Entre monstros e anjos caídos - a narrativa mediática sobre a violência sexual

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Entre Monstros e Anjos Caídos: A Violência Sexual nos Jornais Portugueses Isabel Ventura, Universidade do Minho

In AAVV, Manual de Boas Práticas Para as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens e todas as entidades que trabalham em prol dos direitos das crianças, p. 158-186.

1.

Mitos da Violação

Em 2013, a Polícia Judiciária iniciou 473 inquéritos por violação;1 mais catorze do que no ano anterior. Apesar de os homens não estarem ausentes do lado das vítimas (30 homens foram constrangidos a atos sexuais não consentidos), o número de mulheres atingidas por esta violência é dez vezes superior ascendendo a 313. Entre os/as 129 agressores/as (identificados/as) há uma mulher, o que indica que as três dezenas de homens vitimados terão sido agredidos por outros homens, o que coloca o sexo masculino como o sexo agressor em regime de quase monopólio. A assimetria no género de vítimas e de agressores/as indicia que as mulheres estão em maior risco do que os homens.

Dos 473 inquéritos, 108 reportam-se a agressões ocorridas num quadro familiar em que agressor e vítima são parentes e em 164 episódios agressor e vítima não sendo familiares, já se conheciam. As situações com agressores desconhecidos das vítimas abrangem 121 casos.2 Estes dados contrariam a crença de que a maior parte das violações é praticada por atacantes desequilibrados, com fraco controlo dos impulsos sexuais, contra mulheres jovens que arriscam andar sozinhas em ruas desertas e mal iluminadas. A probabilidade de uma mulher vir a ser sexualmente vitimada por alguém que conhece é tão significativa ou maior do que a de ser atacada por um estranho, contrariamente ao que ditam os mitos da violação (Burt 1980).3

Os mitos da violação são falsas crenças acerca de vítimas, agressores/as e do próprio ato, que têm como base imagens estereotipadas de homens, mulheres, sexualidade e violência e desconhecimento sobre o fenómeno. Para além da convicção na relação de desconhecimento entre agressor e vítima, um dos mitos da violação mais prevalentes é o das falsas denúncias (Brownmiller 1975, Vigarello 1998, Bourke 2007, Bento 2008). Este mito consiste na certeza de que a maior parte das queixas é falsa e motivada por rancor e/ou desejo de retaliação por parte das mulheres. Acredita-se que estas usam a acusação de violação de forma instrumental, para se vingar de rejeições sexuais e românticas, de outras frustrações ou ainda para obter benefícios a seu favor. Ou tão-somente porque se arrependeram do ato sexual e, 1

Dos 473 inquéritos, 119 incidem sobre vítimas menores de dezoitos anos, destes 112 são raparigas e sete são rapazes. Entre os/as 39 arguidos/as conta-se uma mulher. Dados do Relatório Anual de Segurança Interna de 2013. 2 Em 75 casos o desenvolvimento da investigação ainda não tinha permitido apurar o tipo de relacionamento entre autor/a e vítima. Dois casos vitimaram pessoas que mantinham uma relação de assistência e/ou dependência em relação ao/à agressor/a e três estão referenciados como “outros” (Relatório Anual de Segurança Interna de 2013, p. 70). Sublinhe-se que os dados de violação entre pessoas com laços de parentesco não contemplam situações enquadradas no âmbito do crime de violência doméstica (152.º), uma vez que, para efeitos estatísticos, as ofensas sexuais no quadro deste crime são contabilizadas como violência doméstica. 3 Apesar de a palavra mito associada a vítimas, agressores e ao(s) ato(s) ser usada pelas feministas e também por alguns psicólogos estado-unidenses durante os anos 60 e 70 do século XX, a expressão mitos da violação foi cunhada por Martha Burt, num artigo publicado em 1980, no qual “elaborou um modelo causal entre os mitos de violação e a sua aceitação”. Burt conclui que há “um conjunto de atitudes (entre as quais conservadorismo sexual, visão tradicional dos papéis sexuais, crenças sexuais adversariais e aceitação da violência interpessoal) que são preditores da aceitação dos mitos de violação. O preditor mais forte relaciona-se com a noção de que a força e a coerção são formas legítimas de obter o consentimento, e que no contexto específico das relações de intimidade podem ser usadas de forma igualmente legítima.” (apud Bento 2008: 4) [realces meus].

por isso, reclamam ter sido violadas. Esta crença aparece como um pensamento dominante e é partilhada tanto por agentes que têm poder de decisão no destino de uma queixa de violação como pelo/a cidadão/ã comum.4 No entanto, quando a equipa liderada pela investigadora Liz Kelly analisou os dados de 26 países europeus verificou que a percentagem de falsas denúncias era semelhante à dos outros crimes, situando-se entre 2 e 9%. No mesmo estudo conclui-se que a crença nas falsas alegações é, para além de infundada, claramente exagerada. Não obstante, a adesão a este mito cria e alimenta uma cultura de ceticismo face às queixas, aumentando a possibilidade de os casos serem desacreditados ou desvalorizados e nunca chegarem a julgamento (Regan & Kelly 2003). Mais especificamente, em Portugal, numa centena de casos apresentados e investigados em diversas comarcas da Grande Lisboa,5 apenas cinco foram arquivados pelo Ministério Público por falsas acusações. Apesar deste ínfimo número, dos 95 casos restantes, unicamente 21 dos suspeitos6 foram constituídos arguidos e destes somente oito foram condenados, o que demonstra que os motivos pelos quais a taxa de condenação é baixa não estão relacionados com a falsidade da denúncia (Costa et al. 2009).

1.1. A Bela e o Monstro As imagens da vítima-tipo e daquela que será tipicamente a reação à agressão sexual também fazem parte dos mitos da violação. Da mesma maneira, existem estereotipias associadas a agressores/as e também ao motivo pelo qual violam. A violação aparece como um ato sexualmente motivado em vez de um crime com diferentes causas e de manifestação sexual. Da vítima espera-se expressão emocional traduzida em choro, vergonha e dificuldade de relacionamento interpessoal após a agressão, entre outras. Diferentes reações são suscetíveis de provocar desconfiança.

Os mitos da violação associam a aparência da vítima à da mulher sexualmente atraente, o que implica juventude entre outros traços físicos. Nesta perspetiva, é a atratividade da vítima que explica a incontrolabilidade do agressor, ao qual também estão associados outros estereótipos nomeadamente o apetite sexual desequilibrado que pode estar agregado ao celibato forçado (é a abstinência sexual prolongada, em consequência da incapacidade de seduzir e conquistar, que motiva a agressão) e a um certo desequilíbrio mental que o leva a atos predatórios. Em contrapartida, vítimas consideradas menos atraentes podem ter mais dificuldade em conseguir que acreditem nelas por não serem portadoras das características que se crê destabilizarem o autocontrolo masculino. Um exemplo extremo, citado por Ana Braga da Cruz, é o da justificação de um magistrado brasileiro que absolveu um arguido com base na aparência da vítima. Assim, conclui o juiz: “custa a crer que o acusado, um rapaz ainda jovem e 4

A ideia de que as mulheres (e os/as menores) acusam levianamente ou que facilmente gritam “fui violada” não está circunscrita aos/às profissionais que lidam com vítimas e/ou agressores/as. Durante o trabalho de campo que realizei para a investigação de doutoramento soube de um caso de uma adolescente vitimada por um grupo de rapazes que, quando chegou a casa pela manhã – acompanhada por um agente da polícia (já depois de ter ido fazer os exames de medicina legal) foi acusada pelos/as familiares de ter inventado a violação para evitar a censura e o castigo por não ter cumprido o horário de chegada a casa que lhe havia sido imposto. 5 Lisboa, Sintra, Loures e Almada. 6 Todos do sexo masculino (61 eram conhecidos das vítimas, 29 desconhecidos e 10 conhecimentos recentes). Entre as vítimas contam-se dois homens (2009: 6). 2

casado, tenha querido manter relações sexuais com a vítima, uma mulher de cor e sem qualquer atrativo sexual para um homem” [realces meus]. Aos/às agressores/as associa-se o sexo masculino, cuja sexualidade se acredita ser predatória e incontrolável por natureza, bem como uma certa incapacidade de relacionamento social ou patologias mentais diversas.

A ideia de a violação ser um crime sexualmente motivado conduz também à crença de que homens com elevado grau de atratividade não violam, uma vez que têm facilidade em seduzir e conquistar mulheres. E quando desprovidos de atratividade podem abster-se de forçar alguém, no caso de terem poder aquisitivo que lhes permita comprar sexo, o que deixa de fora da categoria de potenciais agressores homens ricos7. A estereotipia associada ao violador vincula-o a um homem de classe baixa, com grande probabilidade de pertencer a uma minoria étnica, características às quais se associa um fraco controlo de impulsos sexuais. Contudo, no que respeita a agressores reclusos nas cadeias portuguesas, a psicóloga Francisca Rebocho garante que estes “se aproximam muito mais da população portuguesa em geral, com a qual nos cruzamos no dia-a-dia, do que da mítica figura do ‘violas’, o terrível criminoso, indivíduo atávico, aberrante, remanescente do ‘criminoso nato’ Lombrosiano” (Rebocho 2007: 137).

A construção dos agressores como monstros perturba a perceção de que a agressão sexual pode (e é) praticada por pessoas que não estão associadas a estas categorias, desincentivando a denúncia das vítimas cujos/as agressores/as sejam, por exemplo, figuras públicas ou associadas a cargos de poder. Apesar de se saber que a violência pode ser um elemento de excitação sexual, a ideia parece não ter lugar nos mitos da violação. Segundo a psicóloga Nicola Gavey, estas crenças operam para “obscurecer a violação e para minimizar e justificar o sexo forçado por homens brancos, normais e respeitáveis” (2005). Um dos exemplos mais gritantes é o de Jimmy Savile, celebridade britânica8 denunciada diversas vezes como ofensor sexual, que nunca chegou sequer a ser detido dado que o caso apenas se tornou público em 2012, um ano após a sua morte. À medida que se iam descobrindo mais vítimas e pormenores acerca da sua compulsão para o abuso sexual, a perplexidade e o choque tomaram conta da sociedade britânica. Afinal de contas, Savile foi nomeado cavaleiro pela rainha e pelo papa e moviase entre a elite do Reino Unido. Apesar de haver rumores acerca do seu comportamento, as denúncias de algumas das suas vítimas foram sendo sucessivamente ignoradas. Segundo conta o Washington Post, havia uma recusa em acreditar na possibilidade de aquela figura que passara férias com a família Tatcher e aconselhava a princesa Diana ser um pedófilo e predador sexual. De acordo com a investigação conduzida após a sua morte, o seu estatuto de celebridade permitiu-lhe abusar impunemente de centenas de vítimas. A escritora Carole Cadwalladr pergunta “como é que não

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Este é o argumento-chave para a defesa da inocência de qualquer homem rico sob o qual pese uma acusação de violação. Savile começou a sua carreira como DJ mas rapidamente iniciou trabalho na rádio. Durante anos apresentou dois programas televisivos para crianças e adolescentes, o que lhe garantiu acesso regular às vítimas. Adicionalmente, Savile era voluntário em diversos hospitais para os quais recolhia fundos e nos quais era presença regular. Os hospitais eram palcos privilegiados para abusos. Estima-se que Savile tenha abusado de mais de 400 pessoas (de ambos sexos de diferentes idades, pese embora a maioria das vítimas adultas fosse do sexo feminino). 8

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conseguimos detetar este monstro no meio de nós?”9. No entanto, nunca antes ele parecera um monstro; houve uma necessidade de o construir (ou transformar) como tal após a divulgação dos abusos, a ponto de se noticiar a sua ligação a uma alegada rede de pedofilia satânica, reforçando o caráter profano dos abusos e da sua personalidade. Contudo, antes ele era uma figura querida e amada cujo funeral recebeu honras de cobertura televisiva e condolências públicas por parte da elite britânica. Este caso ilustra bem o quão os mitos associados a agressores/as e vítimas contribuem para a impunidade de agressores/as que não correspondam a esta estereotipia.

2.

A Culpabilização da Vítima

Associada aos mitos da violação persiste ainda a culpabilização da vítima (victim blaming),10 ou seja, a transferência parcial ou integral da responsabilidade da agressão para a vítima. Basicamente, este processo consiste na projeção da culpa para a pessoa que sofre o ataque, a qual se crê ter motivado (ou contribuído para) a ofensa através do seu comportamento. Essa contribuição pode traduzir-se em atitudes inconscientes (portanto, irresponsáveis) que se caracterizam por atos imprudentes e que estão frequentemente associados à ocupação do espaço público ou a comportamentos considerados inadequados para o género feminino. A intoxicação etílica, ou por outros estupefacientes que impliquem perda parcial ou total de consciência; partilha de transporte privado, deslocações a solo – a pé ou de táxi – são alguns exemplos de condutas impróprias para as vítimas. Também entram nesta categoria posturas que se crê poderem desencadear o desejo incontrolável no sexo oposto, como o uso de indumentária sexualmente sugestiva, a simpatia (associada a sorrisos e permissão de aproximação física), a iniciativa de convidar um homem para sair (ou para entrar em espaços fechados e privados como casas ou carros), ou outras ações passíveis de serem mal interpretadas pelo sexo masculino, que as entenderá como um convite para o relacionamento sexual.

A projeção da culpa pode ser grosseira e primária, como por exemplo, dizer que “a melhor maneira de evitar a violação é não se vestir como uma prostituta11” ou poderá adotar uma forma mais suave colocando a tónica na certeza da não vitimação caso a vítima tivesse evitado a exposição ao risco, como por exemplo “se ela não tivesse aceitado boleia isto nunca teria acontecido”. A culpabilização da vítima por não ter sabido evitar ser atacada não é recente, no entanto, a vitimologia deu-lhe um cariz científico que lhe permitiu ser usada na arena pública. Em 1971, Menachem Amir conclui que, entre 1958-1960, na cidade de Filadélfia, 19% das vítimas de violação haviam contribuído para a precipitação do crime. Já a Comissão Nacional para o Apuramento das Causas e Para a Prevenção da Violência, nos EUA, chegou à 9

Tradução minha de “How did we fail to detect the monster in our midst?”, 13 de Julho de 2014 (The Guardian, The Observer) in http://www.theguardian.com/media/2014/jul/13/jimmy-savile-man-who-knew-him-best-dan-davies-in-plain-sight, consultado a 15 de Julho de 2014. 10 O termo surge num contexto de conflito racial nos EUA e é cunhado por William Ryan quando, em 1971, publica uma obra com o título “Blaming the Victim”. Ryan sustenta que a culpabilização da vítima faz parte de um sistema ideológico complexo que visa manter a comunidade negra estado-unidense em estado de terror e submissão e que justifica a agressão contra os seus membros. 11 Adaptação da frase “women should avoid dressing like sluts in order not to be victimized", da autoria de um polícia canadense, perante um auditório de estudantes universitários/as, em 2011. Este incidente deu origem ao movimento Slut Walk (Marcha das Galdérias na versão portuguesa e Marcha das Vadias no Brasil), que rapidamente ultrapassou as fronteiras do Canadá. 4

percentagem de 4,4% (apud Brownmiller 1975: 355). O conceito de precipitação do crime pela vítima implica que haja um comportamento desta que contribui para o evento e que não fora essa conduta, o crime poderia ter sido evitado. Esta linha de raciocínio tem como consequência a desculpabilização do/a agressor/a o qual se crê apenas ter reagido ao comportamento da vítima. Ou seja, o problema deixa de ser a conduta do/a agressor/a para passar a ser a de quem sofre a ofensa.

A culpabilização da vítima é prática corrente na sociedade ocidental, estando as potenciais vítimas sempre a ser recordadas não só do seu caráter de sujeitos violáveis, mas também do seu dever de evitar a violação, através de conselhos mais ou menos impositivos.12 Estes conselhos e sugestões não são publicitados por má-fé ou com más intenções, mas têm um efeito que Carine Mardorossian compara a “uma nova forma de panoticismo, um sistema individualizado e interiorizado de vigilância, pelo qual, cada mulher se torna vigilante de si própria”, assim, continua Mardorossian “em vez de se questionar o princípio da autovigilância espera-se que as mulheres se auto policiem (2002: 757) [realces meus]. Casos como a invenção de roupa anti violação13 colocam a tónica na alegada responsabilidade da vítima em evitar a vitimação desviando a atenção dos/as agressores/as que têm o dever de não o fazer.

3.

Os Media e os Mitos da Violação

A projeção da culpa para a vítima não está circunscrita aos discursos populares ou à vitimologia. Esta ideologia é transversal às diversas dimensões sociais e culturais e pode encontrar-se nos discursos mediáticos.

Helen Benedict que, em 1992, publicou os resultados do seu estudo sobre a cobertura mediática dos crimes de violação nos EUA, identifica diversas características da vítima que aumentam a probabilidade de a narração jornalística a culpabilizar. Aspetos como a classe social ou etnia (se for a mesma do 12

A título de exemplo, veja-se as páginas dos órgãos de polícia criminal portugueses. Para prevenir a “violação ou abuso sexual”, a Polícia Judiciária (PJ) aconselha a recusar boleias de estranhos, a não “beber em demasia” e a vigiar o copo para evitar a adulteração da bebida em “festas ou entre amigos” e ainda a memorizar “discretamente” a “matrícula do táxi”. Aparentemente neutros, estes conselhos são dirigidos às mulheres. Quando a PJ avisa a vítima para preservar os vestígios biológicos não se lavando di-lo no feminino apesar de usar linguagem inclusiva: “não faça uma higiene profunda, a nível ginecológico, sem ser vista/o por um médico” – repara-se como a grafia aparentemente inclusiva para a vítima não é seguida para “médico”, nem para a higiene, que poderia ser “genital” em vez de “ginecológico” que apenas inclui mulheres [realces meus]. Estes “conselhos” instam as mulheres a exercer uma hipervigilância sobre o seu comportamento, podendo esperar ameaças quer de “desconhecidos”, dos quais não devem aceitar boleia; quer de “amigos”, entre os quais devem sempre manter a consciência controlando a quantidade de bebidas que ingerem e a integridade das mesmas. A Polícia de Segurança Pública (PSP) tem um espaço próprio dentro da sua página oficial para conselhos de segurança às mulheres, às quais faz notar que “só por o serem, apresentam risco específico”. A lista de conselhos e advertências é extensa, pese embora se indique no início que “comparativamente” os crimes “violentos” são raros. Há alertas para o espaço privado (casa, carro) e público (rua, transportes públicos) e “precauções adicionais” para jovens do sexo feminino. 13 Os/as autores/as do projeto que visa a criação de roupa interior à prova de cortes e quase impossível de retirar salvo pela usuária pediram financiamento via crowdfunding tendo já obtido o valor necessário à concretização do projeto (https://www.indiegogo.com/projects/ar-wear-confidence-protection-that-can-be-worn). Apesar de os/as autores/as colocarem a tónica na utilidade da roupa anti violação para situações em que a vítima possa estar inconsciente é bom lembrar que a vítima poderá sofrer outros atos que não os de penetração genital para os quais a roupa anti violação de nada lhe servirá. Adicionalmente, a vítima pode ser obrigada pelo/a agressor/a a retirar a roupa o que pode implicar um risco ainda maior. Nas situações conhecidas em que uma vítima inconsciente foi violada, a agressão foi acompanhada de outros atos humilhantes (em Steubenville chegaram a urinar para cima da vítima, p.e.). Pensar que a violação se resume à genitália do baixo-ventre é redutor e não corresponde à realidade. Adicionalmente, concentrar esforços a ensinar ou a dotar potenciais vítimas a prevenir-se é desviar as atenções do dever de quem agride de não cometer atos que são puníveis por lei. 5

agressor), inexistência de ameaças com armas, faixa etária e grau de atratividade (quanto mais atraente maior será a culpa por encarnar a figura da Eva tentadora perante a qual os homens perdem a racionalidade), o relacionamento vítima-agressor (se são conhecidos/as) e se, de alguma forma, a vítima se afasta do papel tradicional da mulher que fica em casa com os filhos. Segundo Benedict, a projeção da culpa para a vítima permite não só à sociedade auto desculpabilizar-se pela indiferença com que reage aos crimes contra as mulheres, mas também possibilita ao público (nós) distanciar-se de quem perceciona serem as potenciais vítimas, as quais se comportam de forma que “nós” jamais nos comportaríamos. No que aos agressores respeita, Benedict identifica a tendência entre os media para as descrições caricaturadas e exageradas, que conduzem à metamorfose dos agressores “normais” em figuras monstruosas. O caso de Jimmy Savile (ver nota 8) em 2012 é, talvez, uma das melhores e recentes ilustrações do que Benedict observou na imprensa14 estado-unidense duas décadas antes.

Já a socióloga Marian Meyers conclui que a culpabilização das vítimas nas narrativas mediáticas sobre os crimes de violação funciona como um aviso para todas as mulheres; uma espécie de lembrete para terem sempre presente que a agressão sexual é uma ameaça real, em particular, se excederem as fronteiras permitidas ao seu género (Meyers 1997). Estes limites não estão formalizados e sofrem processos de reconfiguração nos media consoante o grau de responsabilidade atribuído às vítimas. Um exemplo é a sugestão da ligação entre a conduta da vítima e a sua vitimação, a qual poderia ter sido evitada caso aquela não tivesse adotado um comportamento de risco, como ilustra este título “Dinamarquesa à boleia violada por camionista” (Correio da Manhã 19-04-2012). De acordo com Meyers, o estabelecimento de uma relação de causalidade entre uma determinada ação e a vitimação funciona como uma advertência15. Contraste-se com o título do Diário de Notícias (18-04-2012) “Camionista detido por violar jovem turista”, que enfatiza a detenção do agressor, não menciona o comportamento da vítima e secundariza as suas características, apesar de as referir (jovem e turista).

Segundo estas autoras, os media tendem a salientar certas características dos agressores, como a etnia e a classe social (por exemplo, com recurso à informação da situação profissional, p.e. “Desempregado rapta e viola ex-namorada”, CM 22-12-2011) estabelecendo de forma mais ou menos subtil uma associação do crime a estes aspetos distintivos. Contudo, a relação entre o género de quem agride e de 14

“Imprensa” na sua aceção tradicional designa o conjunto dos jornais e revistas com existência física e conteúdos escritos (por oposição à rádio ou à televisão). Contudo, o termo tem vindo a ganhar um significado mais amplo, incluindo também os/as profissionais que produzem os conteúdos (independentemente do seu formato). Atualmente, aceita-se o uso de imprensa para conteúdos não escritos. É este o sentido que é dado ao uso da palavra imprensa neste texto. Ver “Imprensa Escrita?” in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, 10-08-1999, http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=4420, consultado a 3 de Julho de 2014. 15

A ideia de que o “bom comportamento” será recompensado com a imunidade à violação faz parte dos mitos da violação. Este mito relaciona-se com a ideia de que a agressão sexual é a consequência expectável pela ousadia comportamental, daí a ideia que as vítimas mereceram o que lhes aconteceu. Por “bem comportada” entenda-se não se comportarem como os homens fazem no espaço público. O sobrevivente de violação Fred Pelka, num momento de autocrítica, resume bem a atitude geral face às vítimas de ataques sexuais. Antes do episódio que o vitimou, uma amiga confidenciara-lhe ter sido atacada sexualmente. Ao evocar esse momento, faz o seu ato de contrição: «"You should've waited for the next bus," I lectured. Today I cringe at my arrogance. Hitchhiking, like walking alone after dark, or feeling safe on a date, at work, at home, is another perquisite to which only men are entitled. How dare she not understand the limits of her freedom?» (1997: 212) [realces meus].

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quem é vítima nunca é sugerida, ocultando assim a clara evidência da violência de género inerente a este crime. Acrescente-se ainda a reprodução de imagens dicotómicas das vítimas, que variam entre as figuras da virgem ou da vamp. Ambas as autoras concluem que a representação mediática da violação sexual como episódios isolados e sem conexão com os restantes impossibilita a perceção do fenómeno como uma das dimensões da violência de género.

4.

As Imagens das Mulheres nos Media

Diversos estudos demonstram a escassa presença das mulheres nos media e a frequência da estereotipia quando elas são mencionadas (Tuchman 1978, 2009, Silveirinha 2004). Na imprensa portuguesa, os resultados do trabalho do observatório da ULAI – Unidade Local de Análise de Imprensa16 vieram confirmar um cenário similar. Ao analisar as notícias do Dia Internacional da Mulher na imprensa lusa entre 1975 e 2007, Carla Cerqueira encontrou representações das mulheres associadas a extremos que oscilam entre o papel da vítima indefesa, que carece de proteção, e a supermulher que vence num mundo masculino. Estas são equiparadas a heroínas precisamente por serem associadas a papéis masculinos, o que leva a investigadora a concluir que “as mulheres que passam de objetos a sujeitos fazem-no segundo moldes ligados ao masculino, o que revela que a maior parte das mulheres continua a ser excluída dos espaços de representação social e política” (2013: 26).

4.1. A Violação nos Media Em 1979, enquanto estudavam o processo de seleção de notícias, Golding e Elliot verificaram que potencialidade de um acontecimento se transformar em notícia, ou seja, a sua noticiabilidade, estava dependente dos valores notícia, isto é, dos critérios que determinam qual a relevância dos factos. De acordo com estes autores, os valores notícia “funcionam como linhas-guia para a apresentação do material, sugerindo o que deve ser realçado, omitido e o que deve ser prioritário na preparação das notícias a apresentar ao público”. Desta forma, os valores notícia constituem “regras práticas que abrangem um corpus de conhecimentos profissionais que, implicitamente, e, muitas vezes, explicitamente, explicam e guiam os procedimentos redatoriais” (apud Wolf 1995: 175). Os valores notícia estão sujeitos a variáveis culturais e socioeconómicas, para além das exigências inerentes à linha editorial do próprio órgão de comunicação social (orientação política, público alvo, entre outras). Embora existam diversas tipologias que elencam critérios de noticiabilidade, todas são unânimes em reconhecer que a negatividade de um facto – frequentemente, aliado a outros critérios como espetacularidade (acidentes de viação, incêndios, entre outros), ou a excentricidade dos/as agentes envolvidos/as – é um importante valor notícia. Como explicam Rita Basílio de Simões e Marta Peça:

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Os resultados foram apresentados à imprensa em Junho de 2014. Os boletins estão disponíveis para consulta em linha (ver endereços na bibliografia no final deste artigo). 7

«As histórias do crime e do desvio sempre constituíram, em maior ou menor grau, matérias especialmente atraentes para a imprensa. Todavia, as exigências que os media enfrentam numa economia de mercado conduzem à construção de notícias onde o que é desviante, o que desafia as fronteiras do comportamento legal e moralmente aceitável assume elevada centralidade.» (Basílio de Simões e Peça 2009:85).

É, portanto, na perspetiva criminal e moral que no contexto português a violação aparece na imprensa. Desde o início do último milénio que a violência sexual ganhou um espaço noticioso considerável em todos os órgãos de comunicação social. Para este cenário muito contribuiu o episódio conhecido como Processo Casa Pia, tornado público pelo semanário Expresso, em 2002. Data desta altura a emergência do abuso sexual, em particular se cometido contra menores institucionalizados/as, nos media portugueses. Por causa do escândalo da Casa Pia os media esforçaram-se por explicar a pedofilia e os seus efeitos nas vítimas. E porque o processo Casa Pia envolvia figuras públicas foi necessário desconstruir a ideia do pedófilo como o monstro que se identifica na rua ao mesmo tempo que se transformava os suspeitos em monstros. Com a ampla publicitação do fenómeno crescem também as queixas por abuso sexual de crianças17 revelando-se a importância da discussão do assunto no espaço público.

O tema do abuso sexual de crianças institucionalizadas, a quem o Estado falhou no dever de proteção, surge pela mão de uma repórter de um semanário de referência18 e todos os órgãos de comunicação social lhe seguem os passos. O mesmo não se pode dizer da violação (que abrange maiores e menores) que permanece como um tema visto na perspetiva da segurança criminal, numa abordagem individualizada, sem qualquer relação com outras violências contra as mulheres e, sobretudo, noticiada com o aparato de caso de polícia sem que haja espaço para a reflexão ou para a audição de especialistas.

Assim, apesar de notícia negativa, com a exceção do Diário de Notícias (ver Tabela 1), a violação não aparece como tema recorrente na imprensa de referência, verificando-se a ausência de notícias relacionadas com o assunto nestes órgãos de comunicação social. A violência sexual que vitima principalmente mulheres (maiores e menores) permanece invisibilizada ou sub-representada. Esta aniquilação simbólica – que consiste na ausência ou sub-representação de um grupo ou tema nos media - pode estar relacionada com diversos aspetos (George Gerbner e Larry Gross 1976 apud Tuchman 2009: 15). Por um lado, a própria representação das mulheres nos media caracteriza-se por uma sub17

O Diário de Notícias refere 492 queixas no ano da publicitação do Processo Casa Pia e 716 em 2003. Desse ano até 2011 “foram apresentadas quase seis mil participações” (24-02-2013). Segundo dados do Relatório Anual de Segurança de 2013, nesse ano foram participados 1227 crimes de abuso sexual de menores. 18 No caso do escândalo da Casa Pia saliente-se que os valores notícia estão relacionados não apenas com o crime por si só, mas antes com a interseção de diferentes critérios, que fazem o facto ser elegível como notícia para um jornal como o Expresso: possível existência de uma rede de abuso e tráfico, possível envolvimento de figuras públicas, crianças institucionalizadas e a cargo do Estado como possíveis vítimas. Estes (entre outros) valores notícia tornaram o caso Casa Pia num escândalo – e os escândalos nacionais (e internacionais) são outro dos valores notícia, mesmo para a imprensa de referência. 8

representação como já foi salientado. Por outro, o tema da violência sexual ainda está rodeado de alguns tabus e é visto como um assunto menor, que constitui atrativo para a imprensa popular ou criminal que se dedica a esses casos. O assunto ganha valor notícia quando, ou é acompanhado de excentricidade/monstruosidade particular, como é o caso dos violadores em série (violador de Telheiras, ou o violador de Benfica e da Pontinha), ou dos homens vítimas de violência sexual; ou ainda quando é visto do ponto de vista político, como demonstra a cobertura à proposta de alteração legislativa ao artigo da violação, por parte do Bloco de Esquerda, a qual foi noticiada na imprensa de referência.

5.

A Violação a Partir dos Títulos da Imprensa Portuguesa

Com o objetivo de captar as imagens dominantes da violação nos media portugueses e perceber se a cobertura mediática da agressão sexual reproduz ou não mitos da violação e se adere, ou não, à ideologia da culpabilização das vítimas foram analisadas notícias em linha da imprensa lusa. 5.1. Amostra A amostra é constituída por 255 notícias consultadas em linha. A escolha da consulta dos conteúdos da imprensa na sua versão digital gratuita prende-se, por um lado, com a maior acessibilidade, a qual facilita a consulta à imprensa local e regional, e por outro, com a dispensa de encargos adicionais relacionados com a aquisição dos jornais19. Esta opção também surge associada à metodologia de pesquisa de notícias, dado que, para a sua seleção, foi usada a ferramenta dos Alertas do Google, que identifica a ocorrência de certas palavras em textos noticiosos. As palavras e expressões monitorizadas foram: violação, crime de violação, violada, violou, violador, predador sexual. Foi feita ainda uma pesquisa nas páginas oficiais do Correio da Manhã (CM), do Diário de Notícias (DN), do Jornal de Notícias (JN), do Expresso e do Público, com obtenção de novos resultados não devolvidos pelos Alertas do Google.

5.2. Caracterização da Amostra Esta amostra não resulta de uma monitorização da imprensa, mas sim de uma recolha – quase aleatória – com origem quer nos algoritmos dos Alertas do Google, quer nos algoritmos das páginas dos jornais consultados e contempla conteúdos jornalísticos de órgãos de comunicação social televisivos, radiofónicos, da imprensa digital e da imprensa escrita na sua versão em linha.20 Na seleção das notícias

19

O cenário, entretanto, alterou-se. Atualmente, alguns dos órgãos de comunicação social abrangidos nesta amostra restringem o acesso à integralidade dos conteúdos a leitores/as assinantes da versão digital do jornal, como é o caso do Correio da Manhã. Quando iniciei a recolha, apenas algumas das notícias eram excluídas da consulta livre, sendo a leitura do restante artigo remetida para a edição impressa. 20 Embora todas as notícias tenham origem na versão em linha dos órgãos de comunicação social, há alguns jornais que não têm existência em papel, como é o caso do Diário Digital ou da ADN – Agência de Notícias, ou ainda do Local.pt - são estes que refiro como “imprensa digital” (diferente de “versão digital”). 9

privilegiaram-se as nacionais, evitando que episódios internacionais, como as violações na Índia21, na Praça Tahrir22 ou o caso Ariel Castro,23 nos EUA, que foram extremamente mediatizados, ocupassem muito espaço na amostra. Adicionalmente, deu-se preferência à seleção de casos entre adultos/as ou entre menores, evitando (mas não excluindo) as situações de adultos/as que vitimam menores.

Como se pode observar na tabela 1, mais de metade das notícias tem origem na imprensa diária, com destaque para o Correio da Manhã seguido do Diário de Notícias. Ambos diários generalistas com linhas editoriais diferentes, já que o primeiro se enquadra na imprensa popular e o DN na imprensa de referência. Para além da imprensa nacional, a amostra inclui também conteúdos locais ou regionais como ilustram as ocorrências do Notícias de Aveiro, do Correio do Minho ou do Soberania do Povo, apenas para citar alguns. Não obstante, como se pode verificar, a imprensa regional e local é a que apresenta um menor número de ocorrências. Esta distribuição prende-se com os valores notícia acima mencionados: para um jornal nacional casos ocorridos em diversos pontos do país podem ter o mesmo grau de noticiabilidade, mas para a imprensa local apenas importam as situações que afetam a comunidade que constitui o seu público-alvo, ou casos de outras regiões que tenham atingido um estatuto nacional, como os violadores em série.

Os semanários aparecem com ínfimas ocorrências associadas à dimensão política do tema (propostas de alteração à lei) ou ao valor notícia do inusitado,24

21

Em Dezembro de 2012, Jyoti Singh e um amigo foram alvo de um ataque quando, no regresso do cinema, entraram num autocarro em Nova Deli. Jyoti, 23 anos, foi violada e espancada e não sobreviveu aos ferimentos provocados pela violência da agressão. O seu amigo foi espancado. Por fim, ambos foram atirados nus do autocarro em andamento. O caso encheu as páginas dos jornais internacionais e em Portugal os media seguiram a tendência internacional. Após este episódio, os media portugueses têm feito eco de numerosos casos de violação na Índia, que agora têm um impacto mediático sem precedentes. 22 A 11 de Fevereiro de 2011, Lara Logan, repórter de guerra da CBS, foi atacada enquanto cobria a revolução egípcia, na Praça Tahrir. Logan descreveu o episódio detalhadamente no programa “60 Minutes”. A jornalista explicou que pretendia alertar para a prevalência das ofensas sexuais no Egito e também quebrar o silêncio sobre a violência sexual a que as repórteres de guerra estão sujeitas. A repórter Kim Barker afirma, no New York Times, que há um código de silêncio acerca da violência sexual sobre as/os repórteres, exemplificando que o Comité para a Proteção dos Jornalistas tem listas dos/as repórteres mortos/as em serviço, mas não faz o mesmo para as violações. Barker assegura que “a maior parte das/os jornalistas não denuncia” (19-02-2011). A não denúncia é justificada: Logan foi vítima das teorias da precipitação do crime pela vítima (a sua aparência esteve no foco das análises, mas também o facto de ser mãe e estar a colocar-se numa situação de enorme perigo físico; a pergunta colocada era: sendo Logan mãe, teria ela o direito de colocar a sua vida em risco? Saliente-se que esta questão não existiria se Logan fosse um pai em vez de uma mãe). A culpabilização de que Logan foi alvo serve de aviso para todas as suas colegas, que vêm confirmadas as suspeitas de que a não revelação pode ser-lhes mais favorável do que a denúncia que poderá ser usada contra elas. Sobretudo, é possível que seja o argumento para as afastar de trabalhos em territórios onde haja conflitos militares ou quaisquer outras situações que possam constituir perigo de vitimação sexual. Diversos/as autores/as tocaram nesta questão e a própria Repórteres sem Fronteiras emitiu um comunicado a desaconselhar o envio de mulheres repórteres para o Egito. Após diversas críticas, a Repórteres sem Fronteiras retratou-se e sublinhou que apenas queria salientar que é necessário garantir todas as condições de segurança. 23 Ariel Castro manteve sequestradas três raparigas que raptou entre 2002 e 2004, nos EUA. O caso foi descoberto em Maio de 2013 quando uma das vítimas conseguiu fugir levando à detenção de Castro, que acabou por suicidar-se na cadeia, em Setembro de 2013. O caso Ariel Castro revelou inúmeras falhas no sistema de busca de pessoas desaparecidas nos EUA, dado que o desaparecimento das três raparigas tinha sido reportado à polícia. No caso da primeira vítima, Michelle Knight, a polícia interpretou a fugas como um capricho ou fruto de ressentimento. Quando se descobriu que Castro tinha três raparigas presas que violava e torturava, a vizinhança revelou a sua perplexidade por nunca antes ter desconfiado de Ariel. No entanto, pouco depois, a palavra “monstro” já era usada nos media anglo-saxónicos e os discursos alteraram-se incluindo uma revisão dos comportamentos suspeitos de Castro, que antes haviam sido sempre desvalorizados. O episódio foi comparado com os sequestros igualmente mediáticos do austríaco Fritzl (que manteve a sua filha refém durante 24 anos, na cave, o que resultou em sete crianças e um aborto) e da austríaca Natasha Kampush, sequestrada aos dez anos, e que conseguiu fugir oito anos depois. 24 Este valor notícia pode traduzir-se na frase “Não é notícia um cão morder um Homem; mas se um Homem morder um cão isso é notícia!”. Em editorial do DN, de 23 de Novembro de 2004, José Manuel Barroso explica que a frase é usada para ilustrar: “(…) aos 10

Tabela 1 CM

DN

Local.pt

Correio do Minho

D.N Madeira

4

3

3

3

2

Centro TV

Soberania do Povo

Notícias Grande Lisboa

Mirante

O Ribatejo

1

1

1

1

JN

Público

Sábado

14

12

10

8

7 Notícias da Trofa

1

1

99

44

30

RTP 1

Diário Digital

Notícias de Aveiro

Bola

TSF

ADN

Notícias ao Minuto

2

2

2

1

1

1

1

SOL

Expresso

TVI 24

PT Jornal

Jornal I

O período temporal abrangido vai de 2007 a 2014, com uma distribuição desequilibrada, como se pode observar na tabela 2. De tal desproporção não se pode concluir sobre a existência de mais ou menos notícias acerca de violência sexual num ano ou noutro, dado que a amostra foi recolhida sem recurso à monitorização periódica da imprensa. Tabela 2 2014

2013

2012

2011

2010

2009

2008

2007

Total

60

57

79

36

18

3

1

1

255

A maior parte das notícias é assinada por um/a (ou vários/as) jornalista(s), cujo(s) nome(s) pode(m) ser identificado(s) somente pelas iniciais. Uma ínfima parte dos conteúdos consiste no uso integral do texto (sem quaisquer alterações) distribuído por uma agência de notícias, maioritariamente, a portuguesa Lusa, embora também se encontrem textos com referência à Associated Press (AP) ou à francesa Agence France-Presse (AFP) para os artigos relacionados com casos internacionais. Os textos assinados por um/a jornalista com referência à agência, p.e., “Lusa/Luís Manuel Cabral” (DN, 25-09-2012), foram considerados assinados apenas por um/a profissional, não se categorizando a agência, para evitar repetições. Os textos cuja assinatura não permite perceber o sexo do/a autor/a, ou por estar identificado com iniciais do nome ou por estar assinado como Redação foram considerados de Assinatura Indeterminada. As notícias assinadas por mais do que um/a autor/a foram categorizadas como textos de Múltiplos/as autores/as.

Alguns nomes repetem-se indicando que os/as jornalistas podem estar afetos/as a uma determinada secção, estando responsáveis pela redação de notícias sobre esse tema. Não se antevê, no entanto, especialização – pelo menos, ao nível narrativo. Isto é, não se verifica que um/a autor/a (ou vários/as) domine o tema, ou os temas, nomeadamente a nomenclatura ou conceitos jurídicos e judiciais. Por exemplo, a 3 de Março de 2012, o CM anuncia que “Aumentam atentados ao pudor25”, tendo a “PSP registado no ano anterior 33 atentados ao pudor”. Ora, desde a alteração ao Código Penal (CP) de 1995 que não há “atentados ao pudor”. O artigo refere situações passíveis de serem enquadradas no crime de Importunação Sexual (art.º 170.º) previsto no CP desde 2007, ou em Actos Exibicionistas (art.º 171.º), entre 1995 e 2007. É, portanto, escolha editorial chamar atos contra o pudor a práticas que estão

estagiários de jornalismo os critérios da escolha do noticiável. Noticiável é o que é novo, surpreendente, que foge à habitualidade. (…)” in http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=590270, consultado a 2 de Julho de 2014. 25 http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/nacional/sociedade/aumentam-atentados-ao-pudor 11

Total

255

tipificadas no CP como Importunação Sexual, na secção dos Crimes Contra a Liberdade Sexual. De resto, é pública a intenção dos/as legisladores/as de retirar os vestígios de moralidade dos crimes sexuais, eliminando assim a palavra pudor do CP. Adicionalmente, o facto de ser o/a mesmo profissional a redigir as notícias sobre o tema também não parece influenciar o grau de profundidade da abordagem, não havendo, por exemplo, referências científicas às consequências do crime sobre as vítimas ou tão pouco às explicações da existência e prevalência da violência sexual.

Como se pode verificar pela tabela 3, quando é possível identificar o/a autor/a, as mulheres são as responsáveis pela produção de mais textos do que os homens, o que, provavelmente, reflete a feminização da profissão, fenómeno que se tem acentuado nas últimas duas décadas (Guinote 2013, Garcia 2009, Subtil 2009). Seria interessante verificar se se identificam diferenças de género no tratamento da questão, algo que não foi possível fazer no âmbito deste trabalho.

Tabela 3 Agência

Feminino

Masculino

Múltiplos/as Autores/as

Sem Assinatura

Iniciais ou Assinatura Indeterminada

Total

14

69

50

25

45

52

255

No que respeita ao tratamento gráfico, observa-se que 130 notícias não são acompanhadas de imagem, o que constitui mais de metade da amostra. Nos casos em que se verifica a presença de imagens, estas podem ser fotografias – frequentemente com planos de instituições ligadas à justiça (tribunais, instalações policiais: esquadras e estabelecimentos prisionais ou ainda símbolos da justiça) ou mesmo de arguidos/as acompanhados das forças policiais no momento da chegada ou ao tribunal ou às instalações policiais. Quando a notícia versa a detenção do/a suspeito/a ou arguido/a é também comum usar representações dos símbolos dos órgãos de polícia criminal responsáveis pela detenção. As ilustrações que representam a sugestão da agressão sexual, em particular para os casos que envolvem menores, também são comuns.

No que se refere aos géneros jornalísticos, o que prevalece é a notícia ou artigo com 226 ocorrências, das quais, oito são textos longos sem, no entanto, se verificar um aprofundamento da questão que leve a classificar a narrativa descritiva dos factos como reportagem. Há vinte e quatro notícias breves, assim classificadas por apresentarem um a dois parágrafos. Nestes casos, é frequente a indicação da existência de uma versão desenvolvida da notícia na edição impressa do jornal ou, em dez casos, servem somente como introdução a um vídeo sobre a notícia.

A escassez de reportagens pode ser um indicador da forma como os/as profissionais da comunicação social tratam a violência sexual: de forma breve, factual, sem recorrer a fontes externas científicas que tragam mais esclarecimentos sobre os factos. Sobretudo, sem aprofundar e humanizar personagens. O recurso ao género artigo noticioso permite perceber que as narrativas jornalísticas são superficiais e 12

sujeitas a uma economia narrativa que pode condicionar a profundidade com que se aborda o tema. A reportagem permite dar profundidade aos/às principais atores/atrizes da história que se conta. É neste género que há mais espaço para a reflexão e para o questionamento ou para a desconstrução de mitos e falsas crenças que são partilhadas mesmo pelos/as mais bem-intencionados/as profissionais. É com a reportagem que se consegue fazer uma descrição da vítima enquanto pessoa fora do seu contexto de vitimação e no qual se descreve o que ela fez antes, durante e após o momento em que foi vitimada.

Tabela 4 Artigo

Peça Televisiva

Reportagem

Breve

Entrevista

Total

Vídeo

Artigo Longo

226

2

2

24

1

255

10

8

A categorização das notícias de crimes sexuais varia de jornal para jornal, uma vez que a divisão e tipificação dos assuntos não obedecem a regras formais, cabendo a decisão aos órgãos executivos do órgão de comunicação social. Por exemplo, um jornal pode ter uma secção de Justiça e outro não. Apesar da limitação da discricionariedade na definição das secções, a categorização dada a estas notícias por parte das editorias foi um aspeto valorado, porque denota de que forma o jornal trata o assunto. Como se pode observar na tabela 5, o grosso das notícias entra na categoria nacional, também chamada de Portugal ou País. A sociedade é, frequentemente um subtema do nacional e por isso, consegue-se perceber que o assunto é tratado numa perspetiva interna, isto é, como se cada caso se tratasse de uma idiossincrasia local ou nacional ou, pelo menos, sem qualquer abordagem transversal, enquadrada na violência, e dentro desta, na violência contra as mulheres. Aliás, isso é notório quando o tema é categorizado no internacional sem que haja qualquer conexão com o nacional. Isto é, nunca se estabelece uma relação entre as histórias ocorridas no estrangeiro e os casos ocorridos em Portugal. Estas conexões podem (e são) usadas na comunicação social como forma de aumentar a noticiabilidade dos casos, pelo valor notícia da proximidade (emocional, cultural ou outra). Um exemplo é o do sequestro (por resolver) de Madeleine McCann cuja cobertura mediática, em 2007, remeteu para o sequestro (também por resolver) de Rui Pedro, desaparecido desde 1998. Quando, em 2013, uma utilizadora de couch surfing apresentou queixa por ter sido violada em Portugal, a imprensa não fez referência à existência ou não de outros casos no estrangeiro, p.e.. Neste texto, não há um desenvolvimento sobre as condições do sistema de couch surfing, ou sequer a recolha de opiniões de outros/as membros portugueses/as registados/as na plataforma. Aliás, é curioso que o Público26 (27-062013) mencione, como parágrafo final, um outro caso de violação numa residência universitária em Bragança, explicitando, inclusivamente, as profissões e nacionalidade de agressores, e referindo que a vítima estava inanimada devido a intoxicação etílica. Pese embora haver na mesma notícia dois casos de violação, não se vislumbra qualquer reflexão sobre as possíveis causas das agressões.

26

http://www.publico.pt/sociedade/noticia/turista-de-couch-surfing-violada-em-lisboa-1598583 a caixa de comentários desta notícia é ilustrativa da ideologia de culpabilização da vítima. 13

Tabela 5 Portugal/Nacional/ Sociedade País 120

58

Revista S/ Última de Exclusivo Segurança Atualidade Internacional Outros Categoria Hora Imprensa 11

11

10

9

6

6

5

19

Total

255

5.3. Resultados 5.3.1. As Personagens Tanto agressores27 como vítimas são nomeados/as e definidos/as de acordo com algumas das suas características, como a idade e o género. Este título do semanário Sol exemplifica a definição de vítima e agressor pelo seu género: “Mais de seis anos de prisão para homem que obrigou mulher a fazer orgias” (17-02-2012). Encontram-se também títulos apenas com a referência à(s) vítima(s): “Mulher violada espera 20 anos por indemnização” (CM, 03-01-2014), “Três mulheres violadas num dia” (JN, 10-092011). A alusão à idade da vítima nos títulos é prática comum: “Bombeiro salva jovem de 15 anos de ser violada” (CM, 28-08-2012), “PJ detém alegado violador de mulher de 63 anos” (DN, 25-09-2012), “Vila Flor: condenado a 22 anos de prisão por matar e violar idosa” (TVI24, 12-03-2014). O recurso à identificação pela faixa etária e pelo género permite identificar a assimetria de género presente entre agressores (maioritariamente do sexo masculino) e vítimas, na sua maioria, mulheres. A menção nos títulos da idade de vítimas e de agressores tem como efeito um reforço dos mitos da violação: a juventude vincula-as às vítimas expectáveis devido aos seus atributos naturais (a juventude é associada à beleza). Quando as vítimas não se encaixam nesse papel o efeito é o do fortalecimento da ideia do agressor como alguém disfuncional e com comportamentos parafílicos ou antissociais.

Também a profissão ou atividade são usadas para definir vítimas e agressores: “Antigo médico das seleções é condenado a pena suspensa por abuso sexual” (JN, 29/06/2012), “Estudante universitária violada em Guimarães” (TVI24, 07-03-2014), “Detido homem que tentou violar taxista” (TVI24, 20-122011), “Mata professora por puro prazer” (CM, 27-02-2014), “Três homens violam prostituta” (CM, 1212-2013), “Pena de cadeia por violar caloira” (CM, 12-02-2012), “Desempregado rapta e viola exnamorada” (CM, 22-12-2011), “Camionista detido por violar jovem turista” (DN, 18-04-2012), “Curandeiro condenado a 14 anos de prisão por violação” (DN Madeira, 29-05-2012). Estas categorias podem ainda cruzar-se com outras como a nacionalidade: “estudante francesa em choque” (CM, 31-102011), “Penas pesadas para violação em grupo de brasileira” (CM, 17-11-2011), “Turista italiana violada na praia” (CM, 17/08/2011), “Seis anos de cadeia por violar uma ucraniana na rua” (DN, 12-02-2014) ou “Gang viola turista suíça no Algarve” (CM, 15-11-2012). A utilização da informação relativa à atividade profissional e à nacionalidade de vítimas e de agressores tem como efeito a hierarquização destas personagens e contribui para a maior ou menor credibilização das mesmas. Quando se associa uma

27

Nesta amostra não há casos de agressoras, pelo que o uso o género masculino nos agressores corresponde à realidade de um universo composto exclusivamente de pessoas do sexo masculino. Do lado das vítimas, apesar de maioritariamente serem do sexo feminino, existem também homens vitimados, pelo que se recorre à linguagem inclusiva. 14

vítima ou agressor/a a uma determinada profissão vincula-se a personagem a expetativas relacionadas com o papel e estatuto social dessa mesma função. Esta associação cria relações complexas de empatia (ou ausência dela) em relação a vítimas e agressores e reforça estereótipos.

Os agressores são também definidos em função das características da vítima sendo transformados não apenas em violadores, mas antes em violadores de vítimas específicas: “Caça a violador de adolescente” (CM, 24-08-2014), “Cinco anos de prisão para violador de caloira” (JN, 12-02-2010), “Idoso abusa de menor com deficiência mental” (CM, 24/01/2014), “Violador de idosa estava em liberdade condicional” (TVI24, 25-08-2011). Neste último título, o agressor é definido pela idade da vítima sendo chamado não apenas de violador, mas de “violador de idosa” o que aumenta o caráter grotesco da situação. Os/as idosos são caracterizados/as como seres assexuados/as sem interesse sexual e sem capacidades de sedução, pelo que a imagem de um homem a cobiçar sexualmente uma idosa vincula o homem a um desejo parafílico, conseguindo-se assim, a imagem de uma pessoa anormal. O mesmo efeito é conseguido com a alusão à incapacidade mental da vítima menor no título do CM. Adicionalmente, o facto de o agressor ser um “idoso”, e de assim ser definido, aumenta o valor notícia, pois os/as idosos/as são sobretudo representados/as como potenciais vítimas devido à sua natural fragilidade e incapacidade28; o facto de este idoso ser um agressor sexual – e ainda por cima de um menor com fragilidades acrescidas – transforma-o numa pessoa disfuncional e monstruosa. No caso deste título do Diário de Notícias “PJ caça violador de jovem com atraso vendido a ciganos” (DN, 25-11-2011), o agressor é definido também em função das características da sua vítima, a qual terá sofrido diversas vitimizações, suscitando uma maior antipatia por aquele. A repulsa é ainda reforçada com o verbo caçar, o qual é, por vezes, usado pela imprensa em notícias que remetem para um cenário em que a pessoa perseguida é acusada de comportamentos grotescos ou animalescos (apenas se caçam animais). Esta caracterização dos agressores como animais – o que implica uma certa irracionalidade e inconsciência – com recurso a títulos punitivos e que se substituem à justiça contrastam com o retrato das vítimas, às quais se atribui coresponsabilização pela sua própria vitimação. Para além das características das vítimas, os agressores são também identificados na sua relação com a vítima, aparecendo assim como pais, maridos, companheiros, patrões, ou outros: “Padrasto violador condenado a nove anos de cadeia” (CM, 11-02-2014), “Patrão viola mulher e filha de empregado” (DN, 23-05-2013), “Justiça entrega menina a pai violador” (CM, 11-10-2013), “Abusa da sobrinha e escapa à cadeia” (CM, 17-05-2012), “Violava sobrinha à frente do filho” (CM, 11-03-2012). Este último é um título que sugere uma anormalidade maior devido à falha não só como tio, mas também como pai, dado que não protegeu o filho de testemunhar a sua concupiscência anormal29.

28

A incapacidade a que me refiro não é real, ou não é, evidentemente, uma regra. Em 1999, a ONU, incluiu nos “mitos associados às pessoas idosas” a ideia de que “todas as pessoas idosas são física e biologicamente frágeis” (apud Fernanda Daniel, Teresa Simões e Rosa Monteiro, “Representações Sociais do ‘Envelhecer no Masculino’ e do ‘Envelhecer no Feminino’”, 2012). 29 Anormal porque a referência feita não é à menoridade da vítima, mas sim à sua relação de parentesco com o agressor, sugerindo-se o tabu do incesto. O incesto é um conceito cujos limites têm mudado ao longo dos séculos e variam entre as 15

As mulheres também podem ser acusadas da agressão, embora nelas não tenham tido participação ativa, como é exemplificativo este título: “Deixa filhas serem violadas pelo pai” (CM, 15-02-2012). A formulação deste título transfere a responsabilidade do pai de não violar para a mãe que é acusada de “deixar” que o pai abuse das filhas. Esta transferência obscurece o crime cometido pelo pai, ao mesmo tempo que acrescenta valor notícia à narrativa por haver mais do que um/a culpado/a e, sobretudo, pela imagem da mãe aberrante que falha no dever de proteção das filhas e tem um caráter delinquente (ainda que de forma passiva). Assim, em vez de a anomalia ser ligada ao agressor é transferida para a mãe que é transformada em cúmplice. Os autores de ataques em grupo são chamados de gangues “Violada por gang” (CM, 01-11-2013), ou referidos pelo seu número “Trio arguido por assalto e violação de prostitutas sabe dia 12 da decisão” (Correio do Minho, 29-06-2012), ou ainda por grupo “Grupo criminoso detido por roubos agravados e violação” (CM, 10-05-2012). No caso de agressores com múltiplas vítimas é comum serem associados ao local de atuação, como são os exemplos do Violador de Agadão, de Benfica, de Telheiras, da Barra ou de Ílhavo ou da Ciclovia. Nestes casos, o agressor é definido pelo espaço geográfico onde faz as suas vítimas. Estes agressores são particularmente demonizados pela imprensa sendo frequentemente apelidados de predadores sexuais: “Predador da TVI fez pelo menos 12 vítimas” (DN, 31-01-2012), violadores compulsivos “’Violador compulsivo’ absolvido pelo tribunal de Santarém está de novo à solta” (O Ribatejo, 22-02-2013), ou monstros “Monstro da Graça pode sair em 2015” (CM, 08-12-2011). A atribuição de características que aproximam estes agressores da “anormalidade”, torna-os (e aos seus crimes) excecionais, ao invés de se percecionar a atuação (também) enquadrada num contexto de hostilidade contra as mulheres e da tolerância social em relação a essa mesma hostilidade.

5.3.2. Os Violadores, os Condenados e os Outros A palavra mais usada para se referir a agressores, ou alegados agressores, é violador, que aparece no título de 63 notícias e na sua forma plural em doze notícias, perfazendo um total de 75 ocorrências. Nestes casos, o agressor é nomeado pela sua conduta. Esta atribuição, ou transformação da pessoa no seu ato, é, por vezes, explicável pelo desconhecimento da identidade do agente no momento da publicação da notícia, mas nem sempre, como mostram estes títulos: “Violador tenta assassinar mãe” (CM, 13-02-2011) ou “Violador condenado a cinco anos de prisão e a pagar 12 mil euros à vítima” (Diário Digital c/ Lusa, 08-05-2014) ou ainda “Violador assume ataque a turista” (CM, 14-02-2012) ou “Violador proibido de voltar à praia” (CM, 28-05-2011). Em todos estes casos, o agressor já havia sido identificado, no entanto, a opção é a de simplificar e reduzir a identidade do agressor ao seu ato. No caso a que alude o último título, aquele que o jornal chama de violador ainda não foi condenado, o que, tecnicamente, diferentes sociedades e países. Em Portugal não se criminaliza o incesto desde que entre adultos/as e com o consentimento de ambos/as. Apesar disso, o Código Civil interdita o contrato conjugal a parentes em linha reta (pais/mães e filhos/as, avós e netos/as) e também a irmãos/ãs fazendo eco deste tabu. 16

faz dele um “alegado violador”. Foi presente ao tribunal de instrução criminal onde um/a juiz/a determinou como medida de coação a interdição de “frequentar praias ou locais de lazer”, uma vez que seria aí que desenvolvia a sua conduta criminosa. Esta aparente condenação que encontramos no discurso jornalístico não parece ter como efeito uma maior consciência da gravidade dos factos ou compreensão dos mesmos junto da opinião pública, mas antes contribuir para um clima de receio generalizado por haver um violador à solta. Nem todos os títulos mencionam diretamente o(s) agressor(es), como é exemplificativo este: “Carolina, 15 anos, voltou a ser vítima de abusos. Os alarmes soaram mas ninguém fez nada”. No entanto, em 196 notícias o agressor é mencionado no título, como se pode observar pela tabela seguinte, que elenca as palavras que mais aparecem nos títulos para nomear agressores: Tabela 6 violador

condenado

homem

violadores

homens

suspeito

colega

colegas

predador

acusado

médico

grupo

pai

63

20

13

12

12

11

10

8

6

6

4

4

4

jovens

psiquiatra

alegado

compulsivo

sida

camionista

suspeitos

desempregado

ladrão

indivíduo

criminoso

recluso

padrasto

3

3

3

2

2

2

2

1

1

1

1

1

1

Como se pode verificar há notícias de situações com múltiplos agressores, como atestam os plurais de violador, homem, suspeito ou colega. Embora suspeito seja mais regular, alegado é uma palavra pouco usada nos títulos, o que pode estar relacionado com a linha editorial dos órgãos de comunicação que produzem mais notícias nesta amostra, claramente mais próximas do popular e, portanto, com menor rigidez e prudência no uso da terminologia jurídica. Há, claramente diferenças entre os títulos acusatórios, que aparentam condenar o agressor antes de haver qualquer decisão judicial, e os títulos prudentes que se caracterizam por uma maior cautela no julgamento prévio; para tal, recorrem à formulação defensiva, admitindo a presunção de inocência consagrada na lei: «Detenção de suspeito pela prática de crime de violação no Funchal” (Local.pt 03-03-2014), “Suspeito de sequestro e violação de menor fica em liberdade” (DN, 03-09-2013), “PJ deteve suspeito de violação, rapto e prostituição de menores” (Público, 22-01-2014), “Prisão preventiva para oito jovens suspeitos de roubo em bombas de gasolina e violação” (JN, 15-05-2012), “PJ deteve alegado violador de estudante universitária em Guimarães” (DN Madeira, 07-03-2014), “Relação do Porto anula condenação de alegado violador” (DN, 22-11-2012).

A seguir à palavra violador, surge condenado, o que, em conjugação com a análise dos verbos usados, revela que há um maior número de notícias relativas à fase da queixa e da detenção, e menos sobre as decisões judiciais. Como se pode observar no gráfico 1, os verbos mais frequentes indicam que as notícias se referem ao ataque, diminuindo em relação ao acompanhamento e fases posteriores dos casos. Apenas os que têm maior valor notícia (violações em grupo, agressores com múltiplas vítimas,

17

Total

196

participação de agressores ou vítimas inesperados/as, circunstâncias consideradas bizarras ou grotescas) são alvo da atenção mediática em continuidade e resistem à pressão do fator novidade e atualidade30. Apesar de condenado ser a segunda palavra presente para nomear agressores, ela aparece apenas em vinte títulos, portanto, muito distanciada da primeira (violador), que aparece em 63.

Gráfico 1 Condenado 5%

Condena 6%

Detido 4% Sequestra 2%

Apanha 2%

Violada 14%

Preso/Prender 2% Detém Acusado 1% 2% Violou Outro 2% 6% Investiga 1%

Julgado 1% Ameaça 1% Ataca 2%

Viola 55%

5.3.3. Anjos, por vezes, caídos À semelhança dos agressores, as vítimas são definidas, em primeiro lugar, pelo seu género e depois pela sua idade, como se pode observar na tabela 7, onde mulher, jovem e menor reúnem o maior número de ocorrências, aparecendo também idosa, adolescente ou menina. As vítimas, por serem maioritariamente do sexo feminino, são mais frequentemente definidas em função da faixa etária do que os agressores, em consonância com o que acontece genericamente nos discursos mediáticos, nos quais as mulheres são o que o seu corpo aparenta ser (jovens, não jovens, entre outras categorias). Tabela 7 mulher

jovem

menor

vítima

turista

mulheres

homem/ homens

rapariga

aluna

filha

prostituta

universitária

menina

25

23

23

11

10

8

7

7

6

6

5

4

4

grávida

idosa

adolescente

mãe

namorada

brasileira

professora

sobrinha

caloira

Irmã

doente

rapazes

avó

3

3

3

3

2

2

2

2

2

2

2

1

1

5.3.3.1. Os homens Violados

30

A atualidade é um dos valores notícia mais importantes e a imprensa esforça-se quotidianamente por manter a sensação de tempo presente nas notícias. No Livro de Estilo da Lusa explica-se que, a atualidade é “característica do noticiário de agência” e para “dar uma ideia de actualidade” os verbos devem ser escritos no presente do indicativo. (Livro de Estilo e Prontuário da Lusa, 1992: 12) 18

Total

167

É de conhecimento geral que os homens são violados por outros homens nas cadeias, no entanto, à semelhança do que acontece(u) durante séculos com outras agressões sexuais (nomeadamente as que vitimam crianças), verifica-se uma desvalorização do fenómeno, sendo o mesmo menorizado e satirizado com recurso a inúmeras piadas populares. Um dos mitos da violação prende-se com a impossibilidade de um homem ser violado. Porém, o mesmo não acontece relativamente a menores do sexo masculino, cuja vitimação, há muito conhecida, embora ignorada e tolerada, já é reconhecida como possível. A atestar este reconhecimento estão os títulos que reportam a situações que envolvem rapazes vitimizados “Preso por violar três rapazes” (Sábado, a partir do CM, 18-02-2014), ou “Jovem violado por dois homens” (CM, 17-12-2013). Os rapazes, em adultos, também podem ser vitimados, como se demonstra pelas sete ocorrências de homens do lado das vítimas. Algumas destas notícias reportam-se à secção internacional do semanário Sol que fez um trabalho sobre a violência sexual contra homens no Reino Unido com títulos como “A cada mês há dois homens violados” (20-06-2011), “Polícia inglesa investiga anualmente mil casos de homens violados” (20-06-2011) e “Universitários entre as vítimas de violação masculina” (05-09-2012), lançando assim uma imagem dramatizada da questão. Em matéria de notícias nacionais, encontramos a referência ao género da vítima, por vezes associado à sua idade: “Homem de 43 anos violado por um grupo de pessoas” (TVI24, 05-09-2012) e “Homem violado na antiga estação” (Notícias da Trofa, 11-08-2012) ou ainda “Apresentações periódicas para quatro violadores de dois homens” (DN, 06-03-2012). A violência sexual pode ter como motivação a vingança e a punição31. Aliás, nos testemunhos de muitas vítimas, há referência a uma hostilidade32 que, por vezes, é extensível a todo(s) o(s) grupo(s) de pertença da(s) vítima(s). No entanto, os media não transmitem esta realidade quando se trata de vítimas mulheres. Porém, quando as vítimas não correspondem ao estereótipo de género e são homens, os media podem adotar uma narrativa que acentua a estranheza do ato, como é ilustrativo neste título “PJ investiga caso de homem sodomizado” (TVI24, 05-11-2012). Não que não haja notícias de homens vítimas de violação em que se escreva “homem violado”, no entanto, este título reporta-se a uma situação em que claramente a vingança parece ser a motivação para o crime. No lead da notícia descreve-se que o homem “terá sido sodomizado por um grupo de pessoas”, ao qual, a jornalista não chama de gangue, o que alivia a essência parafílica do ato. Isto é suficiente para que haja um distanciamento daquela prática em relação a um ato de violação cujo cariz se acredita ser exclusivamente sexual. Ainda quando o mesmo órgão de comunicação dá conta de dois homens violados por outros quatro “PJ detém quatro homens suspeitos de violar outros dois”, acrescenta no 31

Nicolas Groth (Men who rape: The Psychology of the Offender), em 1979, dividiu a motivação para a agressão sexual em três categorias: Violação por Raiva, Violação por Poder e Violação Sádica. Knight e Prenkty (Classifying Sexual Offenders: The Development and Corroboration of Taxonomic Models), em 1990, classificaram as motivações dos agressores com base nas seguintes tipologias: Violação Oportunista, Violação por Raiva Indistinta, Violação Sexualizada e Violação Vingativa. 32 Carolina, vítima de abusos por parte de colegas da sua escola, afirma: “Eles têm-me tanto ódio que qualquer dia dão-me um tiro na rua e ninguém vai saber quem foi e onde estou." (Jornal i, 27-05-2014) in http://www.ionline.pt/artigos/portugal/carolina15-anos-voltou-ser-vitima-abusos-os-alarmes-soaram-ninguem-fez-nada-0/pag/-1, consultado a 2 de Julho de 2014. 19

lead que os “detidos terão usado ‘especial violência’” (08-02-2012). Esta formulação acentua a anormalidade do episódio e justifica a subjugação das vítimas pela superioridade numérica – e pela ‘especial’ violência usada pelos agressores. 5.3.3.2. A Violação Improvável e a Vítima Morta Entre os mitos da violação conta-se a reação expectável, e aceitável, das vítimas, que podem ser consideradas inocentes ou mais ou menos culpadas pelo que aconteceu. A sua credibilidade é construída a partir de um mosaico de categorias sendo a da reação à violação um prisma fundamental que determina o grau de contribuição para o crime e, consequentemente, a sua maior ou menor coresponsabilidade na vitimação.

Os títulos podem sugerir uma menor ou maior culpabilização da vítima. Todos os seus comportamentos são avaliados: tudo o que fez (ou não fez) antes, perante, durante e após o ataque. Durante é suposto a vítima manifestar oposição, por isso, quanto mais evidente for a resistência mais credível e inocente se torna a vítima, como exemplificam estes títulos: “Resiste e luta com o violador” (Sábado, a partir do CM, 30-06-2013), “Menores feridas fogem de violador” (CM, 01-05-2012). A existência de múltiplos agressores também contribui para a inocência da vítima, uma vez que a superioridade numérica e/ou física do(s) agressor(s) torna a não resistência explicável33: “Estudante sequestrada e violada por três homens” (CM, 31-10-2013), “Agarrada e violada por quatro jovens” (CM, 11-02-2012).

Tanto o uso de armas como a comprovação da seriedade evidente das ameaças durante o ato conferem à vítima um estatuto de credibilidade, já que explicam a sua não resistência: “Ameaça com faca para violar jovem” (CM, 08-10-2012), ou “Ameaças de morte calam menina violada” (Sábado, a partir do CM, 27-12-2013). A credibilização da vítima atinge o seu máximo com a morte: “Estudante abusada por violador mata-se” (CM, 17-11-2009), pois a vítima mais credível é a que está morta; a morte significa que a vítima preferiu o fim às consequências da violação ou, não a conseguindo evitar, que a existência se tornou insuportável após o evento. Nas sociedades ocidentais a violação é encarada como um ato terrível com efeitos indeléveis para as vítimas, as quais devem mostrar claramente a dificuldade em lidar com as sequelas. A expressão emocional com manifestações das consequências traumáticas, como choro incontrolável, tiques com as mãos, ruborização, celibato ou problemas de relacionamento com o sexo oposto são atitudes que se esperam de uma verdadeira vítima. Pessoas cujo comportamento não corresponda a estes estereótipos são postas em causa e a sua credibilidade é questionada.

Para a credibilidade da vítima entra também a violação improvável, que é a que é acontece em circunstâncias que os mitos da violação não preveem, por exemplo, na rua, durante o dia: “Jovem 33

As reações das vítimas de violação estão longe da uniformidade, apesar de poderem ser agrupadas. Em diversos estudos (Burgess & Holmstrom 1976, Galliano et al 1993, Atkinson) conclui-se que cerca de 37% das vítimas inquiridas tinha “congelado” durante o ataque. Nem todas estas vítimas tinham apresentado queixa. Não obstante, a ideia de uma vítima não resistir apenas parece aceitável no caso de ameaça com armas ou ameaça a alguém querido/a. 20

violada ao passear em ciclovia em pleno dia” (DN, 22-05-2013), “Adolescente violada em pleno dia no Parque da Cidade do Porto” (DN, 09-01-2014). Repare-se como a improbabilidade da agressão leva o/a(s) jornalista(s) a salientar a altura do dia em que o incidente ocorreu. A credibilidade nestas situações advém do facto de a vitimação ser inesperada: ambas as vítimas estavam em espaços públicos de lazer, durante o dia, e os seus comportamentos eram conformes aos limites do seu género. 5.3.3.3. A Culpabilização Suave Alguns títulos revelam uma culpabilização suave associada a comportamentos de risco, relacionados com a ocupação do espaço público ou com a não colaboração com a justiça, o que lança a suspeita da falsa alegação ou da culpa por deixar um criminoso à solta: “Estudante desiste de queixa e ‘liberta’ trio” (DN, 28-06-2013), “PJ caça violadores mas vítima desiste” (CM, 18-08-2011). Repare-se como nestas frases há a acusação subtil à vítima que desperdiça o empenho e eficácia da polícia na captura dos agressores. A eficiência dos órgãos criminais é neutralizada pela não colaboração da vítima, que desta forma põe em causa a segurança de toda a comunidade. Como efeito colateral, pode dizer-se que a desistência da queixa levanta uma suspeição de falsa denúncia, apesar de não ser esse o efeito imediato nos títulos citados. Dentro das acusações subtis, por vezes, verifica-se ainda a referência à suspeição de não integridade moral na conduta da vítima como ilustra este título do Correio da Manhã: “Sexo a dinheiro levanta dúvidas” (09-04-2013)34.

A culpabilização das vítimas, relacionada com comportamentos que implicam o acesso ao espaço público, está associada a contextos considerados inapropriados ao género feminino e que, por isso, trazem um risco de vitimação acrescido, em particular, se as vítimas não se fizerem acompanhar de um adulto do sexo masculino. Na ideologia da culpabilização das vítimas, estas expuseram-se a um perigo e, como tal, mereceram a punição: “Mulher violada após sair de bar” (CM, 03-01-2012), “Rapariga violada ao voltar de festa” (Sábado, a partir do CM, 18-05-2014), “Jovem de 16 anos violada esta madrugada em Gaia” (JN, 17-05-2014), “Jovem violada na rua após um concerto” (DN, 29-04-2009), e ainda “Menor violado na noite do Porto” (TVI24, 21-04-2010). Estes títulos funcionam como avisos, lembrando às potenciais vítimas que há riscos em assumir atitudes de plena autodeterminação e que estas podem implicar consequências graves (Meyers 1997).

5.3.4. As Ausências e Conclusões

34

Este foi um dos julgamentos que observei no âmbito da investigação do meu doutoramento. Em altura alguma me apercebi de que o coletivo de juízes/as considerasse plausível que o agressor pagasse para ter sexo com as vítimas, dado que, pelo menos uma era menor de catorze anos à data da prática, o que, legalmente, inabilita o consentimento. Pagar a uma criança ou adolescente para ter sexo pode configurar ainda outro crime. O título sugere que as vítimas se prostituíam, sem sequer referir que, na possibilidade de isso suceder, o arguido estaria a incorrer noutro crime. Adicionalmente, este arguido tinha uma relação de parentesco com as vítimas: era o padrasto, pelo que, nessas condições, dar dinheiro às enteadas não seria algo assim tão inusitado como faz parecer o título. 21

A primeira ausência é a da discussão. Não há debate sobre a violação e os artigos de opinião35 que versam sobre a questão são parcos.

A segunda ausência é a da elevação do assunto a valor notícia para a imprensa de referência. A escassez de artigos na imprensa de referência (com exceção do Diário de Notícias) é um indicador de que o tema ainda é visto como um assunto de “faca e alguidar”, ou seja, um drama privado provocado pela disfuncionalidade de um agressor e que não reflete qualquer problema social. Assim, podemos observar que existe uma interligação entre a aniquilação simbólica da violência sexual e a tipologia dos media. De facto, não podemos dizer que a violação (e outras formas de violência sexual) esteja ausente da imprensa portuguesa, mas antes que a questão é ignorada por uma parte da imprensa de referência.

A terceira ausência é a abordagem jornalística multirrelacional. Os casos são tratados numa perspetiva individual, como se se tratasse de uma fatalidade circunscrita àquelas personagens sem qualquer relação com outros episódios. Mesmo nas situações em que se identifica a prevalência do crime, recorre-se a um discurso enumerativo «Três mulheres violadas num dia» (JN, 10-09-2011), «Uma mulher violada todos os dias» (TVI 24, 22-05-2013), ou «PJ capturou 128 violadores num ano» (CM, 1910-2013). Estas notícias não procuram apresentar motivos para estes números estatísticos, adotando uma abordagem mais descritiva, abdicando das vozes de especialistas. Apesar de se reconhecer que «na maioria dos casos, vítima e agressor” se conhecem, o artigo destaca os casos entre desconhecidos/as, pese embora estes representem, segundo a peça, 24% do total dos crimes (TVI 24, 22-05-2013)36.

Ausentes estão também os procedimentos a que instituições (Polícia, Instituto de Medicina Legal ou Ministério Público) estão obrigados perante as participações deste crime, ou quais os passos aconselhados às vítimas de violação, incluindo as instituições (governamentais ou não-governamentais) às quais podem recorrer. Teorias ou esclarecimentos sobre a violência sexual e ofensores/as sexuais ou ainda descrição e elucidação da legislação referente a este ilícito criminal também não têm lugar nas narrativas jornalísticas desta amostra. De resto, a cobertura da proposta de alteração legal apresentada à Assembleia da República (AR) revela narrativas pouco esclarecedoras, descritivas e não explicativas. Títulos como “Violação passa a ser crime público em Portugal” (DN, 07-03-2014) não contribuem para clarificar a questão, uma vez que a proposta apenas tinha passado na generalidade e com resultados tangenciais, como é salientado pela repórter da Antena 1 (RTP, a partir da Antena 1, 07-03-2014). Também não há aclaração sobre a diferença entre crime público e privado, da mesma forma não há nestas notícias vozes externas à AR a argumentar neste ou naquele sentido. Seria útil ouvir as reflexões 35

Não há nesta amostra artigos de opinião. Não obstante, encontrei dois no Correio da Manhã, que versam sobre críticas à lei e ao sistema judicial advogando um enquadramento penal mais rigoroso para estes crimes. 36 http://www.tvi24.iol.pt/503/sociedade/crime-rasi-violacao-seguranca-ultimas-noticias-tvi24/1452545-4071.html, consultado a 2 de Julho de 2014. Na verdade, o número de violações é superior ao indicado na notícia. Apesar de o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) usado como fonte separar os números de violação de menores do dos adultos o crime é o mesmo. Para situações consentidas de trato sexual com crianças e ou adolescente há o crime de abuso sexual de crianças e o de atos sexuais com adolescentes, ambos incluídos no RASI. Assim, o crime de violação em 2013 terá tido as 473 participações. O mesmo sucede nos RASI de 20012, 2011 e 2010. 22

de especialistas de diversas disciplinas ou representantes de Organizações Não Governamentais (ONG), bem como de magistrados/as sobre os benefícios versus malefícios que poderiam advir com a alteração proposta.

Outra ausência nesta amostra é a violência contra pessoas da comunidade LGBT. Os homens vítimas aparecem em contextos ligados à homossexualidade e a comportamentos não normativos sem que, no entanto, se estabeleça uma relação entre a agressão perpetrada e a violência contra pessoas LGBT. À semelhança do que acontece com a presença dos crimes de violação nos media, a vitimação masculina é vista de forma individualizada.

Os discursos destas notícias aparecem como narrativas descritivas que reforçam papéis sexuais de género e reproduzem mitos da violação. Os agressores são representados como monstros ou como pessoas com disfuncionalidades sexuais e/ou social e a sua demonização está dependente quer do seu estatuto social quer do da vítima. O caráter negativo destes autores é acentuado no caso de reincidência (o que sugere incapacidade de recuperação), pedofilia, relações de parentesco com as vítimas ou vítimas de especial vulnerabilidade (devido aos tabus sociais ou à incapacidade de resistência das vítimas, por vezes, aliado ao dever dos agressores de proteger ou não vitimar dentro do círculo familiar). Há ainda mais dois fatores perante os quais se observa uma demonização dos agressores: perante a conjugação com outros crimes (homicídio, roubo) e se, do ataque, resultar um “mal maior que o mal do crime” (gravidez, transmissão de HIV).

Os órgãos de polícia criminal (OPC) são genericamente representados de forma positiva, em associação com a investigação e detenção de suspeitos, contribuindo assim para a solução do crime e para a sensação de tranquilidade social. As referências à justiça tendem a ser reduzidas a uma lógica binária que oscila entre as condenações pesadas e exemplares ou as penas suspensas e ineficazes: “PJ captura três violadores mas só um fica preso” (DN, 14-02-2012), “’Violador compulsivo’ absolvido pelo Tribunal de Santarém está de novo à solta” (O Ribatejo, 22-02-2013), “Pena suspensa para assaltante violento” (TVI24, 06-02-2012), ou “Penas pesadas para violadores” (CM, 17-06-2010), “Penas pesadas por violação em grupo de brasileira” (CM, 17-11-2011).

As vítimas podem ser corresponsabilizadas pela agressão sofrida, num processo de culpabilização suave, que não questiona a ideologia da responsabilização da vítima. As vítimas são definidas com recurso à descrição da sua aparência física (jovem, idosa, menor), estatuto social (através da profissão) e ao seu comportamento anterior à agressão, podendo este contribuir para a sua responsabilização no crime.

5.3.4.1. As Reportagens e a Personalização das Vítimas

23

O género jornalístico que permite dar a conhecer a profundidade das personagens – a reportagem – escasseia. Na maior parte das vezes não é dado qualquer nome às vítimas. A não nomeação serve para alegada proteção, no entanto, também despersonaliza as vítimas. Apenas uma reportagem dava um nome à vítima (embora falso para proteção); nesse trabalho37 ficamos a saber, por exemplo, que Carolina era uma criança ativa, interessada pela vida – que ia a castings, que participava em desfiles, e escrevia letras de músicas e que, depois do ataque tudo isso acabou. É explicado ao/à leitor/a como, gradualmente, Carolina se foi desprendendo da vida e começou a automutilar-se. É revelada a desvalorização da violência sexual sobre as raparigas por parte das instituições, ilustrada com citações secundárias de funcionários/as da instituição escolar que alegam que “elas [as vítimas] até gostavam” de ser arrastadas pelos rapazes para a mata em frente à escola.

A depreciação da gravidade da questão por parte das instituições com dever de proteger a menor é salientada através da descrição da morosidade, da ineficácia burocrática e dos seus efeitos práticos, estabelecendo-se uma relação entre a degradação do estado psicoemocional da menor e a falta de resposta do Estado. A família de Carolina surge como pobre mas honrada. A repórter consegue que a família não padeça do estigma associado aos/às beneficiários/as do Rendimento Mínimo de Inserção (RSI). Aliás, o efeito da proteção contra o estigma conseguido na reportagem é visível no pedido de ajuda por um grupo de bloggers que, após ler a reportagem do Jornal i, decidem angariar fundos para ajudar a Carolina e a família a mudar a residência para uma zona longe da área de influência dos agressores. No apelo, fazendo eco da reportagem, esclarecem: “os pais da Carolina vivem do RSI mas não querem viver à pála: querem trabalhar”. Estas bloggers organizaram-se e conseguiram o que pedidos insistentes da família e do advogado não alcançaram: a mudança de residência para outra localidade, através da intervenção do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, que antes parecera indiferente às solicitações da família que havia informado que a urgência na mudança decorria do processo-crime e da continuidade da atividade criminosa por parte dos agressores. O impacto social da reportagem do Jornal i38 é visível no artigo da autoria de uma das bloggers que enumera a lista de doações à família. A onda de solidariedade civil que permitiu à Carolina sair do local onde era revitimizada surgiu a partir de um reportagem39 e permite-nos perceber o alcance que um trabalho desenvolvido e aprofundado pode contribuir para diminuir o estigma associado às vítimas, bem como para o aumento de consciência da gravidade destes crimes, os quais devem ser tratados com seriedade.

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“Carolina, 15 anos, voltou a ser vítima de abusos. Os alarmes soaram, mas ninguém fez nada” in Jornal i, 27-05-2014, http://www.ionline.pt/artigos/portugal/carolina-15-anos-voltou-ser-vitima-abusos-os-alarmes-soaram-ninguem-fez-nada-0/pag/1, consultado a 2 de Julho de 2014. 38 Apesar de o assunto já ser noticiado na imprensa desde Março, só após a publicação da reportagem do Jornal i é que decorreu a iniciativa das bloggers. Ilustrativas do efeito do trabalho jornalístico são as palavras da blogger Leididi de quem partiu a iniciativa “Este texto (…) deixou-me maldisposta. enjoada. revoltada. (…)” (28 de Maio de 2014), in http://oblogdodesassossego.blogspot.pt/2014_05_01_archive.html. O título do artigo do blogue é, precisamente, o nome da vítima. 39 A autora da reportagem, Sílvia Caneco, explicou, em conversa telefónica, que teve conhecimento do caso muitos meses antes da publicação da reportagem. Conheceu a família e inteirou-se do problema após o primeiro episódio de agressão. Ainda antes do segundo ataque, Sílvia Caneco já tinha reunido toda a informação e esclarecimentos de todas as fontes envolvidas, mas apesar disso, acordou com a família não publicar a reportagem por temor das consequências da mediatização do caso para a Carolina, já que a menor estava muito fragilizada. 24

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“Carolina” in Blogue do Desassossego (assinado por http://oblogdodesassossego.blogspot.pt/2014/05/carolina.html, consultado a 4-7-2014.

Leididi)

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