Entre o contraste e o equilíbrio, Kemet e Duat: considerações sobre a vida e a morte no Egito Antigo

June 15, 2017 | Autor: Keidy Matias | Categoria: Egito Antigo
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ENTRE O CONTRASTE E O EQUILÍBRIO, KEMET E DUAT: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIDA E A MORTE NO EGITO ANTIGO Keidy Narelly Costa Matiasi Resumo: O presente ensaio versa acerca da oposição entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos no Egito Antigo; consideramos o segundo como sendo uma representação concebida do primeiro. Trataremos da natureza do mundo dos vivos (Kemet), elencando alguns exemplos que norteiam seu contraste e seu equilíbrio quando comparada ao mundo dos mortos (Duat). Palavras-chave: Mundo dos vivos, Mundo dos mortos, Natureza, Antigo Egito.

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Baseado em Hecateu de Mileto, Heródoto (II, X) afirmou ser o Egito “uma dádiva do Nilo” (a frase, tal como se encontra no livro, é “a maior parte do país é uma dádiva do Nilo”. A julgar pelo modo de vida egípcio, podemos pensar que essa ideia norteia todos os aspectos da vida prática daquele povo. O mundo egípcio terreno se interliga com o mundo divino através de suas singularidades e diferenças; são duas percepções fazendo parte do mesmo cosmos. Essa ideia pode parecer confusa à primeira vista, dado que a maneira egípcia de enxergar o mundo e de se encontrar nele é muito distante da nossa, tanto no tempo quanto no espaço. Entretanto, ao estudarmos o Egito, percebemos que a vida terrena/real é separada

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da vida no além por uma linha tênue, justamente de âmbito material, dado que “o conceito de paraíso osiríaco oferece uma existência confortável e semelhante à existência conhecida em vida pelos egípcios sendo, desta maneira, o mundo terreno aprimorado” (GAMA, 2008, p. 174). Esse dado nos permite inferir acerca da estreita relação que aquele povo tinha com a natureza. Essa vivência quase que romanceada bem pode ser entendida como um dos fatores responsáveis pela maneira singular que os egípcios tinham de conceber seu mundo. O mundo se tornava ordenado a partir do controle do caos; a fome, por exemplo, pode ser entendida como um descontrole, como uma manifestação da incompetência do faraó perante o seu povo e, especialmente, perante os deuses – podemos pensar na utilização da natureza pelos deuses como maneira tanto de abastecer quanto de retirar donativos do povo. À medida que situamos a fé como elemento diretamente relacionado com a natureza se faz fundamental demarcar a noção da importância que o rio Nilo possuía, a paisagem (era) fortemente orientada, com o rio fluindo para o norte e os dois horizontes ocres dos desertos arábico e líbico, atrás dos quais surgia e desaparecia o disco solar toda manhã e toda tarde. [...] O lado fértil que seguia o rio ostentava tons puros: negro no momento da lavra, verde brilhante e luminoso quando cresciam as culturas, amarelo ardente quando o trigo estava maduro. [...] A orla do deserto marcava brutalmente o limite entre o mundo ordenado e nomeado da planície fértil e as vastas extensões informes e inorganizadas de areia e rochedos estéreis. [...] A grande uniformidade dessa paisagem, que se repetia de Elefantina ao Delta, era outro traço específico do Egito (TRAUNECKER, 1995, p. 27-28). Ao imaginarmos esse cenário e ao considerarmos que ainda hoje a questão da falta de alimentação não é um problema superado, podemos ter maior ciência da importância do Nilo. A partir daí começam a aparecer associações entre a natureza e a religião: Osíris (fartura, húmus, virilidade) versus Seth (seca, deserto, esterilidade). A natureza, portanto, correlaciona-se com todos os aspectos da vida prática que, por sua vez, interliga-se intimamente com a natureza. O fato é que não é possível

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imaginar o Egito tal como foi sem o Nilo, mas se faz necessário demarcar que não foi somente o rio que conduziu o Egito ao que ele representou na Antiguidade. Interessa destacar que o equilíbrio, ou seja, a ordem cósmica entre as forças que compõem a vida se faz através do ato de vencer o caos. Para que Maat (a ordem) exista é fundamental que o caos também exista na medida em que se apresenta como seu contraponto – um não vive sem o outro, pois a manutenção da ordem pressupõe fundamentalmente a existência de uma desordem, do temível. A superação do caos aparece em inúmeros eventos da vida cotidiana/religiosa/política: aparece no ato de vencer a fome, no paraíso osiríaco, no bom governo de um faraó. Maat é, portanto, o equilíbrio, a vida e a verdade nas inúmeras dimensões da existência, tanto do homem no mundo dos vivos quanto no mundo dos mortos. É nesse sentido que podemos fazer uma oposição entre a ordem e o caos ao considerarmos que o momento da morte representa a quebra de uma ordem, ou seja, a morte está associada ao caos; os ritos fúnebres podem ser vistos como mecanismos de restabelecimento de Maat. É nesse contexto que aparece a Duat, mundo dos mortos que se porta como paisagem e território e que atua como um dos mecanismos salientadores da identidade egípcia. Algumas fontes (um exemplo bastante conhecido é a “História de Sinuhe”) nos permitem inferir que era temível morrer fora do Egito. Dessa forma, aparece aqui tanto o fator geográfico quanto aquele da religião e acreditamos não ser possível fazer diferenciações profundas entre esses conceitos para o caso do Egito Antigo. Concordamos com Barry Kemp (1996) no sentido de ser o território egípcio em sua singularidade um mecanismo definidor de ideologias e identidades; a concepção de um território através da percepção da paisagem norteia o desenvolvimento de uma identidade. Um fator definidor de uma identidade de lugar é a maneira de enxergar a morte e os mortos. Campagno (2011, p. 27) afirma que no Egito existia “um laço ideológico forte entre os vivos, os mortos e a terra”. O culto aos ancestrais e o respeito à memória destes também podem ser vistos como laços diretamente ligados à percepção da identidade de uma comunidade. No Egito Antigo existia uma clara

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situação relacional entre os vivos e os mortos – os mortos, ao continuarem existindo no pós-vida, permaneciam fazendo parte do seio da população, ou seja, um morto egípcio participava intensamente do mundo dos vivos. A paisagem possui uma carga de sentidos que interliga o real e o imaginado. O homem só concebe o fantástico a partir de um mundo real, ou seja, o irreal e o surreal são pautados na realidade e no contexto da época em que foram produzidos. No caso do Egito, temos a concepção de uma paisagem, de um mundo imaginado – não irreal (a Duat) – a partir da percepção do mundo pelo homem vivo (em Kemet). A carga de sentidos desembocada pela percepção e tratamento da paisagem aparece, na esfera religiosa, através da fabricação da Duat, que tanto é um contraste em relação ao mundo dos vivos quanto é também o seu próprio equilíbrio. A concepção da Duat enquanto paisagem e território pressupõe a existência de muitas preocupações advindas da vida cotidiana: o medo da noite, a necessidade de se movimentar, a negação do estático e o medo do desconhecido e do perigoso etc. Estamos dizendo que a religião e a magia, a vida cotidiana do homem vivo e sua preocupação com o além – com a (não) morte – exigem a criação de inúmeros espaços capazes de albergar os múltiplos desejos do homem. A paisagem e o território concebidos são, portanto, frutos do real; trata-se da concepção de mundo de um povo que via no espaço do post-mortem seu meio de continuar existindo. Essa cosmovisão era um atenuante do medo do desconhecido, especialmente quando consideramos, grosso modo, que na Antiguidade o homem estava mais ligado à religião do que nós contemporâneos. Dada a quantidade de fontes que a arqueologia encontrou e encontra, podemos inferir que, mesmo para o menos crente dos homens, o medo do desconhecido era presente e latente: podia-se desenvolver maneiras de encará-lo, mas nunca de evitá-lo. Rosalie David (2011, p. 22) admoesta que a relação do homem egípcio com a natureza fazia com que existisse “um padrão estruturado de ideias que foi projetado para perpetuar o princípio de Ma’at [...] e desafiar e subverter continuamente as forças do caos”. Essa assertiva, utilizada para descrever o mundo terreno, pode ser aplicada sem necessidade de substituição de qualquer termo para o

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campo do além. A Duat é, portanto, uma terra reproduzida: o Egito com suas especificidades foi em grande medida uma dádiva do Nilo (se não houvesse o Nilo todo o Egito seria diferente – tanto no campo da natureza quanto naquele reservado à religião); a Duat é uma reprodução do mundo terreno, ou seja, se o Egito no âmbito terreno foi em grande medida uma dádiva do Nilo, a Duat de certa maneira também o foi, visto que era um espelho do mundo dos vivos. É importante demarcarmos que a oposição entre Kemet e Duat representa também a oposição entre a vida e a morte, entre homens e deuses. Acreditamos que tudo está intimamente encadeado, por exemplo, “com o mesmo radical mut, os egípcios formavam o verbo morrer e os substantivos morto e morte. Este último é claramente uma contraposição com aquele da vida, ankh. Do deus se diz que é o 'senhor da vida e da morte'” (DUNAND; ZIVIE-COCHE, 2003, p. 181). Vemos, ao mesmo tempo, a admissão e a negação da morte. Como ocorre com Osíris, deus morto que deve deixar a mulher, o filho e este mundo, os mortos humanos também devem deixar a terra, mas eles “não vão como mortos, eles vão como vivos” (Textos das Pirâmides 134), eles não têm uma vida no mundo dos mortos como fantasmas, eles acordam para uma vida nova, com plena possessão de corpo e espírito (GAMA, 2008, p. 172). Quando nos reportamos ao estudo das religiões antigas, percebemos que a egípcia é, dentre todas as outras, a que mais apresenta caráter positivo. A morte não é vista como um fim e, tampouco, o mundo dos mortos visto como um ambiente hostil. Essa visão positiva não elimina os perigos do mundo post-mortem, “a ideia de um castigo no Além que punia a conduta da vida terrena (era) muito antiga” (DUNAND; ZIVIE-COCHE, 2003, p. 343). Portando-se como espelho da terra do Egito, no mundo dos mortos os perigos também estavam presentes: se temos, por um lado, crocodilos e animais peçonhentos no mundo dos vivos, por outro lado, no mundo dos mortos, temos lagos perigosos, desafios a serem vencidos e encantamentos que não podiam ser esquecidos. O medo do escuro também aparecia como espelho dos dois mundos: a noite era sinônimo de perigo (ladrões, sobretudo) e, no mundo dos mortos,

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associada ao estático, Osíris, enquanto Rê era “um princípio organizador e criador (dos) espaços do Além” (GAMA, 2008: 158). O deus do mundo dos mortos não tinha conotação negativa, mas o fato é que todos os egípcios desejavam navegar na barca do sol, a barca do deus Rê. Tanto na vida quanto na morte se buscava a luz e o movimento. Movimentar-se era estar vivo. Tanto Kemet quanto a Duat se equivaliam em ordem de importância e os dois mundos eram admitidos dentro de um cosmos maior, o próprio Egito. O homem egípcio sabia da brevidade da vida terrena e, por isso, preocupava-se com a eternidade, ou seja, Kemet estava para o homem vivo assim como a Duat estava para o homem morto – era necessário viver bem nessas duas dimensões.

CONCLUSÃO O mundo dos vivos (Kemet) e o mundo dos mortos (Duat), apesar de serem dois espaços diferentes, eram indissociáveis através das relações entre vivos e mortos e da própria concepção do espaço. Os mortos faziam parte da vida cotidiana dos vivos uma vez que, habitando a Duat, haviam garantido a possibilidade de continuarem existindo. Através da importância das relações com os ancestrais, os mortos eram sempre lembrados e podiam adquirir tanto caráter positivo quanto negativo. A partir da geografia do Egito é que a Duat foi imaginada e produzida; as relações dos egípcios com sua natureza ajudaram na concepção dos deuses e de suas características e do espaço dos mortos, imaginado de maneira semelhante ao espaço dos vivos. O espelhamento entre esses dois mundos se dava tanto na dimensão geográfica quanto na social, fazendo com que a separação dessas esferas no cosmos se desse de maneira tênue. Duat e Kemet são espaços contrastantes que, cada um a seu modo, atuavam no sentido de estabelecer e restabelecer o equilíbrio no cosmos.

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Keidy Narelly Costa Matias é estudante pesquisadora da Cátedra UNESCO Archai, da Universidade de Brasília, e do MAAT – Núcleo de Estudo de História Antiga, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientada pela Dra. Marcia Vasques, cursa Mestrado em História e Espaço pela UFRN.

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