Entre Máquina e Humano em Dois «Piazza Tales» de Melville: Preferir não Ser

May 26, 2017 | Autor: Jorge Martins Rosa | Categoria: Science Fiction, Science Fiction and Fantasy, Science Fiction Studies
Share Embed


Descrição do Produto

Entre Máquina e Humano em Dois «Piazza Tales» de Melville Preferir não Ser? Jorge Martins Rosa FCSH-UNL / CECL

1. O Autómato Humanizado I: Entre o Imaginário da Ficção e o Imaginário da Ciência. Em vez de Herman Melville, comecemos por um outro nome canónico da literatura americana, da geração imediatamente seguinte, Ambrose Bierce. Não fosse o pioneirismo de Edgar Allan Poe no cruzamento entre o popular e os mais diversos avatares do fantástico e mesmo da protoficção científica, e os 23 anos que separam Melville de Bierce poderiam justificar a preferência do primeiro por uma abordagem realista, mesmo quando a temática são as viagens náuticas por territórios mais exóticos, enquanto o último, apesar (ou talvez por causa) do jornalismo e da experiência da Guerra Civil, conciliou cenários mais «caseiros» com uma afinidade pelo terror e pelo insólito. Cerca de duas décadas depois da morte de Bierce (em 1913), era esse um dos rumos que a literatura popular dos Estados Unidos tinha tomado, com os pulps especializados ora em contos policiais (ainda que neste caso o domínio fosse britânico), ora no horror e no sobrenatural a caminho da high fantasy (destacandose aqui, por exemplo, a Weird Tales), ora também na ficção científica que despontaria enquanto género autónomo na segunda metade dos anos 20. Como prova da influência de Bierce, o conto para o qual voltamos a nossa atenção, «Moxon’s Master», foi inúmeras vezes republicado

em colectâneas e revistas de qualquer desses subgéneros populares, e é aliás frequentemente mencionado sempre que se trata de apresentar a evolução da ficção científica. O motivo, abstraindo-nos do tom de horror que faz também parte da narrativa, é a presença de um «homem artificial», igualando inclusive a capacidade humana de raciocínio. A história começa, aliás, por um diálogo quase filosófico entre o protagonista-narrador e Moxon: «“Are you serious? Do you really believe that a machine thinks?” […] “Well, then, is not man a machine? And you will admit that he thinks — or thinks he thinks.”» (Bierce, 2006, p. 90) Ecos remotos de La Mettrie, talvez, mas se tivermos em conta que este conto foi pela primeira vez publicado no San Francisco Examiner de 16 de Abril de 1899, será porventura mais adequado confrontá-lo com dois ensaios posteriores, qualquer deles hoje em dia canónico porque seminal em áreas de pesquisa fundamentais para compreender a segunda metade do século XX: «Behavior, Purpose and Teleology», de Norbert Wiener, Arturo Rosenblueth e Julian Bigelow (de 1943), o artigo que deu a conhecer o que viria a chamar-se Cibernética, e «Computing Machinery and Intelligence», de Alan Turing (de 1950), que inaugurou a Inteligência Artificial. Recordemos o que propõe cada um deles, antes de voltarmos à ficção de Bierce, e só depois à de Melville. Wiener e os seus colaboradores propunham então estudar o comportamento animal e o desempenho de certas máquinas como equivalente, desde que cumprido um conjunto de condições que procuravam nesse mesmo artigo estabelecer: «The classification tabulated above […] leads to the singling out of the class of predictive behavior […]. It emphasizes the concepts of purpose and of teleology, concepts which, although rather discredited at present, are shown to be important. Finally, it reveals that a uniform behavioristic analysis is applicable to both machines and living organisms, regardless of the complexity of the behavior.» (Rosenblueth, Wiener et al., s/d, p. 4, ênfase nossa)

Neste projecto wieneriano, é no comportamento – no sentido genérico (e inspirado no behaviorismo) de todo o conjunto de acções observáveis como «examination of the output of the object and of the relations of this output to the input» (idem, p. 1) – que devem ser encontradas tais equivalências entre máquinas e organismos. Exige-se contudo que — é esse o principal objectivo de todo o artigo — sejam devidamente identificadas as características (que os próprios reconhecem como inexistentes na esmagadora maioria das máquinas) necessárias para que o artefacto esteja à altura do orgânico: o comportamento tem de ser activo, dotado de intenção [purpose], de teleologia, etc., numa hierarquia de complexidade crescente. A capacidade de raciocínio não chega sequer a ser considerada, pois exigiria um grau de complexidade demasiado elevado (mesmo que algum dia alcançável): imitar, por exemplo, o comportamento de caça de um animal seria mais do que suficiente para dar como satisfeitas as ambições da Cibernética de equiparação entre organismos e artefactos maquínicos. No outro artigo, Alan Turing dá esse passo extra, ou, para ser mais preciso, opta por um caminho ligeiramente enviesado: que alguma máquina possa simular na perfeição o comportamento humano (no sentido puramente fisiológico) é irrelevante a não ser que possa também — ou mesmo em vez disso — reproduzir essa capacidade que nos é única, o raciocínio. Aristóteles revisitado, portanto: para Wiener a «alma sensitiva» (mesmo que começando pela «vegetativa»); para Turing, nada menos do que a «intelectiva» (ainda que na ausência das anteriores, como deixa bem claro pelas condições que definem o seu «jogo de imitação»1). Daí também a necessidade de diferenciar entre as capacidades físicas e as intelectuais do ser humano, e de isolar estas últimas2: «The new problem has the advantage of drawing a sharp line 1 Na verdade não será bem assim, se o artigo for lido até ao final, altura em que reconhece a importância do embodiment caso queiramos uma máquina capaz de aprender com a experiência (Cf. Turing, 1990, pp. 60-65). 2 E também a necessidade de fazer o mesmo para as máquinas. Só lhe interessam, como deixa bem claro na secção 3. do seu artigo (idem, pp. 42-43), as máquinas de estados discretos como a que definira no seu outro artigo mais famoso, «On Computable Numbers, with an Application to the Entscheidungsproblem», de 1936.

between the physical and the intellectual capacities of a man. […] The form in which we have set the problem reflects this fact in the condition which prevents the interrogator from seeing or touching the other competitors, or hearing their voices. […] The conditions of our game make these disabilities irrelevant.» (Turing, 1990, pp. 41-42, ênfase nossa) Em todo o caso, quer Wiener quer Turing partilham de ambições similares: demonstrar (teoricamente) que as máquinas podem imitar comportamentos humanos e enunciar (tecnicamente) as condições para que tal possa vir a ser conseguido num futuro próximo. No conto acima evocado, bem como nos outros que entretanto apresentaremos, dá-se esse feito como alcançado, e daí que se torne relevante assinalar as semelhanças ao nível dos pressupostos que o tornam (mesmo que apenas ficcionalmente) possível. Semelhanças ténues, é certo, mas o meio século que medeia entre o conto de Bierce e esses textos teórico-especulativos — e que meio século, atravessado por duas guerras mundiais! — autoriza que forcemos uma afinidade. Fazendo lembrar o seu mais famoso «An Occurrence at Owl Creek Bridge», também neste conto encontramos uma característica recorrente na obra de Ambrose Bierce, aquilo que Tzvetan Todorov viria a chamar — ainda que com muita contestação — o «fantástico»: a oscilação, quer do narrador quer do leitor, entre uma interpretação sobrenatural e uma outra racional dos mesmos eventos, ou (ligeira variação) entre a sua ocorrência factual e a meramente onírica. É assim que somos confrontados, no final de «Moxon’s Master», com a hesitação da personagem-narrador quanto à realidade de algo que, na linha imediatamente anterior, pronunciara como tendo testemunhado: o assassínio de Moxon, o interlocutor no início do seu relato, às mãos de um ser artificial. Retomemos a história pela ordem em que é contada. Primeiro essa discussão filosófica (ou talvez apenas linguística) acerca do que será «pensar» e se, admitindo ser o homem uma máquina, não poderão outras máquinas fazê-lo, mesmo que para isso, segundo a retórica de Moxon, seja necessário diluir o raciocínio enquanto acto num misticismo préaristotélico — mas também pós-vital3 — segundo o qual até uma planta 3 Tomamos a expressão de On Beyond Living, de Richard Doyle (Doyle, 1997), que aí o propõe como forma de descrever a passagem do regime epistémico duma Biologia que tinha a «vida» como conceito central – a que se iniciou no século XIX, como já assinalara

pensa, pois «sabe» para onde estender-se. Ou mesmo, no limite, os cristais, pois sabem como organizar-se numa estrutura regular. Moxon termina com o lapidar «“Do you happen to know that Consciousness is the creature of Rhythm?”» (Bierce, 2006, p. 93), e é essa afirmação quase aforística que fica a ressoar na mente do narrador depois de sair, deixando Moxon entregue a uma das suas invenções, que nunca é mostrada ao narrador. Apesar da chuva torrencial, este ultimo retorna para reconhecer que se havia convertido aos argumentos do seu interlocutor; ao entrar, sem ser visto, vê Moxon a jogar xadrez com um vulto aparentemente humano, mas de proporções pouco comuns, e fica a observá-los na penumbra. De súbito, o estranho jogador fica exaltado pela iminente derrota e… «Moxon tried to throw himself backward out of reach, but he was too late. I saw the horrible thing’s hands close upon his throat, his own clutch its wrists. Then the table was overturned, the candle thrown to the floor and extinguished, and all was black dark. But the noise of the struggle was dreadfully distinct, and most terrible of all were the raucous, squawking sounds made by the strangled man’s efforts to breathe.» (idem, p. 97) O narrador perde a consciência, e ao recuperá-la fica a saber da morte de Moxon. A estranha criatura, que somos obrigados a concluir que se tratava de uma criação artificial dotada dessa capacidade de pensar — e pelos vistos também das emoções mais primárias — não volta a ser vista.

2. O Autómato Humanizado II: Uma Singularidade na Obra de Melville. É também de uma morte do criador às mãos da criatura que trata «The Bell Tower», conto de Herman Melville originalmente publicado em Agosto de 1855 na Putnam’s. Se na história de Ambrose Bierce a hubris castigada parece resultar de uma criação quase perfeita (tão Foucault – para a Biologia Molecular, que, a partir da descoberta do ADN, descurou (embora não o confesse abertamente) a própria ideia de «vida» em favor da de «código».

humano que nem lhe falta o nosso comportamento irascível, talvez demasiado irascível), em Melville são as pequenas imperfeições que se conjugam para condenar Bannadonna, o arquitecto responsável pelo campanário, pelo seu sino e — algo que só depois nos é revelado — também pelo autómato que o substitui na monótona tarefa de repicar esse sino às horas certas. Se o tom do diálogo de «Moxon’s Master» deixava as personagens sucumbirem ao misticismo, aqui muito cedo se impõe (anunciando a tragédia) a analogia entre a criação divina e o seu émulo humano: logo nos primeiros parágrafos numa comparação entre o campanário e a Torre de Babel4, e depois na descrição do artefacto que Bannadonna mantém coberto e que entretanto vimos a descobrir ser um «assistente» mecânico: «a partial type of an ulterior creature, a sort of elephantine helot, adapted to further, in a degree scarcely to be imagined, the universal conveniences and glories of humanity; supplying nothing less than a supplement to the Six Days’ Work; stocking the earth with a new serf, more useful than the ox, swifter than the dolphin, stronger than the lion, more cunning than the ape, for industry an ant, more fiery than serpents, and yet, in patience, another ass. All excellences of all God-made creatures which served man were here to receive advancement, and then to be combined in one. Talus was to have been the all-accomplished helot’s name. Talus, iron slave to Bannadonna, and, through him, to man.» (Melville, 2004b, pp. 233-234) Mas recuemos aos motivos por trás da criação do humanóide Talus: «it had indirectly occurred to Bannadonna to devise some me4 De que esta é a passagem mais explícita: «Like Babel’s its base was laid in a high hour of renovated earth, following the second deluge, when the waters of the Dark Ages has dried up, and once again green appeared.» (Melville, 2004b, pp. 223-224) Além das referências bíblicas, uma singular discussão (muito pouco benjaminiana) em torno da irreprodutibilidade das obras de arte: «“Since, Excellenza, you insist, know that there is a law in art, which bars the possibility of duplicates. […] I graved an entire plate, containing one hundred of the seals. Now, though, indeed, my object was to have those hundred head identical, and though, I dare say, people think them so, yet, upon closely scanning an uncut impression of the plate, no two of those five-score faces, side by side, will be found alike.” […] “I like this law of forbidding duplicates. It evokes fine personalities.”» (idem, p. 229)

tallic agent which should strike the hour with its mechanic hand, with even greater precision than the vital one. And, moreover, as the vital watchman on the roof, sallying from his retreat at the given periods, walked to the bell with uplifted mace to smite it, Bannadonna had resolved that his invention should likewise possess the power of locomotion, and, along with that, the appearance, at least, of intelligence and will.» (idem, p. 233) Não é contudo de estranhar que a narrativa desemboque também no tropo literário da hubris castigada, que acompanha a ficção científica pelo menos desde esse outro acto de soberba que tão bem conhecemos em Frankenstein, nem sequer faltando, de resto, a alusão a Prometeu: «With him, common sense was theurgy; machinery, miracle; Prometheus, the heroic name for machinist; man, the true God.» (idem, p. 234) O desenlace é por isso trágico, mas ao mesmo tempo irónico, pois em nenhum momento o autómato deixa de cumprir a sua função tal como planeado, e com propósitos afinal tão mundanos e puramente funcionais: «Here, it might well be thought that, were these last conjectures as to the foundling’s secrets not erroneous, then must he have been hopelessly infected with the craziest chimeras of his age; farout going Albert Magus and Cornelius Agrippa. But the contrary was averred. However marvellous his design, however apparently transcending not alone the bounds of human invention, but those of divine creation, yet the proposed means to be employed were alleged to have been confined within the sober forms of sober reason.» (idem, ibidem) Ao contrário de Frankenstein, a «máquina» não aspira a essa ínfima dose de humanidade que é ter um parceiro; ao contrário de R. U. R., a Simplesmente o perfeccionista Bennadonna decide-se pela necessidade de fazer os últimos retoques ao seu sino e não se dá conta de que são de

novo horas de este ser tocado por Talus. «So the blind slave obeyed its blinder lord, but, in obedience, slew him. So the creator was killed by the creature. So the bell was too heavy for the tower. So the bell’s main weakness was where man’s blood had flawed it. And so pride went before the fall.» (idem, p. 237)

3. O Homem Tornado Autómato: Wall Street. Apresentados estes dois autómatos, o de «Moxon’s Master» e o de «The Bell Tower», mudemos ligeiramente de agulha. Estas são claramente narrativas não realistas, que podem ser classificadas como de proto-ficção científica pelo seu tom especulativo, descrevendo invenções que de alguma forma poderiam ser tomadas como verosímeis num futuro próximo. Em contrapartida, o muito mais conhecido «Bartleby», noveleta escrita aproximadamente na mesma época — e por isso incluída, tal como «The Bell Tower», na colectânea de Herman Melville que ficou conhecida como The Piazza Tales — não o é. Vale contudo a pena, depois das pistas preliminares que fomos recolhendo, o exercício de lê-la, ou pelo menos algumas das suas passagens, segundo o olhar desse género. Em «The Bell-Tower», o autómato não é suficientemente humano para interromper a sua «programação», o que implicaria deixar de repicar o sino para não ferir Bannadonna de morte. Em «Bartleby» (também originalmente publicado na Putnam’s, em Novembro de 1853), quase tomando essa premissa no sentido inverso, encontramos um conjunto pequeno mas bastante significativo de equiparações dos escrivães, assalariados do narrador, a autómatos ou, menos ainda, a meras máquinas. Ainda antes da chegada de Bartleby, são-nos apresentadas essas três personagens, e desde logo salta à vista o facto de todas elas serem tratadas por alcunhas (o que curiosamente não acontecerá com o recémchegado): Turkey, Nippers e o jovem Ginger Nut, este último reduzido na sua caracterização ao facto de ter como uma das suas funções a de

trazer bolos de gengibre aos dois copistas. Quanto a estes, cada um com as suas peculiares disposições: Turkey exemplar de manhã, mas inchado, vermelho e desastrado depois do meio-dia; Nippers atacado por indigestões pela manhã, recomposto à tarde. Os termos usados por Melville para sintetizar esta complementaridade, «on» e «off», são esclarecedores: «Their fits relieved each other like guards. When Nippers’ was on, Turkey’s was off; and vice versa. This was a good natural arrangement under the circumstances.» (Bartleby, 2004a, p. 45) E a ideia é reforçada mais tarde, quando as primeiras recusas de Bartleby são ainda geríveis: «The reader of nice perceptions will here perceive that, it being morning, Turkey’s answer is couched in polite and tranquil terms, but Nippers replies in ill-tempered ones. Or, to repeat a previous sentence, Nippers’ ugly mood was on duty and Turkey’s off.» (idem, p. 49) E se estes dois copistas podem ser comparados a máquinas, que dizer de Bartleby? Numa primeira aproximação, poderíamos sugerir que o seu «I would prefer not to» representa justamente essa recusa de vir a tornar-se mais um «cog in a machine», a máquina que era já o mundo de Wall Street. A eficácia — mecânica, como o próprio narrador reconhece — com que de início desempenha as suas tarefas parece confirmar esta primeira hipótese: «At first Bartleby did an extraordinary quantity of writing. As if long famishing for something to copy, he seemed to gorge himself on my documents. There was no pause for digestion. He ran a day and night line, copying by sun-light and by candle-light. I should have been quite delighted with his application, had he been cheerfully industrious. But he wrote on silently, palely, mechanically.» (idem, p. 46) Entre animal faminto por algo (mas para copiar, e não para devorar)

e máquina, o que logo nos evoca as — centenárias, se não mesmo milenares — equiparações entre estas duas entidades5, sendo a alma humana aquilo que nos permitiria, sem deixarmos de ser também mecanismos de carne, superar a fatalidade da nossa condição maquínica (que nos tornaria, por exemplo, previsíveis nos nossos comportamentos porque sujeitos ao mesmo determinismo de qualquer outro corpo físico) graças ao livre arbítrio que derivaria desse «verdadeiro eu» imaterial. Argumentamos contudo que as suas recusas, longe de serem manifestações desse livre arbítrio, são pelo contrário mais um sinal da degradação da sua humanidade. À medida que o «I would prefer not to» se estende da opção por não rever provas até, no limite, à de não alimentar-se de todo (cf. a citação anterior, onde se fala de «gorge himself on my documents»), o que na verdade nos é descrito é o processo pelo qual uma máquina se vai avariando mais e mais. Aquilo que poderia fazer dele humano, se é que alguma vez o fora — mas não esqueçamos as palavras com que termina a noveleta, que assim questionam se o mesmo não estará a suceder ao resto da humanidade —, parece estar irremediavelmente perdido, e essa primeira recusa anuncia-o já: «His face was leanly composed; his gray eye dimly calm. Not a wrinkle of agitation rippled him. Had there been the least uneasiness, anger, impatience or impertinence in his manner; in other words, had there been anything ordinarily human about him, doubtless I should have violently dismissed him from the premises.» (idem, p. 47, ênfase nossa) Paradoxalmente, é essa ausência de humanidade, ou talvez a esperança do narrador de que ela ainda exista algures e possa ser recuperada, de que Bartleby seja o próximo que também deve ser cristãmente amado6, 5 Uma das melhores análises (embora com uma posição muito clara e com mais de pró«pós-humana» avant la lettre do que de neutra) ao modo como historicamente homem (ou, de modo genérico, qualquer animal) e máquina foram equiparados ou segregados é a de Bruce Mazlish em The Fourth Discontinuity (Mazlish, 1993), onde podemos, entre outros nomes, observar como Descartes, La Mettrie ou mesmo Pavlov tentaram ora desenvencilhar-se dessa semelhança ora acolhê-la. 6 Especialmente no momento em que descobre que o escrivão fez do escritório a sua habitação permanente: «But when this old Adam of resentment rose in me and tempted me concerning Bartleby, I grappled him and threw him. How? Why, simply by recalling the divine injunction: “A new commandment give I unto you, that ye love one another.” Yes,

que permite os perdões sucessivos. E se a certo ponto o seu patrão e narrador acredita estar perante um fantasma, uma alma penada mas ainda assim uma alma — «What shall I do? what ought I to do? what does conscience say I should do with this man, or rather ghost.» (idem, p. 66) —, no final reconhece que, porventura na anterior ocupação de Bartleby como funcionário dos refugos postais, ou «dead letter office», este se terá, talvez por assimilação, tornado afinal num morto-vivo, o preciso oposto dum fantasma7: «Dead letters! does it not sound like dead men? Conceive a man by nature and misfortune prone to a pallid hopelessness, can any business seem more fitted to heighten it than that of continually handling these dead letters, and assorting them for the flames?» (idem, p. 73) Ora, esse devir morto-vivo, que naquelas obras que cruzam os géneros do horror e da ficção científica é muitas vezes racionalizado como efeito do contágio de algum tipo de vírus, permite-nos descortinar ainda uma última analogia. Bartleby, já em estado terminal, abdica de qualquer actividade (seja ela humana ou maquínica), mas fica essa marca do vírus, neste caso uma marca linguística, à boa maneira do «language is a virus» de William Burroughs. Ainda que apenas em incubação, o vírus parece ter afectado os outros dois copistas, se não mesmo o patrão: «Nippers at his desk caught a glimpse of me, and asked whether I would prefer to have a certain paper copied on blue paper or white. He did not in the least roguishly accent the word prefer. It was plain that it involuntarily rolled from his tongue. I thought to myself, surely I must get rid of a demented man, who already has in some degree turned the tongues, if not the heads of myself and clerks.» (idem, p. 59) this it was that saved me.« (Melville, 2004a, p. 64) 7 Seguimos aqui um brevíssimo comentário de Marina Warner em Fantastic Metamorphoses, Other Worlds: Ways of Telling the Self (Warner, 2002), mais concretamente no capítulo intitulado «Splitting», quando assinala que, se o fantasma é alma sem corpo, o zombie ou morto-vivo é um corpo já desprovido de alma, mesmo que ainda dotado da capacidade de mover-se.

O primeiro sintoma deste vírus de desumanização será então o uso do verbo «preferir» como maneirismo automático. Na noveleta, Bartleby está já irremediavelmente para lá desse estágio inicial, que teria porventura adquirido nos refugos postais. Quando inicia a sua tarefa como escrivão de Wall Street, a sua eficiência, equiparável à do humanóide Talus em «The Bell Tower», é inclusive superior à dos outros colegas, que, embora já comparáveis a máquinas, ainda possuem essa capacidade — mesmo que involuntária — de estar temporariamente off8. Para o leitor, a ocorrência mais digna de nota é contudo o momento em que Bartleby transpõe a seguinte etapa de sintomas e, como máquina que começa a revelar sinais de fadiga, «prefere não fazer». E, como sabemos, a imparável degradação desemboca num estado terminal, o «preferir não ser». Na noveleta de 1909 de E. M. Forster, «The Machine Stops», embora dominando os humanos e reprimindo-os à sua imagem, a Máquina é ainda algo que deles se distingue, o que autoriza a possibilidade final de, sob o que resta dum céu imaculado, reinventar a aventura humana depois do colapso da máquina. Em «Bartleby, the Scrivener», porque aqui humano e máquina se confundem, não temos essa esperança. O escrivão está por isso muito mais próximo do outro autómato, o de «The Bell Tower», do que daquele do conto de Ambrose Bierce, que parece ser ainda capaz de imprevisibilidade, da fuga ao automatismo, por mais que esta se concretize no acto violento com que retira a vida ao seu criador. Reiteramos a argumentação com um ensaio de 1972 intitulado «The Android and the Human», de Philip K. Dick, autor de ficção científica que repetidamente trabalhou essa desarticulação entre humano e máquina, encontrando nos actos — e não na origem — o critério para diferenciá-los: «[O] que há, no nosso comportamento, que possamos classificar como especificamente humano? Que nos seja único enquanto espécie? O que, pelo menos até agora, podemos classificar como 8 Ginger Nut, ainda aprendiz, ou melhor, mero gofer, é compreensivelmente o menos afectado.

comportamento maquínico ou, por extensão, comportamento típico dos insectos ou comportamento reflexo? Eu incluiria nesta categoria aquele tipo de comportamento pseudo-humano exigido pelos que foram, outrora, seres humanos — criaturas que, de formas que vou abordar em seguida, se tornaram instrumentos, meios em vez de fins, e que deste modo são, para mim, análogos a máquinas no mau sentido, na medida em que, apesar de continuarem a ter vida biológica e metabolismo, a sua alma — por falta de palavra melhor — já não possui existência ou, pelo menos, já não está activa.» (Dick, 2006, pp. 36-37) Ou ainda, nesta outra passagem, com que terminamos, como não ver o síndroma de Bartleby que talvez, à época, já assomasse toda a Wall Street? «A redução dos humanos a mero uso — homens tornados máquinas, a servir um propósito que, mesmo que “bom” num sentido abstracto, precisou de recorrer, para que se efectivasse, àquilo que penso ser o pior mal imaginável: a imposição, ao homem livre, que ria e chorava e cometia erros e se dilacerava até à loucura ou à diversão, de uma restrição limitadora que, apesar do que podemos imaginar ou pensar, o obriga a participar no cumprimento de um objectivo exterior ao seu próprio destino pessoal, por insignificante que este seja. É como se, por assim dizer, a História o tivesse tornado o seu instrumento.» (idem, p. 37)

Bibliografia Bierce, Ambrose (2006), «Moxon’s Master», in Terror by Night: Classic Ghost and Other Stories, Londres, Wordsworth Editions, pp. 90-98. Dick, Philip K. (2006), «O Andróide e o Humano», in O Andróide e o Humano, Lisboa, Vega, pp. 29-75. Doyle, Richard (1997), On Beyond Living: Rhetorical Transformations of the Life Sciences, Stanford, Stanford University Press.

Forster, E. M. (1974), «The Machine Stops», in Ben Bova (org.), The Science Fiction Hall of Fame, Volume II-B, Nova Iorque, Avon Books, pp. 248-279. Mazlish, Bruce (1993), he Fourth Discontinuity: The Co-Evolution of Humans and Machines, New Haven e Londres, Yale University Press. Melville, Herman (2004a), «Bartleby, the Scrivener: A Story of Wall-Street», in Great Short Works of Herman Melville, org. por Walter Berthoff, Nova Iorque, Perennial, pp. 39-74. Melville, Herman (2004b), «The Bell Tower», in Great Short Works of Herman Melville, org. por Walter Berthoff, Nova Iorque, Perennial, pp. 223-237. Rosenblueth, Arturo, Wiener, Norbert e Bigelow, Julian, «Behavior, Purpose and Teleology» (s/d), online in pespmc1.vub.ac.be/Books/Wiener-teleology.pdf, última consulta a 15 de Dezembro de 2012. Todorov, Tzvetan (1970), Introduction à la littérature fantastique, Paris, Éditions du Seuil. Turing, Alan (1990), «Computing Machinery and Intelligence», in Margaret Boden (org.), The Philosophy of Artificial Intelligence, Oxford, Oxford University Press, pp. 40-66. Warner, Marina (2002), Fantastic Metamorphoses, Other Worlds: Ways of Telling the Self, Oxford, Oxford University Press.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.