ponto de ou não se notarem ou demorarem a notar seu aprisionamento. A prisão do criador pela criação, especialmente da criadora quando personagem feminina, é um ponto digno de nota na obra colasantiana. A dedicação total ao trabalho muitas vezes impede ou atrasa a percepção da situação de prisão. A imobilidade, ainda que não pelo aprisionamento, é outro ponto a ser tocado nos contos acima analisados. Vemos que nos três contos que acabamos de citar ocorre uma imobilidade real de personagens femininas: duas bordadeiras presas – uma em seu bordado, outra, pelos fios dos quais se utilizava para o trabalho; a moça tecelã cujo trabalho no tear já, de pronto, reduz-lhe a mobilidade e, em seguida presa realmente na torre do castelo que ela mesma tecera. Ao lado da imobilidade real, nos outros três contos também aparece uma imobilidade simbólica: em “ Um espinho de marfim”a princesa está presa a uma promessa feita ao seu pai, além de confinada a suas aposentos, que compreendem um jardim privado9, em “Uma ponte entre dois reinos” a jovem vive com sua mãe, depois, quando sua fama se espalha e o rei manda busca-la, é confinada em seu quarto que a jovem colhe seus cabelos, amarrando-os uns aos outros e desde lá empurra a corda feita com os fios através da porta, em “Entre leão e unicórnio”, a rainha é focalizada unicamente em seus aposentos. Uma vez tendo notado os passeios noturnos do rei, ensaia um diálogo onde comunica ao marido que havia sonhado que ele fugia montado no unicórnio, porém que fica feliz em vêlo. A reverência que ela faz ao marido, que é descrita em seguida, aponta para a formalidade das relações entre eles. O diálogo entre ambos cessa neste ponto do conto, a partir do qual, em vista da deterioração do comportamento social e amoroso do rei, cada vez mais distante, a rainha pensa na solução que ordena à sua fiel dama. A imobilidade e falta de poder da rainha são notáveis. Embora tenha poder de mando sobre suas damas, ela pouco consegue fazer diante do problema que se configura entre ela e o rei. Presas, imobilizadas no plano real ou simbólico, ou em ambos, nossas tecelãs, costureiras, bordadeiras, caminham sobre o impossível, capturando unicórnios, gerando riquezas, construindo, no entanto tendo de resolver questões extremamente difíceis de maneira terrivelmente solitária.

Nos contos de fadas tradicionais, a fase de imobilidade é um ponto de onde a personagem alcançará a superação. Nos contos de Marina Colasanti, muitas vezes, a imobilidade não é vencida, o que é indiciado pela própria narrativa, que muitas vezes informa que aquela personagem está presa “ para sempre”. Nossas artesãs, nos contos enfocados, resolvem problemas extremamente complexos, e conseguem, efetivamente, criar através de seus esforços. Só que, sem guia ou ajuda, muitas vezes, a morte, prisão – em poucos casos - a aniquilação do agressor se apresentam como únicas saídas possíveis. Ana Maria Machado, no ensaio citado no início de nossas reflexões, busca retraçar o percurso que as mulheres européias e brasileiras fizeram ao passar da tecelagem manual para o manejo de teares industriais, daí conseguindo serem aceitas em outras atividades, como datilógrafas por exemplo ( e gostaríamos de lembrar que esta é outra das atividades que demanda capacidade motora semelhante à do tecer e também a do tocar piano – outro “lazer” admitido para mulheres na sociedade burguesa, desde que se mantivesse dentro dessa categoria), até que, finalmente, “as mulheres que teciam ou bordavam foram tomando a palavra e contanto sua história textualmente ou textilmente”10. No caso do elenco de contos de Marina Colasanti tomados para o âmbito de nossas reflexões, a fada de “Fio após fio” não consegue prosseguir no bordado, mas utiliza-se de seu último fio de linha para bordar a palavra mágica que irá transformar a irmã em aranha e fornecer-lhe o fio de que ela precisa, com o qual passa a trabalhar e conseguir enfim um bordado que a satisfaça. A jovem tecelã de “A moça tecelã” vive e conta sua história textilmente, tem o domínio da técnica e a possibilidade de gerar todos os bens materiais de que realmente necessitem. Que ambas fiquem prisioneiras de suas próprias circunstâncias, e mesmo com a capacidade de produzir riquezas e domínio do mundo do trabalho, se vejam em apuros exatamente em meio ao este mundo tão cobiçado e sobre o qual tantas ilusões se teceram nos parece significativo. Voltando ao conto dos irmãos Grimm, é pela troca da habilidade de tecer pela habilidade da palavra - sim, pois a jovem, uma vez “salva” pelo auxílio mágico do homenzinho, realmente se casa bem, tem um filho e está na iminência de perdêlo e nesta volta o que se lhe está pedindo é que descubra a palavra mágica para a salvação: o nome do duende – que a heroína novamente consegue não perder, desta vez não a vida, mas, o que talvez seja pior: seu filho. Olhamos para nossas personagens: a fada que se

utliliza do tecer e da palavra mágica, mas que termina presa “para sempre” e a jovem tecelã, que não consegue chegar à realização sonhada dos filhos e passa, inclusive por um período de escravidão, até que, herdeira de Penélope, destece tudo o que criara, inclusive o marido e retorna `a situação inicial, em sua casa simples, com seu tear, e pensamos que talvez a transição ainda não se tenha completado. Dialogando, ainda uma vez com o texto de Ana Maria Machado, nossas personagens são até bem realistas quanto à necessidade de criar riquezas e assim poderem se manter - e o fazem - mas ocorre, para a mulher, talvez ainda haja um longo caminho a percorrer e o preço a pagar pela audácia é muitas vezes caro demais. Mas é com uma nota de esperança que gostaríamos de terminar este trabalho, porque se quem rendas tece, lendas tece, esperemos o tempo em que possam essas narrativas nos dar notícia de que entre fendas, emendas, emblemas e gemas, uma nova realidade feminina – mais justa e feliz - já existe. 1

MACHADO, ANA MARIA. “O Tao da Teia – sobre textos e têxteis” In Texturas – sobre leituras e escritos. 1a. Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 2 MACHADO, op. cit. p. 24, nota 1. 3 Quando este ensaio foi escrito, Marina Colasanti tinha publicado quatro livros de contos de fadas. Eram eles: Uma idéia toda azul ( UITA), Doze reis e a moça no labirinto do vento ( DR), Entre a espada e a rosa ( ER) e Longe como o meu querer ( LMQ). Para o âmbito deste trabalho, estaremos lidando com os seguintes contos ( os livros a que pertencem são referidos pelas siglas determinadas acima): “Um espinho de marfim”, “A primeira só”, “Sete anos e mais sete” , “Fio após fio” de UITA; “A moça tecelã” , “Entre leão e unicórnio”,”onde os oceanos se encontram”, “De suave canto” e “Uma ponte entre dois reinos”, de DR; “Entre a espada e a rosa” e “Como um colar” de ER; “Debaixo da pele, a lua”, “Sem asas, porém”, “Luz de lanterna, sopro de vento”, “Um cantar de mar e vento” e “Com sua voz de mulher”, de LMQ. 4 “Fio após fio” ( UITA) possui duas fadas irmãs: Nemésia e Gloxínia; em “Onde os oceanos se encontram” (DR) encontramos duas ninfas irmãs: Lânia e Lisíope; em “De suave canto”( LMQ), o jovem rapaz tem o nome de Taim; o tirano de “No castelo que se vai” chama-se Ráiç. 5 O motivo dos cabelos fortíssimos e que não podem ser cortados volta a aparecer no conto “Entre a espada e a rosa” (ER), onde, no entanto, eles se configuram como uma barba que envolve o rosto da princesa. 6 Não podemos deixar de lembrar aqui o fio das teias de aranhas, que também são muito fortes, e que, nos contos aparecerão em “Fio após fio”( UITA) e “Sete anos e mais sete”( UITA). 7 COLASANTI, MARINA. “Entre leão e unicórnio” In: Doze reis e a moça no labirinto do tempo.8a. edição. São Paulo: Global Editora, 1999, p. 13 a 21. 8 COLASANTI, MARINA. “A moça tecelã” In: Doze reis e a moça no labirinto do tempo.8a. edição. São Paulo: Global Editora, 1999, p. 9 a 14. 9 O motivo do jardim privado e da jovem prisioneira neste tipo de instalação, que compreende quarto e jardim murado voltará a se repetir no conto “Uma voz entre os arbustos” ( ER). 10 MACHADO, op. cit. p. 47, nota 1.

Referências Bibliográficas COLASANTI, MARINA. Uma idéia toda azul.1a. Edição. São Paulo: Editora Círculo do Livro, 1985.

COLASANTI, MARINA. Doze reis e a moça no labirinto do tempo. 8a. edição. São Paulo: Global Editora, 1999.. COLASANTI, MARINA. Entre a espada e a rosa. 1a. edição, 10a Reimpressão. São Paulo: Salamandra Consultoria Editorial, 1992.. COLASANTI, MARINA. : Longe como o meu querer. 3a. edição. São Paulo: Editora Ática, 1999.

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