Entre mercado e clientela, a manutenção do poder: Urbanização de favelas no Rio de Janeiro 1993-2013

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MARIANNA PACHECO OLINGER

Entre mercado e clientela, a manutenção do poder: Urbanização de favelas no Rio de Janeiro 1993-2013

Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientador: Prof. Dr. Luiz Cesar de Queiróz Ribeiro

Rio de Janeiro 2015

MARIANNA PACHECO OLINGER

Entre mercado e clientela, a manutenção do poder: A urbanizacão de favelas no Rio de Janeiro 1993-2013

Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Aprovado em: BANCA EXAMINADORA _________________________________ Prof. Dr. Luiz Cesar de Queiróz Ribeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ _________________________________ Profa. Dra. Maria Alice Rezende de Carvalho Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ _________________________________ Prof. Dr. Nelson Rojas de Carvalho Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ _________________________________ Prof. Dr. Orlando Santos Junior Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ _________________________________ Profa. Dra. Maria Julieta Nunes Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ _________________________________ Profa. Dra. Nelma Gusmão de Oliveira Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB

AGRADECIMENTOS

Ao IPPUR, instituição pela qual tenho imenso respeito, que, com todas as dificuldades e idiossincrasias de uma instituição pública no Estado brasileiro, conseguiu desenvolver uma prática consistente e sustentada de ensino e pesquisa, preservando valores sociais e humanos. Ao seu corpo docente, discente e aos funcionários. Aos colegas do IPPUR da turma de 2010. Ao CNPQ a à FAPERJ pelo suporte financeiro ao longo do caminho. Ao meu orientador, pela generosidade, dedicação e por apoiar-me em meus dilemas e crenças. Aos colegas do Observatório das Metrópoles, com os quais aprendi muito. À professora Ana Clara Torres Ribeiro (in memoriam). À minha mãe, meus tios Sergio e Ricardo, minha avó Eugênia (in memoriam) e meu avô Mauricio (in memoriam). Às minhas companheiras da casa Simone Gomes, Alice Taylor, Laura Cantal e Rebecca Diele. Cada uma acompanhou uma fase do longo processo de escrever essa tese. Obrigada por me aturarem nos momentos mais difíceis. A Paulo Becker, meu psicanalista, que acompanhou esse processo do começo ao fim. Não posso imaginar o que foi escutar meus dramas existenciais ao longo desses anos. A toda a família Strozenberg pelo apoio sempre: Letícia, Paula, Alberto, Flora, cachorro, gato, periquito e papagaio, e especialmente a Pedro Strozenberg, companheiro de trabalho, de dúvidas, angústias, de vida: obrigada por ter me ensinado tanto, pelo apoio, pela generosidade. A Alessandra, a quem confiei minha casa e minha vida durante todos esses anos. Aos amigos Daniel Costa Lima, Noelle Resende, Ariel Agai, Keren Moscovitch, Stephanie Savell, Ariane Goutijo, Damian Platt, Julia Mariano, Renato Saraiva de Moraes, pelas constantes trocas e elocubrações, pelo carinho e suporte. A Juma Assiago, pelo convite para olhar para a favela através das lentes do planejamento urbano. Aos companheiros de trabalho e luta social do Viva Rio, do Promundo, da Mídia NINJA/Fora do Eixo e de todos outros movimentos sociais ou organizações

com os quais tive a oportunidade de colaborar ao longo de dez anos de trabalho e pesquisa no Rio de Janeiro. Aos entrevistados, por compartilharem suas visões e percepções. Um agradecimento especial a Fernando Cavallieri, que me concedeu a entrevista mais longa: foram três horas de conversa. A Julieta Nunes, Nelma de Oliveira, Maria Alice Resende de Carvalho, Nelson Rojas e Orlando Junior por aceitarem participar de minha banca de defesa. Obrigada pela generosidade. Registro aqui minha profunda admiração e respeito. A Cadu, meu orientador no campo das artes: obrigada também pelos conselhos de quem havia acabado de terminar uma tese de doutorado, eles foram valiosos. Por fim, meu agradecimento a todos os moradores de favelas que confiaram em mim ao logo desse tempo. O que está aqui não teria sido possível sem que vocês tivessem compartilhado comigo suas vidas, suas crenças, seu saber. A minha decisão de fazer um doutorado parte do desejo de compreender o que pra mim era incompreensível, porque a favela, com sua riqueza e dinamismo, permanece subjugada e violentada sistematicamente na cidade do Rio de Janeiro. Se minha motivação inicial se deu pela crença de que a academia me proveria de um conhecimento superior para explicar o que eu não podia compreender, saio dela grata por ajudar-me a desconstruir mitos, meus próprios. E com a tranquilidade de que não existe forma de conhecimento, ou de produção de conhecimento, necessariamente superior ou mais elevada que outras. Se a academia produz um conhecimento relevante para a sociedade, a ação social produz outros, igualmente relevantes para a construção da sociedade. Agradeço ao campo acadêmico, por ter me recebido tão bem. Ao

conhecimento

produzido

diariamente

nas

ruas

da

cidade.

Nem tudo que é sólido desmancha no ar: tem coisas que permanecem. Principalmente nos países periféricos, onde o capital é seletivo. A nossa sociedade hierárquica, profundamente rígida, não se desmanchou. Temos uma modernização muito veloz de um lado, e de outro temos cristalizações e permanências, por conta da seletividade dos recursos globais. Eles não são homogêneos, eles são seletivos. Os investidores escolhem os pontos de modernização, e essa escolha é cada vez mais precisa, mais exata, acarretando que alguns setores permaneçam cristalizados. Por um lado a modernização e por outro imobilismos. (Ana Clara Torres Ribeiro, 2010)



14

RESUMO Passadas duas décadas do reconhecimento, legal e formal, de que a favela deve, sempre que possível, permanecer onde está, as chamadas políticas de urbanização de favela parecem não institucionalizar-se. Da década de 1990 até hoje, são diversos experimentos, programas e projetos sem continuidade. Projetos e programas são sistematicamente interrompidos, abandonados, alterados sem explicações

razoáveis,

ou

ainda,

quando

terminados,

desprovidos

de

acompanhamento adequado que garanta a sua manutenção no tempo. O objetivo deste trabalho foi investigar a formulação de políticas sociais à luz da representação de interesses, analisando a trajetória do processo através do qual se constituem as políticas de urbanização de favelas no Rio de Janeiro entre 1993 e 2013. Nosso objetivo aqui se deu no sentido de expor os processos nos quais se resolvem as disputas que vão definir o que permanece e o que é interrompido em relação à institucionalização de uma política social, quais visões e grupos legitimam decisões, e quais práticas prevalecem ao longo do período. Nesse empreendimento, percebemos que o território da favela é por um lado pressionado pelo mercado, que busca apropriar-se desse território em sua busca incessante pela criação de valor, e por outro por uma classe política que estabeleceu fortes laços clientelistas com esses territórios. Para os primeiros, o que interessa é dispor desse território crescentemente valorizado em certas áreas da cidade, e aos segundos interessa manter a relação de troca personalista, de forma que as benesses que chegam ao território sejam a) percebidas como fruto de sua ação, e b) não sejam universais, ao ponto de que o “cliente” não necessite mais do “patrão”. Assim, segue-se o contagotas da intervenção urbana na favela carioca, pressionado pelas demandas do mercado por um lado, e pela gramática clientelista de outro. Palavras chave: Favela. Urbanização de favelas. Política social. Habitação. Planejamento Urbano.

ABSTRACT

Regardless of the legal recognition in Brazil that favelas are a legitimate territorial occupation form, and should remain in their original place of occupation whenever possible, the urban upgrading (known internationally as slum upgrading) policies seem not be fully incorporated by the State. Between 1990’s and the present days, a number of experiments, programs and projects have been implemented, but suffer from systemic interruptions, abandoned with no reasonable explanations or, when carried out completely, lacking adequate oversight that could guarantee its sustainability. The objective of this work was to investigate the making of social policies in the light of how interest groups relate to the State, and how the state itself operates, analyzing the process in which favela upgrading programs and policies in Rio de Janeiro were formulated and implemented between 1993 and 2013. Our aim was to expose the proccesses in which disputes to define what remains and what is interrupted in relation to the institucionalization of a social policy, take place, and what are the visions and groups that legitimate decisions and practices throughout time. In this attempt, we uncover a situation where the territory favela is simultaneously pressed by the capitalist forces, looking at taking control over the territory in its incessant search for the creation of value, in one side, and by a political class that established strong clientelistic links with such territories across time. The first are primarily concerned with using this increasingly valued territory for profit making. The second, is interested in securing a relationship based on personal exchanges, in a way that services reaching the territory will be a) perceived as a consequence of a particular political group, and b) are not universal to the point in which the “client” will be free from its “patron”.

Keywords: Favela. Slum upgrading. Social policy. Housing. Urban planning.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ADEMI – Associação de Empresas do Mercado Imobiliário BNH – Banco Nacional de Habitação BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento CBIC – Câmara Brasileira da Indústria da Construção CEF – Caixa Econômica Federal CEDAE – Companhia Estadual de Águas e Esgotos CHISAM - Coordenadoria da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de Janeiro CODESCO – Companhia de Desenvolvimento Comunitário COHAB – Companhia de Habitação ConCidades - Conselho das Cidades CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito CRAS – Centro de Referência de Assistência Social DUAP – Departamento de Urbanização de Assentamentos Precários FAFEG – Federação de Favelas do Estado da Guanabara FAMERJ - Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro FGTS – Fundo de Garantia por Tempo de Serviço FMI – Fundo Monetário Internacional FNHIS - Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social FNRU - Fórum Nacional de Reforma Urbana FUNDREM – Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. GEAP – Grupo Executivo para Assentamentos Precários GEORIO – Fundação Instituto de Geotécnica do Município do Rio de Janeiro GTR-SFH – Grupo de Trabalho para o Sistema Financeiro de Habitação. HIS - Habitação de Interesse Social IAP – Institutos de Aposentadoria e Pensão IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil IPLANRio – Empresa Municipal de Informática da Cidade do Rio de Janeiro IPP – Instituto Pereira Passos IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística MCidades - Ministério das Cidades

MNRU - Movimento Nacional de Reforma Urbana ONG – Organização Não Governamental PCB – Partido Comunista Brasileiro PDDCRJ – Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro PFL – Partido da Frente Liberal PMCMV - Programa Minha Casa Minha Vida PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNH – Política Nacional de Habitação PROAP – Programa de Urbanização de Assentamentos Precários PROFACE – Programa de Favelas da CEDAE PT – Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista do Brasil PV – Partido Verde RA – Região Administrativa SAGMACS - Sociedade para Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais SERFHA - Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações AntiHigiênicas SHE – Secretaria Especial de Habitação SFH – Sistema Financeiro de Habitação SINDUSCON – Sindicato da Indústria da Construção Civil SMAS – Secretaria Municipal de Assistência Social SMDS – Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social SMH – Secretaria Municipal de Habitação SMO – Secretaria Municipal de Obras SMTR – Secretaria Municipal de Trabalho e Renda SNH - Secretaria Nacional de Habitação TCM – Tribunal de Contas do Município do Rio de Janei

SUMÁRIO 1

INTRODUÇÃO

13

1.1

Formulação de política social como campo político

17

1.2

Formulação

1.3

de

políticas

em

um

sistema

institucional

sincrético: as gramáticas políticas do Brasil

19

Marco metodológico

22

PARTE I: URBANIZAÇÃO DE FAVELAS 1993-2013

24

2

ANTECEDENTES

25

2.1

A retomada do movimento pela reforma urbana

28

2.1

O contexto político-institucional no Rio de Janeiro da década de 1980

30

2.3

O Rio de Janeiro e a questão da favela na década de 1980

32

2.4

Urbanização setorial de favelas

34

2.5

Indícios de institucionalização da urbanização de favelas: o Projeto Mutirão

3

OS

MARCOS

36 INSTITUCIONAIS

QUE

ANTECEDEM

A 44

URBANIZAÇÃO DE FAVELAS A PARTIR DA DÉCADA DE 1990 3.1

A Constituição de 1988

45

3.2

O Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro

48

3.3

O Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro

50

3.4

O Grupo Executivo para Assentamentos Precários e a Política Municipal de Habitação

53

3.5

A criação da Secretaria Municipal de Habitação

55

4

O PROGRAMA FAVELA BAIRRO

58

4.1

Da formulação à implementação do PROAP I

58

4.2

A primeira inflexão do período

71

4.3

O PROAP II

74

5

OS ANTECEDENTES DA SEGUNDA INFLEXÃO: AS NOVAS 79 REGRAS

5.1

O contexto político nacional

79

5.2

As políticas urbanas e habitacionais no plano nacional

81

5.2.1 O Governo Federal e as novas modalidades de financiamento a 82 partir de 2007 5.3 O Novo PDDCRJ 89 5.4

Os Planejamentos Estratégicos da cidade do Rio de Janeiro 2009 e 2013

92

6

O PROGRAMA MORAR CARIOCA

95

6.1

Formulação e primeiro ciclo

96

6.2

Mudanças no curso do programa: a terceira inflexão

106

PARTE 2: POR QUEM E COMO SÃO DETERMINADOS OS RUMOS DA FAVELA NA GESTÃO URBANA 7

OS AGENTES

7.1

A academia e a intervenção urbana na favela: da produção de conhecimento à legitimação simbólica

7.2

114 119

Os setores imobiliário e da construção civil: os detentores do capital econômico

7.4

112

Arquitetos urbanistas: detentores de capital cultural, entre academia, mercado e governo

7.3

111

122

As agências internacionais de fomento: do financiamento à legitimação simbólica das políticas

129

8

OS MOVIMENTOS SOCIAIS

131

8.1

O movimento pela reforma urbana

132

8.2

A organização dos moradores de favela no Rio de Janeiro

135

8.3

A construção da máquina clientelista chaguista no Rio de Janeiro e seu impacto nos movimentos sociais de moradores de favela

143

8.4

Os movimentos sociais na favela após a redemocratização

147

9

O ESTADO E SEUS OPERADORES

152

9.1

Os políticos e a operação política de governar

153

9.2

A burocracia

165

10

O QUE EXPLICA AS SUCESSIVAS INFLEXÕES?

174

10.1

A política social no conflito da gramáticas políticas do Brasil

175

10.2

Interesses do capital: o empreendedorismo urbano e a gestão empresarial

185

10.3

A desconstrução do movimento social enquanto ator legítimo

191

11

CONSIDERAÇÕES FINAIS

194

12

REFERÊNCIAS

201

APÊNDICES

215

Brás de Pina: o primeiro experimento

222

Arquitetos versus engenheiros: quem planeja a cidade?

231

Mapas

234

Lista de entrevistados

235



13

1 INTRODUÇÃO Em 15 de outubro de 2010, o então Prefeito da cidade do Rio de Janeiro anunciou um programa que viabilizaria a urbanização de todas as favelas da cidade até o ano de 2020, o Morar Carioca. Em seu discurso, na sede do Instituto dos Arquitetos do Brasil, Eduardo Paes fez referência aos Jogos Olímpicos de 2016 como viabilizadores de uma reivindicação antiga da cidade, afirmando que a urbanização das favelas do Rio de Janeiro seria o grande legado das Olimpíadas. A notícia foi veiculada nos principais veículos de comunicação da cidade, que acompanharam eventos para discutir a questão nos dois anos que sucederam o lançamento do programa. No entanto, quatro anos se passaram, a coalizão no poder permaneceu, após uma vitória retumbante ainda no primeiro turno das eleições de 2012, e a urbanização prometida não só mal saiu do papel, como também desapareceu dos documentos que fazem referência aos legados sociais dos Jogos Olímpicos sem maiores explicações. Passadas duas décadas do reconhecimento, legal e formal, de que a favela deve, sempre que possível1, permanecer onde está, as chamadas políticas de urbanização de favela parecem não institucionalizar-se. Da década de 1990 até hoje, houve diversos experimentos, programas e projetos, que são interrompidos sistematicamente. Projetos e programas são abandonados, alterados sem explicações

razoáveis,

ou

ainda,

quando

terminados,

desprovidos

de

acompanhamento adequado que garanta a sua manutenção no tempo. A partir de seu surgimento, em fins do século XIX, as favelas na cidade do Rio de Janeiro foram identificadas como espaços da desordem social, ameaçadora à ordem urbana que emergia junto à Primeira República, tornando-se objeto de políticas cujo objetivo principal era a remoção da favela para dar lugar à construção de espaços habitacionais higienizados e racionalizados, portadores de uma capacidade demiúrgica que pudesse preparar a cidade para a modernidade e a industrialização. A partir da segunda metade do século XX, emerge outro discurso, que reconhece virtudes no espaço da favela, defendendo que a prática política 1

Considera-se que há casos onde a permanência das construções é inviável por razões de risco ambiental, apesar de a justificativa de “risco ambiental” também ser utilizada de maneira questionável ao longo da história para justificar remoções onde outros interesses seriam os reais motivadores da remoção.



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oriente-se pela integração, construindo pontes urbanísticas que dotasse esses espaços de civitas e de polis. O movimento que inaugurou o discurso defendendo as intervenções de urbanização de favelas como política social de moradia popular foi duramente atingido pelo regime militar de 1964, que reprimiu fortemente movimentos sociais, incluindo os embrionários movimentos de favela no Rio de Janeiro e o movimento pela reforma urbana. O fim do regime e a Constituição de 1988 inauguraram um novo período na questão habitacional no país, com o reconhecimento do direito à moradia e da função social da propriedade, abrindo espaços normativos para legitimar a existência das favelas, retomando valores e princípios elaborados ao longo das décadas de 1950 e 1960. No contexto da redemocratização, a questão da permanência da favela emergiu, e gradativamente os programas de urbanização desses territórios passaram a fazer parte das políticas de habitação no Rio de Janeiro, configurando-se como política social com o objetivo de prover infraestrutura e serviços necessários para o desenvolvimento desses territórios. Por outro lado, a conjuntura reformista dos anos 1980 no Brasil foi seguida por outra, de caráter neoliberal, inaugurada nos anos 1990 no Brasil, onde mercado torna-se referência no planejamento das cidades, desafiando a universalização dos direitos sociais em um sistema político em permanente contradição entre a realização da justiça social e o aprofundamento de desigualdades, sob a hegemonia das teorias neoliberais. Partindo dessa conjuntura, nossa intenção aqui é discutir a formulação de políticas sociais à luz da representação de interesses, analisando o processo através do qual se constitui a política, ou a tentativa de institucionalização de uma política, de urbanização de favelas no Rio de Janeiro, a partir da década de 1990. O termo “institucionalização” aqui é usado para descrever o processo de incorporação de iniciativas de caráter experimental ao conjunto de processos e procedimentos que conformam

a

administração

pública

tradicional.

Um

processo

em

que

frequentemente são criados órgãos governamentais e mecanismos que serão responsáveis por acompanharem ou implementarem uma política pública, traduzindo princípios de visão e missão em ações, que irão guiar as atividades cotidianas de



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servidores públicos, com o objetivo de garantir a continuidade da prestação de um determinado serviço aos cidadãos.2 Dentre as perguntas que nortearam a investigação estão: Como se dão as inflexões3 ao longo do período? Quais interesses e disputas estão envolvidos na produção e legitimação das políticas ao longo do tempo? Quais fatores, e atores, são determinantes para que tais políticas possam institucionalizar-se ou sair do conjunto de prioridades da agenda política? Diante da complexidade das relações Estado/sociedade nas sociedades industriais modernas, utilizamos a noção de campo de Bourdieu (1989, 1999) como ferramenta analítica, buscando assim, evidenciar as relações de poder que envolvem a formulação e implementação de uma política social de intervenção urbana na favela. A abordagem adotada privilegiou o entendimento do modus operandi dos grupos hegemônicos que conduzem o processo, buscando identificar os principais agentes que incidem do campo de acordo com a natureza, composição e concentração de capitais, e como posicionam-se ao longo do tempo, para caracterizar o processo de formulação de uma política pública nas clivagens de interesses e conflitos de interesses dos agentes no campo. Privilegiamos aqui a análise do processo de formulação da política, compreendendo a ação estatal como um processo complexo e fragmentado onde projetos políticos e estratégias de classe assumem uma expressão organizacional no aparato burocrático do Estado, onde coalizões, tensões e fragmentação de interesses permeiam a definição e hierarquização dos lugares de acesso das diversas classes e frações de classe às arenas decisórias. Partimos de uma hipótese inicial de que os últimos vinte anos de urbanização de favelas no Rio de Janeiro foram marcados por inflexões sucessivas que impedem a institucionalização da política, na medida em que os interesses dos grupos hegemônicos na liderança do processo de formulação da política mudam. A hipótese derivada desta primeira proposição é de que a não institucionalização da política 2

Alguns autores utilizam a expressão “reconhecimento oficial” para descrever institucionalização (LENOIR, 1995, p. 108), outros a descrevem como o “reconhecimento legal, constitucional ou regulatório dos atores que são convidados a negociar […]” (DUBET, 2002, p. 23).

3

Por inflexão, considera-se aqui, uma mudança de curso na forma de intervir, compreendendo que esta pode se dar tanto nos planos formal-legal, nas regras enunciadas, como prático, ou seja, na forma de intervir no território, ainda que as regras e conceitos não necessariamente tenham sido alterados.



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estaria vinculada ao fortalecimento do clientelismo e do corporativismo, como gramáticas políticas, ou tipos de relação entre Estado e sociedade, em detrimento de gramáticas universalistas, onde a ampliação de direitos e cidadania da população, que por sua vez são também os objetivos declarados da política social objeto desta investigação, prevalecem. Entendemos que conjunturas podem permitir/facilitar que se promova mudanças na estrutura, ou seja, mudanças estruturais estão diretamente ligadas à conjuntura na qual se dão. Assim, buscamos ao longo do trabalho relacionar as disputas e acontecimentos relacionados ao objeto com conjunturas políticas e econômicas que consideramos relevantes no período. Durante a análise das informações colhidas ao longo da investigação, sentimos que, apesar de relevante para a compreensão do espaço onde são formuladas as políticas de urbanização de favelas, a ferramenta analítica adotada não era suficiente para explicar as sucessivas inflexões no processo de institucionalização (ou de tentativa de institucionalização) da política ao longo do período. Assim, resolvemos, adicionalmente, adotar uma abordagem alternativa complementária, proposta por Edson Nunes em seu trabalho As Gramáticas Políticas do Brasil. Em sua formulação, Nunes (2010) defende que o processo de construção

institucional

no

Brasil

republicano

é

permeado

por

padrões

institucionalizados de intermediação de interesses e de governabilidade, que estruturam os laços entre sociedade e instituições formais. Essa perspectiva propõe um arcabouço interpretativo para analisar as relações entre Estado e sociedade, onde clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos, descritos em maior detalhe adiante neste documento, são acionados em uma combinação sincrética e de traços aparentemente contraditórios, como formas de governar. Assumimos aqui uma tarefa de ressaltar não todos os aspectos relevantes de cada período ou política, mas aqueles relacionados ao campo de produção de conceitos, que será aos poucos delimitado, na tentativa de traçar uma “genealogia” da formulação da política social, tratando-a analiticamente como campo político. O método empregado para tal não se atêve com rigor a nenhuma corrente histórica, mas busca fazer uma leitura possível do material encontrado, estudos e documentos oficiais, com relação aos aspectos investigados, identificando e relacionando idéias e agentes políticos. Esse trabalho pretende ser analítico, porém propondo o



17

tratamento da questão também em uma perspectiva histórica, de construção da política no tempo. 1.1 Formulação de políticas sociais como campo político No nível da formulação de políticas sociais, interagem mutuamente interesses diversos, representados por vários setores, sendo o Estado a arena, a partir de, ou para onde, são canalizadas demandas, não existindo como entidade autônoma e homogênea. Partimos da premissa de que, na conjuntura analisada, é o aparelho estatal que possibilita a concretização institucional-legal de uma determinada política, compreendendo, no entanto, que este se constitui como espaço de disputa, e cuja apropriação total, ou parcial, favorece negociações em seu interior e fora dele. Para a análise do processo de formulação de políticas públicas se faz necessário, portanto, o tratamento de condições específicas de uma dada formação social. A importância da representação de interesses reside em que essas condições, quando referidas ao processo político que inscreve uma determinada política pública, não estão previamente dadas. Elas se manifestam através de diferentes atores sociais, que representam interesses diversos. Tanto as condições histórico-estruturais

quanto

as

conjunturais

que

determinam

direta

e/ou

indiretamente uma dada política pública, se localizam no processo político que a circunscreve e se manifestam através de diferentes atores sociais. Assim, os interesses em jogo são, portanto, a representação, no nível político, de tais condições. A ideia de um Estado de bem estar social parte do princípio que a intervenção estatal é necessária para garantir determinados bens sociais, sendo a política social fornecedora de um bem público, que é custeado pelo conjunto da sociedade e dirigido a todos aqueles a ela pertencentes (universalmente), mesmo que jamais o requeiram. Pensar política social inclui a noção do direito e do dever sobre os bens sociais, podendo ser definida como a intervenção estatal pelo fornecimento de bens sociais dirigidos a todos os cidadãos de uma mesma sociedade, que por eles se responsabilizam e dos quais são merecedores, podendo ou não deles precisar. A execução da política social é garantida por mecanismos legais e/ou institucionais aos quais os cidadãos podem recorrer, isoladamente ou em conjunto, caso não sejam atendidos.



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O conceito de campo foi escolhido como ponto de partida dessa investigação, assumindo a formulação da política pública como campo político, definido por Bourdieu como: [...] campo de forças e campo de lutas que têm em vista transformar as relações de forças que confere a esse campo a sua estrutura em um dado momento [...], lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos (BOURDIEU, 1989, pp. 163-164).

Assim, tratamos aqui de compreender como a formulação das políticas de urbanização de favelas foi aos poucos tomando a forma, se não total, ao menos parcial, de um campo, como expressão de uma forma de construção da realidade (e, portanto, de construção do problema), trazendo à luz em que condições sociais este campo foi produzido, tentando delimitar o “campo”, os “agentes” e as “lutas e concorrências” no campo que envolveram a sua definição e evolução no tempo. A abordagem adotada privilegia o entendimento do modus operandi dos grupos hegemônicos que conduzem o processo. Com esse fim, a observação se concentra nas disputas e coalizões entre sujeitos individuais e coletivos que atuam na construção das políticas de urbanização de favelas, realizando projetos e validando estratégias de manutenção ou ascensão de suas posições no espaço social, através da conservação ou ampliação de seus capitais. Assume-se aqui que pensar a produção de uma política social em termos de campo é pensar o mundo social em termos relacionais, considerando, na orientação da pesquisa, que o objeto não se encontra isolado de um conjunto de relações objetivas, mas que é exatamente desse conjunto de relações que retira suas propriedades essenciais (BOURDIEU, 2004, p. 27). Considera-se ainda, que o campo onde são produzidas as políticas de urbanização de favelas simultaneamente se apresenta como resultado das estruturas econômicas existentes nos processos históricos de sua formação, e a interferência objetiva da ação de sujeitos individuais e coletivos que nele atuam. Nesse sentido, evidencia-se a centralidade do papel do Estado na condução das estratégias/intervenções aqui analisadas, o campo do poder por excelência, e que no caso do campo da habitação, onde acreditamos encontrar-se a urbanização de favelas – talvez não exclusivamente, mas de maneira predominante –, é indutor e condutor.



19

1.2 Formulação de políticas em um sistema institucional sincrético: as gramáticas políticas do Brasil Ao longo da pesquisa empírica, buscamos compreender como se davam as relações no interior do aparelho estatal, quais atores participavam e/ou tinham influência nos processos de tomada de decisão. Esse fio condutor levou-nos à forma com a qual o Estado se relaciona com a sociedade de maneira mais ampla. A partir daí escolhemos estabelecer um dialogo com Edson Nunes, em sua proposição sobre como a introdução do capitalismo moderno no Brasil interagiu com a criação de um sistema institucional sincrético, nacional e multifacetado, onde diferentes gramáticas são acionadas em graus distintos em diferentes momentos históricos na operação das relações Estado-sociedade. No foco interpretativo de Nunes, durante o processo de adoção do capitalismo moderno no Brasil, nem todas as instituições políticas foram penetradas pela lógica moderna das relações de mercado, situação que resulta em padrões de intermediação de interesses e governabilidade entre Estado e sociedade, onde as relações de classe são agregadas não prioritariamente na (e pela) esfera econômica, mas no (e pelo) sistema político. No empreendimento de descrever esse processo de construção institucional brasileiro, o autor propôs a existência de quatro padrões institucionalizados de relações, que ele chamou de gramáticas, que seriam estruturantes dos laços entre sociedade e instituições formais no Brasil: clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos. Na explicação de Nunes, o clientelismo4 é caracterizado por uma combinação peculiar de desigualdade e assimetria de poder com uma aparente solidariedade mútua, em termos de identidade pessoal e sentimentos e obrigações interpessoais, por uma combinação de exploração e coerção potencial. A desigualdade desempenha um papel chave na sobrevivência tanto de patrons quanto de clientes, e gera uma série de laços pessoais entre eles, que vão desde o simples “compadrio” à proteção e lealdade políticas, inibindo a formação de identidades de interesses e ação coletiva, sendo a aceitação desta condição racional do ponto de vista do cliente, já que o patron tem poder sobre recursos dos quais dependem os clientes. O 4

Originalmente associada aos estudos de sociedades rurais, compreende o clientelismo como um tipo de relação social marcada por contato pessoal entre “patrons” e camponeses. Os clientes encontram-se em posição subordinada já que não possuem a terra.



20

corporativismo5, formalizado em leis, reflete a busca de racionalidade e de organização que desafia a natureza informal do clientelismo, preocupando-se no entanto com incorporação e controle, não necessariamente com justo e igual tratamento de todos os indivíduos. Essa forma determinaria os limites de participação. O insulamento burocrático6, terceira gramática, emerge como forma de proteger o núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias, e surge como uma estratégia para contornar o clientelismo através da criação de ilhas de racionalidade e de especialização técnica dentro do Estado, inicialmente no intuito de proteger os interesses do capital das constantes flutuações e interferências políticas. De forma que também significa a redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem ser disputados no interior do Estado. Por ultimo, o universalismo de procedimentos seria uma forma de relação entre Estado e sociedade baseada em normas de impessoalidade e direitos iguais perante a lei (universalidade), desafiando a lógica de favorecimento pessoal. A tese de Nunes sustenta que o capitalismo periférico, onde ele situa o caso do Brasil, não deve ser visto como transição entre o tradicionalismo e o capitalismo moderno, mas como combinação distinta e durável de elementos que caracterizam uma sociedade especifica em comparação com outras, e condições estruturais fornecem o cenário para escolhas, coalizões e resoluções de conflitos. O domínio público, na perspectiva de Nunes, é o espaço abstrato onde as contradições entre a lógica da produção capitalista e as demandas da sociedade são reconciliadas, regulado por normas e instituições baseadas no universalismo de procedimentos, ou seja, normas que podem ser formalmente utilizadas por todos os indivíduos. Sendo esta gramática um dos componentes cruciais para a existência de uma democracia. (NUNES,1997, p. 23)

5

O corporativismo no Brasil é um mecanismo que serve ao propósito de absorver de forma antecipada o conflito político através da incorporação e da organização do trabalho. O tipo de corporativismo de Estado, implantado no país na década de 1930, difere da forma de corporativismo societal existente em alguns países capitalistas avançados, apesar de formas de corporativismo societal também terem emergido nos últimos 40 anos no Brasil.

6

Esta redução da arena é efetivada pela retirada de organizações cruciais do conjunto da burocracia tradicional e do espaço político governado pelo Congresso e pelos partidos políticos, resguardando estas organizações contra tradicionais demandas burocráticas, corporativistas ou clientelistas.



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Fonte: NUNES (1997)

De acordo com o modelo proposto por Nunes, alguns grupos ou agendas podem ser mais claramente aprisionados em um dos possíveis conjuntos de normas ou em uma gramática, postulado que buscamos relacionar à análise das inflexões com relação à institucionalização, ou não, das políticas de urbanização de favelas. Desta forma, a noção de eficácia do Estado implica não apenas questões ligadas à competência e eficiência da máquina burocrática, mas também aspectos ligados à sustentabilidade política das decisões e à legitimidade dos fins que se pretende alcançar através da ação governamental. Partimos da compreensão que tanto Bourdieu quanto Nunes são flexíveis em seu tratamento do Estado, trazendo a idéia de que o Estado não tem uma unidade ex-ante, mas tem uma unidade resultante da pratica social. Esse Estado tem campos, arenas diferentes de decisão que funcionam, no abstrato em uma certa convergência. Mas a ação das estruturas não são necessariamente convergentes, o que nos permite expor as contradições dentro do próprio Estado ao longo do trabalho.



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1.3 Marco metodológico Para a execução dessa análise, foram realizadas uma revisão bibliográfica, entrevistas com agentes que atuam no campo, levantamento de dados disponíveis sobre os programas e políticas objeto do estudo junto à Secretaria Municipal de Habitação e ao Instituto Pereira Passos. Também fizemos uma revisão do clipping da Secretaria Municipal de Habitação (disponível entre 1995 e 2006) e do clipping do Instituto dos Arquitetos do Brasil – RJ (disponível entre 2009 e 2014). Além disso, fizemos um levantamento de informações complementares sobre o perfil e trajetória dos atores considerados relevantes na tomada de decisão das políticas e programas objeto desse estudo. Para definir a lista de entrevistados partimos de referências nos documentos existentes sobre os programas, onde situávamos líderes políticos (Prefeitos e Secretários), membros da burocracia pública, profissionais arquitetos-urbanistas, representantes dos setores da construção civil e do mercado imobiliário e pesquisadores da academia. Na sequência, procedemos por tentativas, recorrendo, para além de critérios de interesse resultantes da análise de entrevistas e das declarações publicadas, a critérios institucionais como posições reconhecidas no nível do poder, dos agentes socialmente designados como importantes, e a delimitação

dos

indivíduos

eficazes,

gestores,

dirigentes

de

associações

profissionais, arquitetos projetistas destacados no campo. No que refere aos quadros superiores do funcionalismo público, de maneira mais específica, consideramos um conjunto de altos funcionários ocupando posições estratégicas no campo de formulação da política ao longo do período analisado. Ao final de cada entrevista, solicitava-se ao entrevistado que relacionasse nomes de pessoas que, em sua percepção, seriam fundamentais para a compreensão do objeto da pesquisa. Ao final, praticamente todos os entrevistados foram citados por pelo menos três outros. Alguns foram citados por mais de vinte entrevistados. Por fim, gostaríamos de destacar a intensa produção intelectual, ideológica e jornalística sobre o objeto investigado, o que demonstra a relevância do objeto não só para o poder público, mas para diversos setores da sociedade. Assim, para uma descrição mais detalhada do funcionamento das políticas e programas, ou mesmo para uma avaliação desses em seus mais diversos aspectos, econômico, social,



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territorial, sugerimos consultar a ampla literatura produzida ao longo do tempo, à qual fazemos referência em diversos momentos neste trabalho. O conteúdo será apresentado em duas partes. A primeira parte está dividida em cinco capítulos, onde descrevemos os antecedentes das políticas de urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro a partir do período da redemocratização do país, que se completa com a promulgação da nova Constituição Federal, os principais marcos estruturais que permitiram a emergência e legitimação das politicas de urbanização de favelas. Na sequência apresentamos os principais programas de urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro a partir da década de 1990. A segunda parte do trabalho está divida em cinco capítulos, onde são apresentados os agentes e coalizões que atuam dentro do campo, e como se posicionam ao longo do tempo, bem como algumas formulações explicativas das razões pelas quais a política tende a não institucionalizar-se ao longo do período investigado.



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PARTE I: URBANIZAÇÃO DE FAVELAS 1993-2013



25

2 ANTECEDENTES A favela emerge como resultante de uma crise habitacional no contexto de um processo de urbanização acelerado na cidade do Rio de Janeiro. Não é apenas uma questão de déficit de moradia ou de incapacidade do mercado imobiliário de produzir habitações populares em ritmo capaz de atender a uma demanda crescente, mas resulta sobretudo da exploração da força de trabalho em uma sociedade estratificada, onde as desigualdades tendem a se perpetuar e o processo de acumulação do capital é cada vez maior e o uso do solo é cada vez mais determinado pelo seu valor de troca e o controle dos espaços urbanos é feito pelas classes dominantes, como discutem, por exemplo, Santos (1981) e Valladares (1980, 2005). Santos sugere que as cidades brasileiras deveriam ser vistas como centros de difusão do capitalismo monopolista, onde o Estado teria aos poucos assumido o controle de todo o espaço para desembaraçar o capital dos entraves que não representassem uma possibilidade de lucro em escala e velocidade que lhes conviesse. Segundo Santos, o Estado no Brasil em seu período modernizante teria sido o verdadeiro acumulador, se valendo de sua situação hegemônica para cobrir deficiências do capital local e o desinteresse do capital internacional por certas áreas, vivendo em um contínuo dilema entre onde alocar recursos, que, apesar de significativos, eram insuficientes frente à escala dos problemas nacionais. Assim, a modernização da economia acabou contando com um auxílio precioso no campo da produção informal de moradia: o Estado abriu mão de poderes de controle de maneira contraditória, permitindo, e às vezes incentivando, a ocupação informal de assentamentos, viabilizando a disponibilidade de mão de obra barata e acessível, tendo

resultado

em

um

modo

de

urbanização

onde

formal

e

informal

complementam-se na engrenagem de um único sistema (SANTOS, 1980). Nesse contexto, o desenvolvimento urbano nos grandes centros foi marcado por uma postura que tirou partido das situações irregulares do ponto de vista da propriedade do solo, mas eram funcionais frente aos grandes fluxos migratórios e à necessidade de mão de obra para impulsionar a expansão capitalista no meio urbano (SANTOS, 1980; ABREU, 1985 ; BURGOS, 1996; BONDUKI, 1995; VALLADARES, 2005). Durante a década de 1950, a polarização entre esquerda e direita no campo político no Brasil, impactada diretamente por forças transnacionais durante a Guerra



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Fria, resultou, entre outras coisas, na emergência de movimentos sociais progressistas urbanos e rurais no Brasil, destacando-se os movimentos que procuravam realizar as reformas agrária, educacional, tributária, administrativa e urbana, que também ficaram conhecidas como Movimento Pelas Reformas de Base. Na questão urbana, foi nesse período que a urbanização de favelas, em detrimento da remoção, passou a ser discutida na academia, entre movimentos sociais e políticos. No entanto, a instauração da Ditadura Militar no país em 1964 interrompeu o fluxo dessa discussão, atingindo duramente os movimentos de militância em defesa da permanência da favela. Apesar de o primeiro experimento de urbanizacão integrada de favelas ter se dado durante o Regime Militar7, as pressões contrárias foram se tornando mais fortes à medida que o trabalho se ia mostrando viável (SANTOS, 1981, p. 80), e uma mudança de governo local voltado para o populismo demagógico8 durante a década de 1970 decretou o fim da experiência com o esvaziamento da instituição responsável pela implementação do Projeto da CODESCO9. A crise do modelo de desenvolvimento adotado pela ditadura começou a dar sinais de vulnerabilidade a partir de 1973 (SINGER, 1986) repercutindo diretamente sobre o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) criado pelo regime militar, fazendo com que os planos iniciados no período, baseados na arrecadação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), na capacidade de poupança e no retorno dos financiamentos fossem sendo gradativamente abandonados. Embora a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) tenha significado um reconhecimento explícito do problema habitacional nos grandes centros urbanos do país, alguns pesquisadores sugerem que ele tenha sido criado muito mais para atender aos requisitos políticos, econômicos e monetários dos governos que conduziram ao efêmero milagre brasileiro, do que para solucionar o problema da habitação (BOLAFFI, 1980, p. 167).

7

A iniciativa ligada à CODESCO implementada em Brás de Pina encontra-se descrita em anexo a esse documento.

8 9

O governo do Chagas Freitas será tratado posteriormente aqui.

Ao longo de sua existência, a CODESCO realizou o plano de urbanização de Brás de Pina, deixou pela metade o do Morro União, o projeto para Mata Machado e estudos preliminares para outras dez favelas.



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Na questão da favela, apesar de ter sido provada a ineficácia das remoções já no final da década de 1960, essa opção se manteve hegemônica na cidade do Rio de Janeiro até o final da década de 1970 devido principalmente a interesses econômicos, como os da especulação imobiliária e da construção civil, mas também de ordem política, já que interessava às classes dominantes enfraquecer qualquer potencial revolucionário das populações faveladas. Sobre a questão no período, Valladares destaca: O fato de haverem sido impostas restrições eleitorais durante o regime militar acabou tirando dessa população um meio de pressão eficaz, permitindo que as remoções fossem realizadas em condições favoráveis ao governo remocionista. (VALLADARES, 1980, p. 113)

Foi só em meados da década de 1970 que o Rio de Janeiro deixou de ter um programa de remoções propriamente dito. Valladares sugere que isso teria acontecido devido ao reconhecimento do fracasso da experiência de doze anos de remoções, mas também devido à importância crescente da favela enquanto reduto da oposição em um contexto de possibilidade de retorno à democracia a partir das eleições de 1974, onde operou-se a passagem de uma política exclusivamente autoritaria a uma política predominantemente populista frente às favelas (VALLADARES, 1980, p. 10). A cidade do Rio de Janeiro, apesar de deixar de ocupar o posto de capital do país a partir de 1960, continuou ocupando lugar de destaque na política nacional. No final da década de 1970, já sem condições políticas de atuar autoritariamente nas favelas com relação à questão habitacional, e buscando ampliar suas bases em tais territórios, o Presidente João Figueiredo lançou o PROMORAR10, cujo projeto piloto foi deenvolvido na cidade do Rio de Janeiro: o Projeto Rio. O objetivo do Projeto Rio era urbanizar a Vila do João no Complexo da Maré, na Zona Norte da Cidade, e a Favela do Vidigal, na Zona Sul. O início do Projeto Rio, que anunciou o aterro que sinalizava a permanência do Complexo de Favelas da Maré, realizou intervenções de urbanização na área, e abriu espaço para a retomada das lutas dos moradores de favela frente à tentativa de remoção dos moradores da favela do Vidigal, um dos lugares mais valorizados da Zona Sul, pelo Governo do Estado a pedido da 10

O PROMORAR foi criado para atuar na recuperação de àreas faveladas, atuava em ambientes construidos, ocupados de forma desordenada e irregular, e tinha por objetivo erradicar moradias desprovidas de condições mínimas de serviços, conforto e salubridade, especialmente localizadas em palafitas, mocambos, favelas e invasões, e construir novas habitações nos mesmos locais.



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Prefeitura, sob alegação de risco de desabamento eminente (VALLADARES, 1980). O Projeto Rio foi liderado pelo então Ministro do Interior Mario Andreazza, e deveria servir de plataforma política para o Ministro, que tinha intenção de candidatar-se a presidente do país. Do ponto de vista técnico, o projeto foi liderado pela FUNDREM (Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro), do Governo do Estado, junto com o Ministério do Interior, com recursos federais do BNH. O projeto foi um laboratório importante na história da intervenção urbana em favelas no Rio de Janeiro, e contribuiu para a formação de profissionais que depois vieram a integrar equipes de intervenções em favelas nas décadas que o sucederam, no entanto, não teve continuidade para além dos experimentos da Vila do João e da Favela do Vidigal. O período de transição da ditadura para a democracia, entre o final da década de 1970 e início da década de 1980, foi marcado por grandes disputas políticas, onde a questão fundiária, tanto urbana quanto rural, foi central na formação de coalizões que determinariam o tratamento do assunto na Constituição de 1988. 2.1 A retomada do movimento pela reforma urbana A especulação fundiária e o arrocho salarial haviam entrado em contradição com o atendimento da população de baixa renda pelo BNH, enquanto volumes expressivos de financiamento são destinados às camadas de renda média e alta. A extinção do BNH em 1986 acabou criando um vazio institucional no que diz respeito à política habitacional nacional. A Caixa Econômica Federal (CEF) assumiu precariamente parte das funções do banco e a formulação e gestão da política habitacional, subordinada a diversos ministérios, em meio a uma grande descontinuidade institucional até a criação do Ministério das Cidades, somente em 2001. Em meio à crise econômica, à conjuntura política da época e ao desgaste sofrido pelo SFH e BNH nos anos 1980, nasceu a denominada agenda social, que reivindicava o planejamento participativo nas áreas urbanas (SANTOS JR, 1995, p. 36). As demandas colocadas pelo Movimento Pelas Reformas de Base, interrompidas pela instauração do Regime Militar, voltara à cena através da agenda social. Os movimentos sociais que lutavam pela causa da moradia pressionavam o governo por reformas no Estado e por maior descentralização e transparência nos processos decisórios.



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Nesse ambiente, a Presidência da República instituiu um Grupo de Trabalho para a Reformulação do Sistema Financeiro de Habitação (GTR-SFH)11, com o objetivo de analisar os problemas do sistema e apresentar “subsídios e sugestões para a reformulação da política habitacional, com vistas a melhor compatibilizá-la com as diretrizes governamentais no campo do desenvolvimento social e econômico” (GTR-SFH, 1985, p. 1). O grupo era formado por acadêmicos, empresários, funcionários públicos, associações e entidades de classe. Logo após a apresentação de seus resultados, o Ministério do Desenvolvimento Urbano organizou com o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) um debate em todas as capitais do país, gerando um segundo relatório, assinado pelo IAB. Os dois relatórios, além dos diagnósticos traçados, apresentaram severas criticas à política adotada pelo BNH e apontavam para propostas majoritariamente progressistas, voltadas para uma legislação amparada no desenvolvimento urbano, redirecionada à ocupação do território embasada em antigas reivindicações sociais. O relatório GTE-SFH continha princípios gerais que deveriam ser adotados pela nova política habitacional e para a reestruturação do SFH, e apresentou contribuições à Assembléia Constituinte. O conceito de déficit habitacional foi ampliado na concepção dos técnicos que elaboraram o relatório e passou a incluir moradias situadas em aglomerados chamados “inorgânicos”, que estivessem destituídas de um ou mais serviços públicos, casos nos quais seriam indicados programas de urbanização, com participação dos interessados, regularização da propriedade, melhoria das moradias e dos serviços básicos. Não eram aconselhados explicitamente programas de construção de novas moradias. Ainda, como parte da questão urbana, a moradia deveria proporcionar uma melhor qualidade de vida na cidade, que era entendida como “a soma de múltiplas formas de morar e viver, exprimindo distintos padrões de diferentes grupos sociais” (GTR-SFH, 1986, p. 11), sendo as favelas reconhecidas como expressões peculiares de moradia das populações urbanas mais pobres. O diagnóstico enfatizava também a ausência de políticas urbanas para a organização do território que fossem capazes de enfrentar ao mesmo tempo o conflito decorrente da velocidade no processo de formação dos assentamentos e a especulação imobiliária, e considerava que a política de desenvolvimento urbano 11

Decreto da Presidência nº 91.531, de 15-8-1985.



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deveria integrar os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND), porém com necessidade de uma legislação especifica para o desenvolvimento das cidades. A proposta do IAB indicava reformas estruturantes para diminuir as pressões urbanas, tais como as reformas agrária, tributária e institucional, e recomendava a capacitação do poder público para organização do espaço e para o adequado provimento habitacional. Sobre a nova política habitacional, ainda, o IAB reforçou os principios do GTE-SFH no sentido de procurar diversificar o atendimento, promovendo programas de urbanizacão de assentamentos, com a recuperação de casas

e

melhorias

em

infraestrutura.

Os

principios

de

participação

e

descentralização que deveriam ser adotados pela nova política habitacional também foram corroborados, indicando a formação de conselhos comunitários e de desenvolvimento urbano e a descentralização da produção urbano-habitacional para os governos locais. Era o retorno do ideário das reformas de base à cena política, passadas duas décadas de ditadura militar. Barbosa ao descrever o período destaca: O Movimento da Reforma Urbana contestava a correlação de forças estabelecida nas cidades brasileiras em torno da apropriação privada dos benefícios decorrentes das rendas geradas pelas intervenções públicas. Essa posição se contrapôs à perspectiva do regime militar, segundo a qual a carência de serviços urbanos, o crescimento das favelas e dos loteamentos periféricos, e a elevação do preço da terra, seriam o resultado do excessivo crescimento da população, particularmente nas cidades, sem considerar o poder de indução das políticas do Estado. (BARBOSA, 2013, p. 39)

Ribeiro (2003) relata que nesse período várias propostas foram elaboradas a partir de um amplo espectro de forças, articuladas em torno de um corpo de intelectuais comprometidos com o Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Segundo Maricato (1987), uma série de governos estaduais e municipais, que não tinham mais como contar com o financiamento federal para produção habitacional pelo SFH através do BNH, e com as eleições diretas para governador aproximandose, tinham que dar respostas à questão da habitação para o eleitorado. Assim, durante esse período, governos estaduais buscaram novas alternativas para a produção de moradias pelo regime de Mutirões, que seria uma forma mais barata de se construir e implantar saneamento básico nas comunidades de menor renda, e programas de urbanização de favelas, que haviam praticamente desaparecido da agenda política durante o pereiodo ditatorial, voltaram à cena.



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2.2 O contexto político-institucional no Rio de Janeiro da década de 1980 As eleições de 1982 foram as primeiras eleições democráticas no Rio de Janeiro desde a eleição de Negrão de Lima em 1965. O candidato Leonel Brizola12, liderança importante do Movimento das Reformas de Base na década de 1960, foi eleito governador com forte apoio das classes populares. Brizola, que já na campanha eleitoral anunciava uma agenda social a ser desenvolvida em seu governo, passou a falar diretamente com as favelas, com um discurso que defendia a favela como potência e legitimava sua permanência. A ordem era não mais remover, mas urbanizar, melhorar. O governo Brizola trazia uma mentalidade de tentar alterar a máquina administrativa, um trabalho que demorou para acontecer já que a máquina estava dominada pelas correntes políticas do Chaguismo, como ficou conhecido o conjunto de ações clientelistas lideradas por Chagas Freitas em suas gestões à frente do Estado da Guanabara13. Nomeado prefeito pelo então governador Leonel Brizola, Saturnino Braga14 valorizou a realização de planos locais, promoveu a simplificação do código de 12

Nasceu no interior do Rio Grande do Sul, em 1922, filho de camponeses, formou-se em Engenharia Civil. Com 23 anos foi um dos fundadores do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) no Rio Grande do Sul. Um ano depois, em 1946, foi eleito deputado estadual. Aos 36 anos de idade Leonel Brizola foi eleito governador do Rio Grande do Sul, época em que iniciou um projeto de construção de seis mil escolas públicas no estado. Em 1962, Leonel Brizola se mudou para o Rio de Janeiro e foi eleito deputado federal a maior votação no país até aquela data. Era militante importante pelas reformas de base, diretamente ligado ao presidente João Goulart, juntamente com o qual perdeu os direitos políticos com o Golpe Militar de 1964, se exilando no Uruguai. Retornou ao Brasil em 1979 com a lei de anistia e fundou o Partido Democrático Trabalhista (PDT), que viria a unir-se a Internacional Socialista em 1986, quando Brizola foi eleito seu vice-presidente. Em 1982 foi eleito governador do Estado do Rio de Janeiro, onde adotou uma política de diálogo constante com os grupos populares, legitimando propostas de intervenção social que garantissem a permanência e os direitos dos moradores de favelas. O projeto principal e mais polêmico de suas duas gestões no governo fluminense foram os Centros Integrados de Educação Pública (CIEP), escolas idealizadas pelo professor Darcy Ribeiro, construídos, na sua maioria, em favelas e regiões da periferia da capital e do estado.

13

14

Descritas em maior detalhe na segunda parte desse documento.

Saturnino tinha como Vice-Prefeito Jó Resende, que participou do movimento estudantil no Rio de Janeiro como aluno de escolas tecnicas vinculado à AP nos anos 1970, engajou-se no movimento das associações de moradores. Foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Associação dos



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obras, além de ter sido particularmente atuante junto às associações de moradores e entidades de classe (MAGALHÃES, 2008, p. 198). Dentre as inovações propostas à época à relação entre o governo e a sociedade civil, relevante para uma possível ampliação da participação popular nas decisões governamentais, estavam o Conselho Governo Comunidade (CGC), criado pela gestão de Saturnino, buscando incentivar a participação de entidades comunitárias nas decisões de governo. O que provocou uma grande articulação política através das associações de moradores dos bairros e de favelas, que passaram a fazer parte do CGC, através de conselhos comunitários. Os CGCs, apesar de inicialmente deliberativos, tornaram-se posteriormente apenas consultivos, por pressão do legislativo municipal, fato que trouxe um esvaziamento no tocante à sua representatividade. Segundo Costa (1988, pp. 98-99), a idéia era que o Governo-Comunidade permeasse toda a administração. Através das reuniões que aconteciam nas Regiões Administrativas (RA), registravam-se as reivindicações, que deveriam informular o processo de formulação de políticas e gestão. No entanto, os conflitos políticos dentro da coalizão governante, e a falta de liderança do prefeito com relação aos seus secretários teria dificultado a gestão, e com frequência demandas oriundas do CGC não tinham impacto na máquina administrativa (BARBOSA, 2013, p. 77).

2.3 O Rio de Janeiro e a questão da favela na década de 1980 Finda a era das remoções, os moradores das favelas do Rio de Janeiro preparam-se para ingressar na era da urbanização. É preciso cautela. Em primeiro lugar, a “nova” alternativa vem revestida de um teor de “benesse” do governo, quando sabemos tratar-se de antiga reivindicação pela qual vêem lutando há muito os favelados. (Licia Valladares, 1979, p. 10)

No início da década de 1980 o movimento de luta dos favelados por seus direitos saía de uma aparente inércia para tornar a discutir abertamente a urbanização, fosse com a ajuda da Igreja através da Pastoral de Favelas, ou das Associações de Favelas como a FAFERJ. Outro marco importante no contexto político-institucional no Rio de Janeiro com impacto direto na questão da favela foi a criação, em 1979, pelo então prefeito Moradores do Cosme Velho em 1979, foi eleito residente da FAMERJ. Resende deixou a vida pública após o término de seu mandato.



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Israel Klabin15, da Secretaria de Desenvolvimento Social, que tinha como um de seus principais objetivos atuar em favelas. A RioPlan nessa época ficou encarregada de fazer um cadastramento de favelas, já na gestão de Julio Coutinho16. O cadastramento iniciou com base em um levantamento aéreo feito em 1975, e na sequência técnicos foram a campo, visitando 364 favelas cadastradas então. O trabalho começou na Secretaria de Planejamento, à qual estava vinculado o IplanRio, que sucedeu a Fundação Municipal de Planejamento (Rioplan), para posteriormente, segundo Cavallieri17 (2008, p. 241), ser passado à recém criada SMDS. A favela durante o período da ditadura tinha sido prioritariamente um problema do Governo do Estado ou do Governo Federal, já que não existia uma Instituição que concentrasse políticas específicas para esses territórios do municipio, o que iria mudar a partir da Constituição de 1988, com ampliação do papel dos municípios na gestão de políticas sociais. A Fundação Leão XIII, vinculada ao Governo do Estado, era o principal órgão público atuando em favelas até a criação da SMDS, e naquela altura tinha como eixo de seu trabalho a contenção da expansão dos assentamentos. O Primeiro Secretário da SMDS, em entrevista concedida em 2004, chamava atenção para o fato de que o problema das favelas resolviam-se na véspera da eleição, na famosa solução da instalação de bicas d’água, que ficaram amplamente conhecidas como símbolo do clientelismo durante o governo de Chagas Freitas (RIO DE JANEIRO, 2004, p. 46). A visão que emergia a partir da criação da SMDS era de que caberia ao poder público intervir na favela através da melhoria da infraestrutura por meio de ações de saneamento e de energia elétrica. A SMDS nessa época era composta por três coordenações:

Serviço

Social,

Desenvolvimento

Comunitário

e

Regiões

15

Engenheiro, ambientalista, político, graduado pela UFRJ, pós graduado pelo L'Institut d'études politiques de Paris. Foi indicado pelo então governador Chagas Freitas em 1979, permaneceu apenas um ano no cargo, devido a divergencias com o então governador. 16 Engenheiro eletrônico aeronáutico pelo Instituto de Tecnologia Aeronáutica – ITA, foi secretario de Industria e Comércio do estado do Rio de Janeiro em 1979, no governo Chagas Freitas, indicado prefeito substituto de Israel Klabin. 17

Fernando Cavallieri é sociólogo, formado em 1972, não possui pós graduação. Trabalhou seis anos no Instituto Brasileiro de Administração Municipal – IBAM, até ingressar na Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Começou trabalhando na RioPlan, passou ao IPLAN Rio, onde foi diretor de Informação e desenvolveu o cadastro de Favelas. Em 1985 foi para a equipe de captação da Secretaria de Planejament, e posteriormente para a Secretaria de Urbanismo, onde acompanhou todo o processo de formulação do PDDCRJ de 1992. Participou do GEAP, foi chefe de gabinete da SMH de 1995 à 2000, quando ingressou no Instituto Pereira Passos, onde permanece até hoje.



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Administrativas, e buscou aproximar-se da Pastoral das Favelas da Igreja Católica, criada em 1976 (BARBOSA, 2013, p. 143). A Pastoral das Favelas teve um papel importante de mobilização comunitária no período: criou associações de moradores e se empenhou em conscientizar as pessoas sobre o seu direito à cidadania e a participação delas como forma de transformar a sociedade. Vale destacar que atores centrais na articulação pelo Movimento pela Reforma Urbana iniciaram sua atuação através da militância liderada pela Igreja Católica na época. 2.4 Os programas de urbanização setorial de favelas Como descrevemos anteriormente, foi na passagem da década de 1970 para a década de 1980, frente à evidente impossibilidade de resolver a questão da favela através da remoção, e também frente à necessidade de alcançar apoio popular no contexto de enfraquecimento do regime ditatorial e reabertura política, que o poder público passou a reconhecer a necessidade de conceder às favelas infraestrutura urbana em detrimento da remoção. Nessa época foram criados os primeiros programas de urbanização setorial de favelas, ou seja, programas voltados específicamente para o atendimento de um serviço, ou infraestrutura específica, que atuariam de maneira semelhante em diversas favelas. A iluminação domiciliar e o saneamento básico foram as duas primeiras àreas de atuação dos programas setoriais. Os programas setoriais, apesar de terem sido fundamentais para o início da intervenção urbana governamental na favela de forma sistemática, não pensava necessariamente o território de maneira integral. Em 1979, a Light, naquele momento ainda empresa pública, iniciou um programa de iluminação para as áreas faveladas. Em 1983, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) iniciou o Programa de Favelas da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (PROFACE), tendo os dois programas tornado-se referência na intervenção urbana em favelas, território ainda sendo explorado à época. O programa da Light, através da sua Superintendencia de Eletrificação de Interesse Social, começou pequeno e foi crescendo, até atingir praticamente todos os domicílios em favelas, implantando um sistema popular de provimento de energia. A CEDAE, segundo Cavallieri (2008, p. 244), por influência de Brizola e Darcy Ribeiro, conseguiu reunir profissionais mais progressistas, vinculados ao PDT e ao Brizolismo, para estruturar um programa em favelas na Instituição. Para tanto



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chamaram, para ajudar a montar o programa, assistentes sociais e outros profissionais da prefeitura que trabalhavam ou tinham alguma experiência em atuação em favelas,. Foi criado um departamento dentro da CEDAE – como se fosse a CEDAE das Favelas – que de alguma maneira estabelecia que as favelas a partir daquele momento teriam que ser atendidas normalmente como qualquer parte da cidade. Entre 1983 e 1985 o Proface implantou sistemas de água e esgoto em 60 favelas e a Comlurb comprou microtratores adaptados às condições das favelas (BURGOS, 1998, p. 41). Paralelamente aos programas setoriais de urbanização de favelas, o Governo Brizola inaugurou o Programa Cada Família Um Lote, com objetivo de promover a regulamentação fundiária dos assentamentos ocupados irregularmente pelas populações de baixa renda no Estado do Rio de Janeiro. Criado em 1983, no momento em que o BNH começava a reduzir os investimentos para o Estado do Rio de Janeiro, o programa constituiu-se como um dos principais programas da política habitacional do governo Brizola (1983-1986). O programa entregou mais de 32 mil títulos de propriedade no Estado, ainda que os objetivos expressos no lançamento do programa fossem mais ambiciosos (FAERSTEIN, 1987). Ao longo do tempo, as favelas haviam passado um processo de autourbanização, que apesar de lento e por vezes descompassado, se tornou efetivo: ruas foram abertas e calçadas, áreas pantanosas ou de maré foram aterradas, redes de água foram instaladas, valas cheias de detritos foram substituídas por manilhas. Esse processo veio acompanhado de um incremento na demanda por um local de moradia nesses espaços (cerca de 13% da população da cidade morava em favelas então). Assim, apesar do aumento do custo de vida nas favelas, e um processo de “expulsão” de antigos moradores devido a presões do mercado, a tendência predominante era a da permanência, da tentativa de ficar na favela, como destaca Valladares (1980, p. 8). A setorialização tinha sido até então uma marca das políticas sociais brasileiras, estimulada pela restrição do processo de formulação das políticas sociais ao âmbito das estruturas técnicas da burocracia pública, sem intermediação com atores relevantes, ou pela tradição centralizada do Estado. A necessidade de atuação integrada entre várias áreas sociais foi sendo gradativamente reconhecida a partir da década de 1980, com a redemocratização, sendo a falta de integração



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reconhecida como uma causa importante de baixa efetividade de políticas sociais (LOBATO, 2009). 2.5 Indícios de institucionalização da urbanização de favelas: o Projeto Mutirão Pode-se dizer que o processo recente de tentativa de institucionalizar a urbanização integrada de favelas começou a se institucionalizar como política de governo após 1979, com a abertura política no Brasil. Nesse momento, ressurgem, são criadas e se fortalecem as associações de bairros e as entidades de classes, e a questão urbana passa a ser priorizada por grandes instituições internacionais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), entre outras. A população moradora de favelas do município do Rio de Janeiro, de mais de 722 mil habitantes no final da década de 1980, encontrava-se em situação de grave insalubridade, com apenas 1% das 364 favelas servidas por redes oficiais de esgoto sanitário completo (IPLANRIO, 1985, pp. 20-23). Na maioria das favelas a única estrutura de saneamento básico era a drenagem natural pelo terreno. A SMDS, que tinha sido criada em 1979 com o objetivo de atuar na promoção do bem-estar social com vistas a eliminar ou reduzir os desequilíbrios sociais existentes, passou a ter uma papel central na questão da favela ao longo de toda a década de 1980. A SMDS ficou responsável pelo operação do Fundo-Rio18, com objetivo de captar e gerenciar recursos externos em obras de reformas de escolas e de implantação de saneamento básico, estabelecendo assim uma relação com organizações internacionais de fomento, entre elas a UNICEF e o BID. Barbosa (2013) destaca que, em 1980, um trabalho conjunto entre a SMDS e a UNICEF resultou

na

formulação do documento “Propostas

para

Ação

nas

Favelas

Cariocas”. O documento continha uma série de propostas nas áreas de educação, saneamento, saúde, legalização e ocupação de terras, além de proposições quanto à reestruturação organizacional e administrativa da SMDS, tratando a questão da 18

Criado na administração do Prefeito Israel Klabin.



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favela de maneira integrada, priorizando o território em suas características globais (BARBOSA, 2013, p. 68). É interessante notar que, à diferença do que vinha acontecendo nos pleitos anteriores, as eleições de 1982 não determinaram uma mudança nos projetos em andamento com relação à intervenção urbana na favela, e a colaboração SMDSUNICEF permaneceu em operação. Apesar de o novo governo ter uma orientação política oposta à do anterior, que havia estabelecido o convênio com a UNICEF, os projetos executados em colaboração com a UNICEF não foram muito afetados do ponto de vista técnico e administrativo até 1986. O fato de uma organização internacional ser a principal financiadora dos projetos da SMDS pode ter protegido os programas da Secretaria de sofrer interrupções drásticas após a mudança de governo. As origens do projeto são descritas como uma primeira experiência levada a efeito pela SMDS e UNICEF, partindo da idéia de mutirão de ajuda mútua para problemas comunitários, que se desenvolveu nas favelas da Rocinha e do Arará em 1981, como um componente do trabalho social desenvolvido pela SMDS. O objetivo principal era estabelecer um trabalho social continuado nas comunidades e desenvolver projetos alternativos em àreas de baixa renda. Na parceria entre SMDS e UNICEF, cabia à administração municipal a execução dos projetos de engenharia e seus respectivos orçamentos, a compra e a distribuição dos materiais e a remuneração do pessoal. Às comunidades coube a mobilização dos moradores para as obras, que foram realizadas em regime de mutirão. O

Projeto

Mutirão

foi

desenvolvido

pela

Secretaria

Municipal

de

Desenvolvimento Social e teve início em 1981, a partir da necessidade de encontrar soluções para o problema de saneamento básico e abastecimento de água, que pudessem, através de um trabalho comunitário, eliminar as valas negras das favelas que se apresentavam como risco à saúde pública. O projeto era um componente do trabalho social desenvolvido pela SMDS, através da Superintendência de Desenvolvimento Comunitário e tinha como objetivo principal o estabelecimento de um trabalho social nas comunidades e o desenvolvimento de projetos alternativos em áreas de baixa renda. A SMDS passou a fornecer material para obras de saneamento à população favelada, provendo recursos material e humano (assistência técnico-social), buscando elevar o nível de mobilização comunitária e garantir a qualidade dos serviços, através do regime de mutirão. Eram componentes



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do projeto o desenvolvimento urbano e o meio-ambiente, com enfoque em comunidades situadas em áreas de contribuição das bacias das baias da Guanabara e de Sepetiba e do Oceano Atlântico. Tabela 1: O Projeto Mutirão de Obras. Objetivos

Objetivos

Projeto Mutirão de Obras - Dotar as comunidades de redes de esgotamento sanitário e drenagem (com sistema separador absoluto), pavimentações de becos e vielas, escadarias, pequenas contenções de encosta e promover a eliminação pontual de situação de risco; - Dotar as comunidades de equipamentos comunitários, com a prioridade da construção de unidades de atendimento pré-escolar (creches) para as mães de familia com capacitação profissional e contratação de funcionárias na comunidades; quando for possível a reforma ou construção de pequenas quadras de esporte, postos de saude e atendimento dentario (Desenvolvimento Social). Projeto Mutirão Reflorestamento - A recomposição da cobertura vegetal das encostas situadas nos maciços, morros e serras isoladas da cidade através de: - contenção e estabilização das encostas, recuperação das nascentes e manaciais, delimitação da expansão da ocupação, recomposição paisagística e projetos de silvicultura; - reforma e ampliação, com a operação e manutenção, do viveiro de mudas da fazenda modelo; Fonte: PETERSEN, 2003.

Ao longo da década de 1980, o Projeto Mutirão foi se transformando em um programa. A primeira metade da década de 1980 foi permeada por conflitos entre secretários, equipe técnica e comunidades, que foram aos poucos encontrando soluções para dar seguimento ao trabalho e fortalecer sua atuação. O I Seminário do Programa Mutirão aconteceu em 1983, focando em propostas de caráter essencialmente técnico, deixando em segundo plano a mobilização comunitária. Em 1984, foi realizado o seminário Mutirão/Rio com a participação de 150 comunidades e tendo como objetivo promover a participação das lideranças comunitárias na decisão da alocação de recursos destinados às obras do projeto. A ação (PETERSEN, 2003) resultou num programa de 400 obras e na decisão de só se trabalhar com a mão de obra local, considerando-se que o regime de mutirão remunerado era o formato que melhor atenderia à população (BARBOZA, 2013, p. 70). Em 1984 também foi realizado um seminário CEDAE/SMDS/SMO onde foi elaborado um documento sobre o campo de ação de cada órgão no âmbito do programa, um encontro entre técnicos e encarregados sobre técnicas construtivas e um encontro com representantes do Governo, SMDS, comunidades e RAs onde



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foram definidos grupos de trabalho no nível das RAs para discutir o projeto e a sua continuidade caso houvessse mudanças na conjuntura política, indicando aí já uma preocupação com relação à continuidade do projeto em caso de mudança de governo. Os grupos de trabalho tinham como objetivo estabelecer uma avaliação do Plano Anual de Trabalho, criar vínculos com as RAs e a equipe de projeto para garantir a continuidade visando à implantação dos planos de trabalho seguintes, e fortalecer os órgãos representativos das associações de moradores, principalmente da FAFERJ, para que esses pudessem se transformar em instrumentos de mobilização comunitária de fato. Entre 1984 e 1985, ocorreu uma maior diversificação dos tipos de serviço e iniciou-se a construção de obras de equipamentos comunitários, como creches e postos de saúde, além de atividades geradoras de renda. A partir desse momento o Mutirão passava a ser um programa de governo e deveria estabelecer formas orgânicas de articulação dos diversos componentes do programa com a participação efetiva das comunidades, a SMDS, as RAs e outros órgãos públicos. Quatro grupos de atores eram citados na distribuição de competencias: os técnicos, que deviam elaborar anteprojetos, definir cronogramas de obra e materiais, prestar assistência técnica, fazer a mediação com os órgãos públicos e gerir burocraticamente o programa; os assistentes sociais, que ficavam responsáveis por desenvolver o trabalho social com a comunidade e os técnicos, visando garantir a preservação da obra e o esclarecimento à população; as associações de moradores, que funcionavam como gerentes de obra, controlando pagamentos, material e trabalhando na mobilização para o trabalho em regime de mutirão; e os órgãos públicos, reponsáveis pela execução das obras e serviços de apoio como transporte, material e assessoria técnica. Em 1985 foram estabelecidas novas formas de articulação dos diversos componentes do Projeto Mutirão para transformá-lo em programa de governo. Segundo documento de apresentação e planejamento do projeto escrito em 1985, a filosofia do Projeto de Urbanização Comunitária Mutirão era baseada na troca de saberes técnicos e saberes populares. Nesse mesmo documento o projeto é chamado de projeto alternativo, voltado para o atendimento às necessidades básicas das populações carentes. O documento descreve uma mudança de orientação do projeto a partir de 1983, com a mudança ideológica governamental, expressa pelo programa proposto pelo Governador do Estado Leonel Brizola, dando



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uma dinâmica maior ao projeto, e citava o processo de redemocratização no Estado como responsável por ampliar o campo em que as populações carentes pudessem ser atendidas nas suas solicitações de melhoria da qualidade de vida. A ênfase em valores simbólicos, como construção da autonomia política e jurídica, aparecem pela primeira vez nos princípios fundamentais do Programa a partir do seminário de 1985. Assim, questões presentes nas disputas entre favelados e governos desde a década de 1950 retornavam nesse novo contexto, e iam se tornando explícitos nos documentos oficiais. A partir de 1985 o Serviço Social Regional da SMDS passou a desenvolver um trabalho com as comunidades e com os técnicos responsáveis pela manutenção dos serviços, para assegurar a preservação das obras realizadas, através de um processo de esclarecimento à população (BARBOSA, 2013). Em 1986 a SMDS era composta por três superintendências, uma delas denominada Desenvolvimento Comunitário, à qual estava vinculado o Projeto Mutirão. Nessa mesma perspectiva de atendimento às comunidades faveladas, surgiu o Programa de Educação Comunitária.

Segundo

Petersen19

(2003),

houve

intensa

participação

das

comunidades, da SMDS, das RAs, além de outros órgãos públicos como a CEDAE e a Secretaria Municipal de Obras. O programa de contenção de encostas e eliminação de riscos, ampliado após as chuvas de 1988, e promovido pela GeoRio/SMO, também teria contribuído para o desenvolvimento do Programa Mutirão (PETERSEN, 2003, p. 57). O Programa era realizado em estreita relação com a comunidade, com a associação de moradores, já que o uso da mão de obra local era central na concepção da abordagem de intervenção. Assim, a participação da comunidade teria sido uma das peças-chave do programa, já havendo uma enorme experiência acumulada pelas próprias comunidades no sentido de desenvolver projetos comunitários de ajuda mútua (RODRIGUES, 1988). As Associações de Moradores funcionaram como uma espécie de gerente de obra, controlando os pagamentos, o material e, principalmente, recrutando e mobilizando os moradores para o trabalho em mutirão. Inicialmente, a principal meta do projeto era a erradicação das valas 19

Maria Lúcia Petersen é arquiteta. Foi exilada política durante a ditadura, militou no Partido Comunista. Ingressou na Prefeitura no início da década de 1980. Foi coordenadora do Programa Mutirão na SMDS, e posteriormente gerente do Programa Favela Bairro na SMH, de 1994 a 2000. Em 2000 candidatou-se à vereadora para apoiar Cesar Maia que então disputava a Prefeitura com Luiz Paulo Conde, não obtendo votação significativa. Desligou-se da SMH em 2001.



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negras no Município. Porém, as demandas que emergiram durante o programa foram ampliando o campo de ação da SMDS, que diversificou o tipo de obra, construindo áreas de lazer, acessos por rampas e escadarias, galerias de drenagem, creches, postos de saúde, entre outras obras. Com a continuidade do processo de urbanização de favelas realizadas pelo Projeto Mutirão, houve a criação do Mutirão Reflorestamento em 1986, com o objetivo de realizar a contenção de encostas, recuperação e regularização das nascentes e mananciais, a limitação da expansão das comunidades em áreas de risco, assim como a recomposição paisagística, aos poucos incorporando componentes que alguns anos mais tarde apareceriam reunidos – e acrescidos de outros – no Programa Favela Bairro. Em 1988 o Programa Mutirão atuava em 26% do universo de 480 favelas no município do Rio de Janeiro (FONTES e COELHO, 1988 apud BARBOZA, 2013). O pensamento principal vigente na equipe do programa e entre os dirigentes da SMDS no final da década de 1980 era o de que a urbanização de uma favela deveria viabilizar a extensão da infraestrutura e dos serviços existentes da cidade oficial à favela (BARBOZA, 2013, p. 78). A SMDS ficou conhecida popularmente no Rio de Janeiro como a “Miniprefeitura das favelas” ou “Prefeitura dos pobres”, já que os demais órgãos da Prefeitura pouco trabalhavam nas áreas informais da cidade. De 1989 até 1993, consolidou-se o programa de trabalho com componentes conceituais, que objetivavam promover a qualidade de vida das populações locais e a redução dos impactos físicos, ambientais e sociais na cidade. Pode-se dizer que um dos aspectos marcantes do Programa Mutirão foi seu caráter de construção colaborativa, da construcão de um espaço de troca entre o saber técnico e o popular (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 2003, p. 52)20. Um dos problemas mais sérios enfrentados pela SMDS desde o início teria sido a carência de recursos financeiros, uma das razões que levou à adoção dos métodos alternativos de baixo custo, incorporando a participação das comunidades. Nos balanços da Prefeitura do Rio de Janeiro entre 1980 e 1986, percebe-se que as despesas realizadas pela SMDS em 1980 representavam 1,36% das despesas realizadas pelo município, e passaram a ser 2% em 1986 20

Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, Superintendência de Desenvolvimento Comunitário: Projeto Urbanização Comunitária Mutirão: Uma Proposta Alternativa. Eventos: I Seminário de Avaliação de Obras de 1983 (abril de 1984), com a participacão de 65 representantes de 20 comunidades; Seminário Mutirão Rio 85.



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(RODRIGUES, 1988). Apesar da diminuição dos recursos advindos de captação de recursos externos, a prefeitura passou a alocar mais recursos do orçamento municipal, dado o sucesso do programa (BARBOZA, 2013, p. 74). A colaboração UNICEF-SMDS foi encerrada em 1986, mas os projetos foram mantidos com pequenas alterações (RODRIGUES, 1988). Dentre os desafios enfrentados estavam também o caráter experimental do programa. Petersen, uma das coordenadoras do Mutirão, que posteriormente se tornaria gerente geral do Favela Bairro, destaca: A realização de intervenções simultâneas em mais de 140 favelas e loteamentos irregulares pelo Mutirão, que contava com uma equipe majoritariamente jovem e sem experiência anterior em intervenções urbanas em favelas, foram um desafio prático, tanto pela gestão, que incluía o equacionamento da compra, transporte e do armazenamento dos materiais de construção, como pela complexidade para a execução das obras, tanto por motivos de terrenos acidentados, que exigiam, quase sempre, pequenas contenções, quanto pela necessidade de obras de drenagem de médio porte em áreas planas. Diante da baixa qualidade da mão de obra local, os projetos de creche passaram a ser feitos pela coordenadoria e construídos por empreiteiras comunitárias ou pequenas empresas de construção. (PETERSEN, 2003, p. 52)

Apesar das pressões exercidas, principalmente por arquitetos e urbanistas, para que a regularização fundiária fosse incluída, a coordenação do projeto preferiu se concentrar na construção do espaço coletivo e nas unidades sociais, por acreditar que as intervenções de melhorias e de valorização da área poderiam promover uma expulsão gradativa das famílias menos pobres. O programa durou dez anos e contribuiu pra formar massa crítica, uma equipe técnica de engenheiros, arquitetos e assistentes sociais com grande conhecimento das favelas, com grande presença e com a capacidade de criar soluções alternativas do ponto de vista técnico. Grande parte dessa equipe esteve presente no desenvolvimento e implementação dos programas de urbanização de favelas na cidade nas três décadas seguintes. A SMDS teve catorze anos de existência e onze secretários oriundos de diversos partidos que passaram por lá, até se transformar na Secretaria Municipal de Assistência Social (BARBOZA, 2013). Pode-se dizer que a SMDS representou um primeiro grande ensaio de institucionalização de políticas de urbanização

integrada

de

favelas,

reconhecendo

iniciativas

populares

e

governamentais anteriores. Buscamos nesse capítulo fazer uma breve recuperação das iniciativas que emergiram no período da redemocratização, entre o final da década de 1970 e o



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início da década de 1990, que consideramos ser cruciais para a construção dos programas de urbanização integrada de favelas objeto da presente investigação. Durante esse período, os fundamentos da política urbana e os novos encaminhamentos para a política habitacional – que já faziam parte da agenda dos movimentos sociais pela reforma urbana antes dos governos militares – foram procurando os espaços e as oportunidades políticas para se fortalecer. No Rio de Janeiro, a eleição de Leonel Brizola, os programas governamentais de urbanização setoriais e, porteriormente, o Programa Mutirão foram experimentos importantes e abriram espaço para um cenário onde a urbanização de favelas parecia finalmente possível e poderia ser expandida. As experiências da década de 1980, com o apoio político do grupo no poder liderado por Brizola, tiveram um papel crucial para a legitimação do discurso que levaria à hegemonia do discurso da urbanização de favelas nas duas décadas seguintes na cidade21.

21

Os movimentos pela urbanização e legalização dos loteamentos clandestinos e irregulares, a experiência do Núcleo de Legalização dos Loteamentos da Promotoria Pública, e a constituição do Cadastro de Loteamento e Favelas da Prefeitura, como primeiro ato administrativo de reconhecimento desses territórios, foram determinantes na legitimação do discurso da urbanização.



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3 OS MARCOS INSTITUCIONAIS QUE ANTECEDEM A URBANIZAÇÃO DE FAVELAS A PARTIR DA DÉCADA DE 1990 Os anos 1990 representaram uma ruptura com as políticas nacionaldesenvolvimentistas hegemônicas durante a ditadura militar. A ruptura, iniciada ainda sob o governo Collor, teve continuidade sob a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, que sustentado por ampla coalizão de centro-direita, executou uma redefinição da agenda pública, atribuindo prioridade à estabilização econômica e reformas estruturais, inspirando-se na matriz teórica da economia neoclássica e apoiando-se na hegemonia do neoliberalismo em escala mundial, enfatizando, em contrapartida, as metas de disciplina fiscal e saneamento financeiro. Com a instituição do Plano Real no governo de Itamar Franco a economia ganhou certa estabilidade monetária, mas em função da expansão do crédito e da tendência de alta da inflação, em novo momento de crise internacional, a moeda passou a ser novamente monitorada. Houve aperto monetário, restrições aos empréstimos e arrocho salarial, repercutindo sobre a capacidade de endividamento do setor público, prejudicando o desenvolvimento dos programas habitacionais. Sobre o período e seu impacto na questão urbana, Fix destaca: A inserção do Brasil neste ciclo de globalização capitalista ocorreu tardiamente em relação a outros países da América Latina, porém de modo acelerado, a partir dos anos 1990. A expansão para o urbano foi automática. O circuito imobiliário não acompanhou com a mesma intensidade outros setores da economia quando as políticas de abertura comercial, desregulamentação financeira, privatizações e estabilidade monetária produziram mudanças importantes. O capital portador de juros enfrentou barreiras para libertar a terra urbana para circular na forma de títulos financeiros. O imobiliário seguiu predominantemente como órbita reservada das empresas brasileiras, de estrutura familiar, sem passar pelo salto de desnacionalização que caracterizou a economia brasileira na época. (FIX, 2011, p. 217)

A estabilidade econômica foi consolidada ao longo de dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002, tornando-se um valor incorporado ao ideário político de grande parte da população. Por outro lado, considerando-se o desempenho da economia em seu conjunto, o período teve como característica o estancamento econômico, baixas taxas de crescimento (média de 2,7%

ao

ano),

alto

desemprego,

queda

da

produção

industrial,

ampla

desnacionalização da economia e a privatização de uma série de empresas



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públicas. Os conflitos entre movimentos sociais urbanos e rurais e o Governo Federal permaneceram durante toda a década de 1990, já que o Governo não dava sinais de avanço efetivo nas pautas relacionadas à reforma urbana ou agrária. A partir do final dos anos de 1990, surgem indícios de corrosão da coalizão neoliberal, observando-se uma insatisfação crescente com a incapacidade do governo de gerar o prometido dinamismo da economia e retomar o caminho do desenvolvimento (DINIZ, 2011), que levaria à derrota da coalizão governamental no início da década seguinte. No campo da produção habitacional urbana no início da década de 1990, apesar da produção habitacional realizada pelo BNH ter sido a maior registrada no país até então, percebia-se diante dos números revelados pelo IBGE e IPLANRIO que a crise econômica e social que o Brasil vivera na década de 1980 deixara uma herança pouco resolvida relativa à produção habitacional para o atendimento da faixa populacional de 0 a 3 salários mínimos, o que se refletia no crescimento dos assentamentos informais (BARBOZA, 2013). Assim, pode-se dizer que a década de 1990, no que diz respeito às políticas urbanas, foi marcada por um desconexo feixe de políticas totalmente divorciadas entre si: uma política dotada de recursos administrados pelo governo federal, outra também federal com recursos do Orçamento Geral da União, e outras tantas empreendidas pelos estados e municípios com recursos próprios ou com empréstimos internos ou externos (CHERKEZIAN, BOLLAFI, 1998). 3.1 A Constituição de 1988 A Constituição de 1988 pode ser compreendida como a formulação de um contrato social que apontava para a constituição de um Estado de bem-estar social no Brasil de alcance mais universal do que as que a antecederam. Com relação à questão urbana, a Constituição de 1988 recompôs o ideário reformista que se consolidou com as constituições estaduais, leis orgânicas municipais e nos planos diretores participativos, legitimando idéias que haviam estado na pauta da agenda social desde os anos 1960. No decorrer dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, os movimentos articulados em torno da reforma urbana conseguiram articular um movimento que resultou em uma proposta de emenda que teve mais de 200 mil assinaturas, defendendo a incorporação da função social da propriedade e



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do direito à moradia na Carta Magna. A emenda foi encaminhada no processo de revisão constitucional, mas foi empobrecida durante os embates ocorridos pela ação do chamado Centrão, articulação de caráter conservador que se formou durante o processo constituinte (NUNES, 1990 apud NUNES, 2012, p. 352). No que diz respeito às mudanças institucionais trazidas pela Constituição de 1988, a concepção da questão social incorporada nas políticas e programas implementados pelo Estado foi um dos principais avanços da Constituição. Com a Constituição e as políticas dela decorrentes, o cidadão passa a ser também aquele membro da comunidade investido de um conjunto de direitos comuns e universais, no qual os direitos sociais são centrais. Outro elemento diferencial na concepção da questão social é o que poderíamos denominar de abrangência e diz respeito à incorporação à cena pública e à agenda governamental de diversos problemas sociais que passaram a contar com um arcabouço legal próprio, de estratégias e ações com responsabilidades definidas e a partir de uma compreensão específica do problema. A Constituição de 1988 criou também mecanismos de gestão democrática dos processos de formulação e implementação de políticas públicas, através de formas de participação social. Assim, a democratização e a entrada na cena pública e no processo de decisão de políticas de atores antes excluídos permitiram a ampliação de um debate crítico sobre as experiências passadas e a modernização de conceitos e práticas hegemônicos até então. O reconhecimento da produção social dos problemas sociais que se deu a partir da mobilização para a construção da nova Constituição, vale destacar, não assumiu uma crítica radical da questão social em sua relação com as desigualdades estruturais do capitalismo, mas avançou na identificação de históricos de exclusão e desigualdades sociais como geradoras dos problemas atuais e na responsabilidade da sociedade sobre eles (LOBATO, 2009). A aprovação da Constituição de 1988 representou um marco histórico em relação à problemática urbana no Brasil com a inserção da função social da propriedade. Pela primeira vez, uma Constituição brasileira traz um capítulo sobre política urbana. No entanto, o direito à cidade e o direito à moradia não foram incorporados, e a maior parte do que estava na emenda original só foi recuperado com o Estatuto da Cidade mais de uma década depois. A Constituição também criou a obrigatoriedade do desenvolvimento de planos diretores para as cidades de mais



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de 20 mil habitantes e a figura do usucapião especial em área urbana, com um prazo de cinco anos. A Constituição de 1988, em seu capítulo sobre a política urbana, procurou estabelecer meios mais apropriados para a regularização jurídica das favelas e para o controle do processo de urbanização, e consolidou o princípio da função social da propriedade. Segundo o artigo 182: Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes; (...) § 2° A propriedade urbana cumpre sua função social, quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

A Constituição ainda reconheceu a função social da propriedade e a figura do usucapião especial em área urbana, determinantes para a criação de instrumentos de atuação na área urbana que seriam muito importantes para a regulação do uso do solo, de recuperação de mais-valias, de distribuição dos ônus e bônus da urbanização, embora esses instrumentos não fossem auto-aplicáveis. Tendo em vista o papel fundamental conferido pela Constituição às municipalidades no que tange às questões urbanas, coube à Prefeitura centralizar as políticas públicas em relação às favelas, a partir dos anos 1990. A autonomia dos municípios, no entanto, seria relativa, já que estes estavam mantidos política e financeiramente dependentes do Governo Federal, altamente intermediadas pelo sistema político-eleitoral através de emendas parlamentares e dos ministérios com domínio sobre a distribuição dos recursos resguardando importante controle político. Segundo Rolnik (2011), a autonomia dos municípios seria uma ficção, que resulta em, sem as condições adequadas, mas como responsáveis pelo ordenamento territorial, fazer moradias sem cidades. Assim, ainda que de maneira tímida com relação às demandas nos movimentos sociais urbanos que militavam pela reforma urbana no período da formulação da Constituição, a partir de 1988, o direito urbanístico começou a ganhar corpo, autonomia, princípios.



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3.2 O Plano Decenal Diretor da Cidade do Rio de Janeiro de 1992 O ideário por trás da inclusão da obrigatoriedade de formulação de planos diretores a partir da Constituição de 1988 tinha como objetivo servir como uma resposta ao planejamento adotado nas décadas da ditadura, traduzidos em planos contendo formulações gerais recomendadas por agências internacionais, com enfoque desenvolvimentista, orientados para a equação de primeiro crescer o bolo para depois repartí-lo, assim afastando-se do enfrentamento direto dos problemas da pobreza e da desigualdade socioespaciais das metrópoles (NUNES, 2012). Na cidade do Rio de Janeiro, o processo que levou ao desenvolvimento do Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro (PDDCRJ) foi liderado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, que incluiu a participação de representantes da sociedade civil desde a fase de diagnóstico. Foram formados grupos de trabalho setoriais compostos por membros de instituições profissionais, representações da sociedade civil e de associações de moradores (áreas de habitação, transportes, meio ambiente, gestão urbana, políticas setoriais e outros), sob a coordenação de técnicos do IPLAN-Rio. Segundo o relato de Nunes, arquitetaurbanista que participou do processo na época: Os grupos se reuniam regularmente em fins dos anos 1980, para definir prioridades e diretrizes. O exercicio deste debate manteve-se num elevado clima de tensão por todo tempo de discussão, dada a multiplicidade de interesses envolvidos e a inexperiência do debate público, abolido pela ditadura durante as duas décadas anteriores. (NUNES, 2012, p. 352)

Segundo inúmeros relatos, o desenvolvimento do Plano Diretor de 1992 foi um processo onde houve uma apropriação intensa das idéias do Movimento de Reforma Urbana no sentido de regulação, de distribuição de ônus e benefícios da urbanização e de melhorias das condições habitacionais, e recuperação das mais valias. No entanto, esse último ponto gerou uma polêmica enorme no cenário político do Rio de Janeiro a época. Se por um lado o processo contou com intensa participação do corpo técnico da prefeitura e houve uma relativa autonomia, dada pela esfera de poder, para que o estamento técnico trabalhasse no sentido de colocar idéias novas no plano, por outro, havia um diálogo muito forte com os interesses capitalistas, representados pelos interesses do mercado imobiliário e seus órgaos representativos, que se opunham à implementação do solo criado e do



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imposto progressivo sobre terrenos ociosos ou sub-utilizados22 (CAVALLIERI, 2008; NUNES, 2013). Apesar de o solo criado e as operações interligadas serem instrumentos fundamentais como forma de garantir uma fonte de financiamento permanente no âmbito do município para viabilizar um programa habitacional abrangente, ambos instrumentos foram encarados com desconfiança. O processo de discussão do plano teria provocado um fortalecimento da equipe técnica da Prefeitura, já que se abria espaço para que uma parte da burocracia trabalhasse com certa independência da esfera política. Segundo relatos da época, em alguns casos chegava até a convencer a estrutura política. O prefeito na época, quando foi acusado por grupos empresariais de ir além de seus limites constitucionais afrontando o direito de propriedade, alinhou-se aos técnicos e assumiu o projeto do plano diretor (NUNES, 2012). O plano aprovado determinou a criação de programas de urbanização e regularização de favelas, urbanização de regularização de loteamentos irregulares e clandestinos, eliminação de áreas de risco, construção de lotes populares, construções de casas populares, trazendo esses espaços para dentro do conjunto de normas legais da Prefeitura, gerando um certo clima de otimismo entre os militantes pela reforma urbana então. A palavra “favela” apareceu no plano com definição, e uma série de parametros de diretrizes foram estabelecidos, como a da não-remoção. Cavallieri (2008) destaca: Houve grande contribuição de vereadores, e ao final prevaleceu a idéia de que a remoção só seria permitida em áreas de risco, especificando áreas que são vedadas à ocupação e à urbanização, estabelecendo as favelas que podiam ou não ser urbanizadas, e quais que deveriam ter um tratamento de remoção, de reassentamento em outras áreas. (CAVALLIERI, 2008, p. 248)

Para atuar em favelas, o plano partia da premissa de que era preciso considerar que aquela forma de organização do espaço diferente do restante da cidade, diferente tanto do que as normas urbanísticas preconizavam do ponto de vista do parcelamento do solo quanto do ponto de vista edilício, da construção predial. A aprovação do plano, no entanto, não garantia necessariamente a sua implementação.

22

Chamado no Estatuto da Cidade de outorga onerosa do direito de construir.



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3.3 Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro Embora as disposições presentes no Plano Diretor da Cidade tenham dado ampla sustentação à formulação do Programa Favela Bairro (e seus sucessores), a administração que seria responsável por implementar o plano, do prefeito César Maia23 (1993-1996), foi marcada pela ruptura com o modelo de planejamento proposto pelo Plano Diretor. Logo que assumiu a Prefeitura, o novo prefeito interrompeu o processo de regulamentação do Plano, retirando-se da Câmara Municipal as leis que implementavam instrumentos regulatórios e captadores de mais-valia urbana, como o IPTU progressivo e o solo criado (COMPANS, 1997). O modelo de ação implementado pela Prefeitura,passou a nortear-se por um outro instrumento, introduzido pela nova gestão, o Planejamento Estratégico, cujos princípios passaram em grande medida a sobrepor-se aos que nortearam o Plano Diretor. Assim, em 1993 começava a ser gestada na cidade do Rio de Janeiro a concepção da política urbana orientada pela inserção competitiva da cidade, tornando-a atrativa aos negócios, e em consequência, técnicas de gestão empresarial que passam a ser aplicadas na administração da cidade. Esse movimento foi inspirado na experiência de reestruturação urbana e econômica de Barcelona, associada à realização dos Jogos Olímpicos de Verão de 1992, que César Maia, assessorado por seu secretário de urbanismo, Luiz Paulo Conde24, 23

César Maia começou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), quando militante do movimento estudantil nos anos 60. Durante a ditadura militar exilou-se no Chile, retornando ao Brasil em 1973. Foi professor de macroeconomia da Universidade Federal Fluminense e em 1981 filiou-se ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), período em que foi Secretário da Fazenda do governo de Leonel Brizola e duas vezes eleito deputado Federal (em 1986 e em 1990). Seguiu para o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) em 1991, após divergência com Brizola. Ainda afiliado ao PMDB foi eleito prefeito do Rio de Janeiro pela primeira vez, em 1992, apoiado por uma coligação dessa sigla com o Partido da Frente Liberal (PFL). Ao final do mandato (1992-1996), elegeu seu sucessor, Paulo Conde, desta vez pelo PFL. Após rompimento com Conde, retornava à prefeitura pela segunda vez, eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), para o mandato 2001-2004. Retornaria posteriormente ao PFL, para ser reeleito a prefeito para o terceiro mandato de 2005-2008. Hoje, encontra-se ainda atrelado ao mesmo grupo do PFL, que agora recebe o nome Partido Democratas (DEM). Ver autobiografia publicada no site do César Maia. Disponível em http://www.cesarmaia.com.br/biografia, acessado em 3 de abril de 2010. 24 Luiz Paulo Conde se formou em Arquitetura, em 1959, pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, antigo nome da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ), onde ingressou como professor concursado em 1981. Ele desempenhava o cargo de diretor dessa faculdade quando foi nomeado para o cargo de Secretário de Urbanismo para a administração de César Maia entre 1993 e 1996. Contou com forte apoio do prefeito na candidatura para o mandato que o sucedeu (1997-2000), sendo eleito pelo Partido da Frente liberal (PFL). Durante seu mandato, contudo, Paulo Conde viria a romper com César Maia,



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buscou como referência para nortear o primeiro Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro (PECRJ), elaborado no período compreendido entre novembro de 1993 e setembro de 1995, sob a orientação de duas empresas de consultoria catalãs, que haviam participado do desenvolvimento do Plano Estratégico de Barcelona, cidade vista como exemplo a ser seguido por administrações que se inspiravam no modelo da inserção competitiva da cidade. A partir do primeiro PECRJ, o pensamento e a ação de consultores passaram a definir a tônica do planejamento da cidade, determinando uma agenda de investimentos que priorizava a realização de grandes projetos urbanos como forma de torná-la atrativa ao mercado cultural. Sobre o modelo, Oliveira destaca: Dentro dessa agenda, a construção da vocação olímpica da cidade assume papel de destaque. A ideia do desenvolvimento local, promovido a partir das parcerias público-privadas também estava no cerne do plano, cuja elaboração contou com a contribuição financeira de um consórcio mantenedor constituído por 51 empresas e associações empresariais instaladas na cidade sob a liderança da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro e da Associação Comercial do Rio de Janeiro (OLIVEIRA, 2012, p. 198).

A contratação da consultoria catalã para desenvolver o Plano Estratégico, com o objetivo de construir as bases para ampliar sua atratividade para o capital internacional, trazia uma contradição enorme no campo do planejamento, já que se contrapunha aos valores que vinham sendo introduzidos pelos movimentos pró reforma urbana desde a aprovação da Constituição, deixando de se centrar na questão social, para atender claramente aos interesses dos setores empresariais. Esses setores foram os responsáveis pelo financiamento do Plano, como mostra uma

extensa

literatura

sobre

o

Plano

Estratégico

do

Rio

de

Janeiro

(COMPANS,1997; VAINER, 2000; FERREIRA, 2000; ARAUJO, 2005). Observando a orientação política da Prefeitura e os segmentos sociais que foram mobilizados para sua elaboração25, o PECRJ pode ser visto como uma para quem perderia a prefeitura em 2000. Antes de assumir o Cargo de prefeito, Conde havia sido presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (1974-1977). Além de Secretário de Urbanismo (de 1992 a 1996) e prefeito, ele teve sob a sua responsabilidade a coordenação de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura, a presidência do Conselho de Administração da Empresa Municipal de Informática e Planejamento (IplanRio), o Conselho Executivo do Plano Estratégico da Cidade do Rio e a representação da Prefeitura no conselho para as Olimpíadas de 2004. Fervoroso defensor do modelo de planejamento empresarial para as cidades, Conde também participou de várias articulações internacionais entre cidades. 25 A história da formulação do Plano Estratégico demonstra tais características: “No dia 22 de novembro de 1993, o governo da cidade do Rio de Janeiro assinou um acordo com a Associação Comercial (ACRJ) e a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN) para promover um Plano Estratégico para a cidade do Rio de Janeiro (PECRJ)” (VAINER, 1996, p. 1 - a tradução é nossa). Estas duas entidades de classe e a Prefeitura constituíram os assim chamados Promotores do Plano.



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sistematização da visão e do projeto da cidade de um expressivo setor de uma elite capitalista. A novidade do Plano, no entanto, não se localizou somente na arena do discurso

político,

mas

na

articulação

entre

as

diferentes

forças

sociais

predominantemente corporativistas, associações empresariais, e também uma parte da sociedade civil organizada preocupada com as condições de segurança face ao aumento da violência armada na cidade. Borja e Castells (1997), defensores e difusores deste modelo, afirmavam que o planejamento estratégico seria uma forma de condução da mudança baseada em uma análise participativa da situação e de sua possível evolução, e também na definição de uma estratégia de investimento dos escassos recursos disponíveis nos pontos críticos. O valor estratégico de um plano estratégico para Borja e Castels não residiria na função ou forma específica da intervenção, mas sim em seu efeito sobre a dinâmica urbana. Baseando-se em uma suposta produção de consenso, seria um plano de compromissos e acordos entre agentes para ação imediata ou, a curto prazo, um plano de ação. O diagnóstico estratégico deveria levar em consideração o contexto, o território em suas distintas dimensões e a administração. No entanto, os diagnósticos realizados a partir do processo para aprovação do Plano Diretor não foram incorporados ao processo de criação do Planejamento Estratégico, como se estes não interessassem aos líderes do “novo” planejamento. O discurso de Borja e Castels defendia que fossem consideradas especialmente as dinâmicas e atuações em marcha, as demandas sociais, os pontos críticos e as potencialidades do Estado, mas sua aplicação local desconsiderou processos importantes que já estavam em andamento, de forma que o Planejamento Estratégico não se traduziu em um plano de gestão de “metas” que estivesse necessariamente de acordo com o PDDCRJ.

O Consórcio Mantenedor do PECRJ, onde ACRJ e FIRJAN lideraram mais de 40 empresas, foi instalado em 4.2.1994 com a responsabilidade de levantar fundos para a realização de todas as atividades, especialmente para a contratação de uma firma de consultoria da Catalunha, profissionais que assumiram o Comitê Executivo do PECRJ e outros consultores particulares. Como órgão de mais alta representação e autoridade da cidade foi, em 31.10.94, instalado o Conselho da Cidade. A “concretude real” dessa “participação” pode ser mostrada através dos seguintes dados: o Conselho da Cidade contava com 305 pessoas, 109 pessoas ajudaram na elaboração do assim chamado Diagnóstico da Cidade, 323 na análise de propostas para a cidade e 25 especialistas elaboraram estudos.



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3.4 O Grupo Executivo para Assentamentos Precários e a Política Municipal de Habitação A primeira administração de Cesar Maia foi marcada por uma série de contradições no que diz respeito à política urbana, habitacional. Se por um lado o prefeito ignorou o Plano Diretor, enquanto foi entusiasta da realização do Planejamento Estratégico nos moldes empresariais e do empresariamento urbano, a gestão de Maia também foi responsável pela criação da Política de Habitação da cidade do Rio de Janeiro, liderada majoritariamente por profissionais com inspiração nos princípios da reforma urbana, reunidos através do Grupo Executivo para Assentamentos Precários. Quando Cesar Maia assumiu a Prefeitura em 1993, iniciou-se um processo de reestruturação administrativa, e um de seus principais conselheiros durante a campanha, o arquiteto-urbanista Luiz Paulo Conde, foi convidado a assumir a Secretaria Municipal de Urbanismo26, tendo sido figura central na concepção das políticas urbanas de gestão de Maia, expressas principalmente na figura do Plano Estratégico e do processo de preparação da cidade para atrair investimentos privados internacionais. Conde logo tornou-se um dos secretários mais importantes da gestão e convidou o também arquiteto e urbanista Sergio Magalhães27, seu parceiro de trabalho, para retornar à Prefeitura. Magalhães, que já havia sido diretor do IPLAN, e estava vinculado à Prefeitura de 26

Segundo César Maia, no período que antecedeu às eleições de 1992, ele participara de um programa liderado pela Fundação Friedch Ebert, associada ao partido social democrata alemão, um dos primeiros partidos do mundo a serem influenciados pelo Marxismo. O curso era voltado para lideranças políticas e tinha como objetivo discutir a questão das cidades. Segundo Maia, a Fundacão pregava que a discussão do urbano teria centralidade na política no período que vinha, e incentivava os líderes, através de debates e viagens a grandes centros urbanos para visitar projetos de reforma urbana, a investir nessa área. Teria vindo desta relação a idéia de buscar um urbanista para assessorá-lo durante a campanha.

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Sergio Magalhães é formado em arquitetura pela UFRGS, militante do centro acadêmico na universidade. Votava com PTB mas foi filiado a AP na véspera do Golpe. Fez mestrado no Rio (FIOCRUZ) trabalhou em um escritório privado (Mindlin), depois passou um período fora do país. Ao retornar e foi para a universidade (Santa Ursula), onde conheceu Luiz Paulo Conde e de lá pra PUC no final da década de 1970. Montou seu próprio escritório e fez um projeto para uma cidade do Paraná, que seria atingida pela construção de uma barragem. Depois faz um projeto de habitação de Cafundá – Jacarepaguá - e seu escritório praticamente vai à falência. Trabalhou no escritório do Conde, de onde saiu para trabalhar na Prefeitura, tornando-se diretor de projetos do IPLAN Rio no governo Saturnino Braga. Foi chefe de gabinete da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, e posteriormente diretor de projeto urbano em Niterói,na primeira gestão de Roberto da Silveira. É Doutor em Urbanismo, PROURB-UFRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo-Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi presidente do IAB, secretário municipal de Habitação no Rio de Janeiro e secretário de Estado de Projetos Especiais do Rio de Janeiro. Foi responsável pela concepção e implementação de programas como Favela-Bairro, Moral Legal, Morar sem Risco e Morar Carioca.



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Niterói, animou-se com a possibilidade. A idéia era iniciar um grande projeto de requalificação urbana, que posteriormente tornou-se o Rio Cidade. Uma das inovações da gestão de César Maia foi a implantação das Macro Funções na gestão, que fazia com que diferentes secretarias reunissem para trabalhar de maneira cooperativa sobre questões comuns. A partir dessa lógica, o então secretário de urbanismo e o prefeito propuseram a criação de um grupo para discutir habitação, que seria coordenado por Magalhães. Assim, em agosto de 1993, o prefeito constituiu o Grupo Executivo para Assentamentos Populares (GEAP), com atribuições de estudar e propor as bases para uma política habitacional para o município. O grupo foi composto por represetantes como SMU, SMO, SMDS, IplanRio, RioUrbe, PGM, SME, Secretaria Municipal de Esportes e Lazer, SMS, SMC, Fundação Parques e Jardins, Rio Luz, Geo-Rio, Comlurb, Defensoria do Estado, CEDAE e Light, encontrando-se periodicamente, às vezes com a presença do próprio prefeito, para discutir propostas para a questão habitacional na cidade. A Política Municipal de Habitação da Cidade do Rio de Janeiro foi gestada nesse grupo, sendo resultado de um esforço coletivo de profissionais de diferentes órgãos da Prefeitura, fortemente influenciada pelos ideários do Movimento de Reforma Urbana, presentes tanto na Constituição de 1988, quanto no PDDCRJ de 1992, partindo da compreensão de moradia como direito. Além dessa premissa, a política de habitação avançava no sentido de considerar a habitação como espaço ampliado, para além da casa, ou seja, dizia respeito à estrutura urbana (infraestrutura sanitária, de transporte, de educação, de saúde e de lazer), visando “compatibilizar o direito individual com as possibilidades coletivas na construção de cidade” (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1995, p. 1), o que estaria claramente refletido na concepção do Programa Favela Bairro, que, como veremos na seqüencia, foi em parte gestado dentro do mesmo grupo, simultaneamente à própria política de habitação. Estava no cerne da nova política de habitação a idéia de que os investimentos públicos em unidades habitacionais deveriam direcionar-se àquelas ações próprias da coletividade (infraestrutura e ambiência urbana) e o investimento direto em unidades habitacionais deveria se dar somente quando necessários à melhoria da ambiência urbana, da infraestrutura, ou para enfrentar situações de risco, abordagem bastante diferente do que se conhecia como política habitacional no país – majoritariamente compreendidas como provimento de terrenos (lotes) ou de



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unidades construídas – até aquele momento. A política de habitação também incluía o oferecimento de condições para construir em terra infraestruturada através de programas de loteamentos. A política habitacional tinha como objetivo declarado incentivar a ocupação dos vazios urbanos existentes, mas destacava que não seria incentivada a expansão da mancha urbana para uso residencial em áreas que exigissem nova infraestrutura ou a construção de grandes conjuntos residenciais, ou ainda a segregação espacial de usos e a restrição ao uso residencial, (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1995, p. 1) ítem que foi sendo gradativamente desconsiderado nas décadas seguintes, com agravamento após o lançamento do programa Minha Casa Minha Vida, que elevou o poder de pressão do mercado da especulação imobiliária. A Política de Habitação se apoiava nas diretrizes estabelecidas pelo Plano Diretor então recém aprovado. Sua fundamentação conceitual resultava da reflexão sobre as causas do fenômeno urbano carioca à luz da experiência brasileira no trato da questão da moradia. Pode-se dizer que o conjunto de diretrizes, conceitos e programas que constituíam a política habitacional resultaram de um conjunto de esforços que vinha se estruturando nos anos anteriores, apresentando-se como instrumento de otimização na aplicação dos recursos públicos e estimuladora dos investimentos privados, coletivos ou familiares. 3.5 A criação da Secretaria Municipal de Habitação No seio do GEAP, simultaneamente à política de habitação, foi gestada a idéia da criação de uma nova secretaria, que ficaria responsável pela implementação da referida política. Até 1993 o planejamento urbano da cidade era feito pela Secretaria de Planejamento, onde predominavam questões relacionadas à legislação urbanística e licenciamento. Após a entrada de César Maia na Prefeitura houve uma centralização das questões do urbanismo na SMU, sob o comando de Conde (CAVALLIERI, 2008, p. 249). Segundo relato de Magalhães, principal articulador do GEAP, quando já estava em andamento o concurso do Projeto Rio Cidade, teria havido o que ele chamou de “crise na habitação”, com ações desenvolvidas por diferentes secretarias de governo, principalmente as secretarias de urbanismo, de obras e a de desenvolvimento social. Segundo Magalhães havia muita competição entre as secretarias, o que inviabilizava um esforço unificado em



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torno de um determinado projeto. Assim, em dezembro de 1994, após aprovação dos vereadores, o Prefeito sancionou a lei que criou a Secretaria Extraordinária de Habitação (SEH), posteriormente Secretaria Municipal de Habitação (SMH), que seria gerida pelo personagem que havia conduzido o GEAP, Sergio Magalhães. Uma das principais características da Secretaria foi ter nascido com a missão muito clara de implantar a nova política de habitação, tendo sido ambas, a Secretaria e a política de habitação, gestadas simultaneamente. A Secretaria Municipal de Habitação (SMH) tem como missão “garantir o acesso à moradia legal e à infraestrutura urbana à população de baixa renda como direito social básico, tendo como foco a inclusão social e o respeito ao meio ambiente, num processo integrado de planejamento urbano, com a participação da sociedade.” A Secretaria foi composta inicialmente pela equipe oriunda da Coordenacão de Auto-Construção da SMDS (responsável pelos programas de urbanização de favelas da Prefeitura) e de um grupo de funcionários de outras secretarias, como a SMU, Geo-Rio, IPLANRIO. O orçamento no primeiro ano de funcionamento da SMH era equivalente a 8 milhões de reais, e uma equipe de aproximadamente 230 funcionários. Com relação à gestão e tomada de decisão, foi adotada uma estrutura matricial para a SEH, que tinha como base a descentralização de decisões, a exemplo das práticas desenvolvidas pela SMDS, e a integração entre as gerências de projetos (uma para cada projeto da política habitacional) e as coordenações de área (Obras, Desenvolvimento de Projetos, Orçamento, Ação Social). Outra característica importante foi a seleção de subgerentes técnicos da coordenação de projetos e, posteriormente, dos fiscais de obras da coordenação de obras, oriundos majoritariamente do Mutirão Remunerado (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 2003, p. 65).

Após a Constituição de 1988, a cidade do Rio de Janeiro teve um papel pioneiro na aprovação de leis consideradas bastante progressistas, como a Lei Orgânica Municipal de 1990 e a Lei Complementar 16 de 1992, que aprovou o PDDCRJ de 1992. No entanto, se por um lado a nova Constituição Federal abriu caminho para rediscutir a ocupação do solo, privilegiando a função social da propriedade, o que legitimou o discurso focado em urbanização, regularização fundiária e melhoramentos das favelas, por outro lado o mesmo período foi marcado



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pelo recrudescimento da violência nesses espaços (MISSE, 1999 e 2003), marcando a dualidade no discurso e na prática – não se discutia mais a necessidade de urbanização e integração, no entanto, políticas de segurança excludentes justificavam o discurso da Cidade partida, colocando mais uma vez em xeque a integração da sociedade carioca (VENTURA, 1994). De um lado, a sociedade dividida entre favelados e não favelados; do outro, movimentos sociais fortalecidos na esteira do movimento que aprovou a Constituição de 1988 buscavam soluções democráticas e integradoras para as questões sociais brasileiras, dentre elas, a favela. O início da década de 1990 era o início da implementação da nova Constituição, da reorganização do sistema político do país, que saía de uma longa ditadura militar, por um lado, e por outro era o momento onde o país reformulava seu sistema econômico e financeiro, da disseminação do empresariamento urbano e da gestão empresarial das cidades. Enquanto isso, na cidade do Rio de Janeiro, a questão da favela pedia atenção urgente, fosse pelas necessidades de infraestrutura que fosse adequada para a ocupação humana das áreas, fosse pela violêcia armada crescente que assustava a opinião pública, ou pela necessidade de reorganização política desses territórios, que eram peça importante no jogo político democrático, tanto por sua representatividade numérica nas urnas, quanto pela alta visibilidade nos grandes meios de comunicação e, consequentemente, no debate público. A criação do GEAP, da Política Habitacional da Cidade do Rio de Janeiro, e da Secretaria Especial de Habitação foram uma grande articulação em torno da questão da favela, em um contexto onde as conquistas alcançadas pelos movimentos que se uniam em torno dos ideiais da reforma urbana, tanto na Constituição de 1988 no plano nacional, quanto no PDDCRJ, encontravam enorme resistência entre forças conservadoras empresariais, especialmente dos setores imobiliário e da construção civil.

4 O PROGRAMA FAVELA BAIRRO O Programa Favela Bairro, sob o ponto de vista da questão da urbanização de assentamentos precários e da produção habitacional, surgiu como um processo



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político-institucional, que por meio de avanços sucesssivos foi sendo moldado e aperfeiçoado ao longo do tempo. As experiências anteriores de urbanização de favelas no Rio de Janeiro foram fundamentais para a constituição do programa, em especial o Projeto Mutirão, apesar de alguns dos conceitos fundamentais já estarem presentes mesmo no experimento da CODESCO em Brás de Pina ainda na década de 1960. 4.1 Da formulação à implementação do PROAP I Em 1992, no último ano do mandato do prefeito Marcelo Alencar28, a SMDS criou a Coordenação de Autoconstrução que tinha por meta a elaboração de um plano de ação para a promoção de melhorias nos assentamentos de baixa renda, bem como acompanhar as tendências da evolução do problema habitacional e a promoção de planos de urbanização29. Dentre os planos elaborados nesse último período, estava o plano de urbanização de Complexo do Caricó, e o grupo de trabalho responsável por ele, que ficou conhecido como GT Caricó, passou a articular com a Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) para que fossem regulamentados diversos artigos do Plano Diretor recém aprovado, que diziam respeito à habitação popular, em especial os que diziam respeito a parâmetros urbanísticos para Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), na direção de institucionalização dos programas de urbanizacão de favelas já à luz dos novos instrumentos trazidos pela Constituição de 1988, regulamentados no PDDCRJ. Enquanto isso, a metodologia adotada pelo Projeto Mutirão foi apresentada e publicada nos anais da Conferência Rio-9230, passando a ser considerada como 28

Marcello Alencar é formado em Direito, defendeu presos políticos durante o regime militar. Foi filiado ao MDB até ter seus direitos políticos cassados pela ditadura. Filiou-se ao PDT e foi prefeito nomeado do Rio de Janeiro entre 1983 e 1986. Foi eleito pelo mesmo partido prefeito (1989-1992). Foi para o PSDB devido a desavenças com Brizola, e elegeu-se governador do Estado do Rio de Janeiro por esse partido (1995-1999).

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Esses planos de integração foram projetados para várias favelas e complexos, tais como o Complexo do Caricó, o Salgueiro, o Formiga e o Buriti Congonhas, entre outros, prevendo, em geral, espaços para lazer, implantação de redes de esgoto e drenagem, sistema viário e uma forma eficaz de limpeza pública. Elaboraram-se planos de coleta seletiva de lixo e foram realizados trabalhos integrados a outros órgãos públicos, com o objetivo de transformar as favelas e os loteamentos irregulares e clandestinos em bairros populares. A Cúpula da Terra no Rio de Janeiro foi uma conferência da Organização das Nações Unidas sem precedentes, em termos de seu tamanho e do alcance das suas preocupações. Vinte anos após a

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marco de boas práticas para a redução da pobreza. (PETERSEN, 2003, p. 57) Como coroamento de todo esse processo, e tendo como objetivo a Rio-92, a SMDS organizou, em maio de 1992, o “Primeiro Seminario sobre Áreas Favelizadas, Política de Urbanização e Meio Ambiente”, que apresentou propostas básicas e conclusões para a estruturação de políticas públicas integradas nesses territórios. A definição temática proposta para a formação dos grupos de trabalho eram a urbanização das favelas, a participação popular e a qualidade de vida, a política de saneamento básico e a transformação de áreas favelizadas, a ocupação de espaços urbanos e o meio ambiente, e a questão cultural e a gestão do espaço coletivo (PETERSEN, 2003), dicutindo os aspectos conceituais que acabaram por nortear em grande medida a metodologia que seria apresentada posteriormente no Programa Favela Bairro. Enquanto o GEAP se reunia para escrever a política de habitação, e simultaneamente gesar o Programa Favela Bairro, que como veremos adiante era peça central da nova política, uma missão do BID veio ao Rio de Janeiro para examinar um pedido de financiamento para a despoluição da Baia de Guanabara (que incluía um pleito de 30 milhões de dólares para favelas), momento no qual a articulação política do GEAP sugeriu que essa missão tambem avaliasse o pleito para as favelas, já pensando em formas de financiar um programa para as favelas em uma escala que fosse superior à que se vinha trabalhando até então. Uma das estratégias do grupo foi produzir algum tipo de evidência que sugerisse à Missão do BID que já havia um esforço em andamento, além do compromisso da Prefeitura com a implementação do projeto. Assim nasceu a Matriz de Classificação das Favelas31, preparada para ser apresentada à equipe do Banco como indicador de primeira conferência ambiental global, o objetivo era repensar o desenvolvimento econômico e encontrar formas de travar a destruição dos recursos naturais insubstituíveis e a poluição do planeta. 172 governos participaram, 116 enviaram seus chefes de Estado ou de governo, participaram também 2.400 representantes de ONGs, com 17 mil pessoas no paralelo Fórum Global, que teve status consultivo. 31 Na

primeira etapa, as comunidades foram classificadas em quatro grupos de acordo com algumas caracteristicas gerais: 1) áreas de encosta com alto nível de carência em infraestrutura urbana. Prioridades: saneamento basico, reflorestamento, contenção de encostas e reassentamento pontual; 2) áreas de encosta dotadas de maior ou menor grau de infraestrutura, mais que sofreram intervenções significativas. Prioridades: complementação de infraestrutura, equipamentos sociais; 3) áreas planas sujeitas a inundações, dotadas de infraestrutura e altamente densificadas. Prioridades:



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seriedade no desenvolvimento do programa que era gestado então. A Matriz de Classificação das Favelas também foi uma tentativa de garantir um certo insulamento para as futuras intervenções em favelas, de forma que elas ficassem protegidas das urgências políticas, fossem as urgências demandas de vereadores ou mesmo do Poder Executivo, já bastante conhecidas pelos técnicos da Prefeitura. A Matriz foi construída com base nas diretrizes do Plano Diretor, estabeleceu a implantação de um programa de urbanização de favelas em cerca de 130 favelas com ordem de prioridade. Segundo todos os profissionais que participaram do desenvolvimento ou implementação do programa em algum momento, entrevistados ao longo dessa investigação, a Matriz teria uma forma eficiente de garantir que a decisão de onde as intervenções aconteceriam fosse baseada em critérios prioritariamente técnicos, sendo uma forma de minimizar um direcionamento do programa na perspectiva da troca eleitoral. Assim, com a SEH em funcionamento e a Matriz de Classificação das Favelas criada, em 1994 foi lançado, através de um decreto do Prefeito, o projeto-piloto do Programa Favela Bairro na Favela do Andaraí, que seria desenvolvido e implantado pela coordenação da SEH, em articulação com as secretarias de Obras e de Desenvolvimento Social. O início, que pode ser considerado uma fase de transição entre o Programa Mutirão e o Programa Favela Bairro, representou um momento importante no sentido de avançar no entendimento de que uma cidade para todos implicava no reconhecimento de que a regularidade nas áreas de pobreza se construiria pela compreensão do contexto de ilegalidade e irregularidade em que se inserem as possibilidades de sobrevivência dessas pessoas, dotando-as de melhores meios e infraestrutura. Os documentos iniciais do Favela Bairro destacam de maneira explícita a redução de pobreza, a inclusão social e a promoção de cidadania como objetos do programa. Isso pode ser percebido nos textos de apresentação da publicação comemorativa dos 10 anos do programa “Uma cidade integrada”: [...] Essa experiência teve como principal mérito dar cidadania à favela e tratá-la - nas áreas consolidadas – como uma situação permanente e não mais provisória. (...) uma intervencão integrada que fosse além da urbanizacão e incluísse os mesmo serviços públicos existentes nos bairros (...) foram incluídos o desenvolvimento comunitário e a dinâmica econômica, contextualizadas as condições de comunidades excluídas. (César Maia)

soluções de macrodrenagem, intervenções no entorno e reassentamento; 4) áreas planas ou semiplanas dotadas de infraestrutura, de alte densidade.



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[...] Um marco em matéria de política social e urbana no tratamento do problema de assentamentos informais. sua filosofia de integrar as favelas à cidade formal é uma resposta mais eficiente e socialmente correta ao antigo conceito de remover os habitantes das favelas para conjuntos habitacionais. (...) os serviços sociais e de infraestrutura são levados às favelas de forma coordenada e implantados com intensa participação das comunidades. Considerado um paradigma para as operações de melhoramento de bairros no BID. Os impactos na redução da pobreza e na melhoria da qualidade de vida dos residentes são visiveis e substanciais. O programa mostra que é possível aliar as esperanças dos cidadãos com os ideais de arquitetos, urbanistas, engenheiros, antropológos, sociólogos, economistas e ativistas sociais, uma respostas criativa e responsável com filosofia própria e participação popular. (Henrique Iglesias, Presidente do BID) [...] O projeto, que começou como um programa de melhoria física das comunidades, hoje vai muito além. À medida que as favelas foram urbanizadas, ficou claro que era preciso avançar e o programa passou a desenvolver ações voltadas para mães, crianças e adolescentes, além de projetos de geração de trabalho e renda, numa estratégia integrada de combate à pobreza e à exclusão. Em dez anos foram investidos cerca de 440 milhoes de dólares em favelas e loteamentos. Esse é o objetivo do Favela Bairro: transformar antigas favelas em parte integrante da cidade. O sucesso do programa é tão grande que já se prepara sua terceira etapa. (...) com a criação do GEAP, impulsionada pela aprovação do Plano Diretor da cidade, a nascente SMH incorporou quadros técnicos da Secretaria Municipal de Desenvolvimento social, formados no projeto Mutirão remunerado, que lidavam com favelas. A esses técnicos foram agregados outros, da Secretaria Municipal de Urbanismo, como também de empresas e órgãos municipais como a Riourbe. Foi essa massa crítica que deu raízes ao Favela-Bairro (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, p. 19)

O Programa Favela Bairro, além das experiências do Programa Mutirão e de experiências acumuladas tanto no Projeto Rio quanto no GT Caricó, trouxe componentes novos para a urbanização de favelas, além de elevar a intervenção à uma escala muito superior ao que se havia visto até então. No documento que apresenta a política de habitação, constam dez programas que deveriam atuar de maneira articulada a programas setoriais para implementar a política32, sendo o Favela Bairro um deles, ocupando lugar de destaque no documento. Enquanto os demais programas são apresentados em duas ou três páginas, o Favela Bairro ocupa vinte e cinco páginas do mesmo, dando uma idéia de sua relevância na política de habitação apresentada então. O Programa Mutirão remunerado permanecia parte do conjunto de programas da Política Habitacional, descrito como “alternativa possivel e bem sucedida de intervenção”, apesar de sua equipe principal ter praticamente migrado para o Favela Bairro logo após a criação do mesmo. O Favela Bairro foi implementado inicialmente em dezesseis favelas, ainda sem os 32

Publicado em maio de 1995.



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recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, como forma de criar um efeito demonstração para a fase seguinte do programa, onde já esperava-se contar com os recursos internacionais que permitiriam que a escala do programa fosse realmente ampliada (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1995). O envolvimento dos quadros técnicos da Prefeitura nas discussões do Plano Diretor de 1992 parece ter contribuído de maneira significativa na formulação da nova política habitacional e consequentemente na formulação do Programa Favela Bairro. Segundo inúmeros entrevistados ao longo desta investigação, o programa nasce a partir de um consenso dos principais atores envolvidos em torno de alguns principios básicos: a) a moradia é um direito do cidadão; e b) a habitação não é só a casa, mas também a integração à estrutura urbana (infraestrutura sanitária, transporte e equipamentos de educação, saúde e lazer), competindo ao Estado prover essa estrutura urbana. Outro pressuposto era que os investimentos públicos em unidades habitacionais deveriam se dar somente quando necessários à melhoria da ambiência urbana e da infraestrutura ou ao enfrentamento de situações de risco. A ideia de integração com a cidade, segundo Sérgio Magalhães, era o principal pressuposto filosófico do programa, “não era mais o paradigma do modernismo, mas sim do pós-modernismo”, o paradigma era reconhecer a cidade como ela é, com suas dinâmicas próprias, e melhorá-la, não mais “jogar abaixo e construir”. 33 Programa Favela Bairro Complementar (ou construir) a estrutura (saneamento e democratizacão de acessos);

Objetivos

urbana

principal

Oferecer condiçoes ambientais de leitura da favela como bairro da cidade. Aproveitamento do esforço coletivo já dispensado, construções e serviços já instalados; reassentamento mínimo possível;

Pressupostos

Adesão dos moradores ao programa; Introdução de valores urbanísticos da cidade formal como signo de sua identificação como bairro: ruas, praças, infraestruturas, serviço público. Fonte: PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1995, p. 7)

O respeito às pré-existências ambientais e culturais foi apresentado como marco fundador do Favela Bairro, e a equipe da SMH passou a propagar um discurso que reconhecia a favela como uma morfologia urbana permanente e viável. 33

Em entrevista à autora.



63

A partir de 1994 houve um esforço bastante significativo no sentido de colocar a favela de maneira positiva no debate público por parte da Prefeitura, que passou a promover ativamente junto a grandes meios de comunicação o novo programa. Em junho de 1994 foi realizado o Concurso Público de Idéias para a urbanização de favelas em parceria com o IAB-RJ e do IplanRio, onde foram selecionadas quinze equipes para atuarem em conjunto com técnicos do município, na primeira etapa do programa. A multidisciplinaridade era expressada como fundamental nos documentos e no desenvolvimento dos projetos. A realização do concurso não só era uma forma de aprofundar a reflexão sobre a favela carioca como fenômeno urbano, mas também permitiu que se ampliasse o número de pessoas capacitadas para intervir nas favelas. Segundo Magalhães, inicialmente teria havido uma reação dos técnicos da Prefeitura, que achavam que estava-se terceirizando o trabalho, no entanto ele defende a opção tanto pela qualidade e diversidade dos projetos que se pôde desenvolver, quanto pela ampliação de um lastro profissional que fosse capaz de dar resposta às demandas que surgiram a partir da entrada dos recursos do BID (MAGALHÃES, 2008, pp. 216-217). Quanto

à

participação

dos

escritórios

de

arquitetura,

houve

uma

heterogeneidade significativa no perfil das equipes selecionadas, que iam desde nomes importantes da Arquitetura brasileira até equipes compostas por arquitetos recém-formados. As propostas metodológicas se desenvolveram a partir de cinco eixos principais: participação social; fatores de convivência e integração; problemas legais e fundiários; meio ambiente e soluções físicas de infraestrutura e serviços. A maioria das propostas deu relevância à participação dos atores envolvidos no processo projetual, destacando-se no discurso dos escritórios de arquitetura a participação das pessoas na reconstrução de seu habitat como elemento fundante para o sucesso dos projetos bem como da construção de sua própria cidadania (DUARTE, SILVA E BRASILEIRO, 1996, p. 183). Os projetos urbanísticos desenvolvidos pelos escritórios de arquitetura contratados pelo concurso apresentavam em sua maioria visões urbanísticas conceituais de valorização das especificidades do lugar, tanto no que se referia à infraestrutura quanto à integração social. Alguns dos escritórios exploraram a identificação de mecanismos que pudessem promover o desenvolvimento da identidade cultural das comunidades através da valorização da imagem coletiva e



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das especificidades da favela.34 A experiência dos escritórios naquela ocasião parecia ser pautada majoritariamente pelo interesse no conhecimento de experiências cotidianas vividas naqueles territórios, preocupando-se em desenvolver soluções que iam além da infraestrutura, mas destacavam a importância da participação comunitária e fatores de integração social. A questão da integração entre a favela e os bairros do seu entorno imediato também foi objeto de preocupação da maioria das equipes. Algumas delas projetaram centros de atividades e comércio na fronteira entra a favela e os bairros adjacentes de maneira a permitir o convívio de moradores de ambos os lados através de atividades sociais comuns (DUARTE, SILVA E BRASILEIRO, 1996:, p. 183; MARTINS, 1999). Os critérios de seleção das áreas para a primeira etapa do programa basearam-se nas informações reunidas na Matriz de Classificação das Favelas, e que constam no regulamento operacional do Favela Bairro, quais foram: dimensão da favela (entre 500 e 2500 domicílios)35, déficit de infraestrutura (estimado pela percentagem de domicílios com serviços inadequados de água potável e esgotamento sanitário), carência socioeconômica (avaliada para cada favela pela percentagem de domicílios cujos chefes são analfabetos, percentagem de domicílios chefiados por mulheres e a percentagem de crianças de 0 a 4 anos), e do grau de facilidade de urbanização (existência de infraestrutura prévia e do custo e complexidade em complementá-la). Por fim, foi inserido um item chamado dimensão estratégica na matriz, que considerava a existência de programas complementares já planejados, localização em relação a outras ações da Prefeitura, localização em relação a outras ações planejadas nas redondezas e factibilidade de realização do projeto no momento previsto (PETERSEN, 2003, p. 69).36 A partir de 1993, o diálogo com o BID foi aumentando em torno da conceituação do programa e da estruturação de seu regulamento operacional, de forma a garantir a liberação dos recursos necessários à sua implementação na 34

O caso da Serrinha foi um dos destaques desse tipo de abordagem, e as manifestações culturais em torno do jongo foram amplamente exploradas.

35

Que correspondia a 60% da população de favelas do Rio à época.

36

Alguns profissionais sugerem que possa ter havido a inversão eventual na ordem de intervenção para atender a interesses políticos, mas que de maneira geral essa não teria sido a regra, e mesmo em casos onde houve inversão, estas teriam sido mínimas, entre favelas com graus de prioridade similares, de acordo com a matriz, sem desrespeitar drasticamente os critérios definidos previamente.



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escala desejada pela Prefeitura. Entre o primeiro contato com o BID após a entrada de Cesar Maia e a segunda missão do Banco, a Prefeitura fez o concurso, contratou os escritórios e começou a desenvolver o programa com recursos próprios. O Favela Bairro foi o elemento justificador para o recebimento do empréstimo, já que havia planos de intervenção e pré-projetos em andamento. Foram levados em consideração os aspectos positivos e negativos da experiência acumulada nas favelas onde as intervenções haviam iniciado com recursos da Prefeitura e se encontravam em fase de execução das primeiras obras. A entrada do BID trouxe uma mudança importante em relação ao que se vinha praticando com o Projeto Mutirão: a partir dali as obras deveriam ser executadas por empreiteiras contratadas a partir de licitações públicas. Isso permitia que se ampliasse o escopo das obras, agregando-se vias de acesso de veículos e sistemas de drenagem nos projetos, mas também teria gradativamente impacto com relação à mobilização comunitária, já que a população não estava mais envolvida na construção. A Prefeitura, segundo relatos dos profissionais envolvidos entrevistados no escopo dessa investigação, propôs intervenções urbanísticas globais e que a diversificação das politicas sociais a serem implementadas nos territórios fosse parte do programa de urbanização, que deveria olhar para cada localidade em sua integralidade, pensando não somente a melhora da infraestrutura, mas também o provimento de serviços e equipamentos públicos. Foi acordado com o banco que as 23 favelas já iniciadas seriam integradas ao programa. Os entendimentos com o BID levaram à formatação do contrato e do regulamento operacional, e significaram para o programa, e para a recém criada SEH, a consolidação de sua estrutura. Inicialmente o banco sugeriu a criação de uma estrutura independente da secretaria (uma espécie de Secretaria Executiva) para gerir o programa, mas a sugestão foi recusada por Magalhães, então secretário, que acreditava na estrutura matricial, privilegiando uma tomada de decisões descentralizada e com a maior participação possível dos quadros técnicos da secretaria. O BID por sua vez exigiu a contratação de consultores externos que supriria uma suposta fragilidade da estrutura da SEH e a insuficiência de técnicos para atender a um programa de tal envergadura. O projeto de financiamento celebrado com o BID para apoiar a implementação do Programa

Favela

Bairro

foi

chamado

Assentamentos Populares (PROAP).

de

Programa

de

Urbanização

de



66

A primeira etapa de implementação do Favela Bairro teve início no segundo semestre de 1994, contando com 40 milhões de reais, oriundos dos cofres municipais (RIO DE JANEIRO, 1998). Com a entrada dos recursos do BID, a contrapartida da Prefeitura ao contrato seria de 40% direcionada principalmente a elaboração de projetos, implantação de programas sociais, reflorestamento e indenizações onde fosse necessário algum tipo de reassentamento (PETERSEN, 2003, p. 68) Um projeto de geração de renda foi apresentado como componente da política habitacional que era implementada, com atuação prioritária em áreas que recebessem o Favela Bairro, com o objetivo de ampliar as perspectivas econômicas dos habitantes nos territórios. A geração de renda, por sua vez, foi incorporada às metas do programa. Quanto aos aspectos gerenciais, a Prefeitura optou inicialmente por incorporar outras secretarias na execução do Programa. O monitoramento foi feito pelo IplanRio, Riourbe, pela própria SMH, e por mais duas empresas contratadas: uma de apoio ao gerenciamento geral do programa e outra de prestação de assistência técnica e de apoio à supervisão. Durante os primeiros anos de implementação do programa, como a SEH não possuía estrutura suficiente para liderar processos de licitação e acompanhamento de obras junto às empreiteiras, a SMO ficou responsável por essas funções. O trabalho das empresas chamadas gerenciadoras fez parte de toda a primeira etapa do programa, sendo assumido em 2001 pela SMH. O instrumento da participação comunitária foi um importante aliado dos escritórios de arquitetura e urbanismo para a elaboração dos primeiros projetos, apresentados no concurso de idéias. Os projetos eram majoritamente construídos em diálogo continuado com as equipes dos escritórios de arquitetura. Cada etapa constituía uma oportunidade para o diálogo, em reuniões na própria favela, onde os planos traçados eram desdobrados sob acompanhamento dos moradores. Ao longo do tempo, segundo relatos de vários arquitetos coordenadores de equipe, foi possivel constatar a boa compreensão que os lideres comunitários em geral tinham sobre a linguagem dos desenhos. Teriam sido muitas as ocasiões em que as observações e as críticas de moradores demonstravam ser mais acuradas que as propostas trazidas pelos arquitetos, o que não deveria ser surpresa considerando que os próprios moradores haviam, em sua maioria, construído os assentamentos em primeira instância.



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Uma vez que o diagnóstico, no qual se identificavam as primeiras necessidades e se apontavam os primeiros elementos balizadores para o projeto, era concluído, passava-se à produção dos planos de intervenção. Apresentado em reuniões realizadas na propria comunidade, o Plano de Intervenção era acompanhado por folhetos explicativos, distribuídos aos moradores e por desenho afixados nas áreas públicas onde se realizavam as reuniões, de modo a permitir a melhor compreensao sobre propostas. A Assessoria de Comunicação da SMH participava ativamente do processo, elaborando peças informativas para a população. Recolhidas as contribuições, a etapa seguinte era a de desenvolvimento dos projetos. Com o avanço do programa, constatou-se que as equipes de projeto não deveriam ficar restritas ao desenho, pois se fazia indispensável o acompanhamento das obras por técnicos comprometidos com as etapas anteriores. Assim, os escritórios de arquitetura e urbanismo responsáveis pelos projetos recebiam recursos para alocarem uma equipe que acompanharia as obras nos respectivos canteiros, com presença permanente dos projetistas. Esse foi um passo importante para garantir a continuidade do diálogo com os moradores, enquanto preservava os princípios delineados em cada projeto de intervenção. Nesse processo, possiveis mudanças exigidas frente às dificuldades nas obras eram discutidas em campo com a equipe projetista, e não decidida pela empreiteira, o que passou a acontecer mais tarde. Além da participação dos arquitetos projetistas externos aos quadros da Prefeitura no desenvolvimento dos projetos de intervenção no Favela Bairro, o programa também trazia uma sistemática de trabalho com empreiteiras nas favelas pouco visto até então. Por meio de licitações públicas, empresas construtoras passaram a participar do programa sistematicamente. Com planos de intervenção completos, era possivel contratar obras completas. Os técnicos da prefeitura descrevem esse período como um período de aprendizado permanente ao longo da primeira fase do programa, passando por cursos de aperfeiçoamento gerencial de modo a poder enfrentar as novas atribuições de fiscalização de um programa complexo, implantado por empreiteiras contratadas, no qual os custos envolvidos eram bastante mais elevados do que havia sido empenhado para esse tipo de intervenção

até

então.

Inicialmente

foram

produzidos

manuais

para

acompanhamento dos projetos e das obras, incluindo todos os serviços em cadernos de encargos e cadernos de especificações. Com eles, todos os agentes



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envolvidos poderiam dispor de orientações claras, dirimindo dúvidas e evitando desgastes no gerenciamento. As primeiras obras foram um laboratório que levavam para outra escala o trabalho desenvolvido no Projeto Mutirão. As dificuldades para implementação do programa, segundo os técnicos entrevistados, se davam principalmente na complexidade das intervenções urbanas propostas. Não apenas novas ruas se constituíram em desafios técnicos importantes, mas infraestruturas sanitárias em muitos casos se apresentaram como problemas que vieram a exigir novas investigações, houve casos de comunidades que localizavam-se parcialmente sobre palafitas, encostas íngrimes que exigiam intervenções de contenção e drenagem sofisticadas, mobilizando especialistas e provocando muita vezes intenso debate comunitário. A complexidade inerente a uma intervenção urbana em lugares já ocupados, muitas vezes com grande densidade populacional e em terrenos acidentados, teve de ser enfrentada com a criação de alternativas capazes de minimizar os danos às famílias enquanto garantisse a exequibilidade das obras. Em alguns casos foram adotadas alternativas para reassentamento como construção de novas moradias no local, compra de unidades no local, compra de imóvel onde a família pudesse mudar para outro bairro, ou local da cidade, e oferta de lote infraestruturado com o fornecimento de material de construção. No entanto, a meta do programa era sempre que possível garantir a permanência do morador no lugar ocupado. Em janeiro de 1995 foi realizado um fórum organizado em parceria com o IBAM do qual participaram consultores nacionais, internacionais, bem como lideranças comunitárias das comunidades atendidas até então (as primeiras dezesseis comunidades). Dali foi extraído um rol de atividades prioritárias para cada favela, incluindo a formação de cooperativas de trabalhadores, cursos de capacitação profissional e de gestão para o desenvolvimento de atividades já presentes nas comunidades, buscando oferecer condições de progresso e de ampliação dos oportunidades de trabalho para as populações dos territórios. A experiência deste fórum teria sido uma das principais forças propulsoras das diretrizes de ação adotadas pela Secretaria Municipal de Trabalho e Renda (SMTR), criada em 1997 (IBAM, 1995). O PROAP I, primeiro contrato com o BID, começou em maio de 1995, quando foram selecionadas cincoenta comunidades em adição às dezesseis que já faziam parte do projeto piloto iniciado em 1993. Até novembro de 1999, segundo dados da



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Prefeitura, foram atendidas 316 mil pessoas, o custo dos projetos totalizou 15.104.000 de dólares, e o custo das obras ficou em 346.774.000 dólares, com um custo total de 361.878.000 dólares (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1998, p. 13). No escopo do PROAP I, segundo dados da Prefeitura, 54 favelas e oito loteamentos foram atendidos. Os investimentos representavam em média um gasto de 2.500 dólares por familia, gasto médio acordado entre a equipe do BID e a equipe da Prefeitura, com um limite máximo definido em 4.000 dólares em casos especiais37. Em 1997 teve inicio o Programa Bairrinho, redimensionando os componentes do Favela Bairro para atender favelas pequenas. O programa teve início após o entendimento de outros parceiros da necessidade de intervenção em favelas menores, já que o Favela Bairro priorizava favelas médias. Inicialmente por intermédio da ONG italiana Come Noi, com financiamentos da mesma, foram iniciadas intervenções em duas pequenas comunidades ligadas ao bairro de São Conrado. Mais adiante a mesma organização conseguiu o financiamento da União Européia para urbanização de cinco outras comunidades. A Caixa Econômica Federal (Caixa) também somou-se como financiadora do programa, e mais 56 favelas foram selecionadas para receber o Bairrinho. Com 36 milhões de reais em recursos da Prefeitura, da Caixa e da União Européia, o programa Bairrinho conseguiu parcerias com instituições e organizações visando ao apoio da sociedade civil na empreitada. Segundo informações da Prefeitura, o Programa Bairrinho alcançou 44 comunidades, onde residiam cerca de 60 mil pessoas até 2002 (BARBOSA, 2013, p. 112). Em 1998 a Caixa e a Prefeitura assinaram um contrato de financiamento para obras do programa Favela-Bairro em Grandes Favelas, destinado a beneficiar as comunidades de Rio das Pedras e Fazenda Coqueiro (totalizando 57 milhões de reais, sendo 42 da Caixa e 15 da Prefeitura). No caso do Grandes Favelas, devido ao volume dos trabalhos, metodologicamente não se tratava de elaborar um projeto completo, mas de discutir-se diretrizes gerais, estabelecer prioridades para o desenvolvimento de planos setoriais, sendo que as obras também seriam implementadas setorialmente. Segundo relatos colhidos ao longo da pesquisa, era a primeira vez que a Caixa investia em um projeto sem detalhamento técnico, 37

IplanRio, 1996. Favela Bairro, Integração de Favelas no Rio de Janeiro, segunda edição.



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procedimento que iria repetir-se em alguns projetos do PAC Favela no Rio de Janeiro já na década de 2000. A primeira etapa do programa, na perspectiva de seus idealizadores e da equipe, teve um papel adicional de exemplaridade: deveria funcionar para garantir legitimidade ao programa, de maneira a ampliar o programa para além das dezesseis primeiras áreas. Além essa etapa ter sido realizada sob intensas discussões e debates na equipe técnica, parece ter tido um envolvimento bastante alto das comunidades, que além de participarem na etapa de elaboração do projeto junto aos escritórios, eram visitadas frequentemente por jornalistas, mobilizados pela própria secretaria para dar visibilidade ao programa. A SMH contou desde seu início com uma assessoria de imprensa, que trabalhou com afinco para desenvolver uma estratégia de comunicação tanto nas favelas, quanto junto aos grandes meios de comunicação de massa. Entre 1994 e 2000, matérias sobre o programa, em sua maioria destacando aspectos positivos do mesmo, eram veiculadas quase diariamente nos principais veículos da cidade, alguns com circulação nacional. Em 1999 o “Grupo dos 16” foi constituído por presidentes de associações de moradores de áreas da primeira fase Favela-Bairro, tornando-se uma ONG. O objetivo inicial era que, além de atuarem na conservação dos equipamentos instalados, e desenvolver um trabalho socioeducativo nas comunidades, essas lideranças poderiam trabalhar como consultores do Programa quando este expandisse suas obras para outros espaços. O movimento de articulação teria sido articulado junto com o então Prefeito Luiz Paulo Conde. O ex-Prefeito Cesar Maia, em entrevista à autora, relata ter sido ele o responsável pela idéia de criação do Grupo dos 16, que teria, segundo ele, distanciado de seu idealizador para apoiar Luiz Paulo Conde na disputa que se daria entre os dois no ano seguinte. As questões referentes à regularização fundiária e à manutenção de obras pelas concessionárias de serviços públicos, ou por outras secretarias quando fosse o caso, não tiveram avanço significativo durante o PROAP I. Em 1999 foi assinado um novo contrato com o BID para dar continuidade ao programa iniciado em 1994. O PROAP II foi assinado no final da administração de Luiz Paulo Conde, que sucedeu Cesar Maia na Prefeitura, com grande alarde nos meios de comunicação. Foram empenhados 322.842 mil dólares, com a liberação de mais 300 milhões para a continuidade do programa (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 2003).



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4.2 A primeira inflexão do período Pode considerar-se que a criação do Programa Favela Bairro foi resultado de um processo de construção histórico e incremental influenciado pelas experiências que o antecederam. No entanto, o aumento de escala do programa, e outros elementos citados na seção anterior, trouxeram novidades importantes para o campo da habitação popular na cidade do Rio de Janeiro, e sua duração no tempo, além da influência que parece ter exercido em seus sucessores, contribuíram para que ele fosse o ponto de partida dessa investigação. Por outro lado, se o início do Favela Bairro marca um período onde a urbanização de favelas parece entrar em um ciclo de institucionalização, com a criação de uma política de habitação que tinha na urbanização de favelas um de seus principais pilares, com uma secretaria criada com o objetivo de implementá-la, com equipe capacitada e dotada de recursos que pareciam garantir a execução do Programa no longo prazo, o período também foi marcado por inflexões. Chamamos de inflexões aqui momentos onde acontecem mudanças que podem ser de ordem política, econômica ou administrativa, que impactassem diretamente a continuidade do projeto de urbanizar as favelas de maneira integral. Durante as entrevistas realizadas no escopo desta investigação, praticamente todos os técnicos entrevistados, bem como arquitetos projetistas que participaram do programa, dividem o Favela Bairro em duas fases distintas: 1995-2000 e 20012008. A primeira fase é descrita como uma fase de experimentação, criação, diálogo e realização, onde as decisões de caráter principalmente universalista, baseadas nas premissas e objetivos declarados do programa, sobrepunham-se às decisões de caráter

exclusivamente

clientelistas

ou

corporativistas



descritas

pelos

entrevistados também como essencialmente políticas, em oposição às primeiras, descritas como decisões baseadas em conhecimento técnico. A ruptura apontada pelos entrevistados coincide com a segunda mudança de governo após o início do programa. A SMH, que havia ganhado muita visibilidade durante a primeira gestão de Cesar Maia principalmente devido ao sucesso do Favela Bairro, que independente de avaliarmos aqui por seus resultados de longo prazo no território, se tornou um fenômeno de comunicação, fez com que a SMH passasse a ser chave importante às



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vésperas da eleição de 2000, já que o então secretário Sergio Magalhães candidatou-se a vice-prefeito na chapa do então prefeito Luiz Paulo Conde, que rompera aliança com Maia para candidatar-se a prefeito, passando a ser o principal adversário daquele, situação que será explorada em mais detalhe na segunda parte do trabalho. O período que antecedeu às eleições foi marcado por um racha dentro da SMH, que teria impactado toda a gestão, e notadamente o Programa Favela Bairro. Pode-se dizer que, naquele momento – e ao longo da década de 1990 de maneira geral –, as duas principais figuras na gestão de urbanização de favelas da cidade eram Sergio Magalhães, Coordenador do GEAP e posteriormente Secretário de Habitação, e Maria Lucia Petersen, Coordenadora do Programa Favela Bairro, e anteriormente coordenadora do Programa Mutirão. Em 2000, enquanto Sergio Magalhães candidatou-se a vice-prefeito pelo PMDB na chapa de Conde, Maria Lucia candidatou-se a vereadora pelo PTB em apoio ao ex-prefeito, então candidato, Cesar Maia. O Programa Favela Bairro foi um dos principais assuntos de disputa entre Maia e Conde durante às eleições, ambos requerendo para si a “paternidade” do programa, e a secretaria ficou internamente dividida entre os que apoiaram um ou outro candidato. Com a vitória apertada de Cesar Maia sobre Conde, a equipe liderada por Conde saiu em peso da SMH. Sem expressão política para assumir uma secretaria que tornara-se uma das mais destacadas na gestão municipal, Maria Lucia Petersen acabou afastando-se da SMH também, que a partir de 2001 passou a ser gerida por Solange Amaral38, profissional de perfil majoritariamente político, sem experiência anterior em urbanização de favelas, então a principal intervenção da SMH em escala e recursos. Alguns dos técnicos que saíram da secretaria foram para o Governo do Estado, para onde Luiz Paulo Conde e Sergio Magalhães foram inicialmente. Lá começaram a desenvolver programas de urbanização com recursos do Estado. No entanto, essa 38

Solange Amaral nasceu é psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Começou sua carreira política na década de 70, foi superintendente da Legião Brasileira da Boa Vontade (LBV) e ajudou na implementação das primeiras creches comunitárias em centenas de municípios brasileiros. Foi Secretária Estadual de Trabalho e Ação Social, e em 1993 tornou-se subPrefeita da cidade do Rio de Janeiro a convite de César Maia. Elegeu-se pela primeira vez deputada estadual pelo Partido Verde em 1994. Em 1998 reelegeu-se como deputada estadual pelo PFL. Em 2002 candidatou-se ao governo do Estado do Rio de Janeiro terminando em 4º lugar. Entre 2001 e 2008, à exceção dos períodos em que se licenciou para candidatar-se, foi Secretária de Habitação do municipio do Rio de Janeiro. Em 2008 candidatou-se à Prefetura ficando em sexto lugar com cerca de 128 mil votos (3,92% do total). Solange era chamada de super secretária, junto à Eider Dantas, durante o período em que esteve na Secretaria.



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ação não teve grande impacto, já que não havia nem recursos nem estrutura concreta para uma realização semelhante à que haviam construído na Prefeitura. Quando houve a troca de governo em 2001, a SMH sofreu uma intervenção imediata. A nova secretária assumiu a secretaria ordenando a paralisação de todas as obras em andamento para fazer um suposto “pente fino” em busca de possíveis desvios no Programa.39 A equipe que ocupava cargos de coordenação foi desarticulada, sendo que muitos saíram não só de suas posições, mas da própria SMH, causando uma ruptura profunda no programa. Em 2002, o vereador Alexandre Cerruti assumiu a SMH para que a então secretária pudesse renovar seu mandato de deputada. Em novembro do mesmo ano, quando Amaral reassumiu a secretaria, foi anunciada a criação da Secretaria Executiva do Favela Bairro, numa tentativa de insular o Programa, que precisava acontecer sem interferências políticas devido aos compromissos assumidos no contrato com o BID. Naquela altura, eram visíveis os desafios para a continuidade de execução do programa, com obras paradas e jornais veiculando frequentemente o descaso da nova administração com o programa. A Secretaria Executiva do Favela Bairro deveria ficar responsável pela gerência do programa, e foi anunciada como uma das estratégias para acelerar as obras, que tinham finalização prevista para o final do ano seguinte, após uma série de criticas sobre os atrasos e paralisação de obras. Para coordená-la foi convidada Claudia Esquerdo, pedagoga de formação, também sem nenhuma experiência anterior em urbanização de favelas. Dois engenheiros foram convidados para compor a equipe gestora da nova secretária executiva junto à Claudia. O Programa que havia sido idealizado e implementado majoritariamente por arquitetos pela primeira vez não possuía nenhum arquiteto em sua equipe gestora. Não é objetivo aqui questionar a capacidade técnica de nenhum desses profissionais, mas destacar a mudança que o programa sofre em termos de gestão nesse momento. Por mais que os documentos oficiais do programa, bem como os entrevistados ao longo desta investigação, não apontem para mudanças significativas formais no programa após 2001, as avaliações realizadas ao longo do período apontam para mudanças significativas em sua execução. Nesse período os 39

Informações corroboradas por inúmeros entrevistados, bem como por reportagens de jornal da época, e registro de audiências públicas na Câmara de Vereadores no anos que se seguiram.



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conflitos entre engenheiros e arquitetos se aprofundaram, e o peso do projeto arquitetônico-urbanístico integrado perdeu centralidade no Programa. 4.3 O PROAP II O PROAP II, nomeado a partir da assinatura do segundo empréstimo do BID, teve início em 2000 e atravessou a segunda e a terceira gestões de Cesar Maia. O objetivo definido no contrato com o BID era a urbanização de 89 favelas e 17 loteamentos, com o investimento de mais de 300 milhões de dólares, sendo 34 milhões destinados a programas sociais, um universo de 321 mil pessoas diretamente beneficiadas, semelhante ao PROAP I em escala. Na segunda fase destacam-se três componentes: 1) urbanização integrada; 2) atenção a crianças e adolescentes; e 3) geração de trabalho e renda. A partir do PROAP II os projetos de intervenção passaram a ser contratados via licitação, e não mais realizados concursos. O acompanhamento de campo dos escritórios também foi eliminado, de forma que alterações nos projetos eram decididas pelas empreiteiras em diálogo com os técnicos da SMH, muitas vezes sem levar em conta o projeto global como tinha sido pensado pelo arquiteto-urbanista. A idéia era que os moradores teriam a oportunidade de escolher, dentro de um rol de programas sociais oferecidos pelas secretarias de habitação, trabalho e desenvolvimento sociail (SMH, SMTR e SMDS), as ações e programas mais importantes para sua comunidade. A partir de então, estudos técnicos e de viabilidade orçamentária subsidiariam o desenvolvimento de planos de ação social integrada - PASI. Uma vez concluídas as obras, a relação de interação com a comunidade deveria se manter através do POUSO, unidade administrativa construída em cada comunidade beneficiada, composta por engenheiros, arquitetos, agentes sociais ou agentes comunitários. Além dos pousos, boa parte das comunidades passaram a ter Centros de Assistência Social Comunitários da SMDS, prestando atendimento assistencial a crianças e adolescentes, portadores de deficiências, idosos e famílias residentes dos territórios. No entanto, uma avaliação realizada pelo Tribunal de Contas do Município (TCM) em 2006, sugere que poucos entrevistados tinham conhecimento da realização de algum tipo de ação social na comunidade durante o período (TCM, 2006).



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Segundo informações colhidas tanto juntos aos entrevistados, como avaliações realizadas anteriormente, na fase de execução do projeto a ação passou a ser muito orientada no sentido da intervenção urbanística sob maior influência das empreiteiras – em detrimento dos escritórios de arquitetura –, e os programas sociais não eram suficientemente articulados, fazendo com que os programas sociais ficassem à margem do plano de intervenção original, o que implicava também na manutenção dos serviços quando concluída a urbanização (MEDEIROS, 1999, p. 107). Outro aspecto relevante aqui seria a ausência praticamente total de participação popular no PROAP II, além da baixa qualidade das obras implementadas. Em 2002 a Câmara de Vereadores instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar atrasos e possíveis irregularidades no programa. Em 2006, a avaliação realizada pelo TCM apontou insuficiências nas obras, em um relatório repleto de críticas à deterioração da infraestrutura, à manutenção, ao tempo excessivo entre as obras previstas nos projetos e os resultados alcançados na execução, e à precariedade dos sistemas de monitoramento e avaliação utilizados pela Prefeitura. Em 2006 e 2007 duas audiências públicas foram realizadas na Câmara de Vereadores para apurar o andamento do Programa, que resultaram em um dossiê produzido pela Vereadora Andréa Gouvêa Vieira em colaboração com um grupo de representantes comunitários (alguns dos quais ex-membros do Grupo dos 16), com o apoio da FAFERJ, no qual encaminharam uma série de demandas a representantes do BID. A principal demanda desse grupo na época era que na execução de um eventual PROAP III, em fase de negociação entre a Prefeitura e o BID então, fossem inseridos recursos para a regularização de obras mal executadas ou não finalizadas nos contratos anteriores. O relatório de avaliação do TCM relata descontentamento com itens relativos à falta de áreas de lazer, ausência de manutenção dos serviços e ao fato de os projetos de obras apresentados às comunidades serem distintos dos efetivamente realizados. O tribunal criticou também, com relação à prestação de contas, a apresentação de números absolutos pelas empresas gerenciadoras, que dificultava a verificação do cumprimento das metas: Observou-se falta de planejamento e de procedimentos padronizados na execução dos contratos, os quais não possuem atividades préestabelecidas de modo a facilitar os meios de controle, a fiscalização, a



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definição de metas e o fornecimento de dados referentes à evolução dos serviç̧os. [...] A prática de emitir medições globais em detrimento de medições individualizadas, por comunidade atendida, torna impossível a determinação com precisão do montante de serviços realizados, e conseqüentemente da importância a ser liquidada. Acrescente-se o fato de os pagamentos se efetivarem através de desembolsos fixos, não guardando relação com o volume dos serviços executados, quando deveriam flutuar de acordo com a qualidade e quantidades efetivamente realizadas. (TCM, 2006).

A regularização fundiária também foi um dos grandes desafios da segunda fase do programa, no entanto, como ilustram estudos posteriores, pouco foi feito nessa direção (MAGALHÃES, 2011). Tanto no PROAP I como no PROAP II ocorreram interrupções entre o projeto e a obra, notadamente durante as obras. Raramente, no Favela Bairro teria-se executado o escopo do projeto proposto integralmente (BARBOZA, 2013; CARDOSO, 2007). Outro grande problema comum tanto ao PROAP I quanto ao PROAP II teria sido a ausência de setores da prefeitura que garantissem a manutenção das intervenções urbanas ou dos serviços prestados. Magalhães, que liderara a SMH entre sua criação em 1994 e 2000, afirma que quando a SMH trocou de comando as obras foram simplificadas, com o intuito de reduzir custos, reduzindo o padrão dos acessos, das ruas. Alguns projetos, que estavam

licitados,

teriam

sido

substituídos

por

outros,

mais

elementares

(MAGALHÃES, 2008, p. 219), o que teria acarretado uma perda de qualidade nas obras. Essa informação foi ratificada por quase todos os arquitetos, e por alguns membros da burocracia, em entrevistas no escopo desse trabalho. Possíveis explicações para esse conjunto de mudanças, que caracterizam o que chamamos aqui de primeira inflexão do período, serão exploradas na segunda parte deste trabalho. No nível comunitário, as lideranças das favelas que tinham obras do Favela Bairro em andamento naquele momento, o que incluía as lideranças que compunham o G16, decidiram apoiar Luiz Paulo Conde, acreditando que ele sairia vitorioso. Isso foi considerado à época uma traição por parte do grupo de Maia, e as lideranças foram gradativamente colocadas à margem de qualquer processo de decisão relacionado ao Programa. Ainda no que diz respeito à relação com as comunidade, em 2000 havia uma área de participação social na SMH que havia acabado de concluir uma formação com mais de 200 agentes comunitários, para atuar nas comunidades nos processos de participação e conscientização. Após a troca de comando esse grupo foi imediatamente desarticulado e o esforço de anos



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de trabalho encerrado sem muitas explicações. Na seqüência foi firmado um contrato junto à Organização Não Governamental Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável (CIEDS) para que esta liderasse o processo de mediação entre as comunidades e Prefeitura. A participação da população, que parecia uma questão importante ao longo da fase piloto e do PROAP I (ainda que não livre de críticas externas), passou a ser um item de menor relevância no PROAP II. A valorização existia no discurso, mas parec não ter correspondência na prática. O fluxo formal da participação era apresentado na seguinte ordem: 1) após a contratação da empresa, é convocada uma assembléia geral para apresentar o programa e a empresa contratada; 2) essa empresa realiza workshops relacionados a temas específicos como infraestrutura, integração da favela ao bairro e políticas sociais, com o objetivo de construir um Plano de Ação Social Integrado (PASI); 3) uma vez definido o projeto, este é aprovado pela associação de Moradores e por outra assembléia geral da comunidade. No entanto, são inúmeras as críticas a esse formato de participacão, com frequência sugerindo que na prática o que acontecia era uma assembléia geral para oficializar a entrada do programa, apresentar as fases do trabalho e equipe técnica, e uma outra para apresentar o projeto, sendo que a apresentação do projeto em muitas ocasiões correspondia à sua aprovação, não configurando um processo de participação e debate real. A participação do secretário da SMH, e às vezes do prefeito, durante assembléias de apresentação dos projetos às comunidades, iniciada no início do Favela Bairro, permaneceu ao longo de sua execução, tanto do PROAP I quanto do PROAP II. No entanto, durante entrevistas realizadas no escopo dessa investigação, em mais de uma ocasião técnicos da SMH, bem como arquitetos projetistas dos escritórios responsáveis pelos projetos, descreveram momentos em que, a partir de 2001, a secretária de habitação (que liderou a secretaria por quase todo o período entre 2001 e 2008)40, ao abrir uma assembléia comunitária de apresentação de projetos, enunciava que “se houvesse muita discussão o projeto ia atrasar”, causando constrangimento entre técnicos e arquitetos, além é claro de intimidar a participação comunitária. Segundo as avaliações consultadas, durante a realização 40

Solange Amaral licenciou-se em alguns momentos para concorrer em eleição, retornando à chefia da Secretaria de Habitação passado o período eleitoral.



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das obras, a participação da comunidade seria centrada na solução de problemas individuais (vale ressaltar no entanto que não é possivel afirmar aqui se esse tipo de relação já não se desse na primeira fase, após tomadas as decisões principais de intervenção). Um estudo sugere ainda que as associações de moradores nem sempre eram representativas, e as assembléias e reuniões promovidas pelos escritórios de arquitetura muitas vezes se davam apenas para cumprir as obrigações contratuais, sem contar com freqüência expressiva dos moradores (ANDRADE, 2000, pp. 83-85). Outra crítica comum ao PROAP II estava relacionada às condições contratuais firmadas com o BID, assim como os compromissos políticos, que teriam contribuido para os atrazos na implementação devido a paralização parcial das obras no início do novo governo em 2001. Esse contexto teria feito com que os levantamentos, diagnósticos e diretrizes de intervenção tivessem seus prazos de execução reduzidos, fazendo que a realização adequada dos compromissos fosse prejudicada. Esse fator também teria contribuído para dificultar um processo de participação efetiva no PROAP II (DENALDI, 2003, p. 124). O PROAP II foi finalizado na terceira gestão de Cesar Maia, sob intensas criticas, muito diferente do fechamento do seu antecessor, o PROAP I.



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5 OS ANTECEDENTES DA SEGUNDA INFLEXÃO: AS NOVAS REGRAS Do início da década de 1990 até 2006, as intervenções relacionadas à urbanização de favelas no município do Rio de Janeiro eram majoritariamente lideradas pelo Governo Municipal. Houve durante o período intervenções pontuais do Governo do Estado, como por exemplo a urbanização do Pavão-Pavaozinho, Cantagalo e Santa Marta, além de algumas intervenções pontuais na Rocinha. No entanto, há uma mudança significativa no campo com a entrada de recursos do Governo Federal para urbanização de favelas, em escala jamais antes vista, através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) a partir de 2007, que abriria espaço para novos movimentos a partir de então. 5.1 O contexto político nacional O segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República (1999-2003) foi permeado por uma crescente perda de popularidade, que acabou por abalar o consenso em torno da estabilidade econômica e do ajuste fiscal como prioridades absolutas da agenda pública. Difundiu-se uma percepção de que as

políticas

neoliberais,

políticas

macroeconômicas

restritivas,

liberalização

comercial e financeira, privatização e desregulamentação prescritas pelo Consenso de Washington para promover o desenvolvimento econômico, parte da agenda neoliberal implementada durante o governo Fernando Henrique Cardoso, tiveram um alto custo social, gerando efeitos perversos de grande impacto, como os altos índices de desemprego, recessão, redução do mercado formal de trabalho (eliminação de cerca de dois milhões de empregos formais na indústria) e a destruição do já precário sistema de proteção social do país. A insatisfação de uma parte do empresariado nacional, que foi duramente atingida, colaborou para que setores do empresariado industrial se unissem em oposição à visão liberal ortodoxa adotada pelo governo, somando-se aos demais segmentos da sociedade civil em sua postura de questionamento, gerando uma forte demanda por um projeto de desenvolvimento sustentado como condição para a saída do impasse em que se encontrava o país. Assim, a partir de 2003, já sob o comando do PT, o Governo Federal passou a dar ênfase para temas como a retomada do crescimento econômico e políticas de geração de emprego, mantendo



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uma política firme de estabilização, porém como âncora de um programa de desenvolvimento mais equitativo, abrindo espaço para políticas de combate à desigualdade e à exclusão social, expressadas principalmente no Programa Fome Zero (posteriormente transformado em Bolsa-Família). As ações do governo PT no plano nacional, somadas à proximidade de quadros políticos comprometidos com os ideais do Movimento da Reforma Urbana do Governo Federal, contribuíram para a construção de um quadro político mais favorável ao desenvolvimento de uma nova política habitacional, que incluísse a ampliação do financiamento no setor (LEAL E CARDOSO, 2009). O período 2002-2008 notabilizou-se pelo fortalecimento do pensamento crítico e pela procura de uma redefinição de rumos no que se refere às prioridades da agenda

pública.

No

Brasil

a

perspectiva

pró-desenvolvimentista

ganhou

progressivamente espaço ao longo da década de 2000: uma estratégia nacional de desenvolvimento, alternativa ao projeto neoliberal, que compatibilizasse crescimento sustentado com equidade social (DINIZ, 2011). Observou-se gradualmente a formação de uma nova coalizão política e de um novo consenso em torno do imperativo de uma inflexão na política macroeconômica: crescimento econômico e geração de emprego, associados à formulação de uma nova estratégia de inserção internacional, metas crescentemente percebidas como interdependentes de acordo com as novas diretrizes. O economista Bresser Pereira, ao analisar o período, destaca: O novo desenvolvimentismo pretende fortalecer simultaneamente o Estado e o mercado e atribui papel relevante ao Estado no investimento e na política industrial, buscando alcançar o crescimento com investimento e poupança interna, valorizando o mercado interno e as exportações de commodities e bens industriais. (BRESSER PEREIRA, 2007, pp. 90-93)

Isso somava-se à criação de um mercado interno de consumo de massas para romper com a articulação destrutiva entre estabilização, rigidez fiscal, juros altos e estagnação. Embora ao Estado coubesse um papel estratégico em prover o arcabouço

institucional

apropriado

que

sustentasse

o

novo

modelo

de

desenvolvimento, esse modelo reconhece o mercado como lócus privilegiado do processo de desenvolvimento (DINIZ, 2011).



81

5.2 As políticas urbanas e habitacionais no plano nacional As discussões sobre os rumos da política urbana/habitacional, iniciada nos anos 1960, debatida nos anos 1980 e retomada nos anos 1990, acabaram por se consolidar a partir de 2003 em um ambiente político econômico que mostrava-se então mais favorável. No final da década de 1990, haviam sido criados programas federais e multilaterais, tais como o Programa Habitar Brasil e Crédito Associativo, retomando gradualmente a produção de novas moradias de interesse social. A aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 representou um grande avanço institucional e legal para a questão urbana no Brasil, como um marco normativo com potencial de influenciar a política urbana/habitacional como indutor da ocupação do solo, para democratização do acesso à terra e à moradia. A partir do primeiro governo Lula, a habitação voltou a receber tratamento nacional e foi priorizada como política pública. O setor organizou-se com a criação do Ministério das Cidades, conseguiu importantes avanços sociais e legais, além de consolidar conceitos que há muito haviam sido reinvindicados pelo movimento pela reforma urbana. A nova política nacional de habitação (2004) incorporou esses conceitos, que também se fizeram presentes posteriormente nas leis do SNHIS/FNHIS (2005), de Assistência Técnica à Habitação de Interesse Social (2008) e do PlanHab (2008). Configurava-se uma nova política nacional de habitação, totalmente regulamentada à luz de princípios e diretrizes do movimento da reforma urbana. Aparentemente também preenchia todos os requisitos e tinha legitimidade para se articular com políticas urbanas de saneamento e transporte, nas três esferas de governo, através de suas diversas formas de atendimento. Foi uma longa luta na arena política até a aprovação do Estatuto da Cidade, na medida em que o projeto de lei que o antecedia tramitou por onze anos no Congresso Nacional, desde o ano de 1990. Segundo Nobre (2002), o principal motivo para isso foi o fato de a lei regular a função social da propriedade. Cardoso e Ribeiro (2003, p. 15) consideram que o Estatuto da Cidade contém dois modelos de políticas urbanas, é redistributivo e regulatório na medida em que pretende capturar parte da renda real gerada pela expansão urbana para financiar a ação pública, que igualize as condições habitacionais e urbanas da cidade, e por pretender submeter o uso e a ocupação do solo urbano – a valorização da terra – aos imperativos das necessidades

coletivas.

No

entanto,

este

primeiro

modelo

implica

ações



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conflituosas, já que intervém nos interesses econômicos e patrimoniais que historicamente comandam a política urbana no Brasil. O modelo, segundo os pesquisadores, é também regulatório, e tem relação com as provisões de serviços habitacionais e urbanos direta ou indiretamente pelo poder público (urbanização de favelas, regularização fundiária, usucapião especial urbano e produção habitacional, entre outros). A institucionalização do Conselho das Cidades (2004) e a realização das Conferências das Cidades (2003, 2005, 2007 e 2009/2010) deram início a um processo de construção da política nacional de desenvolvimento urbano envolvendo conferências municipais e estaduais, além da adoção de estruturas normativas representativas com a participação da sociedade (BARBOZA, 2013). 5.2.1 O governo federal e as novas modalidades de financiamento a partir de 2007 Se por um lado a década de 2000 foi uma década de avanços importantes no que diz respeito à política de desenvolvimento urbano no cenário nacional, ela também foi permeada por contradições, especialmente a partir da segunda metade da década. No primeiro governo Lula (2003-2006), muitas propostas advindas dos movimentos pela reforma urbana, que faziam parte do Projeto Moradia/Instituto Cidadania (BONDUKI, 2010)

se materializaram em atos normativos, sob a

coordenação do Ministério das Cidades. Atores importantes ligados ao movimento da reforma urbana foram compor a equipe do Ministério das Cidades e passaram a dar corpo às propostas – discutidas desde a década de 1960, agora como parte integrante do governo. Já no segundo mandato do Presidente Lula (2007-2010), houve uma ruptura no processo iniciado no primeiro mandato no que diz respeito à política urbana. A crise financeira internacional anunciada pelo governo norteamericano em 2006, bem como um contexto político interno abalado pelo escândalo do mensalão do PT, pressionavam o governo por mudanças. A principal estratégia do governo a partir de 2007 foi aumentar progressivamente os gastos públicos lançando dois programas que impactaram diretamente a política urbana no país, os



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Programas de Aceleração do Crescimento (PAC) e Minha Casa Minha Vida41 (MCMV). Apesar de ambos os programas impactarem diretamente as discussões que se davam no Ministério das Cidades e no Conselho Nacional das Cidades, ambos espaços ficaram à margem do processo de tomada de decisão que os criou. Na prática, os programas relativizaram muitos dos princípios e diretrizes que nortearam os instrumentos regulatórios da nova política habitacional, colocando em questão os avanços conquistados no setor a partir da Constituição de 1988. O PAC foi anunciado como alternativa para ampliar a infraestrutura logística do país. As ações do Programa foram divididas em três eixos básicos: 1) infraestrutura (rodoviária, ferroviária, portuária, hidroviária e aeroportuária); 2) energia (geração e transmissão, petróleo, gás natural e energias renováveis); e 3) social e urbano (luz para todos, saneamento, habitação, metrôs, recursos hídricos). Tratava-se de um programa ambicioso para o qual foram destinados 503,9 bilhões de reais a serem aplicados até 2010 (ANDRADE, 2011, p. 98). Nesta conjuntura, o governo Lula, que passou a liberar recursos para o investimento habitacional por meio do FNHIS a partir de 2004, com o lançamento do PAC deslocava os recursos que a partir dali passavam a ser liberados diretamente pela Casa Civil em operação mediada pela Caixa Econômica Federal. No âmbito do PAC, foram previstos investimentos em habitação e saneamento (PAC urbano). No campo habitacional privilegiou-se a urbanização de favelas, por um lado, e o Minha Casa Minha Vida, por outro, ambos programas com forte visibilidade política nos grandes centros urbanos. De acordo com o volume de recursos alocados e com a dinâmica de execução adotada, o PAC Habitação acabou por provocar um deslocamento na centralidade do FNHIS na política habitacional, tanto do ponto de vista prático quanto do ponto de vista simbólico, visto que o PAC passou a ser uma marca que submete à sua ordem todos os programas governamentais com impacto no crescimento econômico, entre eles o FNHIS. Para gestores da Secretaria Nacional de Habitação, esta subordinação representava ganhos expressivos, pois recursos alocados na rubrica do PAC não estariam sujeitos a contingenciamentos. Diferentemente dos recursos do FNHIS. No entanto, os recursos do PAC não estavam atrelados a quaisquer mecanismos de 41

Programa de construção de novas moradias populares onde o Governo Federal provê incentivo tanto no lado da demanda (financiamento ao comprador) quanto da oferta (financiamento ao construtor).



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controle social ou a critérios institucionais de redistribuição, sendo a sua alocação prerrogativa exclusiva da Casa Civil. Segundo Bonduki: Esse pacote, maturado inicialmente no Ministério da Fazenda, tem origem nesse quadro como uma ação emergencial anticíclica de apoio ao setor privado para evitar o aprofundamento do desemprego, ameaça concreta na virada de 2009. A intervenção da Secretaria Nacional da Habitação lastreada no processo de elaboração do PlanHab possibilitou que essa ação anticíclica ganhasse algum conteúdo social, muito aquém do que seria possível se a estratégia do PlanHab fosse a referência para as medidas emergenciais a serem tomadas. (BONDUKI, 2010, p. 11)

Assim, a implementação de uma política habitacional regida por uma lógica empresarial veio acompanhada de consequências adversas para a construção do espaço urbano, bem como para a eficácia da política de habitação como mecanismo de redução das desigualdades socioespaciais (CARDOSO E AMORIM, 2014; SOARES, 2006)42. A Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) considera que a essência do PAC não estaria no investimento direto do poder público, mas na capacidade do Estado para implementar medidas que viabilizassem a aplicação desses investimentos, a fim de estimular a iniciativa privada. Nesse sentido foram adotadas várias providências para o aperfeiçoamento do sistema tributário, bem como medidas de desoneração do investimento, sobretudo na construção civil como um todo (MCIDADES, 2008). Para o eixo de infraestrutura social e urbano, foram previstos 170,8 bilhões, dos quais 106,3 bilhões especificamente para a área habitacional, com foco na urbanização de favelas (MCIDADES, 2010). Para aplicação dos recursos, foram selecionadas inicialmente doze regiões metropolitanas, as capitais e os municípios com mais de 150 mil habitantes. Pretendia-se promover a urbanização de favelas, atraves de projetos de grande porte, cujas ações tivessem impacto sobre a articulação e a integração territorial, que fossem voltados para a recuperação ambiental, apoiassem a desocupação de áreas destinadas a equipamentos de logística, como aeroportos, portos e ferrovias, e complementassem obras já iniciadas. Segundo

o

MCIDADES,

o

PAC

tratava-se

de

um

programa

de

desenvolvimento que visava promover a aceleração do crescimento econômico, o aumento do emprego e a melhoria das condições de vida da população brasileira, adotando um conjunto de medidas destinadas a incentivar o investimento privado, 42

Habitação de Interesse Social: Política ou Mercado? Reflexos sobre a Construção do Espaço Metropolitano. XIV ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, Maio de 2011, Rio de Janeiro, Brasil.



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aumentar o investimento público em infraestrutura, e remover obstáculos burocráticos, administrativos, normativos, jurídicos e legislativos ao crescimento. No que se refere ao PAC-Habitação, o programa não envolveu a aprovação de uma lei específica, foi viabilizado por meio de instruções normativas e orientações operacionais editadas pelo MCIDADES. Foi estruturado tendo por objetivo atender à urbanização de assentamentos, cujos componentes seriam a infraestrutura urbana e habitacional, a regularização fundiária, a regulação e gestão ambiental, a participação e o trabalho social (MCIDADES, 2010). Para tanto, o Governo Federal aproveitou programas habitacionais existentes, como o Programa Prioritário Intervenção em Favela (PPI-Favela), os Projetos Multisetoriais Integrados (PMI), o Pro-Moradia e o FNHIS - Urbanização de Assentamentos Precários, além do apoio à elaboração de Planos Locais de Habitação de Interesse Social e aos Planos de Regularização Fundiária, reorientando as diretrizes segundo uma nova lógica que priorizava projetos de maior visibilidade e impacto sobre o território. Se o volume de recursos envolvidos tanto no PAC como no PMCMV eram bastante significativos, segundo Bonduki (2010, p. 2) eram suficientes para colocar a habitação na ordem do dia, trazendo à tona velhas questões que orientavam a produção modernista na época do BNH. Enquanto o PAC era implementado, iniciava-se no MCidades a elaboração do Plano Nacional de Habitação (PlanHab), em agosto de 2007, através de processo que se propunha participativo, com o objetivo de apoiar a implantação e a consolidação da política nacional de habitação (MCIDADES, 2010). A estratégia do PlanHab para o enfrentamento da questão habitacional, pressupunha, segundo as fontes oficiais, diferentes processos de produção e de financiamento da moradia, considerava a diversidade de situações urbanas e rurais, as características sociais e econômicas da população, a capacidade institucional do poder público, as fontes e a modelagem de financiamento e subsídio, a questão fundiária e urbana e a estruturação da cadeia produtiva da construção civil. Partindo da hipótese de que o equacionamento do problema habitacional no país deveria ser enfrentado pela sociedade como um todo e reservava ao Estado um papel central, como articulador e coordenador do processo, o PlanHab orientava no sentido de se prover condições para que os assentamentos precários não se ampliassem e fossem gradualmente transformados em bairros. Ao mesmo tempo, indicava a necessidade de uma produção massiva de unidades habitacionais novas, de modo a suprir as demandas futuras e para reduzir



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o déficit acumulado. A viabilização da estratégia proposta para equacionar o problema da habitação no país dependeria, assim, da capacidade de se montar uma nova modelagem de subsídio e financiamento que ajustasse o perfil da demanda ao dos diferentes fundos (MCIDADES, 2007; ANDRADE, 2011, p. 105). A afluência de crédito e subsídios para as ações do PAC em habitação e do MCMV criou uma expectativa no setor de que o acesso à moradia fosse ampliado às famílias de menor renda. Incluía ainda em um cenário otimista a possibilidade de que houvesse integração entre a política habitacional e a política urbana, uma vez que muitos municípios já haviam construído seus planos diretores e estariam desenvolvendo seus PLHIS. Nesse sentido, a prática de utilização das ZEIS como instrumento para transformação de áreas ocupadas da cidade, com o objetivo de urbanização e regularização de favelas, começou a ser difundida em alguns municípios e poderia fortalecer o Estatuto da Cidade (ROLNIK, 2008, p. 44). No entanto, os formuladores do programa não se preocuparam em detalhar os mecanismos e as formas de indução para que os projetos se apoiassem em instrumentos urbanisticos e facilitassem o planejamento urbano nas cidades, propiciando uma melhor localização dos empreendimentos. A rigor, o planejamento parecia não ser mesmo desejável, já que poderia retardar o processo de implantação do programa, e o Governo queria aplicar rapidamente os recursos. Em muitos estados e municípios os planos de habitação não tinham sido elaborados ou estavam em execução (ANDRADE, 2011). Em março de 2010, às vésperas das eleições presidenciais, foi lançado o PAC II, para preencher as lacunas sociais do PAC I e apoiar a construção de unidades sociais de saúde, creche e segurança policial – com previsão de recursos da ordem de 1,5 trilhão para as áreas de habitação, energia, social e mobilidade urbana para o período de 2011-201443. Isso mudava muito o contexto para a viabilização

de

grandes

programas

de

intervenção

urbana

em

favelas,

especialmente no caso da cidade do Rio de Janeiro, que se encontrava em uma situação onde governos municipal, estadual e federal atuavam em coalizão. O PAC II ampliou o escopo inicial da primeira etapa e passou a contar com seis eixos básicos: PAC Cidade Melhor, PAC Comunidade Cidadã, PAC MCMV, 43

Uma das questões apontadas com o desenvolver do PAC I referia-se à falta de previsão de recursos para equipamentos sociais nos projetos de urbanização das favelas.



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PAC Água e Luz para Todos, PAC Transportes, PAC Energia (Apresentação da 16ª reunião ordinária do CGFNHIS, 2010). Foram incorporados componentes sociais, abarcando o programa Minha Casa Minha Vida, que por sua vez abria uma possibilidade de combinar programas de oferta de moradia aos programas de urbanizacão de favelas. O Departamento de Urbanização de Assentamentos Precários (DUAP) do Ministério das Cidades ficou com atribuição de propor a elaboração e promover a implementação de programas de apoio ao setor público e entidades civis sem fins lucrativos, com o objetivo de melhorar as condições de habitabilidade de assentamentos precários e ampliar o acesso à moradia digna da população de baixa renda nas áreas urbana e rural. Ficaram sob responsabilidade do DUAP também o acompanhamento, monitoramento e gestão das ações de habitação incluídas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Os programas e ações geridos pelo DUAP têm como público-alvo famílias com renda de até três salários mínimos e são implementados mediante concessão de financiamentos ou transferência de recursos para Estados, Distrito Federal ou Municípios, por intermédio de contratos de repasse com a CEF ou de empréstimo com o BNDES e a CEF. A partir de 2008, o DUAP também é responsável pela transferência de recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social para entidades civis sem fins lucrativos, operacionalizado via contratos de repasse assinados entre a CEF e as entidades. Procura-se atender, por meio de seus programas e ações, famílias de até três salários mínimos com relação aos dois aspectos do déficit habitacional, o quantitativo e qualitativo.44 No caso de recursos provenientes do Orçamento Geral da União ou do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, a implementação dos programas 44

Relacionado ao déficit quantitativo, a atuação ocorre no sentido de ampliar o acesso à moradia digna da população de baixa renda nas áreas urbana e rural, atuando no sentido de reduzir a necessidade quantitativa de moradias, decorrente da coabitação familiar, do ônus excessivo com aluguel e dos domicílios rústicos/improvisados, para as faixas de mais baixa renda da população nas áreas urbana e rural. Com relação ao déficit qualitativo, os programas e ações propunham atuar na melhoria das condições de habitabilidade de assentamentos precários, buscando resolver a precariedade da moradia caracterizada por irregularidade fundiária e/ou urbanística, deficiência da infraestrutura, ocupação de áreas sujeitas a alagamentos, deslizamentos ou outros tipos de risco, altos níveis de densidade dos assentamentos e das edificações combinados à precariedade construtiva das unidades habitacionais, enormes distâncias percorridas entre a moradia e o trabalho associadas a sistemas de transportes insuficientes, caros e com alto nível de desconforto e insegurança, além da insuficiência dos serviços públicos em geral, principalmente os de saneamento, educação e saúde.



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e ações ocorre via transferência de recursos a Estados, Distrito Federal, municípios ou entidades civis sem fins lucrativos através de contratos de repasse firmados entre a CAIXA e estas organizações. No caso de recursos provenientes de outras fontes, tais como FGTS (Fundo de Garantia e Tempo de Serviço) e FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), a implementação se dá via financiamento a Estados, Distrito Federal e municípios contratados junto à CEF (FGTS) ou BNDES (FAT).45 Assim, durante a década de 2000, o financiamento de programas voltados para a urbanização de favelas ganhou um enorme suporte do Governo Federal. O objetivo declarado do PAC Favela II é apoiar Estados, Distrito Federal e municípios nas intervenções necessárias à regularização fundiária, segurança, salubridade e habitabilidade de população localizada em área inadequada à moradia ou em situações de risco, visando a sua permanência ou realocação, por intermédio da execução de ações integradas de habitação, saneamento ambiental e inclusão social. Os recursos do programa são do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) acrescidos das contrapartidas obrigatórias de Estados, municípios e Distrito Federal.46 O programa poderia ser acessado de duas formas: a) Emenda parlamentar à Lei Orçamentária Anual (LOA); ou b) seleção pública de propostas realizada periodicamente pelo Ministério das Cidades. O Ministério das Cidades, na qualidade de gestor, ficou responsável por: realizar a gestão, coordenação geral, gerência, acompanhamento e a avaliação da execução e dos resultados das ações; estabelecer as diretrizes gerais e os procedimentos operacionais para a implantação das ações, além de consignar recursos no FNHIS para execução das ações, realizar o processo de análise e seleção das propostas apresentadas pelos proponentes com vistas à celebração dos contratos de repasse, descentralizar os créditos orçamentários e financeiros à CEF e manter o Conselho Gestor do FNHIS informado da execução e acompanhamento das ações. A Caixa Econômica Federal, na qualidade de agente operador, 45

(http://www.cidades.gov.br/index.php/departamentos/duap.html acessado em 20 de Janeiro de 2014)

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A área de intervenção deverá ser ocupada por no mínimo 60% (sessenta por cento) de famílias com renda de até R$ 1.050,00 (um mil e cinqüenta reais), ser ocupada há mais de cinco anos ou estar localizada em situação que configure risco ou insalubridade, ou seja, objeto de legislação que proíba a utilização para fins habitacionais, nestes casos, em qualquer período de ocupação.



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responsável por celebrar os contratos de repasse, após análise e seleção pelo MCidades, promovendo sua execução orçamentário-financeira, acompanhar e atestar a execução do objeto das contratações efetuadas, verificar o cumprimento por parte dos proponentes/agentes executores da exigência de preenchimento do cadastro sócio-econômico dos beneficiários do programa por meio do Cadastro Único (CadÚnico). 5.3 No Rio de Janeiro, o novo PDDCRJ No campo do planejamento urbano na cidade do Rio de Janeiro, a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, além de ratificar o Plano Diretor como principal instrumento da política urbana, determinou sua revisão a cada dez anos, e fez com que o PDDCRJ de 1992 tivesse que ser revisto. Pressionado pela obrigatoriedade de revisão do Plano Diretor, que cumpria dez anos em 2002, o Governo Executivo encomendou à Procuradoria do Município uma revisão limitada ao realinhamento jurídico formal mínimo para atendimento ao Estatuto da Cidade. Esse versão foi entregue à Câmara dos Vereadores, que a rejeitou, devolvendo-a ao Executivo, sob a argumentação de que não correspondia aos procedimentos exigidos no Estatuto, especialmente pela ausência de atualização do diagnóstico da cidade, ultrapassado o período de dez anos. O Prefeito então passou a responsabilidade da nova revisão à Secretaria Municipal de Urbanismo, que o fragmentou em temáticas e setores, direcionando-as aos setores afins para que se procedesse um diagnóstico com base nas informações que existiam nas bases de dados da Prefeitura. Nunes (2012), ao analisar o processo, destaca que o documento resultante pode ser descrito como um agrupamento dos fragmentos originados em diversas secretarias e órgãos, que confere ao documento um vago caráter de principio, definição e receituário que parece ser válido para qualquer cidade desde que substituídos os anexos. Quando apresentado à Câmara dos Vereadores em 2006, o documento assume a denominação de Substitutivo 3 ao Projeto de Lei Complementar nº 25/2001. No entanto, sua tramitação não assume conclusão até a entrada no novo Prefeito em 2009. Assim como já havia acontecido na primeira administração de César Maia, em 1993, a implementação do PDDCRJ foi



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desconsiderada em seu segundo e terceiro mandatos como Prefeito da cidade (CARDOSO, 2007, p. 284; NUNES, 2012). Logo após ingressar na Prefeitura em 2009, o Prefeito Eduardo Paes retoma a tramitação do projeto de lei complementar na Câmara, nomeando a 5ª Comissão Especial do Plano Diretor, enquanto o Executivo preparava as propostas do novo governo. Segundo o PDDCRJ, publicado em 2011, o PAC-Favela juntamente com o MCMV seriam as referências na área de habitação social, e as ações de remoção seriam partes necessariamente integrantes do novo modelo. Apesar de o municipio já possuir um Plano Diretor alinhado às normas estabelecidas pelo Estatuto da Cidade, que deveria ser apenas atualizado para incorporar novos desafios emergentes ao longo de vinte anos, não teria sido esse o entendimento da nova administração (NUNES, 2012). A questão da habitação no plano de acordo com o novo substitutivo obedeceu a um caráter notadamente repressivo, buscando coibir a expansão de favelas e mais ocupações espontâneas. Do conjunto de definições e medidas referentes ao tema no Substitutivo 3, fica estabelecida a contenção da expansão das favelas, a remoção de moradores de favelas e áreas de assentamento de baixa renda da cidade, e o esforço de regularização (fundiária e urbanística) da população consentida, aquela que resultasse das remoções. A remoção de favelas aparece quase sempre no contexto de uma retórica que aciona a defesa do patrimônio ambiental da cidade, como exemplifica o artigo 145. Esse dispositivo faculta ao órgão do meio ambiente “propor o reassentamento, em local adequado, de populações irregulares existentes em unidades de conservação da natureza e áreas de preservação permanente.” A previsão de reassentamento da população de baixa renda aparece ainda associada à implantação de lotes urbanizados e moradias populares, num dos poucos momentos em que há algum vestígio de programa habitacional no texto. Nunes (2012), em artigo no qual analisa o processo de construção do novo substitutivo, destaca: O texto do artigo 183 destaca que somente poderão acessar os benefícios da Política de Regularização Urbanistica e Fundiária os assentamentos existentes até o momento da publicação da Lei, desconhecendo o fato gerador desses assentamentos, sendo que a ausência de diagnostico deixa dúvidas quanto à compreensão que embasa essas e outras propostas.

E segue: Houve negligência com mecanismos de apoio ao acesso à terra e a soluções sociais para habitação, tais como a edificação compulsória e urbanização consorciada, inibidores de mecanismos associados a



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especulação imobiliária. O tratamento superficial dado à aplicação desses instrumentos contrasta com o detalhamento conferido a outros que interessam ao poder econômico, tais como o solo criado (concessão onerosa do direito de construir) e as operações interligadas ou operações urbanas, praticamente auto-aplicáveis no contexto do documento. A idéia da ameaça da favela à cidade está fortemente presente no Substitutivo 3, seja explicitamente ou nas entrelinhas dos dispositivos incluídos no texto, ainda que tenha sido ocultada a compreensão de cidade e da questão urbana que embasou as propostas, essa idéia fica explícita quando se observa a separação que efetua entre cultura e natureza nos elementos que comporiam a estruturação básica do município. (NUNES, 2012, p. 359)

Assim, no que se refere à politica para as favelas, o Substitutivo 3 continha os principais elementos que afirmam um o modelo baseado na contenção e confinamento, retorno ao remocionismo e proteção das áreas valorizadas. O novo Plano Diretor, aprovado pela Lei Complementar nº 111 em 2 de fevereiro de 2011, endossou o disposto no Substitutivo 3, manteve as quatro Macrozonas de Ocupação (controlada, incentivada, condicionada e assistida), sendo que as macrozonas controlada e condicionada contariam com recursos obtidos pela utilização de instrumentos onerosos de gestão de uso e de ocupação do solo como condição para o seu adensamento. A produção de unidades, com padrões urbanísticos especiais, estariam previstas nas macrozonas de ocupação incentivada e assistida. Segundo o documento, as orientações para ocupação das macrozonas estão subordinadas à disponibilidade de infraestrutura e ao seu potencial de ampliação, respeitadas as condicionantes ambientais e paisagísticas, e às possibilidades de alocação de investimentos públicos e privados. Tanto na macrozona de ocupação condicionada (Barra da Tijuca e Guaratiba) como na de ocupação assistida (Zona Oeste), a expansão da malha urbana estaria na dependência da associação de investimentos privados aos recursos federais, estaduais e municipais, para implantação de infraestrutra e equipamentos urbanos. As ações da SMH47 para cumprimento das diretrizes do Plano Diretor podem ser resumidas na elaboração do Plano Municipal de Habitação de Interesse Social e, como componente deste, no Programa Municipal de Integração de Assentamentos 47

Os objetivos, diretrizes e ações estruturantes de responsabilidade da SMH estão contidas no Título IV, Capítulo IV e Capítulo VII, da Lei Complementar 111/2011 (que instituiu o novo PDDCRJ), que tratam, respectivamente, da Política de Habitação e da Política de Regularização Urbanística e Fundiária. Cabe registrar ainda que os objetivos, diretrizes e ações da política habitacional e de regularização urbanística e fundiária dependem fortemente dos instrumentos de gestão e ocupação do solo previstos no Título III, Capítulo III, e dos instrumentos financeiros, orçamentários e tributários previstos no Título III, Capítulo V.



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Precários Informais, que reuniria todas as ações relacionadas à urbanização de favelas do município sob o nome de Morar Carioca. A partir da gestão de Eduardo Paes, e com os novos instrumentos reguladores da questão urbana e habitacional na cidade, a SMH deveria dedicar-se à urbanização e regularização de favelas e loteamentos, e ao mesmo tempo promover a construção de moradias para famílias que ganham de 0 a 10 salários mínimos, com prioridade para as ganham de 0 a 3, em áreas dotadas de infraestrutura através do programa MCMV. 5.4 Os planejamentos estratégicos de 2010 e 2013 A utilização de profissionais e consultorias internacionais para discutir o planejamento urbano da cidade que tiveram início na década de 1990 continuaram ao longo da década de 2000, ganhando ainda mais destaque a partir do início do governo de Eduardo Paes, agora com a garantia de receber as Olimpíadas, que em última instância estiveram no centro do pensamento que legitimou esse modelo de gestão na cidade do Rio de Janeiro a partir da década de 1990. A empresa de consultoria McKinsey foi contratada pela gestão de Paes para coordenar o desenvolvimento dos planejamentos estratégicos da cidade de 2010 e 2012. Um arquiteto estrangeiro foi nomeado para assessorar o prefeito em assuntos urbanos.48 O Plano Estratégico apresentado pela Prefeitura no início de 2010 tem como subtítulo “Pós 2016, um Rio Mais Integrado e Competitivo”, e dá ênfase a ações de “controle, ordem e atração de investimentos” através de parcerias com o setor privado. A favela aparece no plano quase sempre como ameaça à ordem urbana, resultado da falta de políticas habitacionais. Nas diretrizes especificamente direcionadas à favela, encontram-se a coibição da expansão dos assentamentos (vertical e horizontal) no eixo “ordem pública”, o que aponta para um deslocamento importante na visão que este instrumento adotaria com relação à favela: a favela é questão de ordem e controle, não de direitos. A redução em pelo menos 3,5% de áreas ocupadas por favelas até 2012 aparece no eixo “infraestrutura urbana”. No 48

O Presidente do Instituto Patrimônio da Humanidade Washington Fajardo foi nomeado assessor especial do prefeito para assuntos urbanos, pelo decreto nº 37.183/2013. O arquiteto deverá aconselhar o prefeito em todos os temas envolvendo a requalificação urbana da cidade e o pensamento estratégico nela envolvido, bem como a respeito das intervenções urbanas realizadas em âmbito municipal (site da ADEMI).



mesmo

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eixo

aparece

um

objetivo

chamado

“implantar

infraestrutura

em

comunidades carentes”, no entanto sem nenhuma especificação mais detalhada do que exatamente caracterizaria uma “comunidade carente”. A palavra favela, como tal, só aparece em dois momentos: quando constata-se o seu crescimento no diagnóstico da sessão “infraestrutura urbana”, e quando determina-se a meta de sua redução, na mesma sessão. Na apresentação do plano fica claro que trata-se de um plano executivo, com ausência de participação popular. Um tom de parceria com o setor privado é mantido ao longo de todo o documento, com maior ou menor ênfase em diferentes sessões. De maneira geral o plano é superficial, seja no diagnóstico, seja nas metas apresentadas. O segundo plano estratégico desse período, apresentado em 2012, assim como o de 2010, também foi coordenado pela empresa de consultoria McKinsey, que teria contado com informações colhidas pelo Escritório de Gerenciamento de Projetos do Governo do Estado (EGP)49 para a confecção do documento. No escopo do segundo plano foi constituído o Conselho da Cidade, que teria como objetivo contribuir na revisão do Plano de 2010 e funcionar como órgão consultivo para o Plano de 2012. Na lista de participantes do Conselho da Cidade apresentada no Plano 2012-2016 chama atenção o número muito superior de empresários e artistas com presença em grandes veículos de comunicação, em detrimento de profissionais da área de planejamento, urbanismo, habitação ou outros profissionais dedicados ao desenvolvimento ou pesquisa de políticas sociais de maneira geral. Em relação ao plano anterior, a questão da habitação ganha destaque com a inclusão dos Programas Morar Carioca e MCMV, além do programa Bairro Maravilha, que promete então urbanizar as “àreas de menor poder aquisitivo” da Zona Oeste da cidade, região que é destacada diversas vezes ao longo do Plano O Escritório de Gerenciamento de Projetos do Governo do Rio de Janeiro (EGP-Rio) foi criado em agosto de 2007, por decreto governamental, com a finalidade de garantir a máxima qualidade e eficiência na gestão de projetos e convênios sob responsabilidade do Governo do Estado. Vinculado diretamente à estrutura da Secretaria de Estado da Casa Civil e formado por uma equipe multidisciplinar, o EGP-Rio gerencia hoje uma carteira de 99 projetos que, juntos, somam R$ 17 bilhões, entre contratos de repasse, convênios, projetos e programas – inclusive todas as ações relacionadas aos Jogos Olímpicos sob responsabilidade do Governo do Estado do Rio de Janeiro. O Escritório é hoje benchmark nacional e internacional em gestão pública de projetos, sendo premiado pelo Ministério das Cidades como gestor do “Melhor Projeto Nacional de Regularização Fundiária” e finalista nacional do “Melhor Projeto Social do PAC”. (http://www.egprio.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=326, acessado em 20 de Maio de 2014.)

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como zona prioritária para intervenção da gestão. As diretrizes e metas que compunham antes a sessão de Infraestrutura Urbana são agora reunidas a outras sob o nome de Habitação e Urbanização. A meta de redução das áreas ocupadas por favelas aumenta para 5% (3,5% no plano anterior). O Programa MCMV é apresentado como parte da estratégia para redução das áreas ocupadas por favela no município. O trabalho da UPP Social também é incluído nesse eixo, com previsão de implantação em todas as áreas que receberem UPPs. A expansão de favelas como objeto sai do eixo Ordem Pública (onde figurava no primeiro PE da gestão Paes), e passa a fazer parte do diagnóstico do eixo de Meio Ambiente, como responsável pelo desmatamento de áreas verdes da cidade. O período que sucedeu o que chamamos de primeira inflexão, entre 2001 e 2009, foi marcado por contradições no Plano Nacional, onde a emergência de um ministério para as cidades, a realização de conferências e o estabelecimento de conselhos para as cidades e políticas urbanas, e o desenvolvimento de uma política nacional de habitação social, foram bruscamente interrompidos por medidas emergenciais de desenvolvimento econômico apoiadas na produção habitacional e na realização de grande obras de infraestrutura com pouca ou nenhuma participação da sociedade civil, além de desconstruírem trabalhos de longos anos realizados dentro da administração pública. No plano local, o período é marcado por um enfraquecimento progressivo da coalizão que lidera o governo local, que seria substituída em 2009, trazendo o que chamamos aqui de segunda inflexão, iniciando um terceiro ciclo na urbanização de favelas, já na gestão de Eduardo Paes, em aliança com o Governo Federal, quando seria formulado o Programa Morar Carioca.



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6 O PROGRAMA MORAR CARIOCA Em 2008, o PROAP III (ainda implementado sob o nome de Favela Bairro) estava para ser assinado junto ao BID. A proposta incluía recursos para concluir obras que não haviam sido concluídas durante o PROAP II, e estava em negociação com a gestão de César Maia quando Eduardo Paes foi eleito prefeito. A eleição de Paes trouxe uma novidade para a cena política do Rio de Janeiro: pela primeira vez após o regime militar havia um alinhamento entre os três níveis de governo. Logo que Eduardo Paes foi eleito, ele convidou o então Deputado Jorge Bittar (PT-RJ), que havia apoiado sua candidatura, para assumir a pasta da SMH. A Secretaria então, segundo informações colhidas durante as entrevistas, estava “mais ou menos parada”, funcionando com poucos recursos, à espera da assinatura do PROAP III com o BID. Havia ainda recursos remanescentes de financiamentos do Governo Federal (PAC e Promoradia) que podiam ser mobilizados. O novo secretário trouxe consigo a promessa de liderar uma articulação junto ao Governo Federal para captar recursos através dos programas PAC e Minha Casa Minha Vida, de forma a viabilizar a criação de um grande programa municipal de investimento em habitação popular. No âmbito da gestão, o novo secretário fez um movimento de buscar técnicos que tivessem experiência prévia em urbanização de favelas e reuniu boa parte do grupo que havia construído o Favela Bairro (muitos que já haviam participado do Projeto Mutirão), mas saído da Secretaria junto com o então secretário Sergio Magalhães em 2000, no que marcou o que chamamos de primeira inflexão do período. Simultaneamente o Prefeito contatou Sergio Magalhães, então presidente do IAB, para propor uma parceria, onde o IAB voltaria a apoiar a SMH através de concursos e debates públicos, como já havia feito durante a primeira fase do Favela Bairro. Paes havia sido Subprefeito durante a primeira gestão de Sérgio Magalhães à frente da SMH, e teria acompanhado o desenvolvimento da primeira fase do Favela Bairro, sabendo do potencial político que uma grande articulação em torno da questão da favela tinha, tanto no território, quanto nos meios de comunicação. Assim teve início o processo de construção do Morar Carioca, nome que substituiu o Favela Bairro, Bairrinho e Grandes Favelas, reunindo todos os programas de urbanização de favelas realizados pela Prefeitura a partir daquele momento sob um só programa, com fontes de financiamento distintas, que incluíram



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recursos da prefeitura, do BID e do Governo Federal. A assinatura do contrato com o BID foi postergada enquanto a proposta era revista à luz das mudanças que aconteciam da SMH. No evento no qual Paes anunciou o Programa Morar Carioca oficialmente, na sede do IAB-RJ em 2010, o prefeito destacou a centralidade dos Jogos Olímpicos para o planejamento da cidade a partir de então: As Olimpíadas trazem a reboque uma justificativa para se colocar na agenda temas que, de certa forma, a cidade abandonou. Eu saio desse encontro com a idéia e o compromisso de que o grande legado das 50 Olimpíadas será este (o Morar Carioca). Nosso objetivo é ousar.

Assim, com a parceria firmada junto ao IAB, uma equipe com longa experiência em intervenções urbanas em favela, e ainda a promessa de recursos expressivos do Governo Federal, a urbanização de favelas voltava à cena com força. Se por um lado a contenção das favelas aparecia como prioridade, o Prefeito também anunciava a urbanização de todas a favelas urbanizáveis (segundo a classificação desenvolvida junto ao IPP) até 2020. Este seria o maior legado social da Olimpíadas do Rio. 6.1 Formulação e primeiro ciclo Entre 2009 e 2012 a SMH passou por um grande processo de reestruturação, marcando o início do que chamamos de terceiro ciclo do período, no qual a urbanização de favelas parecia retomar fôlego depois de quase uma década de intervenções bastante questionáveis no escopo principalmente do PROAP II. No novo ciclo, a gerência de urbanização de favelas da SMH voltou a ser ocupada por um profissional da arquitetura e urbanismo, com ampla experiência em intervenções em favela, tendo estado presente no campo desde a década de 1980. Outros arquitetos também com ampla experiência em urbanização de favelas voltaram à secretaria ocupando cargos de coordenação. Técnicos que haviam ocupado posições de gestão no primeiro ciclo (1994-2000) e perderam seus postos (apesar de permanecerem na Secretaria durante a década de 2000), voltaram a ocupar espaços de coordenação. Essa nova equipe, que se pode considerar responsável pelo desenvolvimento do Morar Carioca, foi a mesma responsável em grande medida pela formulação e implementação da primeira fase do Programa Favela Bairro (sendo que alguns 50

Prefeito Eduardo Paes, 15 de Outubro de 2010, durante evento na sede do IAB-RJ.



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vinham participando de programas de urbanização desde a década de 1980). Além disso, a equipe contava com o apoio do IAB através da parceria firmada com seu Presidente, primeiro Secretário da SMH. Era como se os tempos áureos da SMH tivessem de volta. Com uma equipe altamente qualificada e a existência de recursos federais para implantação dos programas, a Secretaria voltava a ter possibilidades de intervenção significativas nos territórios. Segundo informação obtida no site da Prefeitura, o programa Morar Carioca foi criado em julho de 2010 pela Prefeitura do Rio com o objetivo declarado de “promover a inclusão social, através da integração urbana e social completa e definitiva de todas as favelas do Rio até o ano de 2020”, descrito como parte do legado da Prefeitura para realização das Olimpíadas, com a meta de se investir R$ 8 bilhões em urbanização de favelas até o ano de 2020 (R$ 2 bilhões até 2012), montante muito superior ao investido nos vinte anos anteriores. Segundo informações disponíveis no site da SMH,51 o Morar Carioca é um plano municipal de integração de assentamentos precários informais com foco na inclusão social e no respeito ao meio ambiente. Além da implantação de infraestrutura, equipamentos e serviços, o Morar Carioca incorpora a implantação de um sistema de manutenção e conservação das obras, controle, monitoramento e ordenamento da ocupação e do uso do solo (idéias já presentes desde o Favela Bairro, porém nunca implementadas com sucesso). Uma das inovações propostas pelo Morar Carioca, em relação ao Favela Bairro, era promover o acesso à moradia, tanto através de melhorias habitacionais nos domicílios, quanto através de uma ação coordenada com o programa MCMV para o financiamento de novas unidades habitacionais. As intervenções urbanas do Morar Carioca se propunham ir além dos limites das comunidades, beneficiando também o seu entorno. Apesar de contar com o terceiro contrato com o BID (PROAP III), a perspectiva era de que o principal financiador do programa fosse o Governo Federal, através do PAC Favela, o que já delineava os principais conceitos e parâmetros do programa, já que este teria de submeter-se às regras do PAC Favela. Em outubro de 2010 foi assinado o convênio com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) para realização do Concurso Morar Carioca: Conceituação e Prática em Urbanização de Favelas, de maneira semelhante ao que aconteceu no início do 51

Acessado pela última vez em 15 de janeiro de 2014.



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Programa Favela Bairro. A iniciativa selecionou quarenta escritórios de arquitetura que deveriam desenvolver projetos de urbanização de comunidades respeitando a cultura e a história dos seus moradores. Nas áreas enquadradas como urbanizáveis, estavam previstas implantação de redes de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem pluvial, iluminação pública e pavimentação, semelhante também à estrutura do Favela Bairro. Nas comunidades entre 100 e 500 domicílios, além das obras de infraestrutura e urbanização seriam implantadas áreas de lazer e paisagismo. A apresentação oficial do programa estabelecia que as áreas de risco seriam eliminadas, havendo regularização urbanística nos locais de intervenção. Nas localidades acima de 500 domicílios que já tivessem sido parcialmente urbanizadas, eram

previstos

equipamentos

públicos,

ampliação

da

acessibilidade,

desadensamento parcial e a regularização urbanística. Nas comunidades acima de 500 domicílios que não ainda não tivessem passado por programas de urbanização, além das intervenções previstas pelo programa, haveria a oferta de novas moradias. No caso das comunidades não urbanizáveis, diagnosticadas pela Prefeitura como situação de risco ou inadequada ao uso residencial, as famílias seriam cadastradas e reassentadas em unidades habitacionais produzidas pelo programa MCMV. Além das obras de urbanização, o Morar Carioca deveria elaborar normas urbanísticas das áreas beneficiadas como nos bairros formais, ou seja, as comunidades deveriam passar a ter regras que definissem onde, quanto e como se pode construir. Para fiscalizar o cumprimento da legislação, foi retomada a idéia dos Postos de Orientação Urbanística e Social (POUSO), que apesar de presente desde a década de 1990 no ideário do Favela Bairro, não avançaram de maneira efetiva. Os POUSOs estavam sob a coordenação da Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU), e previam equipes de engenheiros, arquitetos, assistentes sociais e agentes comunitários para atuar na fiscalização das normas, conservação das obras e das áreas públicas. Ainda, previa-se que os POUSOs poderiam solicitar a atuação de outros órgãos e também prover orientação aos moradores na reforma de suas casas. No Morar Carioca incluiu-se um piloto de “urbanização sustentável”, o Morar



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Carioca Verde52, implementado nas localidades Chapéu Mangueira e Babilônia, Zona Sul da cidade. O site Rio Cidade Olímpica, mantido pela Prefeitura, tem uma sessão dedicada ao Programa, onde lê-se: Em uma cidade cercada por comunidades, o Morar Carioca representa uma verdadeira revolução no conceito de integração social. O programa, que tem como proposta a reurbanização de todas as favelas do Rio até 2020 e é um dos mais importantes legados olímpicos da cidade, já beneficia 55 comunidades. Mais do que apenas novas unidades habitacionais, o Morar Carioca representa o maior projeto de urbanização popular da história do país e contempla as áreas de infraestrutura, paisagismo, implantação de áreas de lazer e equipamentos educacionais, oferecendo maior conforto e dignidade a moradores das áreas mais carentes da cidade. O projeto tem como principais focos a sustentabilidade e um novo tipo de ocupação do solo, transformando áreas até então consideradas de risco em locais seguros para a 53 população (...) representa uma revolução social para o Rio.

Ainda, segundo o site Rio Cidade Olímpica, para as Olímpiadas teriam sido estabelecidos polígonos de prioridades que incluem equipamentos olímpicos e o seu entorno, com corredores de circulação, afirmando que as favelas iriam sair das proximidades dos equipamentos esportivos com diferentes graus de prioridades. As informações disponíveis no site ainda destacam que a Zona Oeste teria sido incluída nas prioridades pois o Prefeito não queria “somente” privilegiar algumas partes da cidade, e que os grandes complexos de favelas seriam incluídos no programa. Durante a concepção do Programa Morar Carioca, uma equipe que reunia profissionais da SMH e do IPP reviu a matriz de classificação de favelas utilizada para o Favela Bairro à luz do contexto atual, e fez uma seleção de 40 grupamentos de favelas que correspondem a 200 favelas e 90 complexos para dar início ao Programa, com a seleção dos projetos através do concurso organizado pelo IAB. A escala do Morar Carioca apresentava-se como muito superior à do Favela Bairro. 52

Entre as medidas de sustentabilidade adotadas, estão a utilização de materiais alternativos que não impermeabilizam o solo, microjardinagem, a construção de novas moradias com estrutura metálica reciclada, sistema de reuso de água das chuvas, esgotos tratados nos vasos sanitários e medidores individuais de água. Toda a iluminação das comunidades seria substituída por lâmpadas de LED, além da implantação de coleta seletiva de lixo e utilização de energia solar. (http://www.cidadeolimpica.com.br/projetos/morar-carioca, acessado em 15 de janeiro de 2014)

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Note-se aqui que o texto inicia partindo da premissa que a cidade seria “cercada” por comunidades, fazendo referência às favelas, como se essas não fossem parte da cidade, mas sim uma anomalia que “cerca” o que seria a cidade de fato. O texto ainda utiliza o termo “reurbanização” para referir-se à urbanização de favelas, expressão que não é encontrada em nenhum documento ou marco legal sobre a questão, mostrando desconhecimento ou desconsiderando uma trajetória e acúmulo de mais de vinte anos de experiência no campo.



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Na Carta do Programa54, documento que define os objetivos e características do mesmo, o contexto da cidade do Rio de Janeiro é apresentado de maneira otimista: “um momento excepcional em oportunidades de transformação e melhoria da sua qualidade de vida para todos os seus cidadãos”, fazendo referência a grandes eventos internacionais como a Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável Rio+20 (2012), a Copa do Mundo de Futebol (2014) e as Olimpíadas (2016), e apresentando o Morar Carioca como legado urbano, ambiental e social que o Rio poderia obter deste conjunto de grandes eventos, para tornar-se “uma referência nacional em termos de condições de vida dignas para seus habitantes”. O programa Morar Carioca também foi apresentado como tendo sido concebido para integrar-se ao Plano Municipal de Habitação de Interesse Social do qual seria instrumento de regularização urbanística e fundiária, articulado a ações que contribuíssem para a integração efetiva dos assentamentos atendidos, em consonância com o disposto no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro. Até 2020 seriam urbanizadas 256 unidades (que representam 571 favelas cadastradas), que comportam um número de domicílios superior a 100 unidades, caracterizadas como urbanizáveis e que ainda se classificam como não urbanizadas ou parcialmente urbanizadas. Este conjunto de favelas representaria mais de 232 mil domicílios correspondentes a 67% do total de domicílios em favelas, que somados aos mais de 97 mil domicílios localizados em favelas já urbanizadas, elevariam o percentual de domicílios atendidos a 95%. O programa se desenvolveria em três grandes ciclos: o Ciclo 1 deveria realizar-se no período entre 2010 e 2012 (com possibilidade de prorrogação de prazo até 2013). Neste ciclo estavam agrupados 72 assentamentos precários cujos projetos e obras estavam em andamento na Secretaria Municipal de Habitação durante a pesquisa. O Ciclo 2 abrangeria o período de 2011 a 2016, com projetos desenvolvidos entre 2011 e 2013, obras entre 2013 e 2016. Este ciclo comporta 40 agrupamentos (219 assentamentos precários). Durante a elaboração dos projetos, a Prefeitura se comprometia a trabalhar na captação de recursos e na definição de 54

Carta do Programa Municipal de Integração de Assentamentos Precários Informais – Morar Carioca, relatório, H//SUBPO/CPP/ GPL, 15 de dezembro de 2011.



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critérios para priorização das intervenções. Finalmente, o Ciclo 3, previsto para o período de 2015 a 2020, tinha como meta a elaboração de projetos entre 2015 e 2017 e obras entre 2017 e 2020, intervindo em 220 assentamentos urbanizáveis com mais de 100 domicílios, não contemplados nos ciclos 1 e 2. Os ciclos 2 e 3 seriam realizados já no escopo do convênio com o IAB no que diz respeito à contratação dos projetos via concurso público. Além dos assentamentos organizados em grupamentos contemplados nestes três grandes ciclos, a carta do projeto afirmava existirem outras 124 áreas em análise para intervenção futura em função de apresentar em mais de 70% da sua área indícios de risco ambiental, risco de alagamento ou escorregamento, ou estar situadas em logradouros públicos, demandando estudos específicos para eleger a melhor estratégia de intervenção, considerando a segurança dos moradores e o interesse coletivo segundo a SMH. O documento ainda aponta para a existência de 202 assentamentos isolados urbanizáveis com menos de 100 domicílios que seriam objeto de intervenção através de ações dos órgãos setoriais e em especial de ações de controle urbano de forma a evitar a sua expansão. Em janeiro de 2011, o concurso coordenado pelo IAB foi homologado, qualificando quarenta escritórios para elaborar os projetos de intervenção do Ciclo 2 do programa. As equipes propuseram intervenções ousadas, com significativas reestruturações da malha urbana da favela, tanto em termos de reconfiguração espacial, como questões de acessibilidade/mobilidade, como propostas de aberturas de vias de maior porte, a construção de teleféricos, planos inclinados, conjuntos habitacionais verticalizados, com a liberação de área para construção de espaços de recreação e lazer com a justificativa de assegurar assim melhores condições de habitabilidade para a população local. O MCMV tornara-se uma alternativa importante no sentido de oferecer uma alternativa de reassentamento em uma escala que permitiria o desadensamento das comunidades. O desadensamento foi um tema bastante polêmico durante a elaboração do programa. De maneira geral, a figura do desadensamento gera resistências entre militantes que defendem a permanência da favela em oposição a políticas que favorecem o empresariamento da cidade pelo setor privado, sugerindo que o desadensamento seria uma espécie de eufemismo para tratar de remoção. Por outro lado, a maior parte dos técnicos envolvidos na concepção do programa acreditam que um certo grau de



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desadensamento seria indispensável para garantir a qualidade e efetividade de intervenções urbanas, especialmente de abastecimento e drenagem. Programa Morar Carioca

Objetivo Superior

Objetivo

Este objetivo transcende as intervenções nos assentamentos precários e pretende impactar também na forma de como o governo municipal deverá lidar com as transformações da cidade com os seus habitantes. Assim, o programa não apenas vai experimentar soluções inovadoras e sustentáveis para as favelas da Cidade do Rio de Janeiro, mas também visa contribuir para uma mudança nas políticas públicas, no sentido de promover e fomentar o desenvolvimento urbano de forma mais integrada.

Fonte:

O enfoque do programa encontra-se nos assentamentos precários e seus habitantes, que serão abordados através de diversas linhas de atuação, estruturadas em componentes complementares. Com a implementação dos componentes do programa, os moradores das áreas de intervenção estarão mais integrados à cidade em todas as suas dimensões social, econômico, cultural e urbanística. Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, 2010.

O alcance dos objetivos do Morar Carioca estava baseado na realização de seis componentes que, dependendo de cada situação individual, poderiam ter peso e participação variados, de forma interrelacionada e complementar: o componente Infraestrutura e Equipamento Urbano seria executado por empresas a serem contratadas pela SMH; o componente Serviços Públicos Urbanos tinha como objetivo preparar e garantir a articulação permanente dos órgãos públicos setoriais para a prestação adequada dos serviços públicos; a Produção Habitacional e a identificação de potencial para a produção habitacional no entorno ou nos próprios assentamentos, em cooperação com instituições de financiamento habitacional; o componente de Intervenções em Moradias, outra novidade em relação ao Favela Bairro, deveria apoiar, orientar e facilitar o acesso a recursos para a execução de melhorias habitacionais nas áreas de intervenção; a Regularização Fundiária foi incluída no programa, ressalvando-se que a dimensão legal e administrativa da mesma transcendia a competência direta da SMH. Assim, o programa Morar Carioca se propunha a contribuir para a consolidação das comunidades e da sua inclusão formal à cidade, estabelecendo bases para um desenvolvimento local sustentável, podendo a SMH contratar empresas especializadas para auxiliar na questão. Por



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fim, as intervenções e o melhoramento dos aspectos físicos e espaciais deveriam ser acompanhadas por um trabalho de desenvolvimento social. Num primeiro momento, a população seria informada e envolvida nos processos de planejamento e intervenção, à semelhança do processo de participação formulado no escopo do Favela Bairro. Havia um entendimento entre a equipe gestora do Morar Carioca de que a participação deveria colaborar para aumentar as chances de sustentabilidade para ações de capacitação para geração de emprego e renda, educação ambiental, e também na articulação da participação dos agentes públicos e privados nas diferentes etapas do programa. Estas ações seriam complementares às intervenções e inicialmente conduzidas pela própria SMH em colaboração com os escritórios de arquitetura e urbanismo selecionados via concurso, ao longo do desenvolvimento dos projetos. No entanto, frente à multiplicidade de terriórios envolvidos e a necessidade de produzir avaliações que pudessem ser comparáveis entre os territórios, a SMH interrompeu o processo que havia sido gestado para ser desenvolvido pelas equipes do escritórios de arquitetura, e optou por contratar uma organização não governamental para ficar responsável pelo trabalho social no programa. Assim, em 2012 a Prefeitura firmou uma parceria com o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), na qual este ficaria responsável por estimular a participação comunitária durante o programa. Segundo um dos coordenadores da instituição na ocasião do anúncio da parceria, o desafio do IBASE era criar um ambiente de mobilização e participação para que os moradores e moradoras influenciassem e subsidiassem o planejamento das intervenções nos seus territórios de moradia, dialogando com os arquitetos contratados pela Prefeitura para projetar as mudanças.55 O modelo de governança do programa contaria com três níveis de decisões chamados estratégicos”: no primeiro, o Secretário Municipal de Habitação, institucionalmente responsável pelo programa; no segundo, uma coordenação que seria composta pelos Sub-Secretários de Projetos, Obras, e de Reassentamentos e Ações Especiais – cujas atribuições seriam a coordenação e articulação entre os participantes do programa, coordenação esta que previa contar com um grupo 55

Itamar Silva, http://www.ibase.br/pt/2012/06/ibase-lanca-morar-carioca-cidadania-ativa/, acessado em 20 de Julho de 2014.



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gestor de apoio para viabilizar e facilitar a integração dos parceiros; e no terceiro nível, a gerência do programa, que constituiria o principal elo entre o nível estratégico e o nível operacional, cabendo a esta atribuições como planejamento, organização, condução e liderança, monitoramento e avaliação, além da administração dos recursos financeiros dos programas de urbanização. A gerência do programa contaria com o apoio de contratos de gerenciamento externos que viabilizassem uma estrutura para prestar assessoria gerencial e técnica em todas as áreas de atuação do programa, incluíndo o estabelecimento e a manutenção de um sistema de informações gerenciais. Foi sugerido ainda o estabelecimento de gerências de projetos para cada agrupamento, cuja função seria, junto à gerência de urbanização, formar a equipe gerencial e assegurar que as diversas intervenções, realizadas a partir de cada um dos componentes do Morar Carioca, acontecessem de forma organizada, integrada e complementar. Ao mesmo tempo, haveria coordenações para cada um dos componentes, que iriam constituir os principais elos entre as áreas de competência da administração municipal e as intervenções do programa. A sua atuação seria matricial e relacionada a todos os agrupamentos, reproduzindo a estrutura montada na ocasião da formação da SMH em 1995, porém dedicando-se exclusivamente ao programa Morar Carioca. Figura 2: Estrutura Organizacional do Programa Morar Carioca.

Fonte: Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, 2010.



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O quadro geral de custos foi montado considerando modalidades de intervenção distintas por tipo de assentamento, baseando-se em custo específico de urbanização, ou de reassentamento, por domicílio, com base no custo unitário praticado em projetos similares.56 Tabela: Custos do Programa Morar Carioca

Tipo

Unidades

Domicílios 2010*

Custo por domicílio Dez 2009

Investimento (R$1.000.000) Jan 2011

Pequenas favelas, com 193 7.409 R$ 22.000 menos de 100 domicílios Favela entre cerca de 159 37.066 R$ 22.000 100 e 500 domicílios Favela com mais de 500 domicílios, parcialmente 36 114.144 R$ 25.500 urbanizada Favela com mais de 500 domicílios, não 61 104.547 R$ 32.500 urbanizada Total 571 276.139 Fonte: Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, 2010.

R$ 180 R$ 870 R$ 3.106 R$ 3.626 R$ 7.782

Para viabilizar a implantação do Ciclo 1 do programa, a Prefeitura contava com recursos do BID (PROAP III), do PAC, do FMHIS, do Promoradia (recursos federais) e de recursos próprios do orçamento municipal. Para viabilizar a elaboração de projetos dos Ciclos 2 e 3, a Prefeitura contaria com recursos próprios do orçamento municipal, e buscava captar recursos junto ao Governo Federal. A carta mencionava a possibilidade ainda de que o programa pudesse contar recursos oriundos da aplicação da Outorga Onerosa do Direito de Construir e das Operações Interligadas. Tabela: Custo por Ciclo do Programa Morar Carioca Ciclos: Programa Morar Carioca

Recursos aprox.

Ciclo 01

R$ 2,1 bilhões

Ciclo 02

R$ 2,7 bilhões

56

Valores estimativos, a serem corrigidos após a divulgação das informações oficiais do IBGE sobre domicílios em assentamentos precários, e após a elaboração dos projetos e respectivos orçamentos, de acordo com o desenvolvimento das etapas.



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Ciclo 03

R$ 2,8 bilhões

Total

R$ 7,6 bilhões**

Fonte: Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, 2010.

Outra novidade do programa era que, enquanto as intervenções anteriores formalmente ignoravam as condições de segurança nos locais de intervenção, o Morar Carioca trazia em sua apresentação a questão, afirmando que as intervenções nos agrupamentos deveriam contar com “padrões de segurança pública aceitáveis” para poder garantir a implementação dos componentes do programa e iniciar as transformações desejadas. Vale chamar atenção aqui para o fato de que, apesar de o programa não ser pensado para intervir diretamente na questão da segurança, após a entrada de Paes na Prefeitura, e considerando a aliança de seu governo com o então Governador do Estado Sérgio Cabral, discutiuse a possibilidade de programas como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) atuarem simultaneamente aos programas de urbanização de favelas, como intervenções complementares, o que já vinha acontecendo no caso dos programas de urbanização geridos pelo Governo do Estado via PAC. Segundo Relatório de Acompanhamento do Plano Diretor 2011/2012, para 2012/2013 a SMH previa a contratação dos outros 29 escritórios selecionados no concurso público para desenvolver os demais projetos do Ciclo 2 do Morar Carioca, a conclusão da matriz de planejamento do Morar Carioca Regularização de Loteamentos e a realização das obras do Ciclo 1 do Morar Carioca, com previsão de conclusão até 2014. 6.1 Mudanças no curso do programa Morar Carioca: A terceira inflexão do período Em 2012, logo após a reeleição do Prefeito Eduardo Paes, foi anunciada a saída do então Secretário Jorge Bittar da Secretaria Municipal de Habitação. Para substituí-lo no cargo, foi o então Sub-Secretário Pierre Batista57. Num primeiro 57

Jornal “O Dia”, de 23 de Outubro de 2012: “A provável saída de cena do secretário de Habitação do Rio, Jorge Bittar, que teve o cargo reivindicado na sexta-feira pela direção municipal do PT, tem como pano de fundo uma articulação do PMDB, que busca implodir a todo custo a pré-candidatura do senador Lindbergh Farias ao governo do estado, em 2014. A informação é de um dirigente petista, que afirma que a substituição de Bittar pelo subsecretário de Assentamento e Ações Emergenciais,



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momento, pouco coisa mudou na Secretaria. Alguns dos coordenadores de área saíram pouco depois do Secretário, mas a maioria da equipe de coordenação se manteve. Os escritórios de arquitetura selecionados durante o concurso do IAB para iniciar o Ciclo 2 do Morar Carioca, que na verdade seria o primeiro ciclo de realização do projeto nos moldes idealizados pela equipe que vinha trabalhando desde 2009, ou o “verdadeiro” Morar Carioca, como alguns entrevistados descreveram, tinham contratação prevista para 2012. Nesse momento estavam em andamento também a parceria com o IBASE e a finalização dos projetos de captação a serem apresentados ao Governo Federal para financiar o Ciclo 2 do programa. Um dos primeiros sinais que haveria mudanças com relação ao Morar Carioca foi o rompimento do contrato com o IBASE, segundo entrevistados no escopo desta pesquisa, sem aviso prévio ou justificativa. A ONG relata não saber porque se deu o rompimento brusco da parceria. Os técnicos da SMH relatam tampouco saber a razão do rompimento, e afirmam que a decisão de cancelamento teria vindo diretamente do Gabinete do Prefeito. Em 2012, os primeiros onze escritórios, dos quarenta selecionados, já haviam sido chamados para dar início aos trabalhos. Apesar de ter sido anunciada a contratação dos demais, nada havia acontecido até os primeiros meses de 2014. O IAB deixou o convênio com a Prefeitura ainda em 2012, e de acordo com o Instituto, Pierre Batista, é “uma jogada política” do prefeito Eduardo Paes. O indicado, embora filiado ao PT, é, segundo esse político do PT, ligado ao coordenador da campanha de Paes e ex-chefe da Casa Civil, Pedro Paulo Carvalho, do PMDB. A notícia da saída de Bittar foi publicada sábado, na coluna ‘Informe do DIA’, e causou crise entre as direções estadual e municipal do PT. “O PMDB tem interesse na crise”, informa o dirigente. Ontem, o prefeito Eduardo Paes convocou Jorge Bittar para uma reunião em seu gabinete, e a assessoria de Bittar informou que foram tratados apenas assuntos técnicos. Bittar não falou sobre sua ‘possível’ saída. O presidente municipal do PT, Alberes Lima, defende a saída de Bittar. Segundo ele, o secretário não teria “atendido aos interesses do partido”. Já o deputado federal Chico D’Angelo (PT), suplente de Bittar, que perderá o mandato quando o titular sair da Secretaria, defendeu o colega. “Sou suspeito para falar porque sou seu suplente, mas o Bittar é considerado um dos melhores secretários de Habitação do país. Foi no mínimo, estranha a forma como foi decidido”, disse ele. Tristeza e decepção. Desta forma, o secretário Jorge Bittar reagiu ao saber, na sexta-feira à noite, da decisão do PT municipal em puxar o seu tapete. Integrante do grupo político que defende a candidatura de Lindbergh Farias em 2014, Bittar só se ausentou do cargo há dois anos, durante a campanha para deputado federal. Quem o substituiu foi Pierre Batista, funcionário da Caixa Econômica Federal, que durante a gestão como secretário de Habitação, teria se aproximado do ex-chefe da Casa Civil, Pedro Paulo Carvalho. A reunião do diretórimo municipal do PT para derrubar Bittar foi decidida na última hora, sem avisó prévio e no horário no mínimo curioso: o do último capítulo da badalada novela Avenida Brasil, na sexta-feira passada. O presidente do partido no Estado do Rio, Jorge Florêncio, estranhou a pressa dos companheiros, uma vez que até a executiva nacional decidiu adiar o comício do candidato Fernando Haddad, em São Paulo, por causa da novela “Respeito o que foi decidido na reunião, mas... fazer uma votação assim, de última hora, e no horário da Carminha?”, alfinetou Florêncio.”



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no mesmo período somente duas obras haviam sido licitadas58. No início de 2014, praticamente todos os técnicos em cargos de coordenação que haviam retornado à SMH em 2009 já haviam deixado o órgão, e a expectativa entre os que foram entrevistados no escopo deste trabalho era de que o programa Morar Carioca, como havia sido idealizado, não mais aconteceria. No plano das comunicações da Prefeitura, o Programa Morar Carioca, anunciado como maior legado social das Olimpíadas do Rio, subitamente desapareceu dos documentos que fazem referência ao suposto legado. Em uma publicação feita em 16 de abril de 2014, onde são listados os 27 projetos que compõem o “Plano de Políticas Públicas – Legado dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016”, o programa Morar Carioca não aparece. No eixo “requalificação urbana”, é mencionado o Programa Bairro Maravilha, como intervenção de urbanização do entorno do Estádio Olímpico João Havelange, porém nenhuma menção a qualquer intervenção em favelas. Os recursos previstos para investimento no Morar Carioca não saíram do papel. No início de 2014, em contrapartida, o Prefeito anunciou a urbanização de toda a Zona Oeste até 2016, com investimentos previstos em mais de 2 bilhões de Reais, pelo programa Bairro Maravilha59. À diferença de uma intervenção complexa e integrada, como o Morar Carioca, ou mesmo o Favela Bairro, o Programa Bairro Maravilha configurou-se em intervenções pontuais, majoritariamente no sistema viário e de drenagem. Segundo diversos entrevistados, o Bairro Maravilha, liderado pela Secretaria de Obras, funcionou como uma planilha de custos totais, ou seja, 58 http://oglobo.globo.com/rio/morar-carioca-em-compasso-de-espera-12521373#ixzz332qqIaWu 59

Prefeitura vai urbanizar toda Zona Oeste até 2016, 18/08/2013 em http://www.eduardopaes.com.br/noticia/prefeitura-vai-urbanizar-toda-zona-oeste-ate-2016/ acessado em 26 de maio de 2014: “O prefeito Eduardo Paes vai urbanizar, até 2016, toda a Zona Oeste – uma área de 600 mil metros quadrados, o equivalente a quase metade da cidade. Serão investidos R$ 2 bilhões dentro do programa “Bairro Maravilha” que prevê a pavimentação de mais de duas mil ruas, em 253 localidades. Além disso, a região ganhará 511 km de rede de drenagem, 1.850 km de rede de esgoto e água potável. Serão beneficiadas 556 mil pessoas. Ao todo, sofrerão transformações 21 bairros da Zona Oeste, com exceção de Jacarepaguá, Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes. Até agora, de 2009 a 2013, o projeto já destinou R$ 319,1 milhões a 54 comunidades. Parte da verba, R$ 500 milhões, virá do governo federal, por intermédio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Pavimentação. O restante — R$ 1,5 bilhão — sairá dos cofres da Prefeitura. — Com essa nova leva de investimentos, vamos corrigir de vez as deficiências em urbanização da Zona Oeste, garantindo mais qualidade de vida aos moradores. É uma meta desafiadora, um importante pacote de obras para o Rio — concluiu Alexandre Pinto, secretário municipal de Obras. O programa “Bairro Maravilha” é conhecido por dar nova cara aos bairros e comunidades por onde passa, implantando redes de infraestrutura, pavimentação, calçadas e projetos de paisagismo e iluminação.”



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metros construídos, o que daria mais flexibilidade para eventuais mudanças tanto por parte da Prefeitura quanto por parte das empreiteiras em sua implementação. O fato de o programa Bairro Maravilha não estar vinculado a intervenções integradas nem sujeito a regras rígidas de cumprimento de projetos pelo financiador, já que a própria Prefeitura é quem provê os recursos, torna mais conveniente atender pedidos de caráter eleitoreiro. O consórcio responsável pelas obras do programa Bairro Maravilha em sua primeira etapa foi o Consórcio Saúde-Gamboa, composto pela empreiteira OAS, Odebrecht e EIT Engenharia, mesmo consórcio responsável pela primeira fase do projeto Porto Maravilha, alvo de grandes críticas por parte de arquitetos e planejadores que participaram da concepção do projeto. Após a primeira fase, no entanto, o programa Bairro Maravilha tem sido licitado de maneira fragmentada, aparentemente com alguma distribuição entre empreiteiras de perfis distintos. Dezenas de emendas de parlamentares ao orçamento municipal de 2013 estavam diretamente relacionadas ao Programa Bairro Maravilha. Ao longo desta seção apresentamos, de maneira mais ou menos cronológica, a formulação e a evolução dos principais programas integrados de urbanização de favelas liderados pela Prefeitura entre 1994 e 2014, período que afirmamos aqui ser permeado por três inflexões com relação à consolidação ou não de uma política de urbanização de favelas no Município. A primeira fase do período vai da formulação do Programa Favela Bairro e criação da Secretaria Municipal de Habitação, em 1994, até o ano 2000, quando há uma mudança significativa na gestão da Secretaria, seguida do consequente enfraquecimento do programa, que chamamos de primeira inflexão, nesse caso, na direção da não institucionalização, após seis anos de continuidade da política. A segunda fase do período tem início na primeira inflexão, em 2001, e segue até o final de 2008, quando o Prefeito Cesar Maia se despede da Prefeitura. O ingresso de uma nova gestão em 2009 marca a segunda inflexão do período, início do terceiro ciclo, dessa vez no sentido da institucionalização, voltando a priorizar a urbanização integrada de favelas entre as políticas sociais voltadas para habitação popular no município. Apresentamos também os principais marcos legais, normativos

e

institucionais que, acreditamos, influenciaram significativamente o desenvolvimento dos programas. O período que antecede a criação do primeiro ciclo é marcado pela promulgação da Constituição da República de 1988, que afirma o direito à moradia digna e insere o conceito de função social da propriedade no plano nacional. No



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plano local, a promulgação de um Plano Diretor, que alinhava-se aos preceitos da nova Constituição Federal, e que resultou entre outras coisas no desenho de uma política de habitação para a cidade do Rio de Janeiro (da qual a urbanização de favelas foi parte central), contrastou com a implantação de uma administração onde o empresariado ganhou força gradativamente, tendo como símbolo maior o não cumprimento do Plano Diretor e a realização de planos estratégicos de trabalho por empresas de consultoria privadas.

O Morar Carioca, carro-chefe da retomada da urbanização integrada de favelas, foi lançado em 2010 com alarde como possibilidade de urbanizar todas as favelas da cidade até 2020. No entanto, para surpresa de muitos dos que acompanhavam este processo, em 2012, voltaram a interromper um ciclo que apontava para o fortalecimento de uma política de urbanização de favelas como principal política social urbana para esses territórios, no que estamos chamando de terceira inflexão. O programa foi praticamente suspenso menos de três anos após seu anúncio, sem explicações por parte da gestão pública. No capitulo seguinte, faremos um esforço de compreender quem são os agentes que influenciam a tomada de decisão na direção da institucionalização ou não das políticas de urbanização de favelas, bem como em sua formulação e legitimação durante o período investigado, para na sequência sugerir algumas formulações explicativas para

as

sucessivas

interrupções

na

implementação,

e

consequente

não

institucionalização, das políticas de urbanização integrada de favelas na capital carioca.



111

PARTE II: POR QUEM E COMO SÃO DETERMINADOS OS RUMOS DA FAVELA NA GESTÃO URBANA



112

7 OS AGENTES Discutir a favela e as intervenções que sobre ela irão incidir é discutir a cidade e seu espaço social, onde incidem fatores econômicos e políticos. Discutir significa também dialogar com apropriações simbólicas operadas por múltiplos atores ao situar a questão (favela) no espaço social. A favela e as apropriações que se fazem dela estão em permanente disputa (RIBEIRO e OLINGER, 2012). Partindo dessa compreensão, e entendendo que a formulação e decisão de implementar a política de urbanização de favelas, em detrimento de outras, é o resultado de disputas entre diferentes agentes que se dão em um campo político, essa seção da tese dedica-se a identificar quem são os agentes que, com maior ou menor peso, têm assumido papéis protagonistas nesse processo durante o período investigado. Segundo a teoria proposta por Bourdieu, um agente ou instituição faz parte de um campo na medida em que nele sofre efeitos ou que nele os produz (BOURDIEU, 2007a, p. 3). [o ano é 2007a mesmo?] Bourdieu reconhece a existência de estruturas objetivas do mundo social que independem da consciência e da vontade dos agentes e que podem orientar e coagir suas ações e representações. Ao mesmo tempo, porém, enfatiza que há uma gênese social simultânea e permanente dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação, das representações e das estruturas sociais, por sua vez construídas segundo diferentes espécies de poder ou de capital que ocorrem nos diferentes campos. O capital adquire, segundo a visão proposta por Bourdieu, diversas formas, sendo o capital total resultante de uma composição entre, principalmente, os capitais econômico e cultural. A combinação desses dois tipos de capital é que vai determinar a posição do indivíduo no espaço social. Bourdieu no entanto aciona um terceiro tipo de capital como relevante para analisar o campo do poder, o capital simbólico. Bourdieu o chama de “o capital dos capitais”, e descreve-o como a forma percebida, e reconhecida como legítima, das diferentes espécies de capital (BOURDIEU, 2007a, p. 134). Na perspectiva de Bourdieu, os agentes são distribuídos em uma matriz de acordo com o volume global de capital (dos dois tipos diferentes, econômico e cultural) que possuam e com a estrutura de seu capital, isto é, de acordo com o peso relativo dos diferentes tipos de capital, econômico e cultural, no volume global de seu capital. Assim, na primeira dimensão, a mais importante na perspectiva de



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Bourdieu, os detentores de um grande volume de capital global, como empresários, membros de profissões liberais e professores universitários, opõem-se globalmente aqueles menos providos de capital econômico e de capital cultural, como os operários não qualificados; mas, de outra perspectiva, isto e, da perspectiva do peso relativo do capital econômico e do capital cultural no seu patrimônio, os professores, relativamente mais ricos em capital cultural do que em capital econômico, tendem a opor-se de maneira nítida aos empresários, relativamente mais ricos em capital econômico do que em capital cultural. Durante essa investigação, buscamos identificar os principais agentes atuantes no campo, e os relacionamos aos tipos de capital predominante na composição de capitais de seus grupos de atuação, de forma que pudéssemos iluminar as disputas que ocorrem no campo a partir de interesses declarados ou não. Assim, após identificar os agentes e a composição generalizante de seu capital total, passamos a analisar quais são as principais disputas no campo de construção da politica a partir de 1992, como elas vão impactar no fortalecimento ou enfraquecimento da política, e em que medida essa abordagem contribui para a compreensão do objeto desta investigação. Em uma primeira tentativa de registrar o primeiro experimento de urbanização integrada de favelas ainda em finais da década de 1960, alguns atores destacaram três tipos de agentes incidindo sobre a questão: o Estado, os moradores e o mercado. (BLANK, 1979; VALLADARES, 1980; E SANTOS, 1979, 1981). A tríade proposta pelos atores para compreender o contexto nos primórdios da urbanização de favelas não nos pareceu suficiente para representar o que aconteceu no campo a partir da década de 1990, quando a política ganha escala, e novos agentes são incorporados ao jogo, incidindo na formulação ou legitimação das políticas, às vezes em ambos. Partindo da análise da extensa literatura existente sobre a questão, e das entrevistas realizadas ao longo desta pesquisa, buscamos identificar quais os agentes determinantes para a formulação e legitimação dessas políticas a partir da década de 1990. Os agentes, da forma como os identificamos, são apresentados a seguir distribuídos conforme o tipo de capital predominante em sua composição de capitais. Os atores que possuem maior concentração de capital cultural em sua composição geral de capitais foram aqui identificados como aqueles que estão no centro do desenvolvimento do ideário que apóia a urbanização de favelas enquanto política de intervenção, dos quais se destacam os arquitetos-urbanistas projetistas, atuando



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aqui como profissionais liberais, liderando equipes de projeto fora da estrutura do Estado, e a academia. Os agentes com predominância de capital econômico em sua composição de capitais, o empresariado, foram identificados aqui como os setores imobiliário e da construção civil, que podem ser mais ou menos beneficiados por determinadas políticas na área de habitação. Agências de fomento internacionais tiveram influência significativa no campo durante o período investigado, e portanto foram incluídas no rol dos atores relevantes aqui. Entendemos que as agências tiveram papel relevante tanto enquanto agentes financiadores, como na legitimação das políticas, podendo ser classificadas como detentoras de capital simbólico, mas também econômico. Os movimentos sociais, enquanto agentes, e os agentes do Estado, entendendo o Estado como campo do poder, onde se definem as disputas, serão apresentados em capítulos separados na sequência. Antes de prosseguir, vale lembrar que no conceito de campo adotado aqui, as posições e estratégias dos agentes que participam da disputa não são fixas nem definitivas (bem como não são os agentes), e podem mudar a cada momento de acordo com as condições estruturais e posicionamento de cada agente no campo. Assim, como veremos ao longo do trabalho, agentes considerados importantes em determinados momentos podem deixar de sê-lo, ou até mudar de posição. Se outros agentes não foram analisados aqui, foi porque não identificamos que, ao longo do período estudado, eles tenham tido peso relevante na definição do processo de institucionalização ou não das políticas de urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro, o que não quer dizer que outros atores não atuem no campo. 7.1 A academia e a intervenção urbana na favela: da produção de conhecimento à legitimação simbólica A academia, representada majoritariamente pelos professores do ensino superior, segundo o modelo de análise do espaço social proposto por Bourdieu, ocupa posição privilegiada, no topo do quadrante esquerdo superior, em posição de poder similar aos portadores do capital econômico, porém em oposição a estes, com mais representatividade de capital cultural, do que econômico, em sua composição de capitais. A academia é considerada importante detentora e guardiã do capital cultural de uma sociedade.



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No Rio de Janeiro, a academia esteve envolvida no debate, formulação e legitimação de estratégias voltadas para a favela desde o final do século XIX. Dos médicos higienistas, passando por engenheiros, arquitetos influenciados pelo modernismo, até os cientistas sociais já em meados do século XX. Pode-se dizer que, em períodos históricos diferentes, diferentes setores da academia estiveram mais ou menos envolvidos com a formulação de politicas para favelas, ora a serviço ou em colaboração com o Estado, ora de maneira independente, elaborando conceitos ou legitimando idéias e ações. No período objeto desta investigação, os setores da academia que incidem de maneira relevante no campo são os arquitetosurbanistas e os cientistas sociais. Quando olhamos para o período objeto deste estudo, não são poucos os institutos de pesquisa universitários que possuem extensa produção acadêmica sobre a favela carioca e as intervenções que sobre ela incidem, a exemplo do IPPUR, PROURB, FGV-CPDOC, IUPERJ-IESP, Fiocruz, e dos departamentos de Ciências Sociais da PUC, UFRJ, UERJ. Se focarmos apenas no caso do Programa Favela Bairro, são dezenas de investigações sobre um mesmo objeto, no mesmo território, em um espaço relativamente reduzido de tempo: o programa despertou interesse

na

academia

desde

seu

início,

com

aproximadamente

setenta

investigações identificadas em um espaço de pouco mais de dez anos. É importante ressaltar também que a urbanização de favela tem sido objeto de interesse de pesquisa desde o primeiro experimento, que deu origem a um estudo clássico das ciências sociais sobre a favela, o Passa-se uma Casa, de Lícia Valladares. É possível que a alta qualidade de estudos como este tenham contribuído para o desenvolvimento de todo um campo de estudos sobre intervenções urbanas em favelas que existe até os dias de hoje, com uma característica “retroalimentadora”, onde agentes envolvidos no desenvolvimento e formulação das intervenções, tanto inspiram-se nos estudos produzidos pelas ciências sociais, como por vezes levam as experiências do campo para serem investigados na academia. O caso das ciências sociais é muito particular: pode-se dizer que o nascimento das ciências sociais no Rio de Janeiro está intimamente ligado à favela, talvez seu primeiro objeto de estudo na cidade. Desde fins da década de 1940, com a visita do Padre Lebret à Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) de São Paulo, iniciou-se uma tradição de estudos sociais nos espaços conhecidos como



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favela. O curso de Economia Humana e Planejamento Econômico, oferecido no nível de pós-graduação na ELSP introduziu uma prática de pesquisa apoiada principalmente na emergente Sociologia Urbana, para o contexto brasileiro. Ainda que suas idéias tenham sido consideradas demasiadamente progressistas por setores da elite empresarial60, Lebret conseguiu engajar personalidades importantes na defesa do ideário pregado por Économie et Humanisme, culminando com a criação de um organismo de estudos e pesquisas aplicadas aos complexos sociais, a Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (SAGMACS), em 1947 (VALLADARES, 2005). Assim, ao longo da década de 1950, um grupo multidisciplinar realizaria a primeira pesquisa social em favelas no Rio de Janeiro, sob forte influência da tradição trazida por Lebret. Publicada em 1960, a pesquisa Aspectos Humanos da Favela Carioca, realizada pela SAGMACS, foi um marco importante dessa época no campo da investigação e produção de conhecimento sobre a favela, formando e influenciando profissionais, especialmente das ciências sociais, até os dias de hoje. Vale chamar atenção que o Padre Lebret chegou ao Brasil em um momento em que o Partido Comunista havia sido proibido de

funcionar

legalmente,

no

entanto

discutia

Marxismo

em

seu

curso

(VALLADARES, 2008, p. 177), marcando a influência de um ideário identificado com a esquerda política nas ciências sociais que se dedicaram a investigar a favela, que permanece até os dias de hoje. Na segunda metade dos anos 1970, influenciados em grande medida pelo trabalho de Padre Lebret e pela pesquisa da SAGMACS no Rio de Janeiro, diversos pesquisadores já se debruçavam sobre o tema da favela. As principais tentativas de ruptura com o discurso hegemônico de remoção, a partir da década de 1960, contaram com apoio dos cientistas sociais e suas investigações sobre a favela, estabelecendo uma relação de compreensão e legitimação do espaço social da favela até os dias de hoje. A concepção humanista trazida por Lebret também teve forte influência na formação de urbanistas progressistas, influenciados pelo campo de estudos das ciências sociais dedicado aos estudos da favela. As teses desenvolvidas

por

pesquisadores

naquela

época,

até

então

construídas

majoritariamente para atender às necessidades da ordem industrial que se estabeleceu na primeira metade do século XX, foram fundamentais para a mudança 60

Os alunos eram em sua maioria representantes da elite intelectual e empresarial paulistana.



117

de representação da questão urbana da favela (SANTOS, 1979; BLANK, 1979; VALLADARES, 1979; PERLMAN, 1977). As faculdades de Arquitetura e Urbanismo, por sua vez, também mantiveram estreitos laços com a questão da intervenção na favela desde as primeiras intervenções de urbanização. O fato de os principais atores do primeiro experimento de urbanização de favelas serem ligados à academia é um indicador importante da relevância desse agente no campo. Se por um lado as ciências sociais se debruçaram sobre a favela para compreender suas características e dinâmicas, as faculdades de arquitetura foram importantes no reconhecimento da favela como espaço urbano possível, pensando soluções urbanísticas para resolver os problemas de infraestrutura causados por um espaço construído em territórios desprovidos de infraestrutura urbana para receber as habitações que foram construídas no território ao longo do tempo. Foi entre estudantes de Arquitetura que se materializou a idéia de que era possível valorizar o esforço inicial feito pelos habitantes das favelas e buscar soluções que permitissem a permanência deles no território, contrapondo-se à idéia da remoção, e esse diálogo se manteve em menor ou maior grau ao longo do tempo. Em uma das principais escolas de Arquitetura e Urbanismo do Estado do Rio de Janeiro, a Universidade Federal Fluminense, desde a década de 1970 há uma disciplina obrigatória de urbanização de assentamentos populares. Outras faculdades de Arquitetura e Urbanismo promoveram cursos eletivos focados no pensamento sobre a intervenção urbana na favela a partir da década de 1990, abrindo espaços para a formação de novos profissionais interessados no tema e incentivando a aproximação de jovens arquitetos com esses territórios. Outra estratégia importante de legitimação da urbanização de favelas como intervenção possivel tem sido a participação de pesquisadores em eventos, tanto nacionais quanto internacionais, onde as experiências são apresentadas e debatidas. Esse tipo de ação acontece desde a década de 1970 tanto no campo da Arquitetura e Urbanismo quanto nas ciências sociais. O conhecimento produzido na academia contribuiu tanto na formulação dos principais programas de urbanização de favelas a partir da década de 1990, como para sua legitimação frente à opinião pública. Pesquisadores são frequentemente acionados por meios de comunicação para falar ou escrever sobre a questão da favela, e também sobre os programas de intervenção.



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É importante destacar que profissionais com destaque no campo da urbanização de favelas com frequência recorrem à academia. Em um movimento quase pendular, profissionais por vezes atuam como pesquisadores na academia, noutras como agentes das intervenções, seja no setor público, aliados a escritórios de arquitetura, organizações profissionais, ou organizações não governamentais que prestam serviços ao Estado. Pode-se dizer que hoje existe um acúmulo de conhecimento importante na academia sobre a intervenção urbana na favela, e esse conhecimento tem sido utilizado tanto na formulação, como no planejamento e legitimação das intervenções. Vale mencionar, no entanto, que a academia, como qualquer outro campo político, está permanentemente em disputa. De maneira geral, apesar de não existir uma posição unânime sobre as formas de intervir, a academia tem sido ator importante na legitimação da permanência da favela e da institucionalização de políticas de urbanização de favelas como alternativa viável para garantir os direitos de seus habitantes, bem como de estratégia de integração da cidade. Se por um lado Bourdieu sugere que a forma que assume a demanda social de conhecimento do mundo social, sobretudo em virtude da filosofia dominante nas burocracias de Estado, é submissa às problemáticas estatais, pode-se dizer que no caso brasileiro, durante o período investigado, existe um grau de autonomia significativo do sistema de ensino e do campo cientifico em relação às forças econômicas e políticas dominantes, de forma que a academia acaba tendo um potencial importante, tanto provendo subsídios para a disputa de ideias no campo do poder, quanto contribuindo para mudar as regras do jogo por dentro, em uma perspectiva de possiblidade de mudança de longo prazo da forma de perceber os problemas sociais. No período investigado, pode-se afirmar que nos momentos em que o processo caminhava na direção da institucionalização das políticas de urbanização de favelas, fosse através do Favela Bairro, fosse através do Morar Carioca, a academia foi acionada para legitimar as estratégias dos governos. Logicamente há uma diversidade significativa de visões dentro da academia, mesmo dentro dos campos das ciências sociais ou da arquitetura e urbanismo com relação a como intervir. No entanto, de maneira geral, tanto as ciências sociais quanto a Arquitetura-Urbanismo e o planejamento urbano (na academia) têm sido aliados da permanência da favela no espaço urbano, e consequentemente discutindo formas possíveis de intervenção. Em muitas ocasiões cientistas sociais e arquitetos-



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urbanistas da academia uniram-se para buscar soluções para a favela que permitissem a permanência dos favelados no território. Essa relação estabeleceu-se inicialmente ainda na década de 1960, e permanece até os dias de hoje. Por outro lado, os momentos em que as políticas de urbanização perdem força coincidem com momentos em que de setores da academia que defendem a permanência da favela se afastam (ou são afastados) dos espaços de gestão e formulação de políticas.61 7.2 Arquitetos urbanistas: Detentores de capital cultural, entre academia, mercado e governo. Os arquitetos urbanistas, são profissionais liberais, nesse caso atuando majoritariamente através de escritórios privados de arquitetura, que atuam – ou atuaram em muitos momentos – como responsáveis pelos projetos de intervenção urbana nos programas de urbanização de favelas ao longo do período. Eles possuem relações mais ou menos estreitas com academia e governo em diferentes momentos e tiveram um papel determinante na formulação do que chamamos de urbanização integrada de favelas desde suas primeiras manifestações ainda na década de 1960, e também estiveram no cerne da formulação da política a partir da década de 1990, sendo fundamental para a legitimação das ideias da urbanização de favelas. Os arquitetos no Brasil sofreram forte influência do modernismo, bem como da militância de esquerda a partir das décadas de 1950 e 1960. Muitos dos arquitetos projetistas que participaram da formulação do Favela Bairro fizeram parte da militância de esquerda partidária antes, durante e/ou depois do regime militar. Esses profissionais estão também na origem do movimento de reforma urbana. Os arquitetos-urbanistas possuem uma associação de classe muito atuante, e politicamente influente, no Rio de Janeiro, o IAB, mobilizador da opinião pública, com presença forte nos meios de comunicação de massa. 61

O momento em que as entrevistas para essa investigação tiveram início coincidiram com um momento de enfraquecimento da urbanização na administração pública, e, curiosamente, foi-me informado na SMH que existia uma ordem do Secretário na época (2013), de que os funcionários da Secretaria estavam proibidos de conceder entrevistas, inclusive para pesquisadores ou estudantes universitários, ordem que muitos deles descumpriram ao me receber.



120

No escopo desta investigação foram entrevistados dezesseis profissionais com graduação em Arquitetura e Urbanismo, do quais sete62 participaram, ou lideraram, equipes formuladoras junto aos escritórios de Arquitetura e Urbanismo, de intervenções integradas em favelas a partir do Favela Bairro. Se somarmos os projetos de urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro realizados pelos arquitetos-urbanistas entrevistados aqui, chegamos a mais de cincoenta projetos63 de intervenção entre 1994 e 2013. O concurso de idéias promovido pela parceria entre IAB e Prefeitura em 1992 teve um papel importante na ampliação de um campo de atuação que para muitos dos arquitetos não era percebido como possível, a favela. Se por um lado o concurso foi importante para alavancar simbolicamente as intervenções, com grande destaque nos meios de comunicação, ele também teve um papel de formação, na medida em que escritórios de Arquitetura se aproximaram da burocracia estatal buscando soluções para aqueles territórios. Os arquitetos projetistas de maneira geral são uma classe organizada em torno do IAB, associação de classe atuante que tem por tradição a realização de grupos de estudo em torno de temas relacionados a Arquitetura e Urbanismo, pensando o desenvolvimento da cidade de maneira permanente. Os arquitetos que atuam no campo da urbanização de favelas costumam ter bastante proximidade com a academia. Alguns dos arquitetos que mais se destacam tendo participado de dezenas de projetos de urbanização de favelas a partir da década de 1990 possuem mestrado. Alguns possuem doutorado e atuam como professores em universidades. Alguns parecem alternar atuação em ambos os campos com mais ou menos presença em um ou outro espaço ao longo do tempo. Os arquitetos projetistas da urbanização de favelas consideram-se em grande parte influenciados pela experiência de Carlos Nelson junto à CODESCO64. Todos os arquitetos entrevistados mencionaram nominalmente Carlos Nelson. Quase todos afirmaram ter sido influenciados em alguma medida pela experiência deste. Dois tiveram contato com a experiência de urbanização de favelas pela primeira vez através de exposições de Carlos Nelson fora do país. 62

Os demais se encontravam essencialmente na academia ou na burocracia pública.

63

Projetos podem incluir grupamentos de favelas, ou seja, mais de uma favela por projeto.

64

Descrita em detalhe em um dos anexos deste trabalho.



121

Sérgio Magalhães, que teve importante papel de liderança no campo da urbanização de favelas a partir da década de 1990, defende que houve uma inflexão doutrinária na compreensão de planejamento urbano que teria se manifestado na formulação do Favela Bairro. Segundo ele, essa inflexão trata-se de uma inflexão do moderno para o pós-moderno e teria se dado na doutrina urbanística a partir dos anos 1970 no plano das ideias, para manifestar-se na prática a partir dos anos 1990. Magalhães defende que passamos de uma concepção na qual prevalecia a idéia de que planejamento urbano era a condição para se ter uma cidade adequada, para uma visão onde deve-se considerar as alternativas construídas e pensar formas de melhorá-las, na qual a urbanização de favelas, no campo da Arquitetura e Urbanismo, se apóia. Apesar de os arquitetos projetistas terem sido importante força de formulação e legitimação das politicas de urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro, existem diferenças de posição, práticas e ideológicas, dentro da classe. Enquanto alguns são orientados por uma ideologia vinculada a partidos de esquerda, defendem maior participação popular na formulação das intervenções, outros têm uma postura mais pragmática, orientada pela execução de seus projetos a partir de uma visão de intervenção onde conhecimento erudito sobrepõe-se ao conhecimento popular. Isso se reflete de maneira importante nas concepções do papel do morador nos projetos de urbanização, seja no plano das ideias, seja na ação. Este último grupo tende a desconstruir o papel do movimento social nas intervenções, e acredita em uma relação direta entre Estado, arquitetos e a população não organizada coletivamente, o que pode ter influenciado um certo enfraquecimento dos movimentos sociais na disputa das intervenções urbanas na favela durante o período investigado, questão que será discutida em maior profundidade ao final da segunda parte deste trabalho. Sergio Magalhães, importante liderança pró urbanização de favelas no período investigado, tende a identificar-se com estes últimos. Se por um lado muitos arquitetos foram responsáveis por desenvolver projetos baseados na vivência diária da população, alguns dos quais instalando escritórios temporários dentro das favelas durante a elaboração dos projetos, desenhando intervenções apoiadas nos anseios da população, a maioria foi gradativamente abrindo mão deste tipo de ação, realizando intervenções baseadas em experiências anteriores. Ao longo das entrevistas era comum ouvir queixas, às



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vezes partindo da burocracia, às vezes partindo de membros da academia (inclusive arquitetos-urbanistas), quanto a uma arrogancia da classe dos arquitetos com relação ao tratamento dos menos favorecidos economicamente, portadores de baixo volume de capitais econômico e social. Por outro lado, muitos arquitetos queixam-se da burocracia e dos políticos, sugerindo que raramente têm liberdade para realizar seus projetos dispondo de tempo e recursos que considerem adequados. Nesse sentido, é importante ressaltar que a relação dos arquitetos com as comunidades, do início dos projetos na década de 1990 até hoje, foi sendo crescentemente mediada pelo próprio Poder Público. Se no início havia mais espaço e tempo para a ação dos arquitetos na concepção e desenvolvimento dos projetos, permitindo maior interação destes e suas equipes com a população na favela, essa relação parece ser progressivamente pressionada pelos tempos e demandas do Estado. Em mais de uma ocasião ao longo das entrevistas, arquitetos queixaram-se da relação com o Estado nos projetos de urbanização de favelas, dizendo-se pressionados entre o “cliente” favela e o “contratante” governo. Em alguns casos, onde conflitos entre as demandas dos favelados e do governo saíram da esfera da negociação dentro do projeto para o debate público, o IAB (por vezes com mais agilidade, por vezes com menos) veio a posicionar-se em favor das demandas do local em detrimento de imposições do Estado. No entanto, isso nem sempre ocorreu. Os arquitetos-urbanistas atuantes na urbanização de favelas tendem a manter laços com a academia durante o período investigado. Muitos deles, entrevistados aqui, mantiveram uma prática de diálogo contínuo com a academia, não só na Arquitetura e Urbanismo, mas frequentemente com as ciências sociais também. 7.3 Os setores imobiliário e da construção civil: os detentores do capital econômico O setor vai aonde ele pode. Eles são industriais, eles são fazedores de coisas. Eles dão IPTU, emprego, recurso de material de construção e moradia. O Especulador é o cara que fica segurando terra. O lucro de uma construtora é de 15-20%. Isso pra eles é um ótimo negócio. Eu assisto às reuniões, só tem figurão, a maior parte das construtoras hoje tem ações na bolsa, eles têm responsabilidade… Isso é no Brasil inteiro. Eles são muito organizados, têm sindicatos, têm a ADEMI, têm o SECOVI, cada Estado tem suas coisas. Junta tudo isso, eles têm a CBIC, e eles têm uma força muito grande junto ao Presidente da República. O financiamento caiu de dez pra trinta anos. E isso deu casa pra todo



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mundo. Eles conseguiram com o Lula, por incrível que pareça, e isso 65 alavancou (o setor).

Bourdieu afirma que poucos mercados serão, tanto quanto o da habitação, não apenas controlados mas de fato construídos pelo Estado, muito especialmente através da ajuda concedida aos particulares, que varia no seu volume e modalidades de atribuição, favorecendo mais ou menos uma ou outra categoria social e, dessa forma, este ou aquele segmento de construtores (2006, p. 125). Segundo Bourdieu, a relação de forças entre as grandes empresas industriais e as pequenas ou médias empresas que coexistem no mercado de habitação dependem da política de habitação e das regras que regem a ajuda pública à construção e a concessão de créditos. As políticas públicas na área do planejamento e da habitação terão impacto direto nos setores imobiliário e da construção civil, e portanto serão alvo de disputa constante por esses setores. O mercado imobiliário teve historicamente papel central no desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro, como mostram pesquisadores como Abreu (1995) e Friedman (1999), onde a acumulação de capital se deu através da apropriação privada de terras públicas desde o Brasil Colônia. Os detentores do capital econômico, no caso estudado as construtoras e incorporadoras imobiliárias, adotam diferentes estratégias para garantir sua posição e reprodução no espaço social. A busca de valorização do solo através de mudanças de parâmetros urbanísticos e construção de infraestruturas, são parte das estratégias utilizadas pelas empresas de construção civil para ampliar suas margens de lucro. Os empresários, nesse sentido, têm adotado uma forma de ação essencialmente pragmática para garantir seus interesses ao longo do tempo, apoiando diferentes governos e regimes políticos, adaptando-se ao alto grau de instabilidade política típico do país, como mostra, mais recentemente, o trabalho de Fix (2011). Segundo Melo (1988), os conflitos que marcaram a ascensão e posterior enfraquecimento do BNH, nas décadas de 1960 e 1970, foram permeados por articulações dos interesses dos setores imobiliário e da indústria da construção no processo decisório, que então teriam sido estabelecidas a partir de uma rede de articulações informais cuja matriz de socialização era o IPES. O pesquisador chama 65

Arquiteto, ex-servidor do Estado, consultor da ADEMI para assuntos de legislação urbanísticas.



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atenção para o fato de que uma das formas de intermediação de interesses do capital privado, no caso do BNH, se dava através da nomeação ad hoc de representantes no Conselho de Administração, e aponta para a circulação de diretores financeiros do BNH em instituições privadas de credito imobiliário, sugerindo que a insatisfação entre populistas, conservadores e capitalistas teriam sido responsáveis pela ruptura da coalizão na qual esses setores apoiavam o regime militar, provocando um processo de desestabilização da administração do BNH. Naquele momento, não sendo atendidos de maneira a avançar em sua estratégia de acumulação, a indústria imobiliária teria iniciado uma política de franca oposição ao regime, liderada pela ADEMI (que substituíra o Sindicato da Indústria da Construção da Guanabara enquanto principal mecanismo aglutinador do setor) a partir de 1975, (MELO, 1988, p. 82)66. Sobre a atuação do mercado imobiliário e do setor da construção civil nas discussões para aprovação do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro de 1992, Fernando Cavallieri, funcionário da Prefeitura que participou ativamente do processo de elaboração do plano, relata: Foi um momento muito rico, com muitos embates com as associações como ADEMI, SINDUSCON. Logo veio o Prefeito Cesar Maia que disse que era contra o solo criado e o imposto progressivo, e ele entrou e retirou os projetos que estavam já para regulamentação da Câmara. Ele diz que era porque precisava amadurecer, mas eu acho que eram questões políticas e compromissos de campanha. Existia um lobby grande do mercado imobiliário, a ADEMI, a FRENTE, tinha uma outra das pequenas instituições, mas principalmente a ADEMI. E também havia lobbies na área de transporte (...) Eu era chamado o lobbista do executivo, mas fazia um trabalho legal, conversava com todos os vereadores independente de partido e tal. Havia uma conjuntura positiva. Os instrumentos não ameaçavam muito o setor privado, mas ficou claro pra mim que era uma ameaça ideológica, mexia na questão da propriedade privada. Nessas negociações que tivemos com eles estávamos abertos a ceder aqui a ali, mas não a abrir mão dos princípios. Nem eles. Eles não queriam nada, nenhuma ingerência. A gente queria alguma. A gente estava disposto à negociar. Quando você estabelece ônus para a construção em um lugar, 67 você incentiva em outros. Mas não deu.

A partir do início do Favela Bairro a entrada de empreiteiras nas favelas passou a acontecer de modo mais sistemático. Inicialmente, eram as pequenas e médias empreiteiras que atuavam no setor, sendo as grandes incorporadoras 66

MELO, Marcus André. Classe, burocracia e intermediação de interesses na formação da política de habitação. Espaço e Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos, Vol 8, n. 24, 1988. Pp. 7585.

67

Entrevista à autora no escopo do presente trabalho.



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destinadas às grandes obras de infraestrutura financiadas pelo Estado. Segundo informações coletadas ao longo desta investigação, as chamadas pequenas empreiteiras que participaram inicialmente das obras do Favela Bairro aos poucos foram distanciando-se (algumas teriam quebrado) devido à alta complexidade das obras aliada à relação delicada com o Poder Público, que não raro atrasa pagamentos por longos períodos. As grandes incorporadoras ficaram em grande medida fora das obras na favela até a década de 2000, com o surgimento das obras de urbanização de grandes complexos de favela financiadas pelo Governo Federal no escopo do PAC. A alta complexidade das obras, com um percentual alto de risco (e provável baixo rendimento), teriam afastado essas construtoras de atuarem nesse contexto. Assim, às médias construtoras teria cabido a urbanização de favelas na maior parte dos casos. Indiretamente, o setor influencia o campo permanentemente, já que todo o arcabouço legal, normativo e institucional do campo da habitação, inclusive da habitação popular, está sob disputa permanente pelos setores da construção civil e imobiliário, tornando-se agentes e buscando influenciar o processo onde decisões são tomadas. No caso brasileiro, as empresas empreiteiras de obras públicas, bem como o setor imobiliário, têm tido espaços privilegiados junto a governos, influenciando decisões que vão impactar na produção da cidade. Segundo a investigação realizada por Mariana Fix (2012), sobre o setor na última década, a via escolhida pelas elites governamentais privilegiou cursos de ação mediante a centralização do processo decisório no Poder Executivo, e a ausência de políticas industriais, a eliminação dos espaços de negociação dentro da burocracia estatal e a inobservância das regras constitucionais teriam agravado ainda mais a insuficiência dos mecanismos de transparência no setor imobiliário. No que se refere ao setor privado, Fix sugere: A eliminação das arenas corporativas de negociação, sem a criação de um padrão alternativo de articulação com a burocracia estatal, teria induzido a classe empresarial a um estilo particularista e defensivo de atuação nas suas relações com o Poder Executivo. Assim, um círculo restrito teria condições de aceder e participar das redes de conexões nas altas esferas governamentais. (FIX, 201, p. 253)

Fix também sugere que, no contexto brasileiro, observa-se atualmente um relativo deslocamento da ação dos interesses organizados do Poder Executivo para o Legislativo, mediante a difusão da prática do lobby, que já vinha ganhando



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relevância desde o período de elaboração da Constituição de 1988, e se fortalece ao longo das décadas de 1990 e 2000, notadamente no setor imobiliário. Apesar de haver no Brasil, desde 1938, um dispositivo legal proibindo os cartéis, em muitos períodos históricos o próprio governo incentivou a comunhão dos agentes econômicos e sua atuação coordenada. Vale destacar, ainda, que o setor da construção civil é responsável por uma parcela significativa dos financiamentos de campanhas eleitorais, o que se assume aqui, torna-se uma importante ferramenta de conversibilidade de seu capital econômico em influência privilegiada nos canais de interlocução com os governos. A pesquisadora Raquel Rolnik sugere: São interesses econômicos mais ligados ao setor imobiliário e ao setor das empreiteiras de obras públicas, concessionárias de serviç̧o público (que) mandam nas cidades, nas câmaras municipais, e portanto nós não conseguimos romper essa lógica da hegemonia desse setor nas cidades. Houve uma tentativa de enfrentamento disso inclusive que passa pela democratização da gestão. (...) Estamos falando de terra, numa cultura patrimonialista, então é muito dificil romper a hegemonia patrimonialista na gestão das cidades. (ROLNIK apud BARBOSA, 2013, p. 30)

Nesse cenário, as associações de dirigentes compartilham seus fóruns de decisão, e as grandes incorporadoras com frequência atuam em consórcios que são responsáveis por grandes obras em todo o território nacional. O presidente do Sindicado dos Construtores (SINDUSCON) no Rio de Janeiro e vice-presidente da ADEMI-RJ e da CBIC no âmbito nacional descreve um pouco desse processo com o Executivo68: Tivemos uma grande crise no setor da construção civil, no segundo governo do ‘nosso amigo’ Fernando Henrique, porque o Ministro da Fazenda achava que o setor da construção civil causava desequilíbrio, um erro crasso. O País não cresce se a construção civil não sai na frente. Os financiamentos foram restritos e o setor teve a maior crise. Então propusemos aos candidatos, Serra e Lula, que o setor precisava ter um interlocutor qualificado na esfera do Governo Federal, pois quando acabou o BNH, a Caixa ficou como agente financeiro, mas não era um interlocutor qualificado, um ministério. E (queríamos) que fossem criados os instrumentos de segurança jurídica para os agentes financeiros, construtores e compradores (alienação fiduciária).

E segue: Tivemos oportunidade de estar algumas vezes com a então Ministra Dilma, tivemos oportunidade de mostrar os avanços que tínhamos sugerido e conseguido. Porque todas as entidades patronais aqui são filiadas à FIRJAN – eu sou vice-presidente da FIRJAN – aí montamos um conselho empresarial da construção civil, que reúne não só os sindicatos da capital e do interior, mas também os fabricantes de material de construção. E tivemos uma atuação muito boa. Aí organizamos uma missão empresarial ao México, soubemos que eles estavam construindo 700-800 mil unidades habitacionais de interesse social por ano, aí fomos lá ver, até levamos o

68

Em entrevista concedida à autora em Outubro de 2013 no escopo desta investigação.



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Vice-Governador e Secretário Pezão, ainda no mandato anterior, final do governo Lula, 2006. E trouxemos uma série de coisas. Não fomos ver questão de projeto e mão de obra, fomos ver os instrumentos econômicofinanceiros. De fato tinha subsídio explícito para as famílias de baixa renda, seguro de término de obra, garantia social nos grupamentos. Aí trouxemos as ideias aqui pro Rio, incorporamos ao projeto de habitação de interesse social que já tínhamos aqui, que previa a construção de moradias nos vazios urbanos infraestruturados, especialmente ao longo da Avenida Brasil. Esse projeto já existia, mas queríamos que fosse mais intenso. Então encontramos com a Ministra Dilma, e falamos que precisávamos de subsídio explícito, igual tinha no México, para as famílias de baixa renda. Aí logo mais nasce o programa MCMV, das nossas propostas. Não quero dizer que criamos, mas nós demos sugestões, e o governo aceitou as sugestões, e houve vontade política. E o programa está indo muito bem. inclusive parece que vai ser o mote da campanha de reeleição dela. Ela teve aqui com a gente, eu também estive lá com ela algumas vezes.

Segundo o historiador Pedro Campos, professor da Universidade Federal Rural de Rio de Janeiro, a prática de cartelização no Brasil vem de longa data e é típica de períodos com grandes investimentos públicos. Em sua tese de doutorado, ele aponta como a divisão de obras era explícita mesmo às vésperas da redemocratização do país, tendo nos sindicatos e associações empresariais os principais intermediários: Eles combinavam inclusive possíveis brigas e recursos. Dividiam obras para garantir sempre um maior taxa de rentabilidade. Entre as empreiteiras isso é notório. (...) A prática ocorria principalmente por meio dos sindicatos 69 patronais e associações de empreiteiras.

No caso do Rio de Janeiro, a estratégia de desenvolvimento da cidade baseada na venda de seus ativos, materiais e imateriais, como forma de avalancar os negócios urbanos desde o início da década de 1990, parece ter fortalecido o setor da construção civil, com destaque para o período que tem início em 2007, com o lançamento dos Programas PAC e MCMV. Nesse sentido, Oliveira (2012) chama atenção também para o elemento da realização dos megaeventos esportivos, que, segundo a autora, teriam sido “convertidos em objeto de cobiça entre os promotores imobiliários, que com frequência têm atuado de maneira bastante agressiva na defesa da remoção de vizinhanças indesejáveis como estratégia para ampliar a valorização imobiliária” (OLIVEIRA, 2012, p. 179). Segundo Oliveira: A realização de obras para grandes eventos, estrategicamente projetadas para os locais onde estão instaladas essas comunidades, vem facilitar enormemente essa tarefa. O discurso de urgência do cronograma e da

69

Em 1984 o Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada (SINICON) estampou no primeiro número de seu informe impresso a seguinte manchete: “SINICON quer dividir obras rodoviárias”. A notícia relatava o lobby do sindicato no Ministério dos Transportes para conseguir uma “distribuição proporcional de obras do Programa de Recuperação de Estradas” entre seus membros.



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necessidade da obra para honrar compromissos internacionais se adequa perfeitamente para neutralizar as tentativas de resistência. No caso do Rio de Janeiro, a incômoda presença da pobreza nas áreas mais valorizadas da cidade, elemento estrutural da paisagem e, ao mesmo tempo, grande obstáculo à valorização esperada dentro dos padrões estabelecidos pelo mercado internacional, ganha, com os megaeventos esportivos, fortes argumentos pra ser eliminada (OLIVEIRA, 2012, p. 180).

Durante a preparação para a Copa, as associações de empreiteiras também buscaram influenciar decisões. Em 2007, a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB) organizou um seminário sobre a Copa em Brasília com a presença do Presidente Lula, doze ministros e representantes da Câmara dos Deputados, Senado e Poder Judiciário. O objetivo era chegar a uma “visão bastante sincronizada do que é preciso fazer e como fazer”, segundo Ralph Terra, vicepresidente executivo da Associação.70 A atuação dos setores imobiliário e da construção civil têm atuado ao longo do período agressivamente contra tentativas reais de redistribuição da terra urbana. O setor tem brigado por menos interferência do Estado na forma de regulação, por um lado, e pela interferência do Estado através de programas de financiamento e incentivo à construção. Ambos os setores atuam de maneira coordenada. Projetos de urbanização de favelas que caminhem na direção de garantir a permanência de populações originárias nos territórios, ou que se coloquem como barreira ao desenvolvimento de novos projetos de expansão imobiliária, estarão em oposição aos interesses desses setores. Nesse sentido, Bourdieu sugere que: Não seria irrealista esperar que as consequências das ações de uma pequena oligarquia exclusivamente voltada para seus interesses econômicos de curto prazo criem as condições para a emergência progressiva de forças políticas, também elas mundiais, capazes de impor pouco a pouco a criação de instâncias transnacionais que tenham como função controlar as forças econômicas dominantes e subordiná-las a objetivos realmente universais.” (BOURDIEU, 2006, p. 128)

Ao analisar o período compreendido entre 1994 e 2014 no que diz respeito à relação dos setores imobiliário e da construção civil com o desenvolvimento das políticas de urbanização de favelas, pode-se concluir que os setores: a) não têm interesse particular na realização de programas de urbanização de favelas, ambos pela complexidade técnica aliada a dificuldades de implementação, devido também à densidade ocupacional dos territórios no caso da construção civil, e pelo fato de tais programas poderem inviabilizar a exploração do território por novos 70

http://apublica.org/2014/06/um-jogo-para-poucos/



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empreendimentos, já que o mercado depende de circulação constante para garantir e geração permanente de altas taxas de lucro; e b) têm atuado permanentemente contra regulações que visem a ampliação do acesso à terra urbana a populações com menor poder aquisitivo, notadamente se essas regulações possam impactar que o território seja permanentemente objeto de espoliação por parte do mercado.

7.4 As agências internacionais de fomento: do financiamento à legitimação simbólica da urbanização de favelas As agências de fomento internacionais têm tido importante papel na disseminação de modelos de intervenção urbana e na construção de políticas de desenvolvimento de maneira mais ampla no período investigado aqui. No caso específico da urbanização de favelas, a participação de agências internacionais começou a se destacar ainda na década de 1980 com a parceria estratégica entre a SMDS e a UNICEF para realização e legitimação do Programa Mutirão. A partir da década de 1990, mais precisamente a partir de 1994, com a entrada do BID como parceiro e cofinanciador do Favela Bairro, essa participação é elevada a uma escala ainda maior, e parece ter sido um fator fundamental para garantir a escala que a urbanização de favelas ganhou com o Favela Bairro, mas também para legitimação do programa. O

Programa

Favela

Bairro

foi

amplamente

disseminado

pelo

BID

internacionalmente como modelo de intervenção bem sucedida, através da realização de encontros, palestras, e da promoção de intercâmbio entre profissionais do Brasil e de outros países para compartlhar conhecimentos. Os principais líderes durante a implementação do Programa foram premiados e homenageados em inúmeras ocasiões, com ampla cobertura dos meios de comunicação, reforçando de maneira importante a idéia da urbanização integrada de favelas dentro e fora do País. O relato de inúmeros entrevistados da burocracia da SMH sugerem que o BID teria estabelecido uma estreita relação com os técnicos da prefeitura, e em alguns momentos garantiu um certo insulamento do programa, atuando em colaboração com as equipes gestoras no desenvolvimento de regras e parâmetros que pudessem proteger os programas de mudanças súbitas no contexto político. Por outro lado, o BID está entre as agências internacionais que adotaram as práticas de



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participação social lideradas por ONGs, deslocando muitas vezes a centralidade de movimentos de organização política de base local dos debates em torno das intervenções, questão que voltaremos a tratar mais adiante neste trabalho. O trabalho de Silva Junior (2006) discute o papel que o BID teria no desenvolvimento e legitimação do Favela Bairro, de maneira mais específica, e sugere que a atuação do banco tenha sido importante na legitimação de modelos de intervenção que seguiam uma lógica neoliberal de intervenção do Estado. O argumento central de Silva Junior é que o fato de instituições de fomento como o Banco Mundial e o FMI terem sido centrais na disseminação de modelos de gestão neoliberal, louvando o enxugamento da máquina pública e a privatização de serviços públicos, fez com que essas instituições, no caso da urbanização de favelas, legitimassem simultaneamente discursos que se opunham na prática. Com menor importância financeira, outras agências internacionais firmaram parcerias com a Prefeitura no âmbito da urbanização de favelas, como por exemplo a União Européia. O suporte dessas agências foi com frequência utilizado como meio de legitimação dos programas, sempre amplamente divulgados nos meios de comunicação com auxílio da assessoria de comunicação da SMH. O BID continua a parceria iniciada em 1994 com a Prefeitura, agora financiando o PROAP III.



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8 OS MOVIMENTOS SOCIAIS Descrever o processo de formulação e legitimação das políticas de urbanização de favelas que se dá na cidade do Rio de Janeiro a partir da década de 1980 passa necessariamente por discutir a ação de movimentos sociais. Movimentos em diferentes escalas tiveram papel importante tanto na construção do ideário relacionado ao direito à moradia digna e às políticas nacionais que pudessem garantir tal direito, mas também na realização de experimentos nessa direção. Os movimentos sociais que se destacaram no Brasil a partir da década de 1980 com a redemocratização, incluindo aí os movimentos relacionados à reforma urbana, tiveram origem em articulações iniciadas ainda antes da ditadura militar, e foram duramente atingidos por esta entre 1964 e o início da década de 1980, quando puderam retornar à militância política, tendo papel fundamental nas articulações que resultaram na garantia de uma série de direitos sociais na Constituição de 1988. No plano local, a ação social relacionada diretamente à defesa da permanência da favela começou a organizar-se na década de 1940, com as primeiras remoções, através das comissões de moradores de favela, e cresceu e se organizou principalmente sob a influência da militância política de esquerda até a década de 1960, quando a ditadura militar interrompeu esse processo. Neste capítulo apresentamos os diferentes movimentos sociais que consideramos ter influenciado o objeto do estudo em dois níveis: no nível nacional, principalmente a partir da militância pela reforma urbana e pela instituição de marcos legais, normativos ou institucionais que abriram caminho para garantir a permanência da favela; e no nível local, os movimentos de resistência de moradores de favela, e como estes se articularam ao longo do tempo. Apesar de a inclusão das organizações não governamentais neste capítulo ter sido considerada, optamos por não fazer uma análise de tal ator de forma isolada pelo caráter reducionista que o termo empresta a uma multiplicidade de atores – um “grupo” nada homogêneo de movimentos, instituições, grupamentos e, às vezes, simplesmente prestadores de serviço do Estado, que atende pela denominação de “organização não governamental”. Consideramos que uma análise das organizações que atendem pela denominação de ONG, suas raízes e atuação no território carioca, especialmente na favela, durante o período estudado, é um desafio que não



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teríamos condições de enfrentar aqui de maneira satisfatória. Simultaneamente, acreditamos que apesar de organizações não governamentais, de diferentes naturezas, terem se relacionado em maior ou menor proximidade com os programas, acreditamos não serem esses atores determinantes na definição dos rumos da urbanização de favelas no período. 8.1 O movimento pela reforma urbana A plataforma da gestão urbana democrática já vinha sendo objeto de debates desde a década de 1950 no Brasil, coerente com o ideário das reformas de base. Nesse sentido, o Seminário Habitação e Reforma Urbana (SHRU), promovido principalmente pelo IAB em 1963, representou um marco na luta por maior justiça urbana e social. O SHRU 1963 agregou especialistas e militantes para discutir parâmetros que balizassem o crescimento das cidades, e ficou conhecido como Encontro do Quitandinha. Na realização do seminário, prevaleceu a abordagem técnica, por ter sido, provavelmente, norteado pelos princípios do modernismo, não contando com a participação direta de movimentos sociais populares organizados (SILVA, 2003). No entanto, as principais conclusões apresentadas no documento resultante do SHRU estão no centro das agendas dos principais movimentos sociais urbanos contemporâneos até os dias de hoje. Os debates progressistas com relação às alternativas possíveis de habitação popular na cidade, no entanto, foram interrompidos pelo Golpe Militar em 1964. Em outro seminário organizado pelo IAB, em 1965, a favela aparece como deformação, e insistindo em planos para o País, não para as favelas, houve uma espécie de retrocesso com relação aos debates que se deram a partir da década de 1950. O período compreendido entre 1978 e 1985 marcou a transição para um novo modo de fazer política e para novas práticas de pressão social, onde movimentos operários e aqueles que mobilizaram a população em torno do acesso à terra, à moradia e aos bens de consumo coletivos foram os de maior visibilidade e impacto político, ligados a comunidades eclesiais de base, pastorais, associações, além dos movimentos operários.71 71

A história operária nos anos de 1970 se entrelaçou com a trajetória dos movimentos populares, resultando na formação de um partido político de caráter popular com grande centralidade no



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Durante a redemocratização, na década de 1980, os movimentos de moradia voltaram a se organizar, articulando-se com outras organizações da sociedade (sindicatos, universidades e outras organizações da sociedade civil), ampliando a luta pela terra e pela moradia para a luta pelo direito à cidade, constituindo o Movimento Nacional da Reforma Urbana (MNRU), posteriormente Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), que se mantém organizado até os dias atuais. O MNRU, e posteriormente FNRU, tem sido um ator central na defesa do direito à moradia digna no Brasil, com papel importante na disseminação dos ideais das reformas de base. No contexto da redemocratização do País na década de 1980, houve uma preocupação em articular as lutas populares urbanas com os movimentos sindicais, que acabou motivando a criação da ANAMPOS, em 1980, na tentativa de articular as forças sociais urbanas. No entanto, como descreve Ferreira: Divergências políticas apareceram no ano seguinte, tanto de caráter político partidário (ala pró-PT e ala pró PMDB e PCB), quanto com relação à unidade entre as lutas sindicais e a de bairro. Assim, em 1982 foi criada a Central Geral do Trabalhadores (CGT), pró PMDB, e em 1983 a Central Única dos Trabalhadores (CUT), pró-PT, separando os movimentos sindicais dos movimentos populares urbanos. (FERREIRA, 2014, p. 64)

Ainda no plano nacional, no contexto de um realinhamento político do início da década de 1980, em 1982 aconteceu o I Congresso de Fundação da Confederação Nacional das Associações de Moradores, visando à criação de uma entidade que agregasse todas as associações do Brasil. Segundo Maricato (1984), esse congresso está na raiz do Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU), que surgiu em 1985 no processo de discussão de uma plataforma de reforma urbana em preparação para a Assembleia Constituinte. A articulação dos movimentos de moradia culminou com a apresentação da Emenda Popular de Reforma Urbana, apresentada pelo FNRU durante o processo de elaboração da atual Constituição Federal. Esse movimento foi responsável em grande medida pela garantia da inserção do direito à moradia, bem como da função social da propriedade na Constituição. Em 1986, o FRNU define o conceito da reforma urbana como uma nova ética social, que condena a cidade como fonte de lucros para poucos em troca da pobreza de muitos. Assume-se, portanto, a crítica e a denúncia do quadro de desigualdade movimento sindical em 1980, o Partido dos Trabalhadores, que reuniu movimentos que apoiaram os partidos de oposição com propostas políticas contra o regime ditatorial.



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social, considerando a dualidade vivida em uma mesma cidade: a cidade dos ricos e a cidade dos pobres; a cidade legal e a cidade ilegal. O Fórum condena a exclusão da maior parte dos habitantes da cidade determinada pela lógica da segregação espacial; pela cidade mercadoria; pela mercantilização do solo urbano e da valorização imobiliária; pela apropriação privada dos investimentos públicos em moradia, em transportes públicos, em equipamentos urbanos e em serviços públicos em geral. O FNRU articulou o cenário de participação popular em todo o Brasil no processo da Constituinte de 1988, formado por um grupo heterogêneo, cujos participantes atuavam em diferentes e complementares temáticas do campo urbano.

Durante a década de 1990, os movimentos sociais ligados à reforma urbana militaram pela implementação do princípios instituídos na Constituição, atuaram muitas vezes em articulação com a academia e institutos de pesquisa, e também de organizações da sociedade civil que estiveram no centro das discussões sobre a reforma urbana na Constituinte, entre eles Federação Nacional dos Arquitetos, Federação Nacional dos Engenheiros, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Articulação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), Movimento dos Favelados, Associação dos Mutuários, Instituto dos Arquitetos, Federação das Associações dos Moradores do Rio de Janeiro (FAMERJ), pastorais, movimentos sociais de luta pela moradia. Esses grupos também organizaram-se no nível local para incidir na formulação dos primeiros planos diretores após a redemocratização, buscando garantir o estabelecimento de instrumentos que garantissem o direito à moradia digna, em disputas constantes com agentes representantes do mercado imobiliário e da construção civil após a aprovação da constituição, além de terem sido centrais na formulação e aprovação do Estatuto da Cidade em 2001. Com a eleição de Lula para Presidente em 2002, atores relevantes do movimento social da reforma urbana, muitos deles militantes que uniram-se ao PT a partir de sua criação, passaram a organizar-se para compor o novo governo, buscando influenciar a formulação de políticas urbanas e habitacionais. No mesmo período teve início o processo de conferências públicas das cidades nas três esferas de governo (municipal, estadual e federal). A 1ª Conferência das Cidades inaugurou a discussão participativa das políticas urbanas e resultou na criação do Conselho Nacional das Cidades, com representação dos diversos segmentos sociais. No âmbito da política urbana, foi criado ainda o Ministério das Cidades, reivindicação antiga do Movimento Nacional pela Reforma Urbana, e lideranças importantes do



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movimento social pela reforma urbana participaram da composição do novo Ministério, expandindo-se assim a atuação dos movimentos sociais urbanos nas esferas institucionais. No entanto, vale destacar aqui, os espaços institucionalizados de participação não se traduziram necessariamente em participação de fato. Apesar dos avanços em termos de formulação de políticas alcançado durante o primeiro governo Lula com o Ministério das Cidades e as propostas e políticas articuladas ali, esse processo foi mais uma vez interrompido. A crise política deflagrada pelo escândalo do mensalão, que provocou a saída de inúmeros quadros dos chamados autênticos do PT, partido que ocupava o Ministério, e uma reorganização interna da coalizão no governo, resultaram no enfraquecimento do Ministério das Cidades no que diz respeito às lutas sociais. Eventualmente o Ministro Olívio Dutra, quadro histórico do PT autêntico alinhado com as lutas de caráter social, foi substituído por Márcio Fortes, do PP, partido de estilo conservadorpragmático, que tem origem durante a ditadura militar, tendo apoiado este regime. Por outro lado, a crise econômica internacional deflagrada em 2007 determinou o segundo golpe na ação iniciada no Ministério das Cidades ainda sob o comando de Olívio Dutra, com a criação dos programas PAC e MCMV, que, como discutimos anteriormente, desconsideraram em grande medida o arcabouço institucional e normativo para o desenvolvimento urbano e a questão da habitação construídos a partir de 2003 pela aliança entre governo e membros dos movimentos sociais alinhados aos ideais da reforma urbana, evidenciando uma constante queda de braço entre os defensores do direito à moradia digna, normalmente articulados em torno de movimentos sociais progressistas de esquerda, e os defensores do sistema

capitalista

neoliberal

de

ocupação

e

exploração

do

território,

majoritariamente articulados em torno de forças conservadoras e contrárias à redistribuição de riquezas baseada em princípios de justiça social. 8.2 A organização dos moradores de favela no Rio de Janeiro Para poder contextualizar o papel dos movimentos sociais no processo de formulação e legitimação das politicas de urbanização de favelas no plano local, é preciso compreender um processo que tem início na formação das primeiras associações de favelados ainda na década de 1940, e na evolução desses grupos. As reformas que permearam toda a primeira metade do século XX na cidade do Rio



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de Janeiro foram acompanhadas da intensificação das remoções, e estão na origem dos primeiros movimentos de resistência e organização política dos favelados (SANTOS, 1979; VAZ, 2002; VALLADARES, 2005; ABREU, 2008). Burgos sugere que as experiências com os Parques Proletários tiveram como efeito não esperado um processo embrionário de organização dos moradores de favelas que preocupavam-se a partir daquele momento com a sua permanência nos territórios ocupados. Em 1945 surgiram as Comissões de Moradores do Pavão-Pavãozinho, Cantagalo e Babilônia como forma de oposição à ameaça de transferência para os Parques, iniciando uma ação no campo da política, sem no entanto ter força expressiva já que a Constituição de 1946 ainda restringia o voto aos analfabetos, muitos dos quais residentes em favelas (BURGOS, 1998, p. 29). O foco político sobre as favelas foi reforçado com os primeiros resultados das eleições à Câmara dos Vereadores de 1947. A vitória esmagadora do Partido Comunista (PC) demonstrava sua forte presença nas áreas populares e, sobretudo, nas favelas. Já era de conhecimento do governo e vinculado com insistência pelos jornais da cidade que células comunistas estavam “invadindo” as favelas. A precarizacão dos serviços públicos aí existentes e o estigma imposto a estes espaços e seus habitantes faziam das favelas um lugar propício para a propagação das idéias de revolução e do socialismo propagadas pelos comunistas então (GONÇALVES, 2012, p. 257). No entanto, tanto na periferia de São Paulo como nas favelas do Rio, a incorporação gradual da cidade ocorreu, sobretudo, através da articulação de suas associações locais com máquinas clientelísticas, criadas para canalizar a participação política desse novo eleitorado urbano (NUNES, 1992; BONDUKI, 1998). Tal situação teria sido favorecida com a interdição dos direitos políticos do Partido Comunista Brasileiro em 1947, que buscava difundir junto aos novos seres urbanos uma cultura política de esquerda, baseada na autonomia organizacional e na luta pelos direitos sociais (BONDUKI, 1998). Na falta dessa outra via política, o modelo clientelista transformou-se na principal alternativa disponível aos novos segmentos urbanos, criando as bases para uma máquina relativamente eficiente na gestão de demandas por equipamentos urbanos, que tem como contrapartida o que Burgos chama de “amesquinhamento da formação de uma cultura cívica mais democrática” nos territórios de favela (BURGOS, 2012, p. 375).



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De maneira geral, houve um importante aumento da discussão sobre a questão fundiária das favelas, e a consolidação, neste quadro, da favela como “invasão”. Esses intensos debates e ações implicaram, na segunda metade dos anos 1950, importantes ações que vieram somar às bases que atualmente definem a questão fundiária das favelas. Nesse período, a favela teve alta visibilidade ideológica e também física, integrada ao processo de expansão metropolitana da cidade, em grande parte produto da acelerada migração para a cidade do Rio e sua área metropolitana. A população da cidade entre 1950 e 1960 cresceu em 39% com uma taxa média anual de 3,3%. O censo de 1960 apontou 1.291.670 migrantes com menos de dez anos de residência na cidade, ou seja, 53% de toda a população migrante que se encontrava na área metropolitana naquele ano (ABREU, 1987; SILVA, M., 2012) Dados

que

mostram

a

expressividade

política

das

favelas

e

as

movimentações e resistências que eram publicadas nos principais jornais da época, aliadas à ação de Igreja Católica e de novos atores, contextualizam as discussões e propostas no legislativo local e nacional. No caso das ações e iniciativas institucionais, várias seriam importantes na estruturação de intervenções e representações sobre as favelas: no plano federal, a formação da subcomissão de favelas, ligada à Comissão Nacional de Bem Estar Social, com uma subcomissão de favelas com representantes da Fundação Casa Popular, do Ministério da Fazenda, do MEC, do Ministério da Agricultura, do Banco do Brasil, da Fundação Leão XIII, e do Ministério da Justiça e Negócios Exteriores, e a decretação da chamada Lei das Favelas (Lei nº 2875, de 19 de setembro de 1956), autorizando o Ministério da Justiça a locar fundos a organizações que trabalhassem com favelas no Rio de Janeiro, Recife, Vitória e São Paulo, e proibia o despejo de moradores de favelas por dois anos, que favoreceu, por exemplo, o deslanche dos programas da Cruzada São Sebastião. O período foi marcado pela dicotomia do campo político na capital federal: de um lado a União polarizando-se politicamente em torno de algumas lideranças, e de outro, o poder local, representando a cidade como uma fragmentação político partidária maior, definida a partir dos interesses e representações das bases locais dos vereadores, polarizando-se principalmente nas disputas entre o PTB e a UDN. O debate que envolvia soluções possíveis, planos e instituições já existentes, e a serem criadas, foi bastante radical, com a mobilização de diferentes atores (SILVA, M. L. P., 2012, p. 105).



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Nas eleições de 1960, Carlos Lacerda72 foi eleito o primeiro governador do Estado da Guanabara, com um total de 35,7% dos votos válidos. Enquanto candidato, demonstrava grande conhecimento sobre as condições das favelas do Estado e as razões da crescente favelização, mas manteve um discurso dúbio a respeito do assunto durante a campanha. Porém, depois de eleito, sem necessidade de retórica, já que detinha grande poder após uma vitória bastante satisfatória nas urnas, Lacerda passou a defender os interesses dos setores imobiliários que desejavam os terrenos da Zona Sul da cidade para incorporação de prédios de moradias para as classes média e média alta. E também defender os seus interesses particulares de apresentar sua gestão na cidade-estado da Guanabara como cartão de visitas para pleitear sua candidatura ao cargo de Presidente do País em 1964 (SANTOS, 2009). Durante o processo de remoção da favela do Pasmado, em 1963, vinte e oito associações surpreenderam os poderes públicos num processo de disputa pelo espaço urbano, quando resolveram se organizar em federação e empreender uma luta contra o remocionismo, criando a Federação das Associações de Moradores do Estado da Guanabara - FAFEG2. A FAFEG tinha como suas filiadas as Associações de Moradores, cujos presidentes formavam o Conselho de Representantes, órgão deliberativo da entidade. O órgão executivo era a Diretoria, eleita pelo Conselho e formada por lideranças, algumas das quais já militavam no movimento sindical. A remoção da favela do Pasmado, na Zona Sul da cidade, havia atraído a atenção da imprensa e dos políticos de oposição ao governador Carlos Lacerda, realizada de forma bastante truculenta (SANTOS, 2009) – apesar da resistência oferecida por moradores e do posicionamento da FAFEG em 1963 por ocasião do II Congresso de Favelados, que declarou que a solução desejada pelos favelados era de

72 Carlos Lacerda era filho de político e escritor, neto de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, sua família tinha muita influência política. Iniciou a faculdade de Direito, mas largou o curso. Foi jornalista, fundador do Jornal Tribuna da Imprensa. Apesar de ter militado no Partido Comunista, vinculou-se à UDN, foi um dos principais adversários de Getúlio Vargas na década de 1950, e uniu-se à direita da UDN e aos militares no golpe de 1964, mas em 1966 liderou uma frente contrária ao golpe devido à suspensão das eleições diretas para a Presidência da República ter colocado um ponto final em suas pretensões à Presidência.



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urbanização e não de remoção (declaração amplamente divulgada pela mídia na época). As remoções, no entanto, prosseguiram73 (Valladares, 1980, p. 112). Lacerda criou órgãos e encampou os já existentes, colocando todos aqueles que tratavam do assunto favela sob seu controle. Quando assumiu em 1960, Lacerda convidou José Arthur Rios74, que havia coordenado o recém publicado estudo sobre as favelas cariocas realizado pelo SAGMACS, para dirigir a SERFHA, estimulando a formação de associações de moradores de favelas onde não houvesse. Nesse período, cada associação foi pressionada a assinar um acordo com a SERFHA onde assumiam um caráter híbrido – que confundia sua identidade de representante dos moradores com a de interlocutor do Estado junto aos moradores. A moeda de troca da promessa de urbanização era o controle político das associações. Em 1962, Lacerda exonerou Rios e extinguiu a instituição, transferindo suas funções para dois órgãos: a Secretaria de Serviços Sociais, a cargo da Deputada Sandra Cavalcanti75, sua aliada política, e um novo órgão, subordinado à mesma Secretaria de Serviços Sociais, que era o Departamento de Recuperação de Favelas. A SERFHA vinha colocando em prática a organização de Associações de Moradores, incentivando a formação de lideranças capazes de assumirem tarefas e encargos delegados pela administração pública. Apesar do rígido controle exercido através das Associações de Moradores, a SERFHA era contra o remocionismo e a favor da permanência dos favelados nos lugares próximos de suas estratégias de sobrevivência. Além disso, a SERFHA trazia a marca do governo anterior, criada durante a gestão de Negrão de Lima76, em sua rápida passagem pela Prefeitura da 73

A remoção na Favela do Pasmado em 1964 foi realizada sob os olhares da polícia armada com metralhadoras, e a da Favela da Ilha das Dragas só pôde ser realizada após a prisão de membros da Associação de Moradores.

74

Nascido no Rio de Janeiro, formado em Direito e Ciências Sociais.

75

Sandra Cavalcanti era formada em letras, e começou a militar na política junto a Carlos Lacerda na UDN, foi vereadora, deputada e secretária do governo Lacerda, responsável pelo programa de remoção de favelas durante o seu governo, feito com excesso de violência. Ingressou no PFL na década de 1980 e foi Secretária de Projetos Especiais durante o primeiro governo de Cesar Maia. Francisco Negrão de Lima formou-se pela Faculdade de Direito de Belo Horizonte em 1924. Além da advocacia, exerceu também, durante a década de 1920, a profissão de jornalista na capital mineira. Entre 1925 e 1926 ocupou o cargo de oficial-de-gabinete do secretário de Justiça de Minas Gerais. Em 1930 apoiou a candidatura de Getúlio Vargas a Presidente da República. Em 1933 elegeu-se deputado federal por Minas Gerais na legenda do Partido Progressista (PP), agremiação alinhada aos governos federal e estadual. De 1951 a 1953, durante o segundo governo Vargas, ocupou o Ministério da Justiça. Muito ligado a Juscelino Kubitschek, foi por ele nomeado Prefeito do

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capital federal (SANTOS, 2009; BURGOS, 1998). Em 1962, a Fundação Leão XIII foi incorporada pelo Governo do Estado. A cúpula da Igreja Católica carioca, que representava os interesses de setores conservadores das camadas médias urbanas, silenciou-se e até colocou-se em colaboração com o Governo do Estado. Lacerda também foi responsável pela criação das Administrações Regionais, que implantava um novo modelo administrativo para a cidade-estado da Guanabara, orientadas no sentido de exercerem fiscalização e manter estreitas relações técnicas e administrativas com as Associações de Moradores das favelas localizadas nas áreas de sua abrangência. Isso depois de efetuar a reengenharia administrativa que aglutinava sob seu controle o conjunto de instituições estatais, semi-estatais como a COHAB, que lidavam diretamente com a questão da favela, além das Associações de Moradores (SANTOS, 2009; VALLADARES, 2005). O golpe militar de 1964 teve um enorme impacto na organização social das classes populares que vinha acontecendo de forma crescente na década anterior. Uma das transformações mais permanentes se referiram a mudanças nas relações de trabalho, pois o movimento sindical que dava apoio ao governo anterior, ficou marginalizado do poder77. A partir de 1965 houve um ataque em massa às favelas e o discurso predominante foi o da erradicação, ao mesmo tempo que crescia a resistência às remoções e aumentava a organização entre os favelados, ainda que enfrentando dificuldades devido às pressões do regime militar. Blank (1980, p. 94) sugere que os principais argumentos retóricos utilizados pelo governo para justificar as remoções eram o desenvolvimento imobiliário e a poluição no período. Por um lado as favelas passaram a ser impencílios a expansão da cidade, e muitas vezes a ser alvo da especulação imobiliária que precisava expandir suas áreas. Por outro lado discutia-se já a questão ambiental, principalmente ligada às favelas que ocupavam a Baía de Guanabara e poluíam suas águas, utilizando o argumento da Distrito Federal em março de 1956, permanecendo no cargo até julho de 1958. Em 1965, já sob o regime militar, elegeu-se Governador do Estado da Guanabara pelo PSD. Sua eleição representou uma séria derrota para o regime, identificado com outras candidaturas. Como resposta, os militares editaram o Ato Institucional nº 2 (AI-2) que, entre outros pontos, dissolvia os partidos políticos até então existentes e estabelecia a eleição indireta para a Presidência da República. Seu governo à frente do Estado da Guanabara terminou em março de 1971. 77 A nova nova política salarial, que substituiu a estabilidade no emprego pelo FGTS, com o objetivo de conter surtos inflacionarios, fez com que os salarios da população menos qualificada caissem entre 1965 e 1968 e de 1972 em diante. A instituição do FGTS contribuiu, ainda, para que ocorresse maior subordinação dos operarios às empresas e para que fosse reduzido o seu poder de barganha, quanto aos seus direitos e aspirações.



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impossibilidade de intervenção nessas áreas para o ligamento dos esgotos como argumento adicional para remoção. A FAFEG, que se apresentara como empecilho para sua política de remoções de Lacerda, foi perseguida os dois últimos anos de seu governo. No entanto, ao tentar eleger Flexa Ribeiro como seu sucessor, Lacerda sofreu estrondosa derrota, principalmente dos setores populares e favelados que pregaram, sob orientação da FAFEG, o voto anti-Lacerda, votando em Negrão de Lima, então do PTB. O voto dos favelados foi fundamental para o resultado eleitoral e pôde ser visto como uma indicação da relevância política dessa parcela da população (SANTOS, 2009, p. 111). Em 1965, Negrão de Lima assumiu o governo da Guanabara, e a administração não deu continuidade à implementação do plano. Os técnicos da CEDUG que permaneceram trabalhando no Estado começaram um projeto de transformação de legislação vigente no Rio de Janeiro, por meio da lei de desenvolvimento urbano de 1967 (SILVA, M.L.P., 2012, p. 115). Em meio às disputas políticas do período, o governo estadual sob a liderança de Negrão de Lima, que tinha recebido amplo apoio das camadas populares em sua eleição, criou uma instituição para tratar da questão favela no Estado da Guanabara, a CODESCO, que acabou sofrendo intervenção do governo de Chagas Freitas e perdendo representatividade até ser extinta no final da década. As instituições responsáveis pela implementação do programa de remoções a partir da década de 1960 na cidade do Rio de Janeiro foram a COHAB-GB, que operou entre 1962 e 1975, e a CHISAM, que operou entre 1968 e 1973. A CHISAM78 era subordinada ao Ministério do Interior, assim como o BNH, enquanto a COHAB-GB era subordinada ao Governo do Estado da Guanabara, bem como a Fundação Leão XIII e a Secretaria de Serviços Sociais, que deveriam liderar o processo de remoção, enquanto à COHAB coube construir e comercializar. O pesquisador Marcelo Burgos (1998) defende a tese de que a criação do órgão federal CHISAM e todas as suas 78

A CHISAM representou uma intervenção do Governo Federal sobre o Governo Estadual, que não conseguia concretizar o programa de remoção que a COHAB-GB deveria realizar, canalizando recursos e mobilizando forças políticas junto ao BNH. Essa configuração no entanto se mostrou pouco efetiva, ao longo do processo revelou sérios desentendimentos entre as instituições envolvidas. A CHISAM propunha-se a remover 92 mil favelados por ano a partir de junho de 1971, contando em alcançar sua meta de remover todos os favelados da cidade até 1976. Entre 1968 e 1974, segundo o balanço do programa de remoções foi de 139.218 pessoas (26.193 barracos) de 80 favelas para conjuntos habitacionais (Valladares, 1980, p. 39).



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ações visavam também o desmantelamento da organização política dos favelados. Como comprovação dessa tese, apresenta o fato de que, em 1975, quando esta missão já podia ser dada como cumprida, começou a ocorrer o refluxo ou esvaziamento do programa de remoções. Mesmo após o golpe de 1964, que procurou silenciar e impedir a organização dos setores populares, as lideranças da FAFEG permaneceram na organização das discussões políticas e na orientação de conscientizar o conjunto de favelados da cidade de que as suas dificuldades iam além das questões relativas às remoções e urbanização das favelas. Naquele momento, a influência recebida do Partido Comunista Brasileiro fazia-se notar principalmente com a qualidade das propostas apresentadas no I Congresso da FAFEG. Num contexto de muita ambigüidade das políticas, intensificou-se a polarização entre as propostas de permanência e de erradicação das favelas, incluindo tensões da conjuntura política geral, do enfraquecimento dos movimentos sociais que defendiam a tese da reforma urbana e permanência das favelas, e os movimentos sociais de favela foram perdendo força gradativamente ao longo das décadas de 1960 e 1970. Com a instituição do Ato Institucional nº 5 em 1968 e o consequente enfraquecimento dos movimentos eleitorais, o jogo político enfraquecera o lado dos favelados, e a favela passou gradualmente a ser permeada por funcionários dos diversos órgãos da administração estadual. Em 1968 o Decreto E3330 revogou o Decreto 870, estabelecendo

finalidade

especifica

das

associações

de

moradores

de

representação dos interesses comunitários perante o Governo do Estado. Assim, as associações de moradores passaram gradativamente a exercer uma função de mediação entre o Estado e a população local, não necessariamente configurando-se em espaço de representação dos interesses locais. Durante e após o 2º Congresso da FAFEG (1968), a Federação passou por fortes dissidências internas devido às divergências quanto ao modo de atuar no movimento de favelas. Refletiam-se no trabalho político dos diretores da FAFEG as análises de conjuntura e as propostas de tática e mobilização para atuar no movimento popular propostas pelos partidos políticos a que eles estavam ligados. Os diretores ligados à Igreja consideravam que as investidas da FAFEG estavam se tornando muito radicalizadas, e os diretores ligados ao sindicalismo e ao Partido Comunista tinham como proposta o aumento da radicalização. Havia ainda as questões defendidas pelos diretores ligados ao PTB, partido do governador Negrão



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de Lima, que propunham um acordo com o governo para obter a urbanização das favelas. A FAFEG promoveu uma intensa e agressiva campanha de imprensa, na qual se mostrava categoricamente contra a remoção e por mudanças estruturais no país. Tinha como slogan “Urbanização Sim, Remoção Nunca” e desafiava os poderes públicos em plena ditadura militar. Esse comportamento da FAFEG fez com que recaísse sobre a organização uma forte repressão, e ocorressem constantes prisões de seus diretores. No final de 1964, a FAFEG ficou impedida de funcionar, e seus líderes foram quase todos presos quando, pessoalmente, tentaram resistir às primeiras tentativas de remoção da favela da Ilha das Dragas, no Leblon, que somente se completou no ano de 1969. (SANTOS, 2009). Segundo Valladares (2008, p. 159) em 1967/1968 havia muito pouca gente trabalhando em favela. Depois dos anos repressivos de 1967 e 1968, a FAFEG mudou drasticamente:, os documentos e discursos expressavam-se em termos de classe e em termos de problemas nacionais e outros problemas gerados pela classe, tais como estrutura salarial, inflação, sistema de lucros, exploração (LEEDS E LEEDS,1978, p.165). 8.3 A construção da máquina clientelista chaguista no Rio de Janeiro e seu impacto nos movimentos sociais de moradores de favela O clientelismo dos anos 70 marcou um período em que a luta por direitos sociais que vinha emergindo desde a década de 1950, interrompida pelo Golpe Militar, foi gradativamente sendo substituída por relações entre Estado e sociedade civil, principalmente nos setores populares, onde prevalece a negociação por pequenos favores, também conhecida como clientelismo. Essa dialética é reforçada pela quase completa ausência, nesse período, de políticas públicas mais amplas, voltadas para as favelas. Durante a década de 1970 prevaleceu o cálculo maximizador das lideranças locais (DINIZ, 1982). A partir dessa lógica, mesmo cientes do alcance limitado dessa dinâmica para a coletividade, favelados entendiam ser possível aproveitar as relações pessoais de lealdade, ou a colaboração com um determinado político, para obter uma pequena melhoria ou mesmo uma ajuda individual (BURGOS,1998, p. 39). Chagas Freitas, figura importante para a consolidação de redes clientelistas no Rio de Janeiro na década de 1970, foi eleito Governador do Estado da



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Guanabara no período 1970-1974, de forma indireta, conforme determinava o Ato Institucional nº 334. Freitas pertencia ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição consentida ao governo dos militares, tendo iniciado sua carreira política ingressando na União Democrática Nacional (UDN), compondo a chamada esquerda democrática do partido79. Após o golpe de 1964, que contou com seu amplo apoio e de seus jornais, e a criação do bipartidarismo, Chagas ingressou no MDB para tentar estabelecer no espaço político da metrópole carioca algumas divisórias entre o poder de sua máquina política e o poder da ditadura. Com o auxílio da poderosa máquina publicitária representada pelos jornais “O Dia” e “A Notícia", passou a controlar os diretórios do MDB na Guanabara. Eleito Governador do Estado em 1970 pela via indireta, ampliou o seu controle político sobre a agremiação de oposição consentida, adotando uma postura de apoio ao regime militar. A estrutura que ficou conhecida como “máquina chaguista” constituía-se num sistema clientelista, centralizado, de prestação de serviços em troca do apoio político e do voto, descrito em detalhe por Diniz (1982). Esse amplo sistema capilarizava-se por diferentes setores da sociedade carioca, mas principalmente nos setores mais desprivilegiados, entre eles os favelados. Colaborava para isso a grande quantidade de demandas que para os que ofereciam valiam pouco, mas, para os que recebiam valiam muito. As relações que se estabeleciam entre os parlamentares chaguistas e os moradores das favelas e suas lideranças eram marcadas por um grande pragmatismo (DINIZ, 1982). Quando Chagas Freitas assumiu seu primeiro mandato de governador, o processo remocionista ainda se completava em muitas favelas, e a maneira como agiam as instituições que tratavam da questão no Estado da Guanabara ajudou em muito a penetração das ideias e propostas de Chagas e seus correligionários. Foi 79

Chagas Freitas formou-se em Direito, mas atuou prioritariamente como jornalista e político. Iniciou sua militância política junto a UDN, elegeu-se à Câmara Federal pelo Partido Republicano Progressista (PRP) que deu origem ao Partido Social Progressista (PSP) em 1954. Em 1962, ingressou no Partido Social Democrático (PSD), garantindo novo mandato. Em 1951, Chagas Freitas fundou o jornal A Notícia, de caráter eminentemente popular. Através dessa publicação e de outra que lhe seguiu, O Dia, montou uma máquina política das mais fortes existentes até então no estado. A demonstração de seu poder fazia-se sentir com a eleição certa dos políticos apoiados nos editoriais e matérias de divulgação dos candidatos a cargos eletivos. Chagas apoiou a eleição de Negrão de Lima, candidato do PTB e franqueou as páginas de seus jornais para políticos daquele partido. Seu objetivo era auxiliar na formação de uma bancada que pudesse favorecer a aprovação de projetos populistas.



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nas favelas que não foram removidas, e nas novas que foram criadas devido ao empobrecimento crescente da população que sofria com o arrocho salarial, e nos conjuntos habitacionais, que a política de clientelismo chaguista pôde se estabelecer de forma incontestável. Chagas assumiu o governo no momento em que os piores ataques à FAFEG já haviam sido desferidos pelos organismos da ditadura. Os chaguistas, então, se aproveitaram da estrutura administrativa criada pelos governos anteriores que controlavam a organização dos favelados. As áreas das Regiões Administrativas foram loteadas entre os correligionários de Chagas e todo o serviço de infraestrutura urbana era controlado por eles. A desarticulação política dos favelados e de sua entidade federativa FAFEG, provocada principalmente pela repressão da ditadura, deixou-os cada vez mais vulneráveis como atores políticos. As práticas políticas chaguistas chegaram a contaminar, inclusive, a diretoria da FAFEG no período (SANTOS, 2009). Naquela época, a cidade do Rio de Janeiro tinha bem demarcada a linha que separava os chamados parlamentares autênticos do MDB, aqueles que faziam realmente oposição ao governo ditatorial da ARENA (Aliança Renovadora Nacional), dos chamados parlamentares chaguistas, que não faziam uma real oposição ao Governo Federal. A bancada dos chaguistas superava, em muito, o número dos parlamentares considerados autênticos (DINIZ, 1982). Nesse jogo, as Regiões Administrativas e a Fundação Leão XIII foram espaços partilhados entre os parlamentares chaguistas. Todo o acesso aos meios e a alocação de recursos para a melhoria de habitações faveladas tinham sua destinação feita por partidários de Chagas, através de um processo de cooptação das lideranças com objetivo de aumentar a dependência das Associações de Moradores do grupo no poder. Assim, as relações entre os políticos e as favelas nas décadas de 1960 e 1970 consolidaram-se como relações de poder que se alimentavam a partir de práticas criadas pela ausência de cidadania para os setores favelados da cidade como sugerem Santos (1979), e profundamente permeada pela influência da política partidária, como descreve Silva (1967). Os políticos que ocupavam o governo, por não conseguirem responder de forma universal às demandas vindas da favela, mas precisando do suporte dessas populações para manter-se no poder, optaram por relacionar-se com a favela através das gramáticas que privilegiassem trocas particularistas, notadamente o clientelismo e o corporativismo. Os pretendentes aos cargos eletivos tinham que ser



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representados por seus cabos eleitorais nos territórios, normalmente moradores da própria favela, que mediavam trocas para colher os votos dos outros moradores das comunidades. Quando ocorria a eleição do candidato, o cabo eleitoral recebia recompensas como a nomeação para cargos na esfera do estado ou favores menores como materiais de construção ou outros benefícios (SANTOS, 2009). Eladir dos Santos, em trabalho que tenta recuperar a memória da FAFERJ ente 1963 e 1993, descreve como a federação foi sendo impactada durante a ditadura militar para passar de uma federação de resistência local a objeto de disputa de grupos políticos partidários. Segundo Santos, a FAFEG, desde o período do primeiro governo de Chagas Freitas, passando pelo de Faria Lima, e o segundo governo de Freitas, passou por uma fase que pode considerar de cartorial, existia nos documentos, porém não de fato. Os congressos de favelas que vinham ocorrendo de quatro em quatro anos, desde a fundação da organização (1964, 1968, 1972) foram interrompidos. Em 1978 Chagas Freitas foi eleito, por via indireta, mais uma vez Governador do Estado do Rio de Janeiro, governando até 1982, período em que a FAFERJ (antiga FAFEG) transformou-se num importante instrumento para o Governo do Estado. A entidade deixara de lado o caráter da organização representativa dos favelados da cidade e assumira o papel de legitimar as medidas tomadas pelos organismos do Estado. Neste contexto, em 1979 começa a ter lugar uma movimentação de algumas Associações de Moradores que desejavam realizar novas eleições para a FAFERJ, em busca de autonomia com relação aos órgãos de governo. As propostas renovadoras eram percebidas pelos apoiadores de Chagas Freitas como um grande perigo para a sobrevivência das práticas que se configuravam na relação de troca entre votos, favores e proteção. O livre acesso de grupos de interesse organizados de forma autônoma, que se constituía na proposta das lideranças reorganizadoras da FAFERJ, poderia dificultar, e até tornaria desnecessária, a mediação pelos políticos entre os clientes e os órgãos públicos (SANTOS, 2009). As divergências entre os partidários de Chagas Freitas que controlavam a FAFERJ então, e as lideranças que queriam reativar a entidade foram agravando-se e os grupos dividiram-se. A entidade acabou cindida em dois grupos, que ficaram conhecidos como FAFERJ 1 (a oficial, com atuação pragmática, onde encontravamse os apoiadores de Chagas Freitas) e a FAFERJ 2 (que valorizava processos e organização e conscientização voltados para a autonomia das associações de fato).



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Eli Diniz, no trabalho resultante de seus estudos sobre patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro, observa que os diretores da FAFERJ 1 não percebiam como legítimo utilizar a entidade representativa dos interesses de um dado grupo como instrumento de pressão junto ao governo. Para eles, o que cabia à Federação era solicitar ao Estado, que deveria conceder, de acordo com o princípio de reciprocidade que deveria nortear as relações entre a instância dos interesses e a instância do poder, enquanto a FAFERJ 2 valorizava os processos de organização e conscientização, encarando a pressão não apenas como legítima, rejeitando a tutela do Estado80 (DINIZ,1982, pp. 144-149). 8.4 Os movimentos sociais na favela após a redemocratização Os movimentos sociais organizados em torno da reforma urbana, que culminaram com a inclusão do direito à moradia na Constituição de 1988, não traduziram-se automaticamente em uma militância local, especialmente na favela, pelo tema. No plano local, a militância política na favela tinha ficado substancialmente subordinada aos partidos políticos ao longo da ditadura, por um lado. Por outro, a década de 1990 na favela foi marcada pela emergência das Organizações Não Governamentais implementando programas e projetos, ora com financiamento nacional, ora com financiamento internacional, mas também atuando muitas vezes como prestadores de serviço em nome do Estado nesses territórios. Como já mencionamos anteriormente, não temos condições aqui de fazer uma avaliação detalhada da forma e do impacto que um setor tão diversificado teve na favela. No entanto, é pertinente destacar que simultaneamente ao enfraquecimento de movimentos sociais de base comunitária, iniciado ainda durante a ditadura militar, pôde-se observar a emergência da cooptação partidária, ainda durante a ditadura também, mas também da ação das ONGs a partir da década de 1980. Além disso, as décadas de 1980 e 1990 também trouxeram consigo o aprofundamento da questão da violência urbana, que passou a ter grande visibilidade no debate público 80

O processo jurídico e os embates políticos entre a FAFERJ 1 e a FAFERJ 2 foram exaustivamente cobertos pelo Jornal “Última Hora” que fazia ferrenha oposição aos políticos do MDB que seguiam Chagas Freitas. Já o jornal “O Dia”, de propriedade de Chagas, ignorava os embates, omitia os conflitos e noticiava a realização de eleições “ordinárias” para renovação da diretoria executiva da FAFERJ (SANTOS, 2009).



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sobre a favela, percebida a partir de então como lócus privilegiado da violência armada, complexificando ainda mais a organização política local nesses territórios, que a partir dessa época passam a sofrer intervenções armadas freqüentes justificadas pela guerra às drogas81. Por um lado, os antigos movimentos de favelas foram em grande medida sendo absorvidos por estruturas de partidos políticos, e muitas das lideranças políticas comunitárias atuavam articuladas com partidos políticos. Por outro lado, para completar esse cenário, agências de fomento internacionais passaram a propagar um discurso que pregava a participação social em projetos e programas de forma despolitizada e instrumental. A partir dessa nova abordagem, a participação passou a ser encarada como um instrumento, metodologias de participação foram disseminadas, e gradativamente a participação passou a ter um caráter consentido. Ou seja, os grupos responsáveis pela tomada de decisão em programas e projetos escolhiam quando, como e quem irá participar. Limonad (1984), em trabalho que discute a questão da participação social e sua apropriação prática no início da década de 1980, destacava que o Estado e as classes dominantes, em momentos conjunturais específicos de crise de legitimidade, tendiam a incorporar como suas reinvindicações de parcela de trabalhadores, mas enfatizava que o planejamento participativo tendia a ser dar dentro dos limites do concedido, de forma decidida pelo Estado e sem a participação daqueles que ele convida à participar. O Programa Favela Bairro, principal marco na direção da institucionalização da urbanização de favelas no Rio de Janeiro, nasceu sob a influência da militância que

se

identificava

com

ideias

propagadas

pelos

partidos

de

esquerda

revolucionários das décadas de 1950 e 1960, mas também sob grande influência dos novos modelos de participação propagados pelas agências de fomento internacionais, onde o modelo de participação é aquele onde a participação é Guerra às Drogas refere-se aqui ao termo cunhado pelo governo dos Estados Unidos da América no início da década de 1970 comumente aplicado à campanha internacional de proibição às determinadas substancias psicoativas, que inclui cooperação e intervenção militar com o intuito de reduzir o comércio ilegal de tais substancias. Tal abordagem tem sido amplamente criticada pelos enormes custos sociais e humanos causados desde seu início, e disseminação, no mundo, simultaneamente à ineficácia em reduzir a produção ou consumo de substancias psicoativas. Na última década movimentos antiproibicionistas em inúmeros países têm apontado para o fato de a vitimização resultante da Guerra às Drogas se abater majoritariamente sobre populações pobres e já marginalizadas, sugerindo que tais políticas estejam muitos vezes a serviço de outras agendas, enfraquecendo movimentos políticos de base comunitária, que têm suas demandas diluídas em meio ao discurso, que seria “mais urgente”, da “guerra às drogas”.

81



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consentida e controlada. O Fórum Estadual da Reforma Urbana, bastante ativo à época do início do Favela Bairro, ainda na esteira das mobilizações para aprovação do PDCRJ de 1992, foi oposição à gestão de Cesar Maia e ao modo de intervenção pregado pelo Favela Bairro, especialmente ao discurso que conferia superioridade ao formato de participação consentida em relação a processos amplos de discussão política e organização comunitária de base. O discurso propagado pela SMH focava na participação comunitária para “contrapor-se à descrença em programas governamentais”, e a atitude metodológica adotada foi o balizamento de cada etapa dos trabalhos com a presença na comunidade de toda a equipe de governo envolvida no projeto, às vezes contando com a presença do Prefeito, especialmente nas primeiras fases do programa (diagnóstico e elaboração do plano de intervenção). O processo de participação nos primeiros anos do Favela Bairro foi estruturado na relação governo-associação de moradores. O discurso predominante era de que a reinvindicação e o conflito eram bem vindos, mas que o Favela Bairro precisava estar longe das práticas de tutela e do favor, ignorando a dimensão político partidária presente na ação local. Em alguns casos, representações politicas diferentes tiveram participação segundo o modo do exercício dessa liderança, mais ou menos atuante, promovendo a organização comunitária, ou agindo apoiada em grupos de interesse específicos. De maneira geral, o volume de recursos envolvido na implantação de um programa como o Favela Bairro fazia com que lideranças locais tendessem a aproximar-se do programa em sua primeira fase. No caso do Favela Bairro, apesar de os documentos do programa destacarem a centralidade da participação comunitária, uma avaliação realizada pelo IBAM (FERNANDES, 2002) destaca que em relação a outros programas similares avaliados pela mesma instituição à época, o trabalho comunitário deixava a desejar, não

possuindo

democráticos

mecanismos

como

consultivos

comissões,

fóruns

e

deliberativos

ou

conselhos

representativos paritários,

e

espaços

democráticos que propiciassem o compartilhamento de responsabilidades entre o Poder Público e a comunidade. O estudo feito pelo IBAM concluía que a comunidade no Favela Bairro não era entendida e não atuava como protagonista do seu desenvolvimento, mas era sobretudo uma “receptora dos benefícios trazidos pelo poder público”. Assim, a participação no período que vai de 1990 a 2000 foi substituindo o movimento social de favelados nas negociações de demandas



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comunitárias, revelando-se na prática antes um modo de legitimar as intervenções públicas do que uma verdadeira democratização da política urbana. Esse cenário não muda significativamente ao longo da década de 2000 no Rio de Janeiro. Na verdade o modelo de participação “consentida” parece progressivamente perder legitimidade (se é que alguma vez teve legitimidade de fato). A abordagem “participativa” dos programas que seguiram o Favela Bairro não avançaram na direção de acolher uma participação democrática sistemática e real. Por outro lado, os espaços criados pelo Estatuto da Cidade que poderiam ser utilizados como plataforma de militância popular sobre a questão urbana, como conselhos e conferências, não se traduziram necessariamente em avanços no plano local, e os espaços para participação criados a partir de então nunca se efetivaram como espaços reais de deliberação de política no caso estudado (com frequência nem sequer em espaços de consulta).

A narrativa apresentada neste capítulo ilustra como diferentes movimentos sociais, presentes nas discussões sobre a favela desde a década de 1940, vão perdendo força a partir da instauração do Regime Ditatorial em 1964. No plano da Militância Nacional, pode-se argumentar que os movimentos sociais passaram por uma reorganização a partir da redemocratização, e são responsáveis por conquistas importantes na luta pelo direito à moradia, bem como em relação à permanência da favela. Por outro lado, a eleição de Lula em 2002, com forte apoio dos movimentos sociais, acaba criando uma situação na qual articuladores importantes dos movimentos são incorporados à estrutura do Estado, para logo serem alijados dos processos decisórios em detrimento de necessidades de reorganização da coalizão política que garantiria a permanência do governo no poder. No plano local, especialmente no que diz respeito à ação política na favela, o movimento parece nunca ter se recuperado dos golpes sofridos durante a ditadura. A militância, que começara a organizar-se em núcleos favelados ainda na década de 1950 e 1960, já influenciada pela militância partidária, inicialmente do Partido Comunista, perdeu espaço devido à repressão violenta do governo militar e, também como consequência deste, passou a sofrer forte influência de grupos políticos pragmáticos, através da construção de bases clientelistas locais, ou seja, baseados principalmente nas trocas individuais, em detrimento das lutas coletivas. Para coroar



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esse processo, as décadas de 2000 e 2010 foram permeadas pela prática da participação consentida, reforçado por Organizações Internacionais e ONGs. Esse modelo, descrito nos documentos dos programas de urbanização de favelas investigados, prescreve uma participação “incentivada” pelo Estado, porém sempre que não dificulte as decisões tomadas no campo do poder. Um modelo que parece ter contribuído para o enfraquecimento da organização popular na favela nas últimas décadas.



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9 O ESTADO E SEUS OPERADORES O Estado é resultado de um processo de acumulação de diferentes tipos de capital: capital econômico, capital cultural e capital simbólico. A construção de diferentes tipos de capital, que caminha junto com a construção dos diversos campos correspondentes, leva, de fato, à emergência de um capital especifico, propriamente estatal, que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos campos e sobre os diferentes tipos específicos de capital, especialmente sobre as taxas de câmbio entre eles (e, concomitantemente, sobre as relações entre seus detentores). Assim, a construção do Estado desenvolve-se em pé de igualdade com a construção do campo do poder, onde se dá o jogo no qual os detentores de capital (de diferentes tipos) lutam pelo domínio sobre o Estado, isto é, sobre o capital estatal que assegura o poder sobre os diferentes tipos de capital e sobre sua reprodução. No entanto, segundo Bourdieu, o Estado é uma realidade ambígua, não se pode dizer apenas que é um instrumento a serviço dos dominantes, e terá tanto mais autonomia destes, quanto mais antigo ele for, e mais forte quanto mais conquistas sociais importantes tiver registrado em suas estruturas (BOURDIEU, 1998, p. 48). O Estado fixa suas regras de funcionamento através de toda uma regulamentação

especifica que vem juntar-se à infraestrutura jurídica e à

regulamentação geral. Assim, para compreender a lógica desse campo, construído e controlado através de uma mediação burocratica, impõe-se descrever a gênese das regras e regulamentações que definem o seu funcionamento, ou seja, descrever este campo circunscrito em que se defrontam, com armas e objetivos diferentes, os funcionários públicos superiores, os políticos, os representantes dos interesses privados, os movimentos sociais, entre outros. Nesse capítulo, nos dedicamos a descrever o funcionamento do Estado no campo de construção e legitimação das políticas sociais de habitação social no Rio de Janeiro, especialmente no que diz respeito à urbanização de favelas a partir da década de 1990. Além de detentores do capital simbólico, imprescindível para alavancar as coalizões pró-crescimento e manter unidos os diversos agentes nelas envolvidos, os políticos eleitos e a burocracia do Estado são os responsáveis por coordenar projetos e conduzir as decisões relativas ao estabelecimento de prioridades na inversão dos recursos públicos e ao controle de sua aplicação.



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9.1 Os políticos e a operação política de governar Bourdieu descreve os partidos políticos como organizações permanentes cujo objetivo principal é estar no poder e ampliar suas bases para se manter no poder. Para alcançar esse objetivo, o partido estaria disposto a comprometer a pureza de seus ideais e jogar mais ou menos conscientemente com as ambigüidades de seus programas (BOURDIEU, 1991). Segundo o autor, isso levaria a um conflito constante entre dois grupos dentro do partido, aqueles que desejam se manter em suas posições ideológicas, e os que buscam fortalecer e ampliar as bases do partido a despeito de valores ou ideais pregados pelo próprio partido. As disputas entre os chamados autênticos e pragmáticos foram registradas em inúmeros trabalhos que investigam partidos políticos no Brasil, não sendo uma novidade em nosso contexto político. Considerando que, em última instância, o poder só será garantido em uma democracia de acordo com o número maior de votos, a tendência é que os grupos pragmáticos acabem ganhando a luta interna partidária se forem eficazes na conquista de votos necessários a manterem-se no poder. Essa afirmação não contradiz a experiência recente brasileira, onde destacam-se os casos do PMDB e PT, para citar dois clássicos contemporâneos da divisão interna entre autênticos e pragmáticos na política contemporânea brasileira, onde, no ápice desse tipo de disputas, vimos cisão e formação de novos partidos. Chamamos atenção aqui para essa questão na medida em que disputas partidárias parecem ter significativa influência nos rumos da política social investigada ao longo do período, coincidindo com o que identificamos aqui como inflexões na direção de institucionalização ou não de políticas de urbanização de favelas. Os líderes políticos cariocas são peça-chave na definição e condução das políticas de urbanização, ou remoção de favelas, tendo atuado de maneira constante no tema, talvez devido principalmente à relevância que a favela tem no debate público, e consequentemente no debate eleitoral. Descrever as lideranças políticas do Rio de Janeiro a partir da década de 1990 e não falar da influencia de Leonel Brizola seria como não mencionar a influência de Carlos Nelson no campo da urbanização de favelas entre os arquitetos. Os principais líderes políticos do Rio de Janeiro a partir da década de 1990 foram mais ou menos influenciados pela ação política de Brizola, a começar por Cesar Maia. Pode-se dizer que, na origem, ideias



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progressistas identificadas com partidos tradicionalmente de esquerda estiveram presentes na formação das principais lideranças políticas, a defender a urbanização de favelas como política de intervenção urbana nesses territórios, em detrimento da remoção desde a década de 1950, e foram recuperadas de maneira contundente sob a liderança de Leonel Brizola, defensor das reformas de base que ganhavam força na iminência do Golpe Militar de 1964, durante a redemocratização. O fortalecimento de uma política integrada de urbanização de favelas na direção de sua institucionalização se dá quando há uma decisão política, seguida de liderança política que permita que o processo de formulação, legitimação e implementação se dê. No caso estudado, a liderança de Cesar Maia como Prefeito foi determinante para que o programa emergisse e tomasse a proporção que tomou. Seu sucessor na Prefeitura, o anteriormente Secretário de Urbanismo Luiz Paulo Conde, priorizou o programa em seu governo, garantindo uma continuidade de pelo menos oito anos na direção da institucionalização da política, espaço de tempo em que poucas políticas sociais atualmente no Brasil conseguem alcançar sem mudanças importantes em sua gestão e rumos. O que consideramos aqui como primeira inflexão que interrompe um ciclo de institucionalização após o início do Favela Bairro, também foi fruto de uma decisão política, tomada pelo então Prefeito, Cesar Maia, quando retorna à Prefeitura após as eleições de 2000. Em 2010, quando se dá o anuncio do Programa Morar Carioca, mais uma vez temos uma decisão política que viabiliza a retomada desse tipo de política na Prefeitura, apontando para um resgate no sentido da institucionalização. A partir da decisão de privilegiar um determinado tipo de política social em detrimento de outras, o governante irá organizar sua gestão para que o objetivo seja alcançado. Nesse sentido, compreender a escolha dos gestores de políticas, secretários e posições-chave de gestão nas secretarias ou outros órgãos públicos envolvidos na gestão será indispensável para compreender os processos de tomada de decisão de institucionalizar ou não uma determinada política social. Pode-se dizer que o processo de negociações que faz parte da composição de um governo em um Estado democrático, ou seja, de como ele vai exercer seu poder sobre o aparelho do Estado, tem início a partir de uma eleição (considerando que a eleição seja um marco inicial onde é garantida uma fatia de poder a um candidato, partido ou grupo). No caso do Poder Executivo, uma vez eleito, o chefe do Poder Executivo irá articular a composição do secretariado, uma parte importante



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da estratégia de governabilidade de um governo. De maneira simplificada, nessa escolha incidem fatores técnicos, o conhecimento sobre o setor, e políticos, como a capacidade de atrair votos, e os acordos partidários, tanto com seu partido quanto com partidos aliados. Essas escolhas estão vinculadas a fatores estruturais do Estado e da sociedade, envolvem cálculos que são próprios do campo político, e são altamente voláteis a mudanças de conjuntura. A relação com o Legislativo é um componente importante nesse cálculo, e o Executivo terá como objetivo ter a maior base de apoio possível na Câmara de Vereadores, de modo que possa ter seus projetos e orçamentos aprovados pelo Legislativo, considerando, assim, que a formação de um governo torna-se uma complexa tarefa que envolve inúmeras e continuas negociações com múltiplos atores. Com relação às secretarias, em geral o chefe do Executivo definirá quais delas serão mais ou menos estratégicas para implementar seu programa de governo para, então, definir a ocupação delas. Algumas serão escolhidas para realizarem o papel de alto desempenho técnico, outras serão rifadas no mercado das alianças políticas, outras, ainda, ficarão responsáveis por alimentar a maquina do partido, atuando a partir de uma gramática mais explicitamente clientelista ou corporativista. Algumas possivelmente terão função mista. As secretarias de governo são peças importantes no equilíbrio das gramáticas políticas adotadas por um governo, e isso terá reflexos na gestão de políticas do órgão. Além da nomeação do Secretário em si, o Prefeito ainda pode dispor de outros cargos de confiança dentro da Secretaria, o que acontece especialmente em ocasiões onde a Secretaria é parte de uma negociação com um partido coligado. Em alguns casos, o Secretario terá liberdade para nomear todos os cargos (a chamada “porteira fechada”), em outros, o próprio Prefeito (ou o partido, dependendo do acordo político), irá nomear cargos-chave no órgão (“porteira aberta”). Todas essas variáveis irão influenciar o funcionamento de uma Secretaria. Uma vez definido quem será o Secretário ou a Secretária, estes vão converter-se em gestores da burocracia, tendo grande impacto sobre o funcionamento desta, especialmente no caso brasileiro, onde parece existir uma alta rotatividade dentro da burocracia pública, dependendo dos princípios que irão reger a gestão. Desde sua criação, a SMH foi ocupada por secretários com distintos perfis, alternando

secretários

com

maior

conhecimento

técnico

sobre

questões

relacionadas a habitação e urbanismo, e secretários com perfil essencialmente



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político, neste caso com menor conhecimento técnico sobre habitação, mas com mandato legislativo. Houve também secretários que se pode considerar de origem “mista”, ou seja, políticos profissionais com mandato em exercício, que, no entanto, também possuíam conhecimento técnico razoável do campo da habitação. Como veremos mais adiante, esses perfis parecem ter impacto significativo nos rumos da política pública no caso estudado. Vale destacar aqui que não estamos tratando de reduções generalizantes, e menos ainda sugerir uma superioridade da técnica sobre a política. Não se trata de propor dicotomias, mas sim de tentar identificar como lideranças com perfis diferentes têm se posicionado ao longo do período investigado. No caso da SMH, é interessante perceber as variações nesse sentido desde sua criação, tendo esta passado por quase todas as situações descritas acima. Nasceu com prestígio, foi uma Secretaria de muito peso político, mas simultaneamente contou com uma burocracia com conhecimento técnico expressivo e experiência de intervenção, de sua criação até o final da gestão de Luiz Paulo Conde em 2000. Uma vez criada a Secretaria, sob a liderança de um Secretário que, apesar de articulador político, tinha grande conhecimento técnico e experiência profissional no campo da habitação, a SEH/SMH passou a contar com certo grau de insulamento burocrático para implementar a política municipal de habitação. Com a primeira inflexão a SMH perdeu gradativamente prestígio, bem como o certo insulamento com o qual contara até 2000. Depois ganhou novamente, para tornar a perder. As mudanças de secretários no caso estudado são acompanhadas das mudanças nas posições dentro da burocracia, e coincidem com momentos de reorganização de coalizão e alianças de governo, e parecem resultar em inflexões no processo de institucionalização da urbanização de favelas do município, ou pelo menos marcam o início de ciclos nos quais a inflexão foi resultado, segundo nossa análise. A gestão de Cesar Maia foi marcada por um discurso vinculado às ideias do modelo neoliberal de planejamento e, com elas, a ideia da vocação olímpica da cidade. A existência de um generalizado sentimento de crise acabou contribuindo para a criação de um “consenso” em torno de um projeto estratégico de desenvolvimento, no qual a profissionalização da máquina pública e a revitalização da cidade foram peças centrais. Um dos principais secretários do então Prefeito foi o arquiteto-urbanista Luiz Paulo Conde, que ficou responsável por articular as políticas



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urbanas em torno desse ideário e utilizou amplamente de estratégia de marketing e publicidade para tanto82. Apelidado de “SuperSecretário”, Conde foi o escolhido para dar continuidade à gestão de Cesar Maia, já que à época não era permitida a reeleição. Assim como César Maia, Conde tinha uma ativa vida profissional antes de iniciar sua carreira política, também tendo sido professor universitário. Sem ter experiência prévia na política eleitoral – ao menos não como candidato – Conde inicia sua carreira durante o governo de Cesar Maia, e adquire posição de destaque ali. A eleição de César Maia para a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro em 1993 pelo PMDB (que logo trocaria de legenda, terminando por fixar-se no PFL) marcou uma inflexão em um longo período de domínio da política de centroesquerda e de esquerda na cidade. Apesar de ter uma formação original na esquerda, tendo sido inclusive exilado político durante o período ditatorial, César Maia se elegeu Prefeito pelo PMDB com um discurso que acionava elementos do lacerdismo, com fortes ecos nas camadas médias da cidade. Em seu programa de governo, o Prefeito eleito enfatizava o discurso sobre a ordem urbana, articulado com ações de forte repercussão na mídia, como a expulsão dos camelôs das áreas centrais, o cercamento das praças públicas, a criação da Guarda Municipal, entre outras iniciativas (CARDOSO, 2007). O projeto neoliberal de Margareth Thatcher estava fortemente presente na administração de Cesar Maia. Ao entrar, ele propôs uma discussão sobre reforma administrativa e da máquina pública brasileira, promoveu planos de demissão incentivada, e criou uma estrutura de macrofunções que obrigava deferentes secretarias a desenvolverem políticas afins de maneira coordenada. O fato de Cesar Maia ter sido eleito com pouquíssimas alianças políticas ao longo da campanha83 lhe deu muita liberdade para compor um governo 82

O geógrafo David Harvey, ao discutir a formação de coalizões que irão governar, e das alianças que envolvem a composição de um governo, chama atenção para a complexidade da tarefa, e sugere que a habilidade da liderança política (como um Prefeito carismático, um administrador municipal talentoso ou um líder empresarial rico) tem o potencial de impor uma marca pessoal sobre a natureza e direção do empreendedorismo urbano, e para moldá-lo até para fins políticos específicos (HARVEY, 1996, p. 172).

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Cesar Maia vinha de um rompimento com o PDT de Leonel Brizola, foi candidato a Prefeito pelo PMDB a convite de Ulisses Magalhães, na tentativa de estabelecer um PMDB autêntico na cidade. O PMDB vinha de um período onde os pragmáticos, personificados na máquina articulada em torno de Chagas Freitas, havia perdido força após os anos de governo do PDT na cidade e no Estado. As previsões feitas pelos partidos então não apontavam chances de que Cesar Maia chegasse sequer ao segundo turno. Sua eleição foi uma surpresa, e ele chegou ao governo com poucos compromissos “de campanha”.



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onde técnicos tiveram uma participação significativa. O primeiro governo de Cesar Maia foi louvado por uma parte significativa da sociedade carioca, e a eleição de seu sucessor, Luiz Paulo Conde, aconteceu com certa tranquilidade. Durante a gestão de Conde não houve mudanças significativas de orientação em relação à administração anterior. A metáfora da cidade-empresa, ligada à aplicação do planejamento estratégico das corporações à cidade, a inserção na gestão urbana da lógica da eficácia, da competitividade intraurbana e do pragmatismo na elaboração das políticas urbanas permaneceram em vigor. Em 1997 quando a emenda constitucional que permitiu a reeleição foi aprovada, iniciou-se uma disputa entre o então Prefeito, Conde, e o ex-prefeito Maia, que afetou diretamente a SMH. Em 1998, César concorreu ao governo do Estado, já filiado ao PFL, perdendo para o candidato do PDT Anthony Garotinho. Após as eleições de 1998, a cúpula regional do PFL determinou que Conde seria o candidato a eleição à Prefeitura. Maia então pleiteou o direito à legenda, e o partido rachou. A disputa foi acirrada e os principais apoios conquistados por Conde deviam-se ao poder sobre a máquina administrativa (MARQUES, 2006). Cesar Maia acabou optando por filiar-se ao PTB, levando seus principais aliados políticos, e, com o apoio do PL e do PPS, acabou ganhando de Conde no segundo turno com apoio de militâncias evangélicas, fruto de uma aliança com a Igreja Universal, e de setores evangélicos que haviam apoiado a candidata do PT, Benedita da Silva, no primeiro turno. Magalhães, que permaneceu como Secretário de Habitação entre 1997 e 2000, e candidatou-se a Vice-Prefeito na chapa de Conde à reeleição, colocando a SMH e seus programas mais uma vez no centro do debate público. O Programa Favela Bairro teve grande impacto, especialmente com relação à visibilidade, durante os mandatos de Cesar Maia e de Luiz Paulo Conde, tendo sido amplamente disputado pelos dois candidatos ao longo de toda a campanha. A apertada disputa eleitoral nas eleições de 2000 fez com que os candidatos tivessem que assumir uma série de compromissos e alianças para garantir a vitória, o que configurou, no caso do vencedor, Cesar Maia, uma situação muito diferente da primeira vez em que se elegera Prefeito. Para agravar os conflitos políticos que haviam sido travados durante a campanha municipal de 2000, em seu retorno à Prefeitura, Cesar Maia é apontado por seu partido como pré-candidato à Presidência da República, iniciando,



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imediatamente após sua eleição, uma peregrinação pelo país para articular sua possível candidatura. Esse movimento gerou inúmeras críticas no plano local, e alguns inclusive atribuem a progressiva piora em sua gestão da cidade devido aos seus interesses no âmbito da política nacional. Enquanto a situação política entre as principais lideranças deteriorava-se no Rio de Janeiro, complexificavam-se os acordos necessários para a manutenção de coalizões no poder, trazendo a necessidade de negociar secretarias e órgãos entre diferentes partidos para fortalecimento de coalizão. Cesar Maia teria se valido de seu mandato de Prefeito e do prestígio acumulado junto à opinião publica, somado ao baixo grau de institucionalização dos partidos na década de 1990, para ignorar as manifestações de insatisfação regionais do PMDB, frustrados com sua pequena participação durante seu mandato. No entanto, isso não se sustentou ao longo do tempo, contrariando uma suposta crença de Cesar Maia de que ele estaria na iminência do fim da máquina partidária como elemento importante na luta política. Sobre a estratégia adotada por Maia a partir da derrota em 1998, Marques descreve: A derrota nas eleições de 1998 para o governo do Estado expôs a fragilidade de sua estratégia, e teve que rever sua filiação partidária e posicionamento no campo. Sua filiação ao PFL mostrou uma atitude diferente com relação ao partido, nesse caso, ele passa a fazer parte da articulação nacional e regional, além de dinamizar e controlar o PFL-RJ, entendendo que a construção e consolidação de alianças era fundamental para sua sobrevivência política. (MARQUES, 2003, p. 97)

Marques (2003), que investigou a estratégia de formação do grupo político de Cesar Maia entre 1990 e 2003, sugere que a estratégia de montagem do secretariado do novo governo de Cesar Maia em 2001 foi diferente da utilizada em 1993, informação confirmada pelo próprio Cesar em entrevista à autora no escopo desse trabalho. Em 2001, a presença de quadros técnicos foi consideravelmente menor na composição do secretariado, e partidos e políticos tiveram participação bastante mais expressiva nas negociações em torno dos cargos do primeiro escalão. Apenas a Secretaria de Educação e a de Prevenção ao Uso de Drogas escaparam à partidarização em 2001, segundo Marques. Naquele momento, os objetivos principais eram estabelecer alianças com outros atores políticos e garantir espaços e instrumentos de ação para o grupo. Na primeira gestão de Cesar Maia era preciso construir um grupo, na segunda o grupo já estava constituído, os quadros formados entre 1993 e 1996 seriam fortalecidos politicamente através das funções exercidas



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nas secretarias de governo, ocupando as posições anteriormente ocupadas por quadros com perfil técnico84. As secretarias de Governo, Administração, Obras, Habitação, Esportes e Meio Ambiente foram reservadas a quadros políticos atuantes eleitoralmente, repetindo-se a estratégia utilizada na gestão anterior de utilizar as SubPrefeituras para viabilizar a entrada de novos quadros na arena político-eleitoral (MARQUES, 2003, p. 83). A Secretaria de Habitação na época era uma das secretarias mais valorizadas devido à visibilidade que os programas da política de habitação, principalmente o Favela Bairro, haviam obtido, além de já ter um orçamento garantido para ação por conta do contrato com o BID. Apesar de ser um quadro extremamente competente para liderar o Programa Favela Bairro, ou mesmo a Secretaria, Maria Lúcia Petersen, que havia apoiado Maia durante a eleição, não tinha expressão política suficiente para ocupar uma Secretaria como aquela, e a SMH teve que entrar na distribuição política dos cargos. Assim, a Secretaria foi entregue a Solange Amaral, psicóloga, do grupo político de César Maia, ex-Subprefeita da Zona Sul, com uma trajetória profissional em programas sociais na Legião Brasileira da Assistência (LBA) antes de ingressar na política. César Maia, em entrevista à autora no escopo desta investigação, defende que Solange era um bom quadro para liderar a Secretaria, por conta da orientação crescente para a área social dos programas de urbanização de favelas que se daria a partir do PROAP II. Apesar de a SMH não ter sido impactada pelas mudanças no secretariado em 2003 (já visando à reacomodação pré-eleição de 2004), houve mudanças tanto na liderança de outras secretarias quanto em cargos de gestão na SMH. Alguns dos gestores em cargo de coordenação na SMH que haviam permanecido após as mudanças de 2001 saem nesse momento. Maia se reelegeu Prefeito em 2004, comandando a cidade entre 2000 e 2008, e Solange Amaral permaneceu à frente da SMH, licenciando temporariamente para renovar seu mandato de Deputada, e retornando à Secretaria na sequência até candidatar-se à Prefeita nas eleições municipais de 2008, quando perdeu para Eduardo Paes. A gestão de Cesar Maia entre 2005 e 2008 foi marcada pelo que muitos entrevistados descrevem como 84

Chamando atenção aqui mais uma vez para o fato de que ter um perfil técnico não significa necessariamente não possuir filiação/atuação política. O que sugerimos aqui é que um Secretário com perfil exclusivamente político tenderá a concentrar sua atuação na operação política de garantir votos para seu partido-coalizão através de caminhos que estejam relacionados à operação política imediata, visando ao próximo ciclo eleitoral.



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“apática”, de poucas realizações, muitos conflitos com os Governos Federal e Estadual, bem como com o principal grupo de comunicação na cidade (e no País), a Rede Globo. Na SMH, segundo relato dos entrevistados que permaneceram lá ao longo do período, pouco acontecia. A gestão de Solange Amaral foi descrita por inúmeros entrevistados, membros e ex-membros da burocracia, bem como políticos, como uma gestão altamente política, com visitas frequentes de vereadores à Secretaria, em uma gestão majoritariamente com base em acordos pontuais em detrimento de um planejamento ou implementação de políticas a partir de uma visão de médio ou longo prazos. Eduardo Paes assumiu a Prefeitura em 2009. Ele pode ser descrito como um político profissional. Iniciou sua atividade política em 1992 como SubPrefeito da Zona Oeste85, posição que ocupou até 1996, quando foi eleito o Vereador mais votado do Rio de Janeiro pelo PV. Eduardo Paes tem grande proximidade com o setor empresarial do Rio de Janeiro. Com relação aos ramos de atividade que financiaram sua campanha, ainda que o capital imobiliário ou da construção civil tenham financiado os dois candidatos, o seu peso em cada caso é diferente, e a preferência do setor por Eduardo Paes foi evidente86. Com a eleição de Eduardo Paes para a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro pelo PMDB em 2008, através de uma coligação apoiada pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), e pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), uma nova conjuntura política se abria. O explícito alinhamento entre os três níveis de 85

Eduardo Paes (Rio de Janeiro, 14 de novembro de 1969) é filiado ao PMDB. Em 19 anos de vida política, já esteve filiado a cinco partidos, Partido Verde (PV), Partido da Frente Liberal (PFL), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Foi criado no Jardim Botânico, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Na juventude, mudou-se com os pais para São Conrado. Depois de formar-se em Direito pela PUC-Rio. Paes começou sua carreira política, aos 23 anos, como Subprefeito da Zona Oeste I, permanecendo no cargo durante o primeiro mandato de Cesar Maia. Em 1998 foi eleito deputado federal com 117.164 votos. Com a segunda eleição de Maia em 2000, foi nomeado Secretário Municipal do MeioAmbiente. Reeleito deputado federal em 2002 com 186.221 votos, ingressa no PSDB no ano seguinte. No segundo turno das eleições fluminenses de 2006, apoiou Sérgio Cabral Filho, e com a vitória de Cabral, Paes assumiu a Secretaria de Esportes e Turismo. Posteriormente filia-se ao PMDB, partido pelo qual é eleito prefeito em 2008.

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Alguns tipos de capital (representando por empresas iguais ou diferentes para cada candidato) financiam os dois candidatos. É o caso do capital da construção civil e imobiliário, que doou R$ 4.168.500,00 para o candidato do PMDB e R$ 950.000,00 para o candidato do PV; o capital financeiro investiu R$ 630.000,00 em Paes e R$ 450.000,00 para Gabeira; o capital petroquímico doou R$ 195.000,00 para o primeiro e R$ 90.000,00 para o segundo candidato. Enfim, o que quisemos mostrar aqui foi que os candidatos não são tão antagônicos a ponto de dividir a cidade do Rio de Janeiro (MATIOLLI, 2010, p. 94).



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governo, não visto na cidade desde as imposições do regime militar, conferiria novas proporções e consistência à coalizão de interesses em torno da candidatura carioca a sediar as Olimpíadas. A política de atração dos megaeventos esportivos, que durante as primeiras candidaturas tinha estado centralizada na escala local, sob liderança do prefeito César Maia e dos grupos de interesse por ele representados, passava a se apresentar como símbolo de inserção do país, e não apenas da cidade, no mercado mundial do espetáculo esportivo, como sugere Oliveira (2012, p. 226), num momento em que a promoção de megaeventos e da cidade do Rio de Janeiro assumem caráter prioritário para o Estado brasileiro. A parceria com Sérgio Cabral e Lula foi um tema muito explorado por Eduardo Paes em ambas as campanhas, fazendo ressonância com outros acontecimentos midiáticos como conflitos políticos entre prefeitos, governadores e presidentes que prejudicavam a cidade do Rio de Janeiro há anos. Matiolli (2010), que investigou detalhadamente os discursos acionados ao longo da campanha para a Prefeitura de 2009, sugere que o discurso de Paes aponta para o que Bourdieu chama de “simplificação demagógica da política”, já que não se percebe uma cobertura crítica sobre esta parceria e o conteúdo programático que lhe dá sustentação. Matiolli (2012), ao analisar os discursos acionados durante a campanha para Prefeito do Rio de Janeiro em 2010, chama atenção para o fato de a divisão da cidade ter sido o grande tema explorado pela mídia, reforçando estereótipos da cidade partida. De acordo com o mito da cidade partida (VENTURA, 1994), a cidade estaria dividida entre ricos e pobres, entre o atraso e a modernidade, entre o morro e o asfalto. Uma das estratégias da construção da imagem de Paes durante a campanha foi explorar a divisão da cidade entre ricos e pobres, para então se apresentar como um candidato das elites e dos mais necessitados simultaneamente, apresentando-se como o “único” que poderia unir o Rio de Janeiro, por ser um profundo conhecedor da cidade, ao contrário de Gabeira, que só conhecia as áreas nobres, sendo ignorante quanto aos problemas das camadas mais baixas e turista nas regiões mais pobres, a Zona Norte/subúrbio e a Zona Oeste (MATIOLLI, 2012, p. 40). O discurso de Paes foi centrado na regeneração urbana, restauração da ordem e do controle, do pacto urbano que estaria sendo “minado” pela desordem e pela ilegalidade. No entanto, é importante destacar que Paes possui alianças com políticos tradicionais, vereadores e deputados que se pautam majoritariamente por práticas assistencialistas (MATIOLLI, 2010, p. 100).



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A aliança dos governos federal, estadual e municipal no Rio de Janeiro trouxe muita visibilidade para os programas desenvolvidos na cidade, já que o Rio era então a maior metrópole do país com governo aliado ao Governo Federal, que pretendia eleger sua sucessão, na candidatura da então Ministra da Casa Civil, Dilma Roussef. Essa aliança entre os três poderes foi acionada permanentemente durante as campanhas de 2010 para Presidente e Governador, bem como 2012, quando Paes se reelegeu com um discurso que prometia investimentos crescentes para a cidade vindos da aliança entre os três poderes. Os programas de urbanização de favelas e o MCMV figuravam como estrelas da campanha presidencial no município e Estado do Rio de Janeiro, com discurso voltado para as camadas populares. Dilma Rousseff, assim como acontecera com Eduardo Paes em 2008 (e posteriormente em 2012), elegeu-se com expressivo apoio das camadas populares no Rio de Janeiro em 2010. Nesse contexto, a SMH, que havia perdido visibilidade e relevância durante o segundo e terceiro mandatos de Cesar Maia sob a liderança de Solange Amaral, passaria por uma nova inflexão. No novo cenário, o Prefeito eleito não tinha dependido dos programas da SMH para se eleger, e esta não estava entre as secretarias prioritárias em seu projeto de governo, entrando assim na “cesta” das secretarias que seriam entregues a partidos da base aliada – nesse caso ao PT. Por outro lado, era uma Secretaria que poderia ser considerada relevante se vista da perspectiva das oportunidades futuras, já que poderia ser uma das principais articuladoras dos programas PAC Favelas e MCMV. Não temos condições de afirmar aqui se o Prefeito tinha essa percepção naquele momento. No entanto, quando ofereceu a Secretaria a uma liderança do PT, este imediatamente percebeu a possibilidade de captar recursos junto ao Governo Federal para dar relevância novamente ao órgão. Até a reeleição de Paes no primeiro turno em 2012, a coalizão política que sustentava o grupo no Poder Municipal parecia permanecer fortalecida. No entanto, as relações entre o então Secretario de Habitação, Jorge Bittar, e o Prefeito, parecia aos poucos enfraquecer. Segundo alguns informantes, na época da campanha de reeleição do Prefeito, a SMH não participou da agenda do Prefeito, o que começou a levantar suspeitas entre os profissionais da burocracia sobre a continuidade da aliança que sustentava a liderança na SMH.



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Logo após a reeleição de Eduardo Paes, a saída do Secretário de Habitação Jorge Bittar foi anunciada. Em meio a disputas internas que envolveram tanto o partido do Secretário quanto o grupo político do Prefeito, e a reacomodação da coalizão já visando à eleição seguinte, na qual o então Secretário deveria participar apoiando candidato de seu partido, a alternativa escolhida pelo Prefeito foi neutralizar a SMH. Para substituir o Secretaário, foi escolhido o então Subsecretário, personagem sem expressão política. Segundo relatos colhidos ao longo das entrevistas e informações veiculadas em jornais na época, a saída de Bittar estava relacionada a dois elementos: de um lado uma disputa entre autênticos e pragmáticos em seu próprio partido, por outro lado disputas relacionadas aos rumos da política de habitação do território com o grupo de confiança do Prefeito. A resistência de Bittar em “ceder espaço” à ala pragmática de seu partido na SMH teria causado um desconforto que levou o grupo pragmático a declarar ao Prefeito que Bittar não mais representava a base do PT no Rio de Janeiro. Simultaneamente, Bittar teria entrado em coalizão com representantes do grupo político de Paes, que estaria incomodado com o fato de as intervenções da SMH responderem a uma lógica “técnica”, planejada dentre os quadros técnicos da burocracia, em detrimento do atendimento à clientela de alguns grupos políticos pragmáticos no território. A escolha do novo Secretário, personagem sem expressão política, era apresentada como uma solução simples para ambos os problemas: dali pra frente a Secretaria apenas cumpriria ordens diretas dos grupos pragmáticos, tanto do PT quanto do partido do Prefeito, o PMDB. O novo Secretário parecia apresentar-se como cumpridor de ordens do Prefeito, e passou a facilitar as negociações junto aos Subprefeitos e com os seu parceiros dentro do PT. Em um período que varia de poucos meses a um ano, os técnicos em posição de gestão entre 2009 e 2012 deixaram suas posições. Alguns deixaram a Secretaria. No que chamamos aqui de terceira inflexão do período investigado. Para agravar a situação, o ano de 2013 foi marcado pelas manifestações populares, que tinham entre as suas principais demandas a suspensão das remoções de favelas promovidas pela Prefeitura nos anos anteriores, pelas quais a SMH foi responsabilizada publicamente, pressionando o Prefeito a posicionar-se em favor do direito à moradia, constantemente violados em processos que não necessariamente estavam ligados ao programas liderados pela SMH. Além disso, a Copa do Mundo se aproximava, e as obras tanto da Copa (2014) quanto das



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Olimpíadas (2016) encontravam-se em atraso. A partir desse momento, parece haver uma reacomodação não só da coalizão política como das prioridades da gestão, e a urbanização de favelas deixa de ser uma prioridade.87 Vale chamar atenção aqui que as políticas sociais têm características próprias em relação ao conjunto das políticas públicas, e apesar de matrizes teóricas diversas tratarem diferencialmente essas características, as políticas sociais são extremamente dependentes do resultado das relações políticas em jogo na disputa do controle pelo Estado. Na perspectiva de Bourdieu, os líderes políticos (compreendidos como aqueles que têm muita influência dentro do partido) ganham poder sobre o aparato que eles monopolizam, e irão liderar a produção e imposição de interesses políticos instituídos, pois entendem que podem impor suas próprias crenças ao invés das crenças das pessoas que supostamente representam. Assim, enquanto os políticos têm seu poder político derivado daqueles que lhe confiaram o poder, eles não necessariamente precisam atender aos desejos do grupo quando esses entram em conflitos com seus próprios (BOURDIEU, 2006, p. 192). Desta forma, a política tem uma lógica própria, e a tomada de decisões quanto à gestão do território por um determinado governo tenderá a buscar fortalecer suas bases para continuar no poder – ou para que seu grupo político continue. Assim, pela terceira vez ao longo do período investigado, mudanças políticas com o objetivo de sustentar a coalizão no poder tiveram impacto direto e significativo na SMH, bem como no processo de institucionalização das políticas de urbanização de favelas que parecia vir se fortalecendo novamente a partir de 2009. 9.2 A burocracia Bourdieu sugere que, para compreender a dimensão simbólica do efeito do Estado, especialmente o que ele chama de efeito universal, é preciso compreender o funcionamento específico do microcosmo burocrático, analisar a gênese e a estrutura desse universo de agentes do Estado, a produção do discurso performativo sobre o Estado que, sob a aparência de dizer o que ele é, fez o Estado ao dizer o 87

Durante as entrevistas, as justificativas para essa nova inflexão por vezes sugeriram que a saída do secretário Bittar, teria afetado a liberação de recursos pelo governo Federal, que teriam de ser renegociados diretamente pelo Prefeito, desta forma disputando com os recursos necessários para outras obras e projetos.



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que ele deveria ser, logo, qual deveria ser a posição dos produtores desses discursos na divisão do trabalho de dominação (BOURDIEU, 2005, p. 212). Em uma visão moderna, sob a influência de autores como Max Weber, o serviço público deveria ter como marca um conjunto de engrenagens de caráter técnico para garantir o funcionamento do Estado, independente do dirigente que estivesse no poder. A Constituição de 1988 determinou, a partir do princípio da impessoalidade em seu artigo 37, que o concurso público e a licitação são condições para contratação no serviço público, garantindo o universalismo de procedimentos no ingresso ao mesmo. No caso do Rio de Janeiro, não identificamos estudos sobre a formação e características da burocracia municipal nos últimos vinte anos, e tampouco encontrados dados sobre a formação atual desta, dificultando a tarefa de fazer uma análise mais complexa desse conjunto. Durante as visitas à SMH para entrevistar funcionários, bem como pesquisas em outras bases de dados, não foi possível obter dados como números, perfil, tempo de trabalho, rotatividades entre órgãos e secretarias. A SMH foi formada, como mencionamos anteriormente, com um caráter bastante insulado. Ela tinha uma tarefa a cumprir: executar a política de habitação recém-criada. Assim, seus profissionais foram escolhidos de forma que pudessem executar essa ação, sob a liderança de um Secretário de perfil predominantemente técnico. O que não quer dizer que este não fosse alinhado politicamente a um determinado projeto de poder. Nesse caso, o que sugiro aqui, é que o Secretário à época, Sérgio Magalhães, se atuava como hábil político na gestão pública e na operação de relações no campo do poder, conservava um habitus fortemente influenciado pelo seu capital cultural, especialmente por sua identidade profissional, de arquiteto-urbanista. Uma parte importante dos técnicos no nível de coordenação e gestão da SMH teriam iniciado seu trabalho no serviço ainda na década de 1980, durante o governo Brizola, tendo sido efetivados posteriormente, unidos pela identificação com um projeto político e de intervenção que viabilizaria a permanência da favela onde está. No entanto, essa situação parece ter mudado radicalmente ao longo do tempo. Os relatos colhidos ao longo das entrevistas sugerem uma fragmentação progressiva do corpo burocrático da SMH desde sua criação, de maneira que estes estariam subdivididos entre diferentes grupos políticos, com alguns casos onde os



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funcionários não se alinham politicamente, ou seja, executam tarefas, em um modelo mais similar à da burocracia weberiana como tipo ideal, respondendo a ordens do grupo político no poder. No caso estudado, a burocracia parece alinhar-se politicamente sempre que possível, seja por razões ideológicas, seja para garantir condições favoráveis de trabalho. Os alinhamentos podem dar-se diretamente com políticos ou partidos, mas também podem dar-se de maneira corporativa, através de associações profissionais, por exemplo. Além de uma alta mobilidade com relação à posição ocupada dentro da burocracia, dependendo das mudanças de orientação política, funcionários circulam entre secretarias e outros órgãos de governo quando mudanças de orientação política impedem que executem suas atividades na direção que acreditam, ou simplesmente pelo fato de não confiarem, ou não terem a confiança, do líder político na gestão. Quando discutimos formulação de política, existe um conjunto de profissionais que pode ser considerado a elite da burocracia. Esses profissionais são reconhecidos dentro e fora de seu órgão de origem por sua capacidade técnica e de gestão, mesmo quando contesta-se seu alinhamento político. No caso estudado, esses personagens alinham-se politicamente. Pedir licença é uma estratégia utilizada para afastar-se quando uma situação política afeta demasiadamente ou impede sua atuação técnica e/ou de gestão. São profissionais que ocupam cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS), com adicionais de remuneração por ocupar tais funções. Esses funcionários são os gestores da burocracia, com frequência ocupam cargos de sub secretários, e as posições que ocupam podem estar dentro do pacote de cargos das negociações entre grupos políticos. Às vezes ocupam cargos de Secretário/a em substituição temporária de um Secretário/a, frequentemente quando este sai para candidatar-se, ou para renovar um mandato no Legislativo. Em geral, apesar de claro alinhamento político, não é comum que concorram a cargos politicos eletivos. Em última instancia, o funcionamento de uma Secretaria vai depender da relação, peso, importância da Secretaria (e do Secretário) para o Prefeito, sua função e posição na coalizão e no projeto de governo. Logo abaixo desses funcionários, que circulam entre diferentes secretarias e órgãos públicos com alguma frequência, encontra-se outro tipo de funcionários, que apesar de terem suas preferências políticas e/ou ideológicas, não costumam alinharse abertamente a um determinado grupo político ou partido. Esses em geral



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permanecem na mesma Secretaria, apenas ocupando funções distintas, com mais ou menos poder, dependendo das mudanças de orientação do órgão. Quando se trata de organismos administrativos, a tomada de posição tem como base determinante a tendência das instituições burocráticas e dos funcionários correspondentes, a evitar que um organismo burocrático perca toda a sua razão de ser ao perder a sua função, sendo importante manter um número mínimo de funcionários dentro do órgão. No entanto, apesar dos discursos públicos que elevam o insulamento burocrático dentro da SMH, especialmente de forma a justificar certas práticas e decisões, o que observamos na prática foi uma altíssima ingerência política no funcionamento da Secretaria, que se reflete em uma “dança das cadeiras” quase permanente a partir de 2001, quando se dá a primeira inflexão do período88. A continuidade política e de orientação das políticas do setor da habitação, entre a formação da SMH em 1994 e o retorno de Cesar Maia em 2001, garantiu uma estabilidade ao funcionalismo daquele órgão, que a partir de 2001 passou por mudanças constantes. Segundo um dos entrevistados do corpo burocrático da SMH, durante quase todo o período investigado, ainda que a estrutura de cargos permaneça similar à estrutura matricial original, as funções vão perdendo sentido, e a existência de um determinado cargo não garante que sua função será preservada ao longo do tempo: ou seja, um funcionário pode até não mudar de cargo durante uma mudança no jogo político, mas a função daquele cargo pode ser esvaziada ao ponto de seu trabalho perder o sentido. Embora tenham estabilidade de emprego garantida por lei, funcionários da burocracia podem ficar em posições muito desagradáveis, ou serem transferidos ao “sabor político”, como destacou um deles durante entrevista. O caso da SMH tem a especificidade de nascer junto com a política investigada, para implementá-la. Nasce com status político importante, e seu papel deveria executar bem o trabalho, que naquele momento significava criar as bases e programas para a implementação de fato da Política Municipal de Habitação. Podese considerar o corpo funcional da SMH em seus primeiros anos um corpo privilegiado: era uma Secretaria que nascia como fruto de uma longa trajetória de lutas sociais, tinha como objetivo implementar uma politica pública declaradamente 88

Teria sido muito proveitoso acessar inforações sobre os índices de mudanças dentro da burocracia a cada mudança de governo, ou mesmo de realinhamento de coalizão. No entanto, tais informações não foram encontradas.



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fundada em princípios de justiça social e universalista. Seus principais funcionários eram profissionais, em sua maioria arquitetos, engenheiros e assistentes sociais, comprometidos com a política a ser desenvolvida. Muitos deles já vinham atuando na área buscando soluções para a questão específica da favela há mais de uma década no momento da criação do órgão. Durante essa investigação foram entrevistados membros da burocracia que ocuparam cargos de coordenação e teriam participado ativamente da formulação dos programas de urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro ao longo do tempo. Dentre os entrevistados, encontramos uma burocracia altamente qualificada. Quase a totalidade dos entrevistados possui pós-graduação, por vezes mais de uma, em institutos de pesquisa e universidades com reconhecida produção de conhecimento no campo do planejamento e da habitação. Segundo todos os entrevistados que fizeram parte da burocracia no período 1994-2000, a gestão era voltada para resultados, no entanto, com foco nos processos e no desenvolvimento profissional do corpo burocrático. Os relatos sobre o período, mesmo entre os que por alguma razão criticam a atuação do então Secretário, destacam o incentivo à participação dos funcionários em cursos de formação,

em

institutos

de

pesquisa

e

políticas

urbanas

renomados

internacionalmente. Havia durante o período também um incentivo para que o corpo burocrático da SMH estivesse integrado de forma a gerar um aprendizado interno através da troca permanente de informações e conhecimento. Uma das formas de promover esse tipo de integração, além da estrutura matricial criada, era a realização de encontros periódicos onde toda a equipe compartilhava experiências e planejava ações futuras. Se por um lado o Secretário à época não era unanimidade dentre os movimentos locais que lutavam pela reforma urbana, por outro ele conseguiu organizar em torno dele uma equipe qualificada e fiel às tarefas que devia executar, utilizando sua relação com os prefeitos e habilidade política, de forma a insular a equipe técnica das pressões político-partidárias durante sua gestão. Esse período é lembrado por todos como um período de exceção, fase áurea do funcionalismo na SMH. Com a primeira inflexão, no ano 2000, essa estrutura de funcionamento se rompeu, e segundo os entrevistados jamais é retomada. Apesar de ocorrerem mudanças ao longo do período, que incluem uma tentativa de retorno à estrutura original a partir de 2009, todos os entrevistados queixam-se de o corpo atual do funcionalismo da SMH ser extremamente fragmentado. Mais de um



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entrevistado utilizou a expressão “feudos políticos” para descrever como o funcionalismo se organiza atualmente no órgão, que seria resultado da forma com a qual a SMH foi ganhando um perfil de ação mais “político” do que “técnico”, como os entrevistados descrevem. Inúmeros entrevistados sugerem que há uma disputa interna do órgão a partir de 2001 com a primeira inflexão, onde a informação tornase “mercadoria reservada ao uso político”, ou seja, “quanto menos circular, melhor”, de maneira radicalmente oposta ao que se esperaria de um grupo funcional trabalhando em busca de objetivos comuns. Segundo os entrevistados, diferenças de visão em alguns aspectos existiram ao longo de todo o período, bem como disputas de poder entre diferentes grupos. No entanto, a proporção que estas disputas tomam a partir de 2001 inviabilizariam a execução da políticas com o mínimo de eficiência, já que as disputas internas passam a se colocar como obstáculos antes mesmo dos desafios no território, que já não são poucos. Segundo os relatos colhidos, em maior ou menor grau esse tipo de fragmentação permearia todo o funcionalismo público municipal. Assim, a burocracia com a qual nos deparamos, nos dias atuais, não se encontra insulada de pressões políticas. E dificilmente pode ser avaliada a partir de uma definição tradicional, weberiana, de burocracia, ou mesmo de burocracia insulada, como sugeriu Nunes, apesar de ser descrita como tal quando convém aos políticos.89 Quando iniciamos esse estudo, nossa visão da burocracia no campo era de uma burocracia insulada. Buscávamos um tipo de posicionamento como o descrito por Topalov (1991, p. 35), que ao discutir as relações entre a fundação da ciência urbana e o projeto de uma ordem espacial, afirma que a partir da segunda metade do século XIX, com a burocratização das funções administrativas, as ciências da cidade eram candidatas naturais a administrar, e encontrariam como aliados naturais os políticos, cujo interesse político seria preconizar uma política despolitizada. No

89

Nunes, sobre o tema, esclarece: “Na linguagem da teoria organizacional contemporânea, o insulamento burocrático é o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias. Ao núcleo técnico seria atribuída a realização de objetivos específicos, o que significaria a redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel. Esta redução da arena é efetivada pela retirada de organizações cruciais do conjunto da burocracia tradicional e do espaço político governado pelo Congresso e pelos partidos políticos, resguardando estas organizações contra tradicionais demandas burocráticas ou redistributivas.” (NUNES, 1997, p. 34)



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discurso, a política “despolitizada” é preconizada. Na prática, no entanto, a realizada é outra. Assim, se por um lado, o insulamento burocrático está marcado, e é defendido, no discurso político, pode-se afirmar que ele não se efetiva na prática. Ao investigar o período que vai de 1994 a 2013 na burocracia da SMH, evidencia-se que o insulamento relativo ao qual esse corpo funcional teve exposto no período 1994-2000 possa ter legitimado decisões pouco sensíveis a determinados interesses populares. Por outro lado, ele também preservou a burocracia de pressões para privilegiar

trocas

políticas

imediatas,

podendo

trabalhar

na

direção

da

implementação da política social tal qual havia sido formulada. Esse cenário muda a partir de 2001, quando o insulamento da burocracia parecia existir somente no discurso, e as decisões relacionadas a trocas políticas imediatas passaram a prevalecer em relação a decisões técnicas, voltadas para a implementação da política. Não se pode negar que parte do corpo burocrático do caso estudado sofre forte influência de princípios da racionalidade econômica, perpetrados, entre outros, por organismos internacionais a partir da visão neoliberal de Estado, e essas visões entram em conflito com outras, de natureza moral, de uma perspectiva de acesso a direitos. Nesse sentido, mesmo no período que antecede a 2001, argumentos técnicos são utilizadas em diferentes momentos de forma a justificar decisões políticas, e a burocracia nesse sentido parece ser vítima de uma forma de ação que ela mesma defende ou pratica. Bourdieu (1998) também chama isso de tecnocracia, que em muitos aspectos substituiria a democracia na atividade política, que é invadida pela racionalidade econômica na regulação das ações dos atores políticos, de forma que problemas políticos passam a ser tratados a partir de ações calculadas, como fazem os homens de negócios, e a serem debatidos por especialistas, excluindo a maioria das pessoas, incluindo os impactados diretamente, dos espaços onde são tomadas as decisões. Levando em conta essa formulação, podemos afirmar que talvez aí se coloque um contradição importante na construção e legitimação das políticas objeto deste estudo ao longo do tempo: como conjugar uma política que tem origem na ampliação de direitos, legitimada por lutas sociais marcadamente políticas, com a racionalização econômica, material e simbólica que permeiam a construção histórica do neoliberalismo?



172

Se por um lado técnicos com formação exemplar buscam fazer uma política “protegida da política”, eles parecem simultaneamente contribuir para um aprofundamento da despolitização do debate, com impacto importante nas disputas eleitorais, como se os candidatos passassem a ser porta-vozes de técnicos, ficando oculta sua atuação como representantes de interesses econômicos e políticos por trás da dinâmica na formulação da política pública. Não se trata aqui, de forma alguma, de responsabilizar o corpo burocrático pela utilização política que se faz de sua produção técnica, mas sim de expor dinâmicas que se dão no espaço do Estado de forma que possamos avançar nos processos de formulação e legitimação de políticas com base em processos reais, e não imaginados. A crítica que parte de uma suposta ineficiência intrínseca do Estado, direcionada crescentemente a desmontar sistemas de bem estar social em diversos países do mundo, é feita permanentemente nos grandes meios de comunicação do País. Ou seja, a visão tipicamente liberal de que o Estado intervencionista tenderia necessariamente a estimular a prática do rent seeking, gerando corrupção e dilapidação dos recursos públicos, vai sendo reforçada para justificar uma gestão privatizada do Estado, colaborando na construção de um campo propício para a apropriação do público pelo privado e difusão de práticas de instrumentalizar o Estado. Segundo esta perspectiva, o antídoto seria naturalmente o Estado mínimo, meta da visão liberal ortodoxa, defendido amplamente pelos principais meios de comunicação de massa no país. Este discurso tem sido acionado com frequência como justificativa para a intervenção na burocracia, que é permanentemente fragmentada, além de acusada. Para completar esse quadro, chama atenção na atual administração um discurso que exalta a qualidade da administração privada, citando especialmente empresas multinacionais como referência de gestão, trazendo modelos de gestão destes espaços para reorganizar a burocracia estatal.90 No entanto, não nos parece razoável discutir instrumentos de gestão e eficiência em um quadro de total esquartejamento da máquina pública, onde políticas mudam a cada dois anos, pessoas são transferidas de posições em 90

A apresentação do modelo de gestão da Prefeitura sob a gestão de Eduardo Paes, elevando valores como meritocracia e produtividade no setor privado, mostram claramente essa orientação: https://www.gestaoucp.fazenda.gov.br/4%20Palestra%20Meritocracia%20RJ.ppt/view, acessada pela última vez em 4 de janeiro de 2015.



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frequência similar, cargos perdem seu sentido. Sob essa ótica, nos parece fazer mais sentido falar em estratégias diferenciadas de desenvolvimento, onde a ênfase se desloca da importância da coordenação estatal para mediar interesses muitas vezes conflituosos da sociedade, através de processos de discussão e construção coletivas, para uma gestão empresarial supostamente focada em alcançar resultados com rapidez. Trata-se de utilizar a abordagem das variedades de capitalismos como recurso heurístico para entender o ambiente institucional mais amplo no qual se dá a interação entre os atores fundamentais da ordem capitalista, produzindo a diversidade de rotas para alcançar o desenvolvimento. Ou ainda, como destaca Diniz (2011), para avaliar os fundamentos institucionais das diferenças nacionais no interior do sistema capitalista contemporâneo. Assim, o funcionalismo público não parece dispor de uma autonomia baseada em suas estruturas objetivas, tradições e regras próprias, ou nas competências dos agentes, e as rivalidades ou disputas que se manifestam no campo parecem, antes, obedecer às pressões, determinações e influências externas, que apesar de manifestarem-se de acordo com a conjuntura, nos parecem ter evoluído como parte de estrutura do sistema político. Não podemos ignorar, é claro, que cada indivíduo pode tirar partido dos conflitos estruturais entre as autoridades que se confrontam no quadro de uma unidade administrativa, para suspender as decisões indesejadas ou retardar seus efeitos, ou jogar não com as relações horizontais no quadro do domínio territorial, mas com as relações verticais. No entanto, a escolha que cada um dos detentores de um poder burocrático pode fazer entre o rigorismo e o laxismo, entre as diferentes formas de abuso de poder por hipercorreção ou por distanciamento em relação à função, parece ter seu limite na concorrência com os outros pretendentes ao monopólio da aplicação da regra burocrática.



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10 O QUE EXPLICA AS SUCESSIVAS INFLEXÕES? Os repertórios expressam condições de possibilidades dos jogos de linguagem vigentes, mas os jogos de linguagem vigentes são os jogos conjunturais. Eles não estão inteiramente livres. Marx está cansado de dizer isso: os homens não fazem a história que querem. Mas essa é uma leitura não objetivista da ideia tradicional das ciências sociais que vêm com Marx. Os repertórios são o que podem ser, eles expressam condições de possibilidades em jogos de linguagens possíveis. (Luiz Antonio Machado da 91 Silva, 2014) .

Argumentamos aqui que o jogo onde se definem as políticas de urbanização de favelas a partir de 1993 pode ser analisado como processo de continuidades e rupturas, onde ora a urbanização de favelas parece fortalecer-se e afirmar-se como política social, de habitação, prioritária para esses territórios, ora perde força, deixando de ser prioridade na agenda política. A partir da análise feita aqui, estaríamos diante de um processo perpassado por três inflexões importantes no sentido da institucionalização, ou não, da política ao longo do período investigado. Identificamos que essas inflexões, que implicam em mudanças na gestão, coincidem com momentos onde há ruptura ou necessidade de reorganizacão da coalizão no poder, em 2000, 2009 e 2013, desdobrando-se em reorientações na operação da política pública social. Buscamos até aqui construir uma narrativa desse processo, apresentando marcos legais e institucionais que, a partir da redemocratização do País na década de 1980, tiveram papel importante para que a permanência da favela fosse legitimada no espaço carioca, bem como as políticas de urbanização desses espaços como alternativa viável, de política social, de intervenção. Passamos então a descrever como os programas se estruturaram ao longo do período, e elencamos quais são os agentes que se destacam nesse processo. Pode-se dizer que todos os ciclos identificados aqui são permeados por conflitos e contradições, a partir das informações às quais tivemos acesso, do tempo e recursos disponíveis para a investigação, chamando atenção aqui para a dificuldade de acessar documentos e informações que deveriam ser disponibilizados publicamente pelo Estado. Não temos nenhuma intenção de encerrar aqui o assunto, ou apresentar verdades absolutas, mas sim enunciar questões que apareceram ao longo do caminho, buscando contribuir para a produção de conhecimento sobre como se dá a 91

Em entrevista concedida à autora no escopo desta investigação.



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formulação e a legitimação das políticas públicas sociais na área do planejamento urbano, e especialmente nas relações entre o Estado e a favela. No entanto, formulamos três hipóteses explicativas, que acreditamos articularem-se de maneira combinada, contribuindo para o aprofundamento de uma dinâmica na qual a política não consegue ser institucionalizada. 10.1 A política social no conflito entre as gramáticas políticas do Brasil Quando iniciamos esta investigação, buscamos classificar os agentes no campo de acordo com o modelo teórico proposto por Bourdieu, aplicado de maneira muito esclarecedora em As Estruturas Sociais da Economia, onde ele discute o setor da habitação popular no caso francês. Posteriormente, buscando aprofundar a reflexão sobre as razões explicativas das dinâmicas no campo, recorremos à tese de Edson Nunes, no qual o autor descreve o contexto institucional brasileiro a partir da década de 1930, e como se dão as relações Estado-sociedade no País. Argumentamos que o reequilíbrio na combinação das gramáticas utilizadas pela coalizão no poder, para garantir sua permanência e de seu grupo, tem relevância para explicar o caso estudado. Desta forma, a própria natureza da política social, originada e desenvolvida com base em uma certa combinação de gramáticas, naturalmente perde força quando essas gramáticas estiverem enfraquecidas segundo o projeto de poder que lidera o Estado. Nesta seção, propomos analisar as inflexões do período à luz dessa perspectiva analítica, ou seja, de como elas se relacionam com as gramáticas políticas que mediam as relações Estado-sociedade. No caso específico da SMH, a Secretaria é criada com o objetivo declarado de implementar a política municipal de habitação, política esta criada a partir de uma visão universalista, sob forte influência dos valores preconizados pelo movimento da reforma urbana, ancorados na ideia de justiça social e redistribuição de riquezas. No entanto, a gestão de forma mais ampla aderia às premissas do neoliberalismo, que incluíam a espoliação urbana permanente através de estratégias baseadas na competitividade entre cidades. O corpo burocrático da Secretaria foi escolhido para implementar a política municipal de habitação, que em ultima instância conflitava com princípios que regiam a administração do município. Esse corpo burocrático foi em grande medida insulado das disputas políticas eleitorais diretas até o ano 2000, quando houve a primeira inflexão do período. A partir daí, a Secretaria passou a ser



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crescentemente utilizada como parte da disputa e da máquina, eleitoral, de maneira mais ou menos explícita ao longo do tempo. Formalmente os objetivos são os mesmos, a estrutura formal e os cargos são pouco alterados. Na prática, a orientação muda radicalmente. Ainda que se possa afirmar que o conceito do Favela Bairro, que nascia com a política de habitação, e na esteira do processo que resultou no Plano Diretor de 1992, não estivesse inteiramente alinhado com os princípios que os grupos que militavam pela reforma urbana conseguiram garantir, ele teve um papel muito importante no reconhecimento e legitimação do direito do favelado de permanecer onde está. Se o objetivo da burocracia é implementar uma política baseada na ampliação do universalismo de procedimentos, e se isso for ao encontro aos interesses da liderança política ou da coalizão no poder, a burocracia insulada não será aliada, mas sim obstáculo. No período entre 1993 e 2000, o mais longo período de estabilidade

da

política

de

urbanização

de

favelas

no

sentido

de

sua

institucionalização, é possível que tenha havido um equilíbrio onde a burocracia insulada, ainda que não apolítica ou sem vínculos partidários, tenha podido exercer um papel com algum grau de independência, justamente por ter objetivos claramente alinhados aos do grupo político no poder então. O grupo no poder beneficiou-se significativamente do sucesso do programa Favela Bairro, e a conjuntura naquele momento permitiu que uma política universalista, implementada por um corpo burocrático razoavelmente insulado, trouxesse retornos eleitorais (e em tempos eleitorais) que justificassem sua preservação. A operação, que envolveu um enorme esforço de estratégia política – que implica em uma forte estratégia de comunicação entre os diferentes atores que se alinharam simultaneamente na academia, na burocracia, nos movimentos sociais, ONGs, associações profissionais, entre outros – para que a existência do Favela Bairro fosse possível, e que ele pudesse sobreviver a mudanças de governo (apesar de sofrer ataques constantes que enfraqueceram o programa, e posteriormente o Morar Carioca, seu sucessor), é resultado de uma convergência muito específica de fatores ambientais, políticos e sociais favoráveis, unidos à liderança política bem sucedida durante o primeiro governo de Cesar Maia e o governo de Luiz Paulo Conde, até o rompimento dos dois. A inflexão que pontua o primeiro movimento de enfraquecimento da política é marcado por uma conjuntura onde o sucesso da política a partir de premissas



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universalistas havia ameaçado o sucesso do grupo que almejava o poder. Esse grupo, que precisou utilizar de um amplo espectro de alianças para se eleger – estamos falando aqui de Cesar Maia nas eleições de 2000 –, iria reorganizar a gestão pública de forma que a gramática personalista do clientelismo passasse a ocupar mais espaço nas relações entre Estado e sociedade.92 O que também coincide com as primeiras eleições após a Constituição de 1988, quando os mandatos existentes podiam pleitear reeleição. Naquele momento, a SMH assumia gradativamente uma posição onde o cálculo de efetividade passava a depender do numero de votos que podia garantir, focando gradativamente nas trocas individuais e negociações com outros partidos dentro da coalizão, em detrimento de investir na execução de uma política de caráter universalista. Nesse sentido, vale ilustrar essa proposição destacando o aumento no numero de partidos nas coalizões eleitorais que assumiram o governo da cidade do Rio de Janeiro desde o início do período analisado. O aumento do numero de partidos nas coalizões eleitorais, supomos aqui, implica na complexificação da operação de formar um governo. As coalizões, como descreve Nunes (1997), são uma possibilidade lógica para um partido conseguir acesso a alguns segmentos de recurso para a patronagem, assim, a utilização do clientelismo para manter apoio político torna-se um ato sujeito a um cálculo racional. Nessa perspectiva, as práticas clientelistas são compatíveis tanto com partidos ideológicos como com os fisiológicos. O autor chama atenção ainda para o fato de que a adoção de mais ou menos universalismo de procedimentos não é função exclusiva da base social do partido ou mesmo das tendências ideológicas de seus quadros, mas depende de uma combinação de fatores, sendo as mais cruciais as decisões racionais tomadas pelas elites partidárias. Em síntese, a adoção de estratégias universalistas ou clientelistas depende da combinação de três fatores: decisões da liderança, orientações do eleitorado e existência de recursos.93 92

É importante ressaltar que partimos do entendimento de Edson Nunes segundo o qual as relações entre Estado e sociedade são regidas por quatro gramáticas simultaneamente, porém em intensidades distintas em diferentes momentos da história. Os três maiores partidos políticos brasileiros entre 1945 e 1964 podem ser assim caracterizados: o PTB e o PSD cristalizaram-se como clientelistas e se distanciaram tanto do universalismo de procedimentos quanto do universalismo instrumental. A UDN, apesar da possibilidade inicial de se institucionalizar como um porta-voz do universalismo, foi afetada pelas peculiaridades regionais que a levaram ao poder em coalizão com partidos clientelistas e que pressionaram a lógica partidária na direção do clientelismo. Os três maiores partidos acabaram constituindo uma coalizão de fato para patronagem. (NUNES, 1997: 80)

93



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Tabela: Coalizões eleitorais vencedoras nas gestões municipais do Rio de Janeiro a partir de 1993 Partido do prefeito

Coalizões políticas do mandato do prefeito no inicio do pleito

Cesar Maia 1993-1996

PMDB

PMDB, PMSD, PL

Luiz P. Conde 1997-2000

PFL

Primeiro turno: PFL/PR/PPV/PTB/PSC

PTB

Segundo turno: PFL/PR/PP/PTB Primeiro turno: PTB, PPS, PR, PTC, PTN, PRTB, PSL, PMN, PAN

Cesar Maia 2001- 2004

PFL (Junho/ 2001)

Cesar Maia 2005-2008

Eduardo Paes 2009-2012

PFL

PMDB

Segundo turno: PTB, PPS, PR, PTC, PTN, PRTB, PSL, PMN, PAN DEM, PSDB, PSDC, PRTB, PTN, PV, PTdoB Primeiro turno: PMDB, PP, PTB, PSL Segundo turno: PMDB, PP, PTB, PSL, PT, PCdoB, PSB, PTN, PHS, PRB, PRTB, PSDC, PR, PDT.

Eduardo Paes 2013-

PMDB

PRB, PP, PDT, PT, PTB, PMDB, PSL, PTN, PSC, PSDC, PRTB, PHS, PMN, PTC, PSB, PRB, PSD, PCdoB E PTdoB

Um grupo de pesquisadores (CODATO, CERVI E PERISSINOTO, 2013), que investigou condicionantes que afetam o êxito eleitoral dos candidatos em eleições municipais no Brasil em 2012 (incluindo origem social, escolaridade, gênero, socialização política, estrutura de oportunidades oferecidas pelo sistema político, competitividade do partido e recursos disponíveis na campanha), sugere que o maior coeficiente individual de sucesso entre as variáveis acima, quando testadas, está relacionado à situação partidária, especialmente ao disputar uma eleição em uma coligação, seguido de pertencer a um partido com alto desempenho eleitoral. A essas segue a variável econômica medida pela disponibilidade de recursos nas campanhas. O estudo sugere que, no caso brasileiro, variáveis puramente políticas apresentam explicações mais consistentes com sucesso eleitoral do que as variáveis sociais.94

94

Alguns estudos sugerem que as oportunidades de eleição aumentam em proporção direta à disponibilidade de recursos econômicos mobilizados (FELISBINO, BERNABEL E KERBAUY, 2012), e que indivíduos de origem social superior – homens, com alta escolaridade, grande patrimônio e filiados a partidos políticos não muito distantes do centro político convencional – tendem a ter melhores condições de disputar cargos eletivos com chances de êxito.



179

As variáveis utilizadas para tentar explicar os resultados das eleições mostraram que há efeitos desiguais quando se considera o peso do explicativo de fatores diferentes. Assim, não seria correto supor que o acúmulo de capitais em domínios distintos – capital cultural, capital econômico, prestigio social, entre outros –, implique a possibilidade de traduzi-lo automaticamente em sucesso eleitoral. Segundo os autores, uma das explicações possíveis para os resultados encontrados seria

a

progressiva

institucionalização

especialização

das

regras

e

do

dos

universo

aparelhos

político políticos

no da

Brasil.

A

democracia

representativa – parlamentos, partidos, eleições – tenderia a impor um conjunto de exigências

que



podem

ser

atendidas

por

aqueles

que

se

ocupam

profissionalmente da política, e não por candidatos eventuais. Bourdieu, por sua vez, sugere que, quanto mais se autonomiza um campo, no caso o campo de produção ideológica, mais se derivam relações internas de dominação. Isso se vê notadamente à medida que a política se profissionaliza e que os partidos se burocratizam, pois a luta pelo poder político de mobilização tende cada vez mais a tornar-se uma competição em dois níveis. Isto seria o resultado da concorrência pelo poder sobre o aparelho estatal e a que se desenrola no seio do aparelho (BOURDIEU, 1998, p.194). Ainda que o mundo da política não seja impermeável a outros campos, ele pode funcionar a partir de uma lógica específica que valoriza, em primeiro lugar, recursos obtidos dentro do próprio campo político. Essa lógica favorece sobretudo o sucesso daqueles que desempenharam atividades prévias em burocracias públicas, cargos eletivos ou nas máquinas dos partidos políticos. Os dados encontrados por Codato, Cervi e Perissinoto (2013) sugerem a constituição e o desenvolvimento de uma classe política no Brasil cada vez mais fechada, heterogênea socialmente, mas semelhante quanto aos mecanismos de constituição e recrutamento, tipos e perfis de carreira, estratégias políticas e eleitorais. No período entre 2009 e 2012, quando houve uma nova inflexão na direção do fortalecimento e institucionalização das políticas de urbanização de favelas no município, que havia sido progressivamente enfraquecida entre 2001 e 2009, criouse uma ilusão de que uma situação de equilíbrio, onde a política baseada em princípios universalistas, com certa independência de uma burocracia insulada e altamente qualificada, poderia se repetir. No entanto, a conjuntura era outra, muito mais complexa, devido, entre outras coisas, à competição dentro da própria coalizão



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política, que atingiu diretamente a SMH e consequentemente a política de urbanização de favelas. As forças que incidiam sobre a coalizão também se alteraram, ganhando peso progressivamente os interesses do capital e da manutenção do poder da coalizão, que operava um volume de recursos voltado para políticas urbanas talvez jamais visto na capital carioca, e em aliança com os governos estadual e federal. Nessa conjuntura, o governo municipal também foi responsável por contribuir para a manutenção do poder na escala federal, assumindo um papel-chave de articulação no território a cada eleição, ou seja, a cada dois anos. Nesse contexto, a frequência com a qual as estruturas do governo são reorganizada em si já torna-se um obstáculo poderoso para a continuidade de uma política que não traga retornos imediatos, como é o caso da maioria das políticas sociais. Assim, as gramáticas políticas que ganham força nas relações Estado-sociedade são as gramáticas onde os indivíduos não são iguais participantes: o clientelismo, de cunho personalista, por um lado, e o corporativismo, de cunho impessoal, por outro. Porém, não universal. O insulamento burocrático – sem defender aqui que este seja necessariamente positivo, ao contrário, reconhecemos os desafios colocados a partir desta visão e de como e a serviço de que ela foi introduzida no Brasil – não interessa a partir do momento que o grupo no poder necessita de flexibilidade constante para manter os arranjos que sustentam seu governo. Conflitos dentro da mesma estrutura partidária entre os que se consideram autênticos e os que se consideram pragmáticos são comuns na história política do Brasil. Enquanto os primeiros propõem permanecer fiéis à gramática do universalismo de procedimentos guiados por ideais acordados pelo partido, os pragmáticos (ou adesistas) apoiam o fisiologismo. Alguns relatos sugerem que o retorno da urbanização de favelas a partir de uma perspectiva universalista, e executada por uma burocracia relativamente insulada, proposto durante a gestão de Bittar, tenha entrado em colisão direta com as práticas utilizadas pelos grupos pragmáticos, ambos do PT e do PMDB, na relação com suas bases eleitorais nesses territórios. O relato a seguir, colhido durante uma das entrevistas, ilustra a forma como as decisões passaram a ser tomadas a partir da terceira inflexão, que determinou o enfraquecimento do Morar Carioca:



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(...) a reunião que cortou o Morar Carioca pela metade (...) estavam todos os subprefeitos e seus assessores. Dois caras que são o braço esquerdo e direito do Prefeito, eu, e mais um técnico da SMH. Um dos assessores do Prefeito, que coordenava a reunião, diz: “vamos ver quais projetos vão ficar”. Eu, com uma planilha enorme, as quarenta áreas, conjuntos de favelas, com os valores. A gente teoricamente tinha dinheiro pra contratar todos os escritórios selecionados no concurso do IAB. Era uma decisão de contratação de escritórios. Tinham duas obras só definidas que eram do BID. Aí, por exemplo, Santa Teresa, o (mediador da reunião) perguntava: “E ai Subprefeito? Como é que ta aquela comunidade lá? Ta boa?”. A determinação de colocar aquela comunidade lá, tinha um objetivo, era finalizar o Favela Bairro, que foi ruim, não acabou e o que foi feito havia se perdido. Aí o Subprefeito disse “Ah, ta muito bom!” Aí o (mediador da reunião) vira pra mim e diz: “então pode tirar, corta essa aí.” (Pergunto se quando ela foi pra reunião, a pessoa sabia que o objetivo era esse.) Claro que não! Eu achava que a gente ia discutir prioridade de contratação, porque não tínhamos condições de contratar 40 escritórios ao mesmo tempo, porque é uma coisa complexa em termos burocráticos. Nessa reunião foram cortadas 10, e ficaram outras 6 sub judice. Aí o Subprefeito dizia: “ah, nesse grupamento, em uma comunidade que…” Aí eu dizia: “olha só, o senhor consulta a Procuradoria. Eu não posso mudar tudo agora, reduzir o valor do contrato com os escritórios, eu não posso pegar um grupamento de seis e contratar só duas, o procurador já disse que não vai aceitar”. Eu já tinha ido à Procuradoria por outros motivos e já sabia - acho 95 que eu já estava sentindo que alguma coisa ia falhar...”

Outra orientação após essa terceira inflexão era de que nenhum funcionário da SMH podia ir a um território sem consultar o Subprefeito da área, em uma demonstração clara de que a partir dali a gestão de qualquer intervenção no território devia ser mediada pela Subprefeitura, contrariando o principio do programa Morar Carioca, que havia sido desenvolvido a partir de uma lógica universalista e de parâmetros de intervenção a privilegiar o fortalecimento de redes locais e a promoção de autonomia, principalmente autonomia das populacões em relação às redes clientelistas tradicionais no território. Sobre o papel dos Subprefeitos na gestão, Rodrigo Bethlem, político do grupo político de ambos os prefeitos, Maia e Paes, sobre o papel das Subprefeituras na gestão municipal, descreve: Como as Subprefeituras não têm orçamento, o Subprefeito é um quadro meramente político, que faz a ligação entre comunidade e governo, organizando ações do governo na ponta. Se o Secretário é uma presença política muito forte, quando houver um assunto importante no território, quem vai tratar é o Secretário, e não o Subprefeito.” (MARQUES, 2012, p. 84).

95

Gestor público municipal, formado em Arquitetura, com mestrado em Planejamento Urbano. Vem participando de projetos e programas relacionados à urbanização de favelas desde a década de 1970, ocupou cargo de gestão na SMH entre 2009 e 2012, durante a elaboração e implementação da primeira fase do programa, em entrevista à autora no escopo desta investigação.



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Se a descrição de Bethlem for verdadeira, podemos assumir que não raro poderão emergir conflitos entre Subprefeitos e Secretários, que terão em última instância que ser mediados pelo Prefeito. No contexto investigado, os políticos irão sempre que possível tentar formar seus próprios grupos, utilizando Subprefeituras e Secretarias como espaços de formação e ampliação da base político-eleitoral. Não é incomum que profissionais candidatem-se pela primeira vez a um cargo legislativo após liderar uma Subprefeitura ou Secretaria. Foi assim que Cesar Maia formou seu grupo político (MARQUES, 2003), e parece que outros políticos têm utilizado ferramentas semelhantes para formar os seus no período recente. Por outro lado, políticos já eleitos licenciam-se de seus mandatos legislativos para ocupar Secretarias por períodos limitados, de forma a ampliar suas bases de apoio: seja por meio da implementação de políticas públicas em suas áreas de interesse (ou em favor de grupos que representam), seja pela utilização da máquina pública através da gramática do clientelismo. Não é segredo no Rio de Janeiro que vereadores, Subprefeitos e outros agentes ligados a políticos negociam serviços públicos no território diretamente com os cidadãos a partir da gramática clientelista. Isso foi registrado em detalhe por Diniz na década de 1970, e tem sido observado no período contemporâneo em distintas investigações, a exemplo de Arias (2005) e Kushnir (2006; 2008). Essas negociações vão desde “furar a fila” para conseguir uma consulta no posto de saúde, ou uma vaga em uma escola, ou um trabalho/emprego, até material de construção ou moradia em alguns casos. Existem também as trocas para um grupo, que se dão normalmente na forma de uma obra ou intervenção publica no local que é base, ou base potencial, eleitoral de um político, à despeito da necessidade prioritária de intervenção em outras áreas. Essas últimas também podem ser articuladas através de emendas parlamentares ao orçamento municipal.96 O fato de a urbanização de favelas a partir de 2004 ser financiada em parte significativa pelo BID proveu uma certa insularidade aos programas, fazendo com que fosse mais difícil utilizá-lo politicamente. No entanto, se isso foi fator de proteção durante o PROAP I, é possível que tenha contribuído para o enfraquecimento do 96

Dentre as emendas parlamentares ao orçamento municipal para o período 2012-2016, por exemplo, a ampla maioria é caracterizada por obras pontuais em territórios da base eleitoral do Vereador. São pouquíssimas as emendas que propõem políticas para a cidade de forma mais ampla, de forma que o legislativo parece adquirir um caráter de mediador de pequenos “serviços” entre o executivo e seus eleitores.



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programa em um cenário em que as gramáticas do clientelismo e corporativismo na gestão têm mais peso que o universalismo de procedimentos ou o insulamento burocrático para a manutenção do grupo no poder. Edson Nunes chama atenção para o fato de que o processo de insulamento envolve variações no grau de insulamento (nem todas as agências insuladas o são no mesmo grau), além de envolver mudanças temporais: Nem todas as agendas que foram insuladas permanecerão assim com o passar do tempo, uma vez atingidos os objetivos (não necessariamente os declarados publicamente), o ambiente operativo torna-se menos complexo, e as organizações podem deixar de existir ou mesmo ser "desinsuladas", o que pode ser percebido na trajetória da SMH.” (NUNES, 1997, p. 34)

Segundo a proposição de Nunes, enquanto o universalismo de procedimentos não era suficientemente forte para desalojar a ordem tradicional controlada pelos partidos políticos, a solução pareceu ser a criação de uma burocracia insulada a fim de perseguir a realização de políticas públicas que não fossem limitadas pela patronagem política, já que as agências protegidas pelo insulamento burocrático estariam mais propensas a manter procedimentos técnicos97. No entanto, o princípio, adotado no caso da primeira onda na direção da institucionalização da urbanização de favelas, não suportou às pressões da agenda eleitoral, e parece ter sucumbido gradativamente a outras formas de intervenção que dessem resultados eleitorais mais rápidos. A análise do caso estudado ilustra a diminuição progressiva do tempo no qual o grupo político consegue conferir algum grau de insulamento ao órgão, protegendoo assim de servir de base para o mercado político eleitoral personalista. Se por um lado isso não nos permite afirmar que esse seja um padrão que se repete em outras secretarias, ou é parte da dinâmica de funcionamento do sistema político brasileiro, ousamos afirmar aqui que o sistema político adotado a partir da Constituição de 1988 pode estar chegando a uma configuração que permite que partidos ou coalizões governem a despeito do bem estar coletivo dos cidadãos, através da articulação de duas gramáticas não universalistas, o que em alguma medida também pode estar relacionado com o que alguns pesquisadores chamam de “crise no modelo representação política das sociedades democráticas”. Que, por sua vez, só é possível devido ao volume de recursos disponíveis para fazer essa 97

Que naquela ocasião era necessária para garantir a modernização do País para que este se inserisse no ciclo de acumulação capitalista internacional.



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engrenagem funcionar, concentrado nas mãos de poucos. Um grupo reduzido compra a incidência no Estado, qual seja, o direito de participar das tomadas de decisão de como serão geridas as riquezas do comum. Os grupos que abdicam ou são compelidos a abdicar, não só de participar na gestão de riquezas do comum, mas de construir seu modo de vida e organização ao vender seu voto, são os mesmo que se veem reféns de políticas e práticas que os violentam sistematicamente, enquanto simultaneamente os alimenta à conta-gotas, lhes mantendo reféns. O clientelismo tipifica uma gramática personalista em oposição ao universalismo de procedimentos, impessoal

em sua raiz. O corporativismo e o

insulamento burocrático são penetrados tanto pelo personalismo como pelo impessoalismo. Enquanto gramáticas semipessoais e semi-impessoais, estas últimas estabelecem parâmetros formais sob os quais os indivíduos podem ser considerados iguais ou desiguais. No campo institucional, o personalismo está na estrutura de muitas instituições, e o universalismo de procedimentos está permanentemente sob tensão. Construir as bases para a manutenção do mandato, na prática, são atitudes de sobrevivência de todo político. A questão que se coloca aqui talvez seja como fazê-lo de forma que a política continue lócus legitimo de representação da cidadania (ou se é possível fazê-lo no atual sistema político que adotamos), onde parece que um pequeno grupo de portadores de recursos econômicos crescentemente financia a compra de votos que garantam que uma coalizão chegue, ou permaneça, no poder. No plano específico da formulação da política social, a negociação social se revela nos interesses envolvidos através do que denominamos grau de universalização, que implica na disponibilidade e/ou possibilidade de que o senso público ou coletivo se sobreponha ao privado. Em um contexto que estabeleça os interesses essencialmente privados (particulares ou coorporativos) em oposição aos públicos (coletivos), a possibilidade de que se estabeleça uma política social plena (que progressivamente garanta acesso a bens sociais e ao compartilhamento justo de recursos do comum) será dada pela proximidade do comum com o campo do poder, como resultado da correlação de forças estabelecida pelos diferentes atores no processo político. Quando mais longe estiver o comum do campo do poder, mais probabilidades de pequenos grupos terem de governar através de gramáticas particularistas, beneficiando grupos específicos de maneira fragmentada.



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10.2 Interesses do capital: o empreendedorismo urbano e a gestão empresarial A ampliação do crédito nos primeiros anos do governo Lula, somada às mudanças no marco regulatório que incide sobre o setor imobiliário, sustentaram o boom imobiliário ocorrido a partir de 2006. Fluxos de capital financeiro especulativo direcionados às periferias asiática e latinoamericana, mesmo aqueles que não vieram diretamente para o circuito imobiliário, reverberaram sobre a produção social do espaço urbano, em algumas frentes. A lógica financeira passou a condicionar toda a atuação do setor (FIX, 2012, p. 590).

A situação acima, descrita por Mariana Fix ao relatar o que ela chama de financeirização do mercado imobiliário no Brasil, parece ser agravada no Rio de Janeiro, com a dinâmica gerada pela recepção de dois megaeventos no espaço de apenas dois anos, que por sua vez têm legitimado um regime de exceção no qual as decisões são tomadas em espaços reservados a grupos de interesse vinculados ao grande capital. No âmbito local, pode-se dizer que esse processo tem início na cidade ainda na década de 1990, e é resultado das disputas que se deram no campo da produção da cidade entre os que defendiam uma construção de cidade baseada em valores ligados à justiça social, e os que pregam a supremacia do mercado como produtor de cidade. Se por um lado o Plano Diretor de 1992 pôde ser considerado um avanço, fruto da Constituição de 1988, com uma visão de sociedade e de cidade mais igualitárias, o empresariamento da cidade deu como resposta o Plano Estratégico, um plano não mais feito pelo Estado, mas em parceria com empresários, onde a cidade passa a ser construída nesse conjunto de parcerias. Nesse contexto, o planejamento não consiste mais em tratar a totalidade da cidade, mas projetos para partes de cidade, e isso não é um fenômeno que se dá exclusivamente no Rio de Janeiro. Se deu em Barcelona, em Boston, em Buenos Aires e em muitas outras cidades no mundo. O desempenho insatisfatório da gestão que governou a cidade entre 2001 e 2008, aliado à realização dos mega-eventos, abriu espaço para uma forma de fazer política que se coloca acima dos interesses gerais, privilegiando o mercado, com consequências em toda a administração pública. Ao ingressar na Prefeitura, Eduardo Paes promove um discurso de formacão de consenso em torno de uma nova estratégia de gestão, ancorada na parceria entre os três níveis de governo por



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um lado, e no desenvolvimento de parcerias público-privadas, nos ajustes das contas públicas, e na modernização da gestão, à luz do receituário neoliberal. O discurso e a intenção não diferem muito de seu antecessor, porém este se dá em uma conjuntura política que lhe confere maior poder de implementação, já que Cesar Maia não conseguiu selar a aliança nos três níveis de governo. A empresa de consultoria internacional McKinsey, escolhida para fazer os planos estratégicos da cidade de 2010 e 2013, deveria orientar o estabelecimento de metas para a gestão. A realização de grandes obras, com frequência apresentadas como

legados

olímpicos,

configuram-se

prioritárias

na

administração.

O

pragmatismo é apresentado como sinal de eficiência da gestão. A criação de uma Secretaria de Desenvolvimento Econômico – que, embora não tenha tido seu nome diretamente vinculado aos megaeventos esportivos, se tornou o principal elemento articulador na constituição de todo o arcabouço jurídico municipal para que a cidade pudesse se preprar para o recebimento de uma Olímpíada – foi comandada por um ex-executivo da empresa McKinsey.98 Após desempenhar sua função e montar toda a estrutura de poder que viabilizou a participação decisiva da iniciativa privada na decisão dos destinos dos investimentos públicos na cidade, o Secretário retornou para a iniciativa privada, foi substituído no cargo do IPP e a Secretaria foi desativada (OLIVEIRA, 2012). A composição do Secretariado do presente governo foi apresentada como: Um time jovem com carreiras de sucesso no setor privado integrado com o melhor que o funcionalismo público pode oferecer, com executivos de consultorias renomadas, corporações multinacionais e nacionais como como McKinsey & Company, Bain & Company, Accenture, Shell, HP, Coca 99 Cola Co., Vale, Petrobrás e AmBev (Interbrew) .

A aproximação com o setor privado foi central na composição do governo municipal que está no poder desde 2009. A criação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Economico e Social (COMUDES), segundo a Casa Civil da Prefeitura, composta por “grandes empresários cariocas”, foi um indício de quem 98

“Caso inédito de personalização de estruturas institucionais, esta Secretaria nasceu quando Felipe Góes entrou no governo e foi extinta quando ele saiu do governo, sugerindo que o cargo tenha sido especialmente criado para o desempenho de uma determinada função pelo Secretário, que também acumulou os cargos de Presidente do Instituto Pereira Passos e do Conselho Municipal de Desenvolvimento Econômico - COMUDES.” (OLIVEIRA, 2012, p. 251)

99

Fonte: Apresentação de PowerPoint preparada pela Casa Civil sobre o modelo de gestão adotado pelo Prefeito Eduardo Paes em sua primeira gestão.



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deve fazer o planejamento da cidade segundo essa gestão. A instituição de quarenta decretos publicados no primeiro dia de governo reorganizando a administração, forte redução do gasto com pessoal, revisão dos custeios com corte de 20% dos contratos existentes, contingenciamento de 80% do orçamento (ficando fora apenas Saúde e Educação), proibição de aditivos, reajustes e reequilíbrio de contratos, maior controle do “restos a pagar”, aliado a medidas para aumento de arrecadação, seguindo à risca o receituário neoliberal, fizeram com que a capacidade de investimento do governo municipal aumentassem em seis vezes, segundo dados da Prefeitura entre 2009 e 2012, ano no qual o Prefeito se reelegeu ainda no primeiro turno. Inspirada em técnicas de gestão empresarial da Harvard Busines School, a lógica da cidade-empresa, quando coloca a questão urbana em termos de competitividade e produtividade, apresenta a cidade como lugar dos negócios, onde a própria cidade se reveste também do sentido de mercadoria, cuja produção e venda só se viabiliza com base no consenso. Os pesquisadores que estudam as coalizões “pro-crescimento” indicam alguns dos principais sujeitos atuantes na produção desse tipo de espaço urbano e os principais interesses e conflitos envolvidos. Para Longan e Molotch (1990), dois são os grupos-chaves para a produção e funcionamento do que chamam de “máquina do crescimento”, os políticos e os empresários. No papel de defensores da política de desenvolvimento econômico, o destaque é conferido para aqueles que ocupam cargos eletivos, dentre os políticos, e para os financiadores da propriedade urbana e promotores do desenvolvimento e do mercado imobiliário, dentre os empresários. A mídia e as instituições que prestam serviço de utilidade pública complementam o elenco protagonista, e as instituições culturais se destacam no papel de coadjuvantes (OLIVEIRA, 2012, p. 159). Pedro Novaes (2010) descreve um processo de duplo deslocamento, de um lado o deslocamento espacial, que transpõe o modelo do planejamento estratégico dos Estados Unidos para a Europa (Barcelona),e em seguida para o Brasil. De outro lado, o deslocamento entre distintos campos, o da administração e planejamento da empresa privada para a administração e planejamento de entidades públicas, e daí para as cidades. Nesse sentido, o autor revela os mecanismos que encobrem o sentido e a natureza do modelo, de seus métodos e seus pressupostos, que implicam em uma metodologia baseada em uma estrategia discursiva, política e



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cultural. O modelo, puro e abstrato, é reapropriado e ajustado nacional e localmente segundo condições e estratégias de diferentes agentes situados em diferentes contextos e disputas (NOVAES, 2010). De acordo com o termo “empreendedorismo urbano” usado por Harvey (1996), a cidade é vista como uma empresa por seus gestores, que precisa agir estrategicamente coesa para atingir os objetivos propostos por um grupo que busca beneficiar-se particularmente da apropriação de recursos públicos. Vainer (2009), ao discutir a questão, sugere que: A idéia da cidade-empresa provoca uma despolitização da cidade, ocorrendo assim, não só uma mudança gerencial mas uma mudança no conceito de cidade, transformando-a em um sujeito econômico, cuja lógica de poder é usada para “legitimar a apropriação direta dos instrumentos de poder público por grupos empresariais privados” (VAINER, 2009, p. 89).

O caso da cidade-empresa desemboca na realização desenfreada da privatização, “o braço armado” da acumulação por espoliação100 , seja de empresas públicas, de estoques habitacionais no governo Thatcher ou de recursos partilhados (como a água ou a terra) que criam novos campos de atividade lucrativa para também resolver os problemas da sobreacumulação. Além disso, vemos a própria lógica privada sendo aplicada à gestão da coisa pública, seja na racionalidade de como as decisões são tomadas, seja através das parcerias público-privadas, que fazem com que executivos tratem dos negócios da cidade como se fossem seus negócios. A acumulação de capital envolve a busca inexorável pela sua acumulação e reprodução cada vez mais ampliada. Harvey sugere que se não houver mais espaços para uma expansão imperialista do capitalismo, resta tornar os que já existem mais produtivos, e o caminho para isso passaria pela relativização das distâncias físicas, tornando as barreiras temporais e espaciais para o capital cada vez mais frágeis. Harvey afirma que não podemos deixar as lutas regionais por vantagens geográficas para extração de excedentes escaparem aos nossos esforços de compreensão do capitalismo. 100 Em seu livro O Novo Imperialismo, Harvey retoma as contribuições de Rosa Luxemburgo acerca do processo de acumulação capitalista, que considera as relações entre o capitalismo e os modos de produção não capitalistas como um outro aspecto da acumulação, cujos métodos utilizados são a pilhagem, a opressão, a fraude, a guerra, entre outros, para desenvolver o conceito de acumulação por espoliação. O autor defende que as características da acumulação primitiva de Marx não se encerraram na “etapa original” do capitalismo, mas estão presentes nos dias atuais e podem ser notadas sob diferentes perspectivas: na expulsão de populações camponesas, na formação de um proletariado sem terra, na privatização de recursos, ou na supressão de formas alternativas de produção e consumo, para citar alguns exemplos.



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Voltando ao Rio de Janeiro, observa-se a formação de uma coalizão política e de um novo consenso em torno do imperativo de uma inflexão na política macroeconômica no plano nacional, que tem reflexos no plano local. A inclusão de novas prioridades na agenda pública, como crescimento econômico e geração de emprego, associadas à formulação de uma nova estratégia de inserção internacional, metas crescentemente percebidas como interdependentes de acordo com as novas diretrizes parecem fortalecer simultaneamente o Estado e o mercado. O anuncio dos programas MCMV, um dos pilares do novo modelo de produção habitacional em massa é um exemplo de como funciona essa díade. Andrade ao descrever o episódio, chama atenção: A divulgação do programa (MCMV) ao vivo pela televisão no dia 25 de março de 2009 deixou transparecer alguns aspectos relativos ao seu viés político-institucional. O presidente Lula delegou a apresentação a Ministra Dilma Roussef da Casa Civil que, em seguida convida a discursar o presidente da Câmara Brasileira de Construção Civil e depois o Presidente da Construtora Gafisa. Representantes do movimento social estavam na plateia, cumprindo a finalidade de legitimar as medidas anunciadas. (ANDRADE, 2011, p. 115)

E em relação à esfera pública, sua privatização significa ainda a negação da fala e anulação da política, a confusão na fronteira entre público e privado, com forte ênfase na defesa de interesses privados e desconsideração dos interesses coletivos. Esse processo multidimensional de privatização do público leva ao que Harvey (2006) chama de subjetivação da acumulação do capital, cujo corolário é a descrença no público, tanto na ação do Estado quanto nos espaços de conflito e de contato e diálogo com o outro. No caso estudado, a última, e talvez mais dramática inflexão, que determina o abandono de um programa que prometia urbanizar todas as favelas da cidade até 2020, há uma substituição: enquanto o programa Morar Carioca é abandonado, o programa Bairro Maravilha101 é expandido, contando com recursos que seriam suficientes para realizar todo o ciclo 2 do Morar Carioca. O programa é majoritariamente concentrado na Zona Oeste da cidade, onde está também a maior parte do eleitorado do Prefeito e seus aliados. Assim, arriscamos afirmar aqui, teria substituído a urbanização de todas as favelas da cidade até 2020 pela “urbanização” 101

O programa Bairro Maravilha, vale relembrar, ao contrário do Morar Carioca, é um programa com maior flexibilidade na implementação, já que não depende de projetos arquitetônico-urbanisticos. São intervenções em sua maioria de drenagem e recuperacão viária, gerenciado pela Secretaria de Obras.



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de toda a Zona Oeste até 2016. É importante destacar também que os conjuntos do programa MCMV, bem como as principais obras olímpicas, concentram-se nessa região da cidade. Se olharmos para a questão a partir dos interesses do capital imobiliário e da construção civil, o recurso para investimento não diminuiu, apenas foi realocado para intervenções menos complexas, em alguns casos em áreas onde as empresas já estão desenvolvendo outros projetos. Em um contexto onde a administração municipal parece ser articulada em torno de interesses do grande empresariado por um lado, e de grupos políticos que se orientam por uma ação pragmática, muitas vezes sustentados em uma gramática clientelista, por outro, programas de urbanização de favelas como o Morar Carioca (ou anteriormente o Favela Bairro em sua concepção original) parecem ir de encontro à orientação da gestão: não agradam aos empresários, tampouco agradam a base de sustentação política da coalizão no poder. A necessidade de articulação de interesses em disputa, assim, enfraquece a urbanização de favelas enquanto opção de intervenção no território. Se uma política determinada interessa ao mercado, mais apelo terá a um Prefeito que se oriente pela lógica do mercado. Nesse sentido, o mercado terá poder de influência sobre a construção e implementação (ou não) da política. O que se vê aqui é que o mercado, especialmente os setores imobiliário e da construção, não têm interesse na institucionalização da política social, onde as intervenções são complexas e sem grande margem de lucro. Possivelmente das intervenções mais complexas e trabalhosas dentre as intervenções urbanas possíveis. Nesse sentido, ela não é prioritária para o mercado. Se tomarmos em conta o princípio da seletividade do capital, a urbanização de favelas vai para o final na escala de prioridades. Harvey (2007) defende que as cidades são, ao mesmo tempo, resultado e condição dos processos de acumulação de capital. A necessidade que os capitalistas têm de garantir que os centros urbanos continuem proporcionando a reprodução ampliada do capital em geral, junto com a perspectiva de que o capitalismo é inevitável, vai pairar sobre os processos eleitorais, tensionando os candidatos na perspectiva de torná-los mais semelhantes entre si, garantindo, assim, os seus interesses, independente das frações de capitais que predominam na sustentação das suas candidaturas. Para tanto, os grandes grupos econômicos investem grandes quantias de recursos espalhadas pelos diversos partidos em



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disputa, tornando as campanhas semelhantes no que se refere aos principais financiadores, o que ajuda a explicar as milionárias cifras por trás das campanhas eleitorais. 10.3 A desconstrução do movimento social enquanto ator legítimo Apesar da aprovação de marcos legais que pudessem garantir o direito à moradia digna, em grande medida liderada pela articulação dos movimento pela reforma urbana, tanto no plano nacional como local, o que se vê a partir de 1988 é um arcabouço jurídico interessante que, no entanto, não tem sido suficiente para alterar o cenário urbano brasileiro no que diz respeito às desigualdades. Os espaços de participação social na gestão das cidades ainda são colocados mais como instâncias consultivas do que deliberativas, isso quando funcionam ou possuem alguma legitimidade representativa. O Estatuto das Cidades e os seus instrumentos não vêm sendo aplicados de forma a coibir a especulação imobiliária na cidade. A política nacional de habitação implementada a partir do PAC e do MCMV tem fortalecido a segregação social, com grandes condomínios populares sendo construídos nas franjas das cidades, distantes de todos os equipamentos públicos e potencializando os problemas de mobilidade urbana. Os programas habitacionais por um lado amenizam o conflito e possibilitam uma discreta redução do déficit habitacional, mas não alteram a realidade excludente das cidades, tampouco colocam no espaço o ideário da reforma urbana. No plano local, o movimento social de favelas parece nunca ter se recuperado do golpe sofrido durante o regime militar, tendo sido absorvido em grande medida pela estrutura dos partidos, operando de forma pragmática, possivelmente provendo suporte essencial para a operação da gramática do clientelismo nos territórios. Os programas de urbanização de favelas a partir da década de 1990, por sua vez, contribuíram para a desconstrução do movimento social local, disseminando um discurso de participação social controlada, nos moldes “politicamente corretos” preconizados pelas agências internacionais, com frequência operados por ONGs. Nesse modelo, a participação é uma concessão, quando de fato ocorre, podendo, arriscamos aqui sugerir, ser entendida como uma pseudoparticipação. Não se deve, no entanto, ignorar a situação de violência permanente à qual as favelas estão submetidas durante todo o período investigado. As duas décadas



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que seguiram 1988 foram marcadas por um trabalho de repressão violento e estéril por parte da polícia, sob a justificativa da guerra às drogas, estabelecendo uma dinâmica autoritária e violenta de controle social nos territórios. Essa ação teve impacto direto na organização política local, que só pode acontecer quando consentida pelo Estado. A convivência dessa lógica perversa de repressão policial com o Programa Favela Bairro assegurou a continuidade da ambiguidade histórica que caracterizou a relação do Estado com as favelas. De um lado uma política que aponta para o avanço da agenda de direitos sociais, de outro uma política de segurança pública que na prática realiza o controle social e politico das classes populares, através da violência, abordagem que parece ter contribuído para que o tráfico de drogas, as milicias (grupos paramilitares), o mercado imobiliario clandestino e o mercado de votos crescesse nos territórios de favela. Não foi objetivo desta investigação se debruçar sobre a ação dos movimentos sociais de maneira exaustiva, no entanto, o processo que revela a não institucionalizacão das políticas parece caminhar lado a lado com uma certa desconstrução do movimento social como ator político legítimo que, no plano local, resulta na anulação desse “sujeito”. No plano nacional, a incorporação de grandes contingentes do movimento social à estrutura governamental, principalmente durante o primeiro governo Lula, pode ter também enfraquecido a luta social. Bourdieu, ao discutir os movimentos sociais na década de 1990, defende a criação do que chamava “a esquerda da esquerda”, ou seja, uma esquerda que recusasse os compromissos que, ao longo do século XX, foram sendo assumidos pela esquerda européia mais tradicional. No caso da França, especialmente pelo Partido Socialista. Em 1992, o sociólogo afirmou: “dez anos de poder socialista (a era Miterrand) provocaram a demolição da crença no Estado e a destruição do Estado-providência em nome dos ideais liberais”. Tomando aqui a reflexão proposta por Bourdieu, sugerimos aqui que essa talvez seja uma chave importante para repensar a ação social e os processos pelos quais os movimentos sociais no Brasil passaram nas últimas duas décadas. O reconhecimento de que os bens sociais são responsabilidade do conjunto da sociedade e não exclusivamente do Estado é, portanto, o que possibilita sua aquisição como direito. O Estado intermedia e institui o direito via políticas sociais, mas é no plano societário que elas alcançam o status de direito e, portanto, o Estado só o fará como tal se assim for definido pelas relações políticas que se estabelecem



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entre ele e a sociedade. O princípio do que é público requer a existência de um lócus social não apropriável por qualquer indivíduo ou grupo privadamente: a esfera pública. Já o principio do direito/dever exige o reconhecimento de igualdade de todos frente àquela. Esses dois princípios se efetivam na noção que a sociedade contemporânea associa à cidadania. Esta, por sua vez, requer regras coletivas que garantam seu exercício, comumente identificados à democracia social e ao sistema político democrático. Neste capítulo sugerimos três hipóteses explicativas para as interrupções sucessivas na implementação dos programas de urbanização de favelas, que impedem que tais programas se institucionalizem como política social prioritária de intervenção nesses territórios. Se consideramos que a cidadania é o canal de intermediação entre Estado e sociedade que viabiliza políticas sociais como garantidoras de direitos sociais, o enfraquecimento dos espaços onde os cidadãos tenham acesso aos processos de tomada de decisões tenderá a enfraquecer políticas de caráter universalista. Neste sentido, as três hipóteses levantadas aqui de uma forma ou de outra sugerem o enfraquecimento da cidadania, da participação social de caráter universal, frente ao fortalecimento de interesses de caráter particularista. Talvez esta seja uma das chaves para compreender as razões pelas quais as políticas sociais não se efetivaram plenamente no Brasil, onde a incorporação de demandas sociais com muita freqüência se dá de forma alienada, e a universalização de bens sociais passa mais pela extensão de privilégios do que por uma prática de ação social coletiva, do exercício pleno e universal da cidadania.



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11 CONSIDERAÇÕES FINAIS A crítica serena de Araujo Góis sobre a situação das Baixadas Fluminense e de Sepetiba, embora apontando erros, exculpa os técnicos que o precederam com malogros idênticos em adiantados países como os Estados Unidos, a Itália e até a Holanda, onde os frequentes insucessos desafiavam a notória competência dos seus afamados engenheiros hidráulicos. Não justifica, entretanto, a falta de continuidade administrativa do regime, quando, ao sabor das correntes políticas dominantes, o governo mudava constantemente a orientação dos trabalhos, ora criando comissões ora extinguindo-as ou fundindo-as, para criar novas e separá-las em 102 seguida. (Alberto Ribeiro Lamego, 1964)

A partir da promulgação da Constituição de 1988, verifica-se uma mudança institucional expressiva das políticas sociais, em muitos aspectos inovadora e progressista em relação a modelos passados. Isso pode ser identificado tanto no aparato político-organizacional do país, como na concepção da questão social que tem amparado a implementação das políticas sociais em anos recentes. Pode-se dizer que nos últimos vinte anos o Brasil tem feito esforços importantes para mudar o padrão tradicional de tratamento dos problemas sociais e construir novas institucionalidades para a questão social, não sem enfrentar imensas contradições ao longo do período. Além dos elementos referentes à concepção sobre a questão social, a mudança institucional da política social pós-1988 pode ser identificada através da construção de sistemas únicos e nacionais, da consolidação de burocracias públicas, da democratização desse aparato e da participação em conjunto dos distintos níveis de governo na condução das distintas políticas. No entanto, a estrutura de controle social com conselhos onde há representação do governo, empresários, sociedade civil e profissionais, e é modelo para várias áreas de políticas sociais como mecanismos de democratização e participação social na formulação e gestão de políticas, não se efetivou com o mesmo sucesso para as políticas urbanas quanto em outras áreas, como saúde e assistência social por exemplo. As políticas sociais no Brasil sofrem de problemas concretos e visíveis, e que comprometem todo o esforço até aqui realizado. É de conhecimento geral a baixa qualidade dos serviços prestados, que, unida a restrições de financiamento, 102

a

O Homem e a Guanabara, 2 edição, 1964. IBGE – Conselho Nacional de Geografia. Publicação nº 5 da Série A “Livros”, p. 278.



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universalização incompleta e baixa eficácia das políticas, são provavelmente as áreas que mais comprometem os objetivos previstos na Constituição. São contradições reais ao modelo proposto, comprometem diretamente seus resultados, impedindo a construção de valores de solidariedade social ao longo do tempo. A literatura tem apontado para vários outros entraves institucionais importantes nas políticas sociais, como a gestão das políticas, a forma de distribuição de recursos em cada um dos distintos sistemas, os limites decorrentes do pacto federativo para a fluidez e eficiência de financiamento e distribuição de responsabilidades em sistemas baseados na lógica descentralizada, a tradição das políticas pregressas que informam lógicas de atuação profissional e de gestão não condizentes com a concepção prescrita na Constituição, as formas de intermediação de interesses que favorecem interesses particularistas, a estrutura de decisão e representação política. O periodo inicial da Nova Republica caracterizou-se pelo esforço concentrado empreendido nas reformas de base e o período seguinte pela fragmentação e descontinuidade, o que contribuiu para que não se concretizassem as reformas pretendidas, sem, no entanto, significar o fim dessas propostas. Nos anos subsequentes foram obtidas conquistas importantes, mas também ocorreram alguns retrocessos e frustrações na implementação das políticas e dos programas habitacionais desenvolvidos pelos diversos governos nacionais no País. Nosso objetivo aqui se deu no sentido de expor os processos nos quais se resolvem as disputas que vão definir o que permanece e o que é interrompido em relação à institucionalização de uma política social. Quais visões e grupos legitimam decisões, e quais práticas prevalecem ao longo do período. Quando discutimos aqui uma possível institucionalização da urbanização de favelas enquanto política social, talvez estejamos acima de tudo, discutindo a legitimação da permanência da favela em si, traduzindo-se então na institucionalização da intervenção permanente na favela, dotando-a de infraestrutura e serviços. A ideia de urbanização de favelas defende a morfologia favela como ativo, ideia que apesar de ganhar força em determinados períodos, como vimos aqui, não consegue institucionalizar-se. Sugerimos que o território da favela é por um lado pressionado pelo mercado, que busca apropriar-se desse território em sua busca incessante pela criação de valor, e por outro por uma classe política que estabeleceu fortes laços clientelistas com os habitantes desses territórios. Para os primeiros, o que interessa é dispor desse território crescentemente valorizado em certas áreas da cidade, e aos



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segundos interessa manter a relação de troca personalista, de forma que as benesses que chegam ao território sejam a) percebidas como fruto de sua ação, e b) não sejam universais, ao ponto de que o “cliente” não necessite mais do “patrão”. Assim, segue-se o conta-gotas da intervenção urbana na favela carioca. Embora a ineficiência do setor público freqüentemente esteja associada ao excesso de funções, agências, cargos e funcionários estatais, o problema é mais complexo

e

não

se

reduz

a

essas

relações.

Se,

durante

o

nacional

desenvolvimentismo, as forças capitalistas precisavam do insulamento burocrático, agora elas negociam diretamente com os partidos, se aproximam tanto deles, que é crescentemente complexo afirmar quem trabalha a serviço de quem. É possível que isso já tenha ocorrido anteriormente, mas na medida em que há uma certa estabilização política do pais, de seu sistema político e partidário, resta ao capital buscar formas mais eficazes de seu ponto de vista para obter ou aumentar seus lucros, e nesse momento a conjuntura parece fazer com que o clientelismo não lhe seja ameaça, mas sim contraparte. O clientelismo repousa num conjunto de redes personalistas que se estendem aos partidos políticos e burocracias. Estas redes envolvem uma pirâmide de relações que atravessam a sociedade de alto a baixo, processo legalmente facilitado pela existência do financiamento privado de campanhas eleitorais no país. As elites políticas nacionais contam com uma complexa rede de corretagem política que vai dos altos escalões até o nível local, e os recursos materiais do Estado (que deveriam ser os recursos do comum) desempenham um papel crucial na operação do sistema. Os partidos políticos que apoiam o governo têm acesso a inúmeros privilégios através do aparelho de Estado. Os privilégios incluem, ainda, a criação de símbolos de prestígio para os principais corretores dessa rede, favorecendo-os com acesso privilegiado aos centros de poder. As instituições formais do Estado ficaram altamente impregnadas por este processo de trocas de favores e a burocracia apoia a operação do clientelismo e suplementa o sistema partidário. Este sistema de troca não apenas caracteriza uma forma de controle do fluxo de recursos materiais na sociedade, mas também garante a sobrevivência política do corretor local, como descreveu Edson Nunes, situação que parece encontrar terreno fértil nas favelas no Rio de Janeiro a partir da década de 1970, parecendo permanecer ainda uma gramática estruturante das relações entre Estado e sociedade nesses territórios.



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O discurso racional-instrumental que desqualifica a política em relação à tomada de decisão “técnica”, desqualificando assim o debate público e a legitimidade de contestação por parte de movimentos sociais, e que se consolidou a partir da introdução da gestão empresarial da cidade no Rio de Janeiro, parece ter contribuído para dificultar a institucionalização da urbanização de favelas como política prioritária de intervenção. Em um contexto de esquartejamento da máquina pública pela coexistência de diversas lógicas políticas, articuladas por coalizões controladoras de centros de decisão que funcionam segundo os interesses que comandam cada uma delas, o desapaixonamento e a despolitização do discurso limitam ainda mais o espaço político como arena de reivindicação da parte dos que não têm parte, espaço não acessado pela maioria num sistema de direitos dominantes. A desconstrução do movimento social como sujeito na resistência política na favela também parece estar diretamente relacionada a essa discussão. Na medida em que o debate é despolitizado, construindo uma ideia de que esta não é uma discussão política, mas sim uma discussão racional/instrumental, e que, portanto, deve ser resolvida a partir de análises puramente técnicas, esvazia-se assim o debate público, tornando a política irrelevante para as classes dominantes e inacessível para as classes dominadas. Irrelevante do ponto de vista de que as grandes questões, as grandes decisões passam por fora do sistema representativo e não estão ao alcance das instituições que a democracia criou para veicular a reivindicação do comum. Quando Diniz (1996) sugere que um novo paradigma para pensar a reforma do Estado impõe uma ruptura com os enfoques tecnocrático e neoliberal, ela traz à luz questões relevantes do ponto de vista da limitação que ambos impõe para a consolidação de Estados verdadeiramente democráticos. O primeiro, segundo Diniz, ao priorizar o insulamento das elites estatais, a primazia do conhecimento técnico e o alijamento da política, tende a reforçar visões e práticas irrealistas, calçadas na despolitização artificial dos processos de formulação e execução de políticas. O segundo, influenciado pela ótica minimalista, enfatiza unilateralmente a redução do Estado, subestimando o papel do reforço e revitalização do aparelho estatal para o êxito de suas políticas, bem como a relevância da intervenção governamental para preencher as lacunas existentes e levar o mercado a funcionar de forma eficiente, em consonância com um projeto coletivo. A proposta desse novo paradigma implicaria não só a redefinição do conceito dominante de autonomia estatal,



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entendido exclusivamente como concentração do poder decisório na cúpula burocrática visando ao aumento de sua capacidade de sobrepor-se às pressões e resistências, como também do modelo de gestão pública associado a esse conceito. O fato é que o discurso do político é acionado, construído, conferido a diferentes públicos de maneira seletiva, premeditada de acordo com os limites impostos pela estrutura e pela conjuntura, como ilustramos ao longo deste trabalho. O insulamento burocrático, acionado em mais de uma ocasião durante a construção da política como estratégia para contornar o clientelismo, mostrou-se extremamente suscetível às flutuações políticas. As ilhas de racionalidade ou especialização técnica são construídas e desconstruídas ao sabor das necessidades de reorganização da coalizão no poder, o que com frequência acontece em um período não maior do que a cada dois anos. Nos perguntamos ao longo de todo o trabalho: ainda que a decisão política fosse de realmente realizar um programa eficaz de urbanização de favelas, que política resiste à tamanha rotatividade? É interessante notar que em uma das áreas onde a política social foi institucionalizada, a saúde, através do Sistema Único de Saúde, a política se consolida como produto da ação de movimentos sociais, com profissionais da área que conseguem institucionalizar uma política, com bancada no Congresso Nacional, que atuam permanentemente na direção de garantir a continuidade da política. Na primeira fase do período investigado aqui, fase mais longa de implementação da política na direção da institucionalização da urbanização de favelas, houve uma estratégia de mobilizar os profissionais da área, tanto da arquitetura, através dos concursos, como nas ciências sociais através de processos de construção coletiva e debate, como atores da política. Esse fator pode também ter contribuído para o sucesso relativo da SMH na implementação do Favela Bairro entre 1994 e 2000. Quando há a junção de um problema social com um problema profissional, a política ganha corpo e tende a se institucionalizar como problema público, e ser então objeto de intervenção pública permanente. Ou então quando há um entendimento de que o problema seja resolvido por interesses econômicos. No caso específico da favela, nenhuma das duas coisas parece acontecer. O enfraquecimento dos movimentos sociais de favela, que sugerimos acontecer a partir da década de 1970, aprofundando-se ao longo do período investigado, parece contribuir também para a não institucionalização dos programas de urbanização. Utilizando aqui da ideia freudiana de que o resultado da idéia deve



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ser visto como sintoma que aponta para algo errado na idéia em si, arriscamos aqui afirmar que a decisão de isolar a urbanização favelas das ‘interferências’ por parte dos movimentos sociais, deve ser melhor compreendida, estando aí possivelmente uma das chaves para compreender o enfraquecimento de tais políticas. Como locus por excelência de realização das políticas públicas, o relacionamento Estado/sociedade é determinado pelas condições históricoestruturais de desenvolvimento de uma dada formação social. Mas os padrões desse relacionamento não são necessariamente passíveis de apreensão e podem, mesmo, ser contrariados em situações políticas específicas. O Estado Brasileiro é uma fragmentação de gramáticas que se unifica na prática, não acontece ex-ante, refletindo uma dinâmica que parece estar na natureza do Estado brasileiro. A “mão esquerda” do Estado brasileiro age no social quando não há convergência entre interesse profissional e interesse econômico, pela operação, pela exceção, e não por formas permanentes de intervenção. Sugerimos aqui que isso possa estar relacionado a essa fragmentação do Estado, capturado por Edson Nunes na idéia da gramática política que acionamos aqui. A não institucionalização dos programas não significa a derrubada da burocracia, mas sim a invasão desse campo pelas gramáticas, fragmentando as ações em varias direções. Não interessa, no conjunto grande de interesses, a institucionalização, porque a favela deve ficar aberta às varias gramáticas, varias lógicas, para que elas possam ser negociadas aberta e continuamente. Não se trata aqui de opor burocracia à política, mas de pensar como esse campo acaba sendo invadido pelas gramáticas gerando uma descoesão na maneira de intervir, que, em última instância, é o padrão de intervenção do Estado Brasileiro no social. Chegando ao fim deste trabalho, após a análise de mais de 30 anos de políticas de urbanização de favelas, e das sucessivas impossibilidades encontradas no sentido da institucionalização de tais políticas, nos parece pertinente questionar as limitações do sistema político adotado pelo Estado brasileiro em 1988, em especial do sistema eleitoral, que parece facilitar que os interesses privados sobreponham-se sistematicamente aos interesses coletivos. A luta iniciada ainda na década de 1940 pela legitimação da permanência da favela, e de sua viabilidade, não foi vencida. Apesar dos inúmeros avanços conquistados ao longo do período, a favela ainda é predominantemente vista como ameaça, ou obstáculo à um certo modelo de desenvolvimento, onde os detentores do poder econômico, e os que a



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estes se unirem, poderão usufruir de recursos (e territórios) que deveriam ser partilhados em alguma medida por todos os cidadãos. O que está em jogo não é a urbanização ou não das favelas, é o direito do pobre de usufruir dos recursos da cidade, do estado, do país. E se inúmeros são os fatores que influenciam este contexto, acreditamos que o sistema político, e como conseqüência a participação da sociedade na construção e gestão de políticas de maneira contínua e permanente, deve estar no centro das discussões que buscam alternativas para os processos que parecem permanentemente anular a cidadania do pobre morador de favelas na cidade do Rio de Janeiro.



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Brás de Pina: O Primeiro Experimento O primeiro registro de um experimento de urbanização integrada de favelas na cidade do Rio de Janeiro, e possivelmente no Brasil, se deu através do trabalho da CODESCO na década de 1960. A única intervenção realizada integralmente pela instituição se deu na Favela de Brás de Pina, influenciando arquitetos urbanistas atuando na questão da favela desde então. Apesar de o experimento ter acontecido quase 30 anos antes da emergência do Favela Bairro (20 anos antes do Programa Mutirão), resolvemos trazer aqui uma síntese do experimento, com base nos relatos de pesquisadores que participaram do desenvolvimento do Projeto na época. Em meio à intensas disputas políticas, que incluíram um golpe militar no país, em 1964 a favela de Brás de Pina havia sido escolhida dentre outras seis favelas para ser removida para vilas da COHAB do Estado da Guanabara, como parte do programa de remoçnoes liderado pelo então governador Lacerda. Naquele momento, a necessidade de resistir a remoção provocou a fusão das três associações de moradores existentes em Brás de Pina então, que com auxílio do pároco do bairro, conseguiu limitar a remoção a apenas um terço da população. A decisão de remover os moradores perto do natal (Santos, 1981: p. 35) e o desgaste do então governador Lacerda, colaboraram para que o assunto ecoasse na mídia, atraíndo atenção pública e simpatia para o tema. Assim, em 1965, após a remoção parcial, a Associação de Moradores procurou a FAFEG - Federação de Favelas do Estado da Guanabara, que era então assessorada por estudantes de arquitetura, buscando desenvolver um plano de urbanização para a área. O projeto de urbanização de Brás de Pina é conhecido o primeiro projeto de urbanização integrada de favelas e tem em um de seus principais protagonistas, o arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos, que quando estudante de arquitetura uniu-se a outros colegas e procurou a FAFEG em busca de um espaço onde pudessem desenvolver um trabalho conectado com a realidade. Foi na FAFEG que o grupo de Carlos Nelson acabou conectando-se às lideranças de Brás de Pina. A equipe de arquitetos formalizou-se em um escritório (Quadra Arquitetos Associados) e passou a funcionar como assessora, consultora e executora de planos urbanísticos e habitacionais da CODESCO. A partir de sua criação a CODESCO se tornou uma referência para a populacão favelada, e a FAFEG passou a reivindicar urbanizações no estilo Brás de Pina para todas favelas do Rio de



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Janeiro. Uma equipe de arquitetos foi contratada e com o auxílio dos moradores fizeram um primeiro levantamento da situação urbana do local, com as quais elabora-se um plano preliminar de urbanização. Durante o ano de 1966 o grupo frequentou a favela no intúito de desenvolver um diagnóstico - que seria o primeiro passo para o posterior desenvolvimento de um plano de urbanização. A idéia era atrair a atenção do governo e mostrar que era possível urbanizar, de forma que o governo posteriormente se comprometesse com recursos que pudessem viabilizar a urbanização. Em 1967, Carlos Nelson e sua equipe foram indicados pelo IAB a participar de uma pesquisa que seria realizada pela PUC a pedido do recém criado CENPHA Centro de Pesquisas Habitacionais, financiado pelo BNH, que por sua vez havia sido procurado pelo GT da COPEG103 para realizar um levantamento urbanistico em três favelas104 . Na mesma época o Governo da Guanabara criou o Grupo de Trabalho GT 3881, cuja atribuição era coordenar a elaboração de programa preliminar conjunto para o Estado da Guanabara nos setores de planejamento, habitação, urbanismo, industrialização, e conduzir negociações para o financiamento do mesmo junto a entidades financeiras nacionais e internacionais. (CODESCO 1973 cit. em Santos, 1981: p 49). A equipe de Carlos Nelson passou então a fazer parte de um grupo de técnicos da CENPHA, e a pesquisa passou a fazer parte de uma série de estudos promovidos pelo GT para estudar a viabilidade de urbanização das favelas. Segundo Carlos Nelson, o fato de o Brasil estar entrando em uma fase tecnocrática fazia com que estudos de viabilidade fossem condição legitimadora de qualquer decisão política (SANTOS, 1981, p. 52). Carlos Nelson, no entanto, descreve as pesquisas 103 A COPEG (Companhia do Progresso do Estado da Guanabara) a qual cabia promover o desenvolvimento industrial do estado. O planejamento industrial se preocupava também com a questão da mão de obra - onde devia morar, que atendimento necessitava do Governo, do acesso aos equipamentos urbanos, que tipo de formação precisavam e que atividades de complementação de renda familiar deviam ser estimuladas. De maneira bem pragmática, a COPEG buscava resolver o problema dos industriários que precisavam expandir e encontravam-se cercados por favelas. Santos descreve a COPEG como obedecendo a uma linha de capitalismo esclarecido, tendo em seus quadros algumas das pessoas mais bem qualificadas, de melhor formação acadêmica da equipe de Negrão de Lima. (Santos, 1981: 51) A COPEG inicialmente era formada por um jornalista, dois economistas e uma socióloga, interessados em favelas e visando construir uma imagem diferente dos perfis que tradicionalmente eram responsáveis por programas para favelas - políticos e funcionários públicos. 104 A essa altura Guararapes já havia sido eliminada do plano inicial, declaradamente por questões técnicas - segundo Carlos Nelson possivelmente por questões políticas



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realizadas como apesar de úteis para a definição de alternativas de projeto, tinham como verdadeiro propósito fazer parte de “um ritual de legitimação, em que a pesquisa era fetichizada como amuleto capaz de neutralizar uma decisão que era, na sua essência, política, dando-lhe seriedade incontestável”. (1981: 53). Em 1967 foi criada uma Secretaria Executiva para o GT 3881 com a tarefa de assessorar o grupo no planejamento, coordenação e execução do programa de recuperação das favelas de Brás de Pina, Morro União, Mata Machado e Guararapes, em cooperação com órgãos normativos e executivos do governo estadual com jurisdição na matéria. Segundo o relato de Carlos Nelson, em dois anos as relações entre o Estado e Brás de Pina mudaram drasticamente, passando o governo de inimigo ameaçador à colaborador, na tentativa de recuperar a favela, e Brás de Pina, passou de símbolo negativo à símbolo positivo de um novo governo com a entrada de Negrão de Lima que havia se colocado de maneira contrária às políticas de Lacerda em relação às favelas e comprometeu-se a não seguir com as remoções. Lima, no entanto, descobriu após ser eleito que as intenções federais era outras e a questão habitacional carioca estava enquadrada em objetivos que respondiam ao macro modelo de desenvolvimento proposto para o país. A criação da CHISAM, uma espécie de intervenção branca do BNH nas políticas habitacionais da Guanabara, tiravam do governo estadual a autonomia no setor. No entanto, para dar uma resposta à pressão dos técnicos progressistas, e à seus apoiadores das classes populares, Lima teria concordado em fazer estudos para recuperar quatro favelas. (Santos, 1981: p.50) Brás de Pina foi uma das escolhidas pois já havia se organizado internamente, e a notoriedade que ganhara quando resistiu a remoção, fez dela um bom caso de demonstração política105. O GT 3881 se definiu como interessado em trabalhar com a comunidade e em procurar integrá-la ao bairro onde se inseria, conceito que iria fundamentar a ação que ia se desenvolver em Brás de Pina. A intervenção era vista como um “conjunto de intervenções de caráter físico que promovesse uma espécie de nivelamento entre a favela e o bairro.” (SANTOS, 1981: 105

Morro União entrou na lista pois tinha bons patronos políticos, Mata Machado por estar em curso uma negociação entre o Estado e o dono do terreno que precisava de parte dele para a expansão de sua fábrica, e em Guararapes os moradores tinham se organizado em condomínio e comprado o terreno, além de ter como patrono o núncio apostólico - Santos 1981: 91.



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51). O membros do GT visitaram Associação de Moradores dizendo que iam urbanizar a favela, e os moradores referiram-se ao grupo de Carlos Nelson como seus assessores urbanísticos. A partir desse momento, como descreve Santos, “formava-se uma rede complicada, onde o Estado passava a atuar colocando-se como aliado, as relações mudam, e os técnicos passam a ser uma espécie de mediador fundamental na relação”. Como o GT não tinha atribuições executivas, em 1968 foi criada então a CODESCO, cuja atribuição era “a integração dos aglomerados subnormais na comunidade normal adjacente, intervindo nos aspectos urbanísticos, habitacionais e outros necessários” (SANTOS, 1981: 56), passando esta então a ser um dos órgãos executores da política habitacional do Estado da Guanabara106. O BNH era agente financeiro, a COHAB deveria cuidar das remoções, a Fundação Leão XIII cuidaria das favelas que não fossem nem removidas nem urbanizadas. À CODESCO coube iniciar então com a meta de executar um programa experimental de urbanização em três favelas, as estudadas pelo GT. A criação da CODESCO é descrita por Carlos Nelson como um golpe de habilidade política, sendo o Governador instado a dar uma satisfação a seus antigos compromissos com favelados e como uma saída honrosa para as imposições do Governo Federal. Por consequência sua sobrevivência sempre foi difícil, tendo sempre que justificar a importância ou validade de seus objetivos em um periodo onde a remoção era regra. (SANTOS, 1981: p. 57) O projeto de urbanização desenvolvido pela CODESCO era formado sobre a premissa básica de que devia-se considerar e respeitar como investimento de capital, trabalho e tempo dos habitantes, tudo que existisse na área em condições boas ou razoáveis, desde fossem representativos de uma forma de desenvolvimento lógico da comunidade. (CODESCO Apud BLANK, 1980). Carlos Nelson e sua equipe tinham um discurso onde defendia-se que a população estava vivendo lá por 30 anos e havia feito vários investimentos por sua conta e estes investimentos mereciam ser preservados em um país onde há uma escassez geral de recursos, 106

Companhia de Desenvolvimento de Comunidades, com uma linha de trabalho oposta às atuações preponderantes até então. Segundo Blank (1980) a criação da CODESCO estava vinculanda a um pensamento do Governo Estadual que buscava encontrar atuações que satisfizessem a classe favelada, e também de responder ao surgimento de opiniões de técnicos estrangeiros desfavoráveis a remoção (p. 100).



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argumento posteriormente utilizando pela equipe responsável pela formulação do Favela Bairro, devendo o Estado responsabilizar-se por fornecer infra-estrutura urbana e serviços.

Premissas

Objetivo Objetivos Específicos

Projeto de Urbanização de Brás de Pina e Morro União a) Qualquer Plano que viesse a ser elaborado teria que ser adequado a uma camada de população na faixa de 1 a 3 salários mínimos; b) Qualquer que fosse a solução a ser adotada, era necessário mobilizar os esforços da população e promover o engajamento da comunidade no programa através de um prévio trabalho de conscientização. c) Possibilitar a auto-promoção do morador pela expressão da vontade de participar na construcão de sua moradia e epla busca de soluçnoes que mais atendesse às suas necessidades; Integrar a Comunidade Subnormal no Bairro Adjacente 1) Colocação de infra-estrutra, a curto prazo, consistindo na implantação de serviços essenciais (ficando o favelado com a obrigatoriedade de pagar os impostos, tarifas ou taxas devidos para utilização do serviço); 2) Promoção de melhorias habitacionais, a medio prazo, visando propiciar condições mínimas de higiene e segurança dos padrões de moradia; 3) Promoção do desenvolvimento sócio-econômico, no longo prazo, criando condições para que a população de menor faixa-etária se desenvolvesse em ambientes de normalidade urbana em todos os seus aspectos. Fonte: Blank (1980; p. 100-101)

Reconhecia-se então a necessidade de apoiar intervenções nas moradias, mas a decisão de construir ou não construir casas e de como construí-las deveria ser deixada por conta de cada família. Seriam aceitos padrões não convencionais para os materiais e os espaços de moradia, e seria oferecido aos interessados financiamento para a compra de materiais. Havia no projeto uma preocupação com o desenvolvimento social da população, e que deveria ser oferecido algum tipo de treinamento profissional à população para que fosse possível aumentar a renda familiar através de melhores empregos. Além disso seriam estimuladas formas tradicionais de artesanato como fontes complementares à renda familiar. O caráter de mutirão, posteriormente central no desenvolvimento do Projeto Mutirão também estava presente no projeto da CODESCO, as obras urbanisticas necessarias seriam executadas usando o trabalho dos moradores sempre que possível. A questão da participação também estava presente no projeto, ainda que com caráter de consulta: os moradores, através de sua associação, seriam informados acerca de todos os planos e seriam consultados sobre as decisões a tomar.



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Santos, no entanto, afirma que quando iniciou a execução das obras foi preciso rever vários dos conceitos iniciais. Uma das questões centrais era a necessidade de mostrar resultados rápidos por motivos políticos e, além disso, havia falta de recursos adequados e às dificuldades impostas pela complexidade da intervenção urbana em si. Assim, as principais mudanças foram: o uso de máquinas pesadas para a realização dos trabalhos urbanísticos; a execução do trabalho por empresas com pequena participação dos moradores (ao invés de apoiar-se majoritariamente no regime de mutirão) e a proposição de restrições às atividades construtivas. Houve ainda, a necessidade de deslocamento da maioria dos barracos de sua localização original e, por fim, o abandono de planos a longo prazo, tais como o de treinamento profissional e de produção artesanal. A operacão foi complexa e envolvia o remanejamento (ainda que para outra årea próxima) que quase toda a população envolvida, que desmanchava seus barracos para reconstruí-los na sequência. Para urbanizar a área era preciso abrir espaço para as obras de infraestrutura, que acontecia simultaneamente, mesmo que depois esse espaço pudesse ser reocupado. Assim, foi anexado ao terreno original, uma área vizinha, de 35.000 m2 para receber deslocamentos necessários. O desenho do loteamento desenvolvido foi decidido em reuniões entre os técnicos e moradores através de votação após a apresentação de três alternativas possíveis pelos técnicos. No entanto, o anteprojeto inicial sofreu importantes modificações da idéia para a execução, baseadas em dificuldades técnicas de execução, políticas ou na ausencia de recursos adequados. Segundo relatos da época tudo era feito com base em um intenso trabalho de engajamento dos moradores e coordenação por parte da equipe de campo. O proceso de remanejamento e implantação da infraestrutura durou cerca de um ano e meio (SANTOS, 1981; BLANK, 1980), iniciando-se em 1969. Na sequência iniciou-se o processo de melhoria habitacional, que incluía um sistema de financiamento para a compra de material de construção a juros baixos e no longo prazo através da Carteira de Operações de Natureza Social do BNH. A equipe técnica da CODESCO auxiliava no desenvolvimento das plantas para melhorias habitacionais, orientação na construção, fiscalização e auxílio nas obras, ou seja, prestava assistencia técnica, enquanto a responsabilidade da construção era do morador. As soluções adotadas eram diversificadas atendendo às necessidades de cada família, havendo muita troca de conhecimento entre os moradores ao longo do



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processo. Segundo os relatos de Santos e Blank, durante todo o processo foram muitos os instrumentos adotados para levar a população a participar, escolher e aceitar os programas implantados - a convocação de reuniões por grupos, formação de equipes locais, campanhas de esclarecimento sempre com a participação da Associação de Moradores local, sendo a aceitação da maioria em processos de consulta pública necessária para regulamentar a ação dos técnicos. (BLANK, 1980: p. 106) Na terceira fase, após a implantação da estrutura e a construção remanejamento das casas, conflitos passaram a se destacar, como se os problemas coletivos houvessem sido sanados e então as questões individuais se sobressaíssem. Santos descreve uma série de conflitos entre os profissionais da Quadra e a CODESCO (tanto equipe técnica como diretoria), mas reconhece que a CODESCO estava em uma posição delicada. O fato de atuar em um contexto autoritário e progressista fazia com que ela tivesse que dar ênfase às decisões tecnicas como legitimadoras da ação, e sem fazer isso não sobreviveria em “uma arena política mais ampla que a da favela” (1981: 59). Santos ainda descreve a posição de seu grupo de arquitetos como dúbia, já que serviam a dois “senhores”, tinham um compromisso moral com os moradores e um compromisso formal com com a CODESCO: Quando defendíamos a pureza das idéias originais estávamos tentando fazer prevalecer o primeiro vínculo sobre o segundo. Acreditávamos honestamente que, brigando pelo respeito às idéias dos primeiros planos, estávamos garantindo o respeito aos favelados. Aceitávamos sua metáfora em matéria de urbanização. (1981, p. 59)

A CODESCO propunha que os resultados pesquisas e propostas fossem discutidos exaustivamente em reuniões com os moradores através da associação, o que começou a distanciar o projeto das massas, que aos poucos foi tornando-se arredia a participar das reuniões, e Associação aos poucos passou a funcionar de maneira perfeitamente entrosada com a CODESCO, fazendo a mediação com o resto da comunidade, mas gradativamente dependendo mais e mais da CODESCO para garantir seu status e autoridade, enquanto a CODESCO alternava sua relação com os moradores ora utilizando a associação como interlocutor, ora tratando diretamente com os moradores, porém progressivamente tratando direto com as famílias, passando por cima da Associação.



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A necessidade de coordenar ações que diziam respeito tanto à questões técnicas quanto ao trabalho de natureza social e mecanismos de planejamento fez com que a CODESCO abrisse um escritório de campo na favela, logo batizado de “Casa Branca”, Carlos Nelson relata como passava todos os dias lá recebendo demandas e seguia para o escritório a noite para rever e adequar todo o planejamento anterior, o que incluia refazer mapas, re-desenhar plantas, modificar esquemas. Do ponto de vista simbólico o escritório de campo representava a presença da CODESCO na favela. (SANTOS, 1981: 65) Segundo Santos, aos poucos a Companhia foi começando a mandar na favela, não havia mais clima de reivindicação em massa, as famílias estavam empenhadas em resolver seus problemas individuais de moradia. Quando a Associação percebeu o que ocorria, convocou o Padre e aos poucos, já em 1970, resolveu cobrar da CODESCO seu compromisso de se retirar da favela quando tivesse terminado as obras. A CODESCO disse que só sairia quando tivesse terminado o programa de financiamento às novas habitacões (em uns 20 anos). Em uma noite, o Padre junto de um grupo moradores, durante a noite, destruiu a marteladas parte da Casa Branca. As condições não eram as mesmas de 1964, a repressão política estava no auge e a CODESCO promoveu uma intervencão policial, solicitando o enquadramento do Padre por crime contra a propriedade alheia. Os moradores nem sequer se mobilizaram, o Padre foi julgado pela justiça comum. A CODESCO em retaliação proibiu a construção do prédio da Associação de Moradores na praça central sob alegação de que o terreno era seu, e a praça ficou sem o sentido original (SANTOS, 1981: 79) Oito anos depois a pesquisa de Gilda Blank notava que se por um lado 75% das unidades habitacionais - antes muito precárias - haviam transformado-se em casas de alvenaria, além de a infraestrutura básica ter sido implantada -, por outro percebia-se também um incremento substancial na mercantilização do lugar e do aumento do custo de vida, fazendo com que parte das famílias tivessem que sair, enquanto quem ficava tinha que buscar formas de incrementar sua renda (VALLADARES, 1980: 13). Por outro lado, as pressões contrarias do BNH foram se tornando mais fortes à medida que o trabalho se ia mostrando viável (SANTOS, 1981). Quando mudou o governo, entrando Chagas Freitas, muito mais voltado para o populismo demagógico e sem os compromissos com a oposição de Negrão Lima, a diretoria da CODESCO



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foi substituída e sua ação alterada, fazendo com que a instituição perdesse seu caráter de experimentação e pioneirismo. Além de serem cortados boa parte de seus recursos. Ela sobreviveu por mais cinco anos sem um papel relevante e acabou sem alardes em 1975. Ao longo de sua existência ela realizou o plano de urbanização de Brás de Pina, deixou pela metade o do Morro União, o projeto para Mata Machado e estudos preliminares para outras 10 favelas. Carlos Nelson sugere que a existência da CODESCO em primeira instancia só teria sido permitida pelo governo federal para que fosse possível provar sua inviabilidade e a inviabilidade de seus planos, e que não teria sido por acaso o seu esvaziamento quando a experiência de Bras de Pina começa a mostrar resultados - colocando em cheque a opção pela remoção - que era hegemônica no governo. (SANTOS, 1981: 80)



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Arquitetos versus engenheiros: quem planeja a cidade? Ao longo da investigação identificamos que existe uma espécie de competição velada no campo entre arquitetos projetistas e engenheiros: Essa disputa apareceu sistemáticamente nos discursos tanto de arquitos quanto de engenheiros entrevistados, tanto entre os escritórios de arquitetura e as construtoras, tradicionalmente lideradas por engenheiros, como entre engenheiros e arquitetos dentro da própria Secretaria Municipal de Habitação. Os engenheiros tiveram historicamente um papel de destaque na condução e formulação das politicas urbanas no Rio de Janeiro desde o final do século XIX, perdendo

espaço

para

os

arquitetos

na

formulação

e

no

planejamento

principalmente a partir do Modernismo, que legitimou os arquitetos a partir da década de 1950, como figuras centrais no planejamento urbano. Rezende (2008) sugere que foi na década de 1930, durante a administração de Henrique Dodsworth que ocorreu a passagem do que ela chama de meio técnico dominado pelos engenheiros, para os arquitetos, e os arquitetos passariam a dominar o campo da intervenção urbana. Segundo ideário modernista, o arquiteto seria o profissional mais adequado para pensar a cidade. O Departamento de Urbanismo do Rio de Janeiro, criado em 1945, sucessor do Plano da Cidade, teve Affonso Eduardo Reidy, conhecido arquiteto modernista, como seu primeiro diretor. Os conflitos entre essas duas classes profissionais, os arquitetos como detentores de maior parcela de capital cultural, enquanto os contrutores (engenheiros) detentores em maior parte de capital econômico (um mais à direita e outro mais à esquerda de acordo com a matriz de posição social proposta por Bourdieu), apareceu ao longo de toda a pesquisa. Os construtores são acusados com frequência de não terem uma visão de cidade, mas sim de execução de obras (as vezes com a única finalidade de maximizar e reproduzir o capital econômico), enquanto os arquitetos são acusados de pensarem obras megalomaníacas, propondo gastos que seriam excessivos ou desnecessários do ponto de vista de uma ação pragmática. Segundo

os

arquitetos-urbanistas

que

participaram

de

projetos

de

urbanização de favelas no pereiodo investigado, entrevistados no escopo deste trabalho, à excessão das primeiras favelas que sofreram intervenção no escopo do Favela Bairro, quando o acompanhamento da obra era feito com a participação dos



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arquitetos projetistas, o papel das empreiteiras tem sido determinante na execução dos programas. Esse elemento apareceu na fala de todos os arquitetos entrevistados, é exemplificado aqui: Naquela época (Favela Bairro/PROAP I) a gente fazia o acompanhamento de obra, e isso era muito legal, vinculou o escritório. Tinha sempre alguém lá que ficava adequando os projetos à obra. Pra cada movimento de obra a gente conseguia rabiscar, chegávamos a conclusão junto com o construtor. Até hoje a gente tem registro de obra muito mais legal que qualquer uma que fizemos depois. As (obras) que vieram depois, o projeto de desenho urbano se perdeu, foi jogado no lixo. O projeto de intervenção (infraestrutura) pode até ser mantido, mas o desenho urbano não. […] Ao longo do tempo eu vejo que você faz o projeto e se você não faz o acompanhamento direto no momento da obra, o projeto não é o projeto que você desenvolveu, tem um perda muito grande. […] Definições que são modificadas em um espaço como o da favela, que é um espaço onde qualquer decisão muda tudo, decisões fundadas em experiências pequenas, que não levam em conta a experiência do processo de construção do projeto, mudam muito. Então eu digo que o desenho urbano é afetado, mas as vezes até propostas estruturais urbanas são afetadas e aí você não tem um resultado que o projetista queria que tivesse através das 107 soluções urbanas que foram propostas. Pra mim esse é o pior momento.

Um outro arquiteto destaca: É claro que se você supervisiona é evidente que a obra vai ter melhor qualidade. Se o construtor toma as decisões ele vai tomar as decisões do jeito dele, que favoreçam ele, barateando, reduzindo. Ele não está 108 interessado em magnificar o projeto.

A situação parece complexificar-se ainda mais a partir de meados de década de 2000, quando grandes construtoras são fortalecidas através do PAC. O mesmo profissional sugere que quando as grande empreiteiras entram nos projetos a situacão piora: Quando as grandes favelas entraram na jogada, especialmente com o PAC, as grandes empreiteiras entraram no processo, e dali em diante elas mandam no processo. Eu acabei ficando mal com o governo e com as empreiteiras.

Assim, parece haver uma progressiva perda de centralidade da figura do arquiteto-urbanista, do projeto de intervenção, em detrimento de intervenções estruturais de maneira quase setoriais, como destacam as seguintes falas, sobre a situação atual: 107

Arquiteta-Urbanista, 42 anos. Participou de equipes de projetos no Favela Bairro (Proap I e II), no PAC, e no Morar Carioca, em entrevista à autora em novembro de 2013.

108

Arquiteto-Urbanista, não revelou a idade. Liderou equipes de projetos no Favela Bairro (I e II), PAC e Morar Carioca.



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Agora eles pedem só os projetos executivos do sistema viário, mas sem a possibilidade de abrir ruas novas, senão precisa de realocações. Quando houver casas em área de risco você assinala, mas não prevê estrutura de realocação. Você não faz mas o projeto dos equipamentos sociais. Você indica que precisa de creche, mas a Secretaria de Educação é responsável. Perdeu a questão urbanística com o partido, e perdeu a parte arquitetônica com os equipamentos sociais. (...) é só projeto de engenharia, projeto básico com orçamento estimativo em cima de índices, a empreiteira é que vai detalhar o projeto executivo e o orçamento definitivo. É como amarrar cachorro com linguiça... (Arquiteto-urbanista entrevistado no escopo dessa investigação)

Por outro lado, os engenheiros queixam-se do que chamam de “estrelismo” do arquiteto. Durante algumas entrevistas, frases como “os arquitetos com sua mania de fazer obras grandes e vistosas...” foram repetidas por diferentes engenheiros. Alguns arquitetos, de dentro da própria SMH queixaram-se do que chamam de “pixação interna” dos arquitetos como forma de desqualificar intervenções propostas por estes. Por fim, alguns entrevistados levantam uma questão mais estrutural nesse jogo, que é a forma de contratação do governo brasileiro, regulamentada pela Lei 8666, que dificultaria o melhor proveito dos gastos públicos em contratos de infraestrutura relatando práticas as empreiteiras funcionam numa lógica de ganhar a licitação, colocar um preço padrão e depois irão brigar para ajustar o preço, fazendo com que com frequência as obras públicas tenham qualidade inferior à obras privadas, porém com custos superiores. Quando analisamos a evolução da política no período, de fato parece haver uma perda significativa de importância do arquiteto em relação ao engenheiro nas intervenções, mas também no planejamento da cidade de forma mais ampla. A tensão esteve presente no campo ao longo de todo o período, mas a partir de meados da década de 2000, a inversão de poder (centralidade) do projeto em relação à obra, ou do arquiteto em relação ao engenheiro, faz-se notar de maneira mais evidente. Ao longo desta pesquisa nos perguntamos inúmeras vezes se não estaríamos de fato presenciando a anulação do planejamento urbano na cidade do Rio de Janeiro (onde talvez este tenha tido origem no país), em detrimento de uma ação

governamental

que

encomenda

planos,

para

logo

em

seguida

desconsiderados. Se isso for verdade, podemos nos perguntar aqui qual o papel da concorrência entre arquitetos e engenheiros nesse jogo, onde a cidade parece sair perdendo sempre.



234

Mapas Mapa 1: Localização das favelas (aglomerados subnormais) no município do Rio de Janeiro. Fonte: Observatório das Metrópoles.

109

Mapa 2: % População das favelas pelo total da população à partir do centro social

da cidade.

Fonte: Observatório das Metrópoles.

109

O centro social aqui é determinado pelos melhores índices sócio-econômicos à partir do Censo.



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Lista de entrevistados Os entrevistados foram agrupados aqui de acordo com sua ocupação principal, o que não quer dizer que não tenham ocupado, ou ocupem, posições em outros espaços. Corpo técnico / burocracia SMH: 1. Maria Lúcia Petersen, arquiteta-urbanista. Participou do Programas Mutirão, Gerente do Favela Bairro entre 1994-2001. 2. Claudia Esquerdo, Pedagoga. Secretária Executiva do Favela Bairro 2001-2009 3. Márcia Coutinho, arquiteta-urbanista. Funcionária do IPLAN-IPP entre 1981 e 1994, colaborou do desenvolvimento da Matriz de Classificação das Favelas, funcionária da SMH entre 1994-2001 e 2009-2014, período no qual foi gerente de urbanização da Secretaria. 4. Lídeo do Vale, engenheiro. Na SMH entre 2002 e 2009, Gerente da Secretaria Executiva do PROAP. 5. Fernando Cavalieri, cientista social. Funcionário do IPLAN-IPP, liderou o desenvolvimento da Matriz de Classificação das Favelas, participou ativamente do desenvolvimento do PDDRJ de 1992 e do GEAP. Assessor especial do Secretário na SMH 1994 – 2001. 6. Andréa Cardoso, arquiteta-urbanista. Participou do Programa Mutirão, na SMH desde 1994. Gerencia de Projetos 1994-2001 e 2009-presente. 7. Mary Curvelo, engenheira civil. Participou do Programa Mutirão, na SMH desde 1994 na Gerencia de Projetos de Urbanização (Gerente entre 2001 - 2009). 8. Antonio Augusto, arquiteto-urbanista. Participou do Programa Mutirão, na SMH entre 1994 e 2001, e 2009-2014. 9. David Bezerra Lessa, engenheiro-civil. Participou do Programa Mutirão, na SMH entre 1994 e 2001 como coordenador de obras. 11. Isabel Tostes, arquiteta, na SMH desde 1994, Inclusão Social (no Planejamento desde 2013). 12. Sandra Joan, socióloga, participou do Programa Mutirão, na SMH 1994-2001, esteve no governo do Estado desenvolvendo outros programas de urbanização de



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favelas até ir para o IBASE, de onde coordenou a parceria com a SMH no escopo do Morar Carioca. 13. Márcia Bezerra, arquiteta. Participou do Programas Mutirão e do Projeto Rio, na SMH de 1994-2012 Coordenando o re-assentamento. 14. Célia Abende, jornalista, coordenadora de comunicação social da SMH entre 1994-2001 e 2009-presente. 15. Fátima Albuquerque, jornalista, na comunicação social SMH desde 1994. Arquitetos-urbanistas projetistas em programas de urbanização de favelas 16. Manoel Ribeiro, arquiteto-urbanista, fez cinco projetos no escopo do Favela Bairro PROAP I e II e desenvolveu projetos no Morar Carioca. 17. Luis Carlos Toledo, arquiteto-urbanista. Acompanha programas de urbanização de favelas desde o primeiro experimento em Brás de Pina. Responsável por projetos do PAC urbanização de favelas na Rocinha. 18. Jorge Mario Jauregui, arquiteto-urbanista, premiado por projetos no escopo do Favela Bairro, tornou-se internacionalmente conhecido por conta de sua atuação no Programa. Desenvolveu projetos para o PAC e Morar Carioca. 19. Daniela Engel, arquiteta-urbanista, participou do primeiro concurso de idéias do IAB e desenvolveu projetos de urbanização de favelas no escopo do Favela Bairro, PAC e Morar Carioca. Academia: 20. Luiz Antonio Machado da Silva, sociólogo, vinculado ao IESP, possui inúmeras publicações sobre favelas, participou do grupo de discussão sobre favela que incluía Carlos Nelson, Lícia Valadares e Maria Laís Pereira da Silva ainda na década de 60. 21. Maria Laís Pereira da Silva, socióloga, vinculada à UFF, referência no debate acadêmico sobre favelas. Participou da equipe de elaboração de projetos para o Morar Carioca com um dos escritórios de arquitetura. 22. Maria Julieta Nunes, arquiteta-urbanista, vinculada ao IPPUR/UFRJ, Participou das discussões e acompanhou o desenvolvimento do PDDDRJ - 1992 e revisão 2011.



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23. Marcelo Burgos, sociólogo, vinculado à PUC-RJ. Participou da elaboração de projetos para o concurso FB (cinco projetos), publicou artigos sobre urbanizacão de favelas, elaborou uma proposta de diagnóstico social no escopo do Morar Carioca. 24. Gerônimo Leitão, arquiteto-urbanista, vinculado à UFF. Foi aluno de Carlos Nelson, participou de equipes de projetos no escopo do Favela Bairro e do Morar Carioca. 25. Pablo Benetti, arquiteto-urbanista, vinculado ao PROURB/UFRJ. Participou do primeiro concurso público Favela Bairro e ministra disciplina de Projetos de Urbanização alternativa no PROURB. 26. Luciana Andrade, arquiteta-urbanista, vinculada ao PRORB/UFRJ. Políticos: 27. Cesar Maia, economista e político, secretario do governo Brizola, prefeito por 3 mandatos, vereador. 28. Jorge Bittar, Deputado Federal, ocupou o cargo de secretário de habitação entre 2009 e 2012. 29. Chico Alencar, Deputado Federal, ex-vereador, foi presidente da Federação das Associações de Moradores do Rio de Janeiro (FAMERJ) e participou das discussões do PDDCRJ-1992 como vereador. Setor Privado: 29. Robero Kauffman, presidente do SINDUSCON, Vice-Presidente da ADEMI e da CBIC. 30. David Cardeman, Arquiteto, ex funcionário de Prefeitura, consultor da ADEMI para assuntos de Legislação Urbanística. 31. Lobista do setor privado junto ao governo municipal, não quis ser identificado. Hibrido: 32. Sergio Magalhães, arquiteto-urbanista, ex-presidente do IAB, participou de inúmeros programas de urbanização de favela, foi o primeiro secretário da SMH (1994 e 2000), é professor vinculado ao PROURB/UFRJ.

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