Entre o documento e a ficção: experimentalismo, denúncia e resistência na prosa de Ivan Angelo

September 2, 2017 | Autor: Agnes Rissardo | Categoria: Literatura brasileira, Jornalismo, Ditadura Militar, Literatura, Historia E Politica
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[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  

Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2       ISSN  [2236-­‐4846]  

 

Entre o documento e a ficção: experimentalismo, denúncia e resistência na prosa de Ivan Angelo Agnes Rissardo*

Em meio a tantas obras literárias de denúncia ou de autorreflexão, um romance nada convencional surgia no ora engajado, ora “alienado” horizonte literário da década de 1970 no Brasil. A festa (1976), de Ivan Angelo, surpreende até os dias de hoje com uma bem arquitetada combinação das duas vertentes, em uma narrativa que conjuga simultaneamente engajamento político, fabulação e questionamentos sobre o fazer literário. História, jornalismo e ficção se encontram por intermédio da colagem de vários documentos, sejam eles fragmentos de jornais, livros, depoimentos registrados ou certidões, numa clara mistura entre real e imaginário. O romance, no entanto, viria à lume em um momento conturbado para a literatura e as artes de um modo geral no país, já que, desde a instauração do AI-5, em dezembro de 1968, a sociedade convivia com a censura e o medo: a ditadura militar então vigente repreendia vozes indignadas, amordaçava a imprensa, condenava obras de arte e repudiava toda forma de crítica ao regime, punindo e relegando ao silêncio seus opositores. Sobre esse contexto sombrio, Roberto Schwarz ressalta que o período de 1968 até 1975, ano em que o governo Geisel divulgaria a Política Nacional de Cultura, seria devastador sobretudo para a produção cultural no país. Se em 64 fora possível à direita ‘preservar’ a produção cultural, pois bastara liquidar o seu contato com a massa operária e camponesa, em 68, quando o estudante e o público dos melhores filmes, do melhor teatro, da melhor música e dos melhores livros já constitui massa politicamente perigosa, será necessário trocar ou censurar os professores, os encenadores, os escritores, os músicos, os livros, os editores – noutras palavras, será necessário liquidar a própria cultura viva do momento. (SCHWARZ, 1978, p. 63)

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Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) / Université Sorbonne Nouvelle – Paris III.

 

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E como toda repressão em princípio gera resistência, enquanto, ao longo da década de 1970, a ditadura militar impunha censura e autoritarismo à sociedade, alguns escritores, sobretudo aqueles que exerciam a profissão de jornalistas, ensaiavam uma forma de reação ao darem vida a uma prosa com vocação política. Com a música, o teatro e o jornalismo amordaçados, era o momento de gritar por intermédio da literatura verdade, como Flora Süssekind (1985) denominaria a produção que aproximava reportagem e crônica jornalística, romance e conto, real e ficcional, para driblar a censura e denunciar os desmandos do governo. De acordo com a ensaísta, tais escritores, ao verem-se impedidos de publicar denúncias contra o regime nos jornais, decidem escrever romances, de modo a incluir, em suas páginas, as notícias sob um verniz ficcional (SCHØLHAMMER, 2011, p. 26). Nessa linha de literatura engajada, também denominada por Silviano Santiago como romance-reportagem, destacam-se os títulos A infância dos mortos (1977) e Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), de José Louzeiro; Violência e repressão (1978), de Persival de Souza; e A república dos assassinos (1976), de Aguinaldo Silva1. Em seu célebre ensaio “Poder e alegria: a literatura brasileira pós-64” (1989), Santiago mostra que a literatura produzida no Brasil a partir do golpe de 1964 começa a se afastar daquela praticada nos anos anteriores, em que “otimismo e utopia se aliavam para mostrar a vitória definitiva das forças da esquerda” (SANTIAGO, 1989, p. 11-12). Tal mudança, segundo ele, deve-se não apenas à instauração da ditadura no período como também ao agravamento das desigualdades sociais, o que provocaria um desencanto nos intelectuais de esquerda. Nesse sentido, a literatura brasileira aos poucos abandona como tema principal e dominante a exploração do homem pelo homem e desloca, já nos anos 1970, o foco da luta política: passa a representar o modo como funciona o poder em países cujos governantes orientam-se pelo modelo capitalista “selvagem”. Assim, toda forma de autoritarismo, especialmente aquela em vigor nas ditaduras latino-americanas, seria alvo de crítica. Sem expectativas de redenção coletivista, uma saída possível era desarmar estrategicamente o discurso do opressor. A palavra surgia, então, com credibilidade transformadora, impulsionada por uma atitude de negação do caos. Como forma de 1

Süssekind também identifica, no mesmo período, outra vertente literária, que ela chamará de literatura do eu. Mais intimista e existencial, essa prosa daria continuidade à obra de Clarice Lispector, morta em 1977. Dentre os principais romances figuram Avalovara (1973), de Osman Lins; Lavoura arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978), de Raduan Nassar.

 

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  escapar ao olhar impiedoso da censura, a produção cultural no Brasil pós-64 é marcada por um tom de denúncia escamoteada do autoritarismo, ora por via da metáfora, ora pela alegoria. É justamente nessa direção que caminha o romance de Ivan Angelo, um dos poucos 2 produzidos na década de 1970 a figurar “como obra verdadeiramente artística”, nas palavras de Regina Dalcastagnè (1996, p. 15). De acordo com a ensaísta, Em 21 anos de ditadura foram tantos os mortos, os torturados e os humilhados que faltaria espaço onde refugiar toda a sua dor. A memória, terreno tão propício, é demasiadamente instável para semelhantes horrores... É nos romances que vamos reencontrar, com maior intensidade, o desespero daqueles que foram massacrados por acreditarem que podiam fazer alguma coisa pela história do país. (DALCASTAGNÈ, 1996, p. 15)

A festa, de Ivan Angelo, apresenta forte conteúdo politizado, mas, por intermédio da ambiguidade, da multiplicidade de sentidos e da experimentação formal, o romance conseguiu não apenas driblar a censura como alcançar um resultado com verdadeiro rendimento estético e literário. O livro surpreende com alternância estilística, lançando mão tanto da objetividade documental quanto da subjetividade e da autorreflexividade, explorando os vazios no texto e dando oportunidade de expressão às várias vozes das diferentes personagens que compõem a narrativa. A partir de uma narrativa fragmentada, em que a alternância ou fusão de gêneros a todo instante desafia e desestabiliza o leitor, pode-se ter uma ideia da totalidade de um mundo estilhaçado, onde os indivíduos, atordoados, não encontram refúgio, somente o caos. O quebra-cabeça 2

A ensaísta se refere às obras engajadas ou romances-reportagens publicados no período. Vale destacar, portanto, outros romances de reconhecida qualidade estética do período, tais como O caso Morel (1973), de Rubem Fonseca; Zero, de Ignácio Loyola Brandão; e A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, além dos já citados Avalovara (1973), de Osman Lins, Lavoura arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978), de Raduan Nassar, entre outros.

 

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Belo Horizonte, 30 de março de 1970. Roberto Miranda, o mais velho dos novos artistas da cidade, comemora seu aniversário de 29 anos. 21 horas e 18 minutos: vai começar a festa em seu apartamento, localizado em um bairro nobre. Na mesma noite e no mesmo perímetro urbano, o caos. Na praça da Estação, cerca de 800 retirantes nordestinos estão prestes a embarcar involuntariamente num trem de madeira que os levaria de volta ao Nordeste quando um incêndio em quatro vagões começa repentinamente. O incidente detona a tentativa desesperada de fuga dos flagelados e tiros disparados pela polícia. Os líderes do tumulto, acusados de dar início ao incêndio: Marcionílio de Matos, um nordestino de 53 anos, e Samuel Aparecido Fereszin, repórter do suplemento literário do Correio de Minas. É a partir dessa premissa repleta de contrastes que se forma o esqueleto de A festa. De um lado, a comemoração de aniversário de um jovem artista da pequena burguesia mineira. De outro, o desespero de retirantes pobres da seca nordestina, vítimas da opressão policial e do preconceito da sociedade. Dois mundos aparentemente opostos que, ao longo da narrativa, se entrelaçarão e, cada um à sua maneira, serão vítimas do poder abusivo do Estado. Para representar esse universo fragmentado e constantemente tenso, Ivan Angelo manipula com habilidade pistas falsas e estratégias narrativas não lineares para construir um romance que mais se assemelha a um quebra-cabeça cujas peças serão aleatoriamente lançadas na mesa para que o leitor pacientemente as reúna. Algumas peças são determinantes nesse processo. A primeira delas é o recurso da intertextualidade com o documento, seja ele histórico ou jornalístico. Ivan Angelo estabelece aqui um diálogo que instiga filósofos, teóricos, críticos literários e historiadores desde tempos remotos e perdura até os nossos dias: história e literatura apresentam semelhanças e diferenças já identificadas no século IV a.C. por Aristóteles, para quem poeta e historiador difeririam entre si “porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido” (2007, p. 43). Ao contrário do historiador, o poeta estaria, portanto, livre da necessidade de subordinação ao verídico e poderia fazer uso de uma intencionalidade seletiva ao escrever: “ao compor a Odisséia, [Homero] não deu acolhida nela a todos os acontecimentos da vida de Ulisses” (p. 41), mas escreveu o texto “em torno de uma ação única”, isto é, “agrupou ele os elementos da Odisséia e outro tanto fez para a Ilíada”, afirma Aristóteles (p. 42) ao se referir à combinação de mito e história das duas epopeias. Porém, tanto  

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  poeta quanto historiador estariam em busca do princípio da verossimilhança, segundo o filósofo. Haroldo de Campos esclarece, em entrevista a Maria Thereza Fraga Rocco, que “nenhuma obra é especular em relação à realidade” e “toda obra é necessariamente deformante porque é uma realidade de signos, onde o real fornece apenas aqueles elementos que o escritor filtra e privilegia, ao estruturar seu próprio mundo de signos” (CAMPOS, 1981, p. 158). Assim, ao serem transportados para as páginas de um romance, os acontecimentos históricos se tornam ficção e, retomando Aristóteles, desvencilham-se do compromisso com a veracidade do fato narrado. No entanto, a ideia de que na história reside o verdadeiro é atualmente contestada e discutida no sentido de que, ao trabalhar com documentos antigos e memória, o historiador empregaria um princípio discursivo semelhante ao dos ficcionistas. “Real e imaginável, o que aconteceu e o que poderia ter acontecido, verdadeiro e inventado, todos esses pares opositivos procedem de uma mesma origem e são faces de um mesmo investimento” (BASTOS, 2007, p. 47). Questões como essas podem ser levantadas logo no primeiro capítulo de A festa, “Documentário (sertão e cidade: 1970)”, no qual o autor leva para a ficção extratos de documentos históricos e notícias de jornais, o mencionado episódio do conflito entre policiais e retirantes nordestinos numa estação de trem em Belo Horizonte. Ao optar por uma narrativa jornalística, o escritor cria um narrador impessoal que, em princípio, quer parecer também imparcial, apenas um observador dos fatos ocorridos. Mas insere, sutilmente, a crítica ao regime militar nas entrelinhas do texto. Esse distanciamento documental evita que o romance deságue num discurso panfletário. Fragmentos documentais na ficção É o que acontece no fragmento de abertura, que apresenta ao leitor dois dos três personagens centrais do romance: o nordestino retirante Marcionílio de Mattos e o repórter Samuel Fereszin3. A notícia reproduzida é um “resumo” do episódio em Embora o “escritor-personagem” do livro se considere,“junto com Samuel, personagem principal da história que está escrevendo” (1976, p.117), em meio a tantas personagens principais dos capítulos dos 3

 

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torno do qual girará toda a narrativa e é apresentada como “trecho da reportagem que o diário A Tarde suprimiu da cobertura dos acontecimentos da praça da Estação, na sua edição do dia 31 de março de 1970, atendendo solicitação da Polícia Federal, que alegou motivos de segurança nacional” (ANGELO, 1976, p. 16). Além de usar o recurso para falar de uma realidade não encontrada nos meios de comunicação da época, já que, como afirma Cristiane Costa, “por ser menos censurada, a literatura passou a exercer a função de informar, própria do jornalismo” (2005, p. 154), os fragmentos jornalísticos imprimem uma sobrevida à notícia. Ao levar para o romance uma reportagem censurada, o autor inverte a lógica do jornal, que, com seu caráter efêmero e descartável, permite que suas denúncias caiam logo no esquecimento. Dessa forma, o romance assume o poder da permanência, da fixação da notícia na memória do leitor, e cumpre, finalmente, o papel de denúncia social almejado pelo jornal. A apropriação da linguagem e de recursos jornalísticos não chegava a ser uma novidade em 1976. A literatura já vinha flertando com o jornalismo desde o século XIX, mas a presença do diálogo intertextual (utilização de um ou mais textos dentro de um outro texto) (REUTER, 1996) entre fonte documental e ficção, no entanto, atingiu um patamar bastante avançado na prosa ficcional de Ivan Angelo. Um dos pontos altos da ousadia presente em A festa é justamente esse verdadeiro híbrido de história, jornalismo e ficção, uma vez que o autor fez com que o romance fosse invadido por uma colagem de vários “documentos”. Nesse sentido, o episódio “Documentário” é uma verdadeira colcha de retalhos, em que a ausência de um narrador único (cada fragmento tem o seu próprio narrador) só vem reforçar o impacto das mais diversas colagens de fragmentos, que falam por si só. O narrador do romance surgirá explicitamente somente ao final de cada fragmento, ao indicar a referência bibliográfica e acrescentar outras informações que contribuam para a compreensão do texto, e de maneira bem marcada, entre parênteses e em itálico. Mesmo assim é um narrador impessoal, que se mostra com um caráter onisciente e informativo. Os trechos utilizados para recompor a trajetória de Marcionílio e dos retirantes nordestinos, que culminou no episódio do incêndio na estação de trem, passam tanto quais fazem parte, consideramos Marcionílio, Samuel e Carlos Bicalho as grandes personagens centrais do romance como um todo, já que é para o episódio protagonizado por eles que todos os outros contos do livro convergem.

 

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  por flashbacks, como a fala do médico alemão Robert Avé-Lallemant, em 1859 (p. 16), a favor do trabalho escravo nos canaviais do Nordeste do Brasil, quanto pelo depoimento de Marcionílio ao DOPS, que ocorre no momento supostamente “atual” do romance, após o incidente do qual é suspeito de ter provocado. “que seu pai, Divino de Mattos, era capanga do coronel Horácio Mattos, homem forte da República, no sertão da Bahia, respeitado por Lampião; que o mesmo tomou parte nas guerras do coronel contra a Coluna Prestes (...); que não é admirador de Prestes, homem que põe fogo em cidade; que desde menino até hoje o homem que mais admirou foi o chefe jagunço do coronel Horácio Mattos, de nome João Duque; (...) que não sabe dizer se Prestes já era comunista mas sabe que hoje ele é comunista; que por isso não gosta dos comunistas”. (Do depoimento do retirante Marcionílio de Mattos no dia 1º de abril de 1970, na Delegacia de Ordem Política e Social de Belo Horizonte, após os graves distúrbios que agitaram a praça da Estação na noite de 30 e madrugada de 31 de março de 1970. (p. 19)

O depoimento de Marcionílio ao DOPS é interrompido abruptamente e será retomado mais adiante na narrativa. O corte se dá exatamente na frase “que tinha nove (9) anos quando Roça de Dentro foi” e, logo em seguida, o leitor é levado ao discurso de “Lourenço Moreira Lima, secretário da Coluna Prestes, em ‘A Coluna Prestes – Marchas e Combates’, trecho que narra a campanha dos revoltosos em Roça de Dentro, no interior da Bahia” (p. 19), de acordo com a referência indicada abaixo do próprio fragmento, numa espécie de “adendo” ao depoimento de Marcionílio. Ao fragmento sobre a campanha dos revoltosos em Roça de Dentro, segue-se um outro depoimento, dessa vez de Lampião. “Perguntei-lhe, então, por que não fez fogo nos revoltosos. – Ha menino! disse, isso aqui é meio de vida. Se eu fosse atirar em todos os macacos que eu vejo, já teria desaparecido.” (Lampião explicando ao rastejador Miguel Francelino que não atacara a Coluna Prestes porque cangaço “é meio de vida”. Lampião fora contratado pelo chefe político Floro Bartolomeu e pelo padre Cícero Romão para combater a Coluna, recebendo para isso armas e dinheiro Contado por Optato Gueiros em

 

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“Lampião – Memórias de um oficial ex-comandante de forças volantes”.) (p. 20)

Logo adiante, o leitor se depara com a continuação do depoimento de Marcionílio ao DOPS e com novas informações oferecidas pelo narrador onisciente ao final do texto, após relembrar o motivo de tal depoimento. “que se mudaram para Alagoas em virtude de desentendimento entre seu pai e o coronel Horácio; que passaram a servir ao coronel Joaquim Resende, dono da Fazenda Pão de Açúcar; que o dito coronel era amigo pessoal do cangaceiro Lampião; que Lampião esteve lá várias vezes; que data daí sua amizade pelo citado cangaceiro; que Lampião não era bandido inteiro, era um homem bravo que queria recompor o sertão; que ele, depoente, nessa época contava quinze (15) anos e tinha conhecimento para saber muito bem quem era Lampião; que se tivesse de escolher entre Prestes e Lampião como chefe escolheria o último, porque Lampião queria apenas consertar o sertão e não fazer política; que entendia consertar o sertão como acabar com os coronéis e dar terra, trabalho e justiça aos pobres;” (Do depoimento de Marcionílio de Mattos no dia 1º de abril de 1970 no DOPS de Belo Horizonte, sobre os distúrbios em que morreram quatro pessoas na praça da Estação.) (p. 20)

É dessa forma que a história da vida de Marcionílio vai sendo desvendada: em partes entrecortadas por outros fragmentos que fornecem subsídios ao leitor para que ele próprio “costure” a narrativa e tire suas conclusões. Os fragmentos dialogam entre si e, aos poucos, o leitor percebe a relação existente entre as ações do personagem no incidente da praça da Estação e seu passado de cangaceiro admirador de Lampião. Duas das passagens mais reveladoras são as que apontam 1917 como a data em que Lampião ingressou no Cangaço e também o ano de nascimento de Marcionílio. “E, em 1917, ingressou Virgulino na vida guerrilheira, tornando-se, em pouco tempo, o espantalho dos sertões.” (Optato Gueiros em “Lampião – Memórias de um oficial excomandante de forças volantes”). (p. 18)

A certidão de nascimento do retirante, também com o ano de 1917, é reproduzida logo em seguida: “Certifico que a fls. 43 do Livro no 2 do registro de nascimento foi feito hoje o assento de Marcionílio de Mattos, nascido aos 9 de

 

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  agosto de 1917, às seis horas, no distrito de Traíras, neste município (...)” (Registro de nascimento encontrado pela polícia na praça da Estação em Belo Horizonte, no dia seguinte aos acontecimentos da noite de 30 de março de 1970.) (p. 18)

O narrador ainda acrescenta que “há uma frase escrita a lápis na margem do documento, ao lado da data, em letra que a polícia reconheceu como de Marcionílio: ‘Ano que Lampião entro nu Cangaço’” (p. 18-19). Vale lembrar que 1917 foi também o ano da Revolução Russa. Insinua-se, dessa forma, uma aproximação entre o comunista Prestes e o revolucionário Lampião, que ganham ainda uma comparação com Antônio Conselheiro e a Guerra de Canudos. Dentro do que chama de “Flash-back”, o autor insere um trecho de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, recuperando assim a memória de Conselheiro. “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feios e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.” (p. 20)

Como num verdadeiro jogo de espelhos, os fragmentos documentais são costurados entre si e parecem querer contextualizar a liderança de Marcionílio sobre os 800 flagelados que tentavam desembarcar em Belo Horizonte, fugindo da seca no Nordeste. Em meio a Prestes, Canudos, Lampião e o depoimento de Marcionílio, alguns fragmentos revelam o passado histórico que deu origem à situação precária em que vivem os retirantes, como o que reproduzimos a seguir. “Em 1900, abandonam o Ceará 40.000 vítimas da seca. Ainda em 1915, de cerca de 40 mil emigrantes que saem pelo porto de Fortaleza, enquanto 8.500 tomam o destino do Sul, 30 mil se dirigem pelo caminho habitual, o do Norte...” (Rui Facó em “Cangaceiros e Fanáticos”). (p. 18)

 

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Mais adiante, o autor retoma o livro “Cangaceiros e fanáticos” para evidenciar como o autor, Rui Facó, justifica, numa visão naturalista dos fatos, o surgimento do Cangaço como consequência da seca. “Mais do que meio de vida, meio de prover a subsistência, o cangaceirismo prolifera no Nordeste sobretudo nas épocas das grandes secas. Formando-se então os bandos, em geral pequenos, de 3 a 10 homens no máximo. A maioria deles desaparece, uma vez passada a calamidade climática.” (p. 20)

Exemplo máximo da ironia do autor são os fragmentos a seguir. No primeiro, uma manchete do jornal O Estado de Minas informa que o “líder camponês” Marcionílio de Mattos foi “morto em tentativa de fuga” pela polícia. Logo em seguida, o autor insere uma afirmação do então presidente da República Emílio Garrastazu Médici, ocorrida um dia antes da morte de Marcionílio: “Vi a paisagem árida, as plantações perdidas, os lugarejos mortos. Vi a poeira, o sol, o calor, a inclemência dos homens e do tempo, a desolação” (p. 26). Enquanto o retirante sai do sertão para morrer na cidade, o presidente visita a seca e, aparentemente, “solidarizase” com o sofrimento dos flagelados. Na sequência, mais dois fragmentos contrapõem a morte de Marcionílio à visita de Médici que, dessa vez, afirma a sua indignação diante da seca, numa demonstração da fina ironia do autor: ao lerem esses depoimentos do presidente, os censores provavelmente acreditaram que o romance se posicionava a favor do regime militar. “O quadro que nós vimos não é o quadro que devemos ver, quaisquer que sejam as desventuras, as calamidades e as inclemências da natureza. Forçoso é que nenhum de nós se conforme com essa triste realidade.” (Emílio Garrastazu Médici, presidente da República, em 6 de junho de 1970). (p. 27)

A sutileza da crítica ao regime militar e à discriminação sofrida pelos nordestinos, presente nos mais variados discursos transcritos, e a aparente aleatoriedade com que os fragmentos documentais são dispostos no primeiro capítulo do romance alcançaram o objetivo de Ivan Angelo: o livro passou incólume pela censura e foi publicado sem cortes. A opção do autor por abrir o romance com um capítulo repleto de fragmentos nos leva a uma outra reflexão. É como se o autor, jornalista por profissão, assim como  

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  o outro protagonista do romance, Samuel Aparecido Fereszin, expusesse todo o seu trabalho de apuração sobre um determinado fato para que o leitor “redija” a sua própria matéria. As semelhanças entre esse estilo fragmentado de narrativa e o método de trabalho dos repórteres são observadas por Cristiane Costa, em Pena de aluguel. Vale chamar a atenção para o fato que a tão propalada fragmentação da narrativa ficcional dos anos de chumbo (...) também equivale ao processo típico de apuração do repórter. Cartas, notas, documentos, artigos de jornais, transcrições de conversas, multiplicidade de vozes narrativas, tudo é válido durante a apuração de um fato, antes que ele seja devidamente expurgado de informações incoerentes e costurado em forma de reportagem. (COSTA, 2005, p. 158)

Subjetividade autorreflexiva A morte de Marcionílio de Mattos encerra o primeiro capítulo e o leitor se depara com uma surpresa: os capítulos seguintes serão puramente ficcionais, verdadeiros contos que parecem totalmente desconexos uns dos outros e também do primeiro capítulo, tão marcado pela força documental. Em contraposição ao distanciamento narrativo proporcionado pela objetividade jornalística do primeiro capítulo, os episódios que se seguem exibem um mergulho profundo na subjetividade, expondo a complexidade psicológica de cada personagem. Nesse sentido, a segunda peça fundamental do quebra-cabeça proposto por Ivan Angelo é a classificação do gênero literário da narrativa. É somente ao chegar ao capítulo “Antes da festa” que o leitor compreende verdadeiramente o sentido da designação dada pelo autor de “Romance: contos” no início do livro. Trata-se de um romance composto de contos, mas com princípio, meio e fim. As peças desse quebracabeça, no entanto, se encontram nos episódios anteriores, e é preciso montá-los para que a narrativa se feche. Uma pista ou outra vai sendo deixada pelo caminho antes da revelação. A trajetória de Samuel Fereszin, por exemplo, o repórter que parte da simples

 

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contemplação para a ação e se revela, somente no final do romance, um dos seus grandes protagonistas, pode ser cronologicamente traçada a partir do capítulo “Antes da Festa”. Conforme os fragmentos narram os passos do repórter em sua transformação num revoltoso engajado, todas as vidas das personagens dos capítulos anteriores vão se entrelaçando para formarem uma única e orgânica narrativa. Tudo no romance de Ivan Angelo parece ter sido pensado para fazer com que o leitor, assim como Samuel Fereszin, saia de sua condição passiva, tão criticada pelos militantes engajados na época da ditadura, para a interatividade. Do mesmo modo como o repórter que deveria apenas apurar os fatos para transformá-los depois em notícia de jornal, mas decide tomar uma atitude em defesa dos retirantes na Estação, uma outra personagem inesperada tem grande importância para o romance. E esta é ninguém menos que o próprio autor, ou “o escritor”. A autorreflexividade atravessa o romance por intermédio das anotações desse “escritor”, sempre registradas em itálico, para que o leitor possa identificá-las. Se no primeiro capítulo “Documentário” as interferências parecem ser puramente informativas, complementares aos fragmentos apresentados, nos capítulos seguintes, os comentários deixam a imparcialidade de lado e assumem um caráter reflexivo sobre a própria elaboração do romance. O primeiro desses comentários aparece abaixo do título do capítulo “Andrea”. “Biografia encontrada pelo autor entre os papéis de uma personagem do livro, que não sabe ainda se identificará mais adiante”(p. 49). O “escritor” assume de vez a sua personalidade no capítulo “Antes da festa”, que já inicia com um desabafo. O conflito aqui é em relação à patrulha ideológica, tão típica no período, de que os autores tinham a obrigação de fazer, naquele momento, somente literatura engajada. (Anotação do escritor: Escrever o que nesta terra de merda? Tudo que eu começo a escrever me parece um erro, como se estivesse fugindo do assunto. Que assunto? Merda! E quem disse que isso é responsabilidade minha? Por que não escrever um romance policial ou um balérevista infantil?). (p. 107)

Em outra passagem, o “escritor” participa ao leitor um pouco do seu processo criativo, ao relatar uma “pesquisa sobre o filho, Robertinho”, indicando, inclusive, os

 

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  autores pesquisados, como Piaget, A. Gesell e M. y Lopez, e de que forma esses conceitos serão aplicados na narrativa: ... 3 anos – Coisas que podia e coisas que não podia. O difícil era saber o que, quando e como, decifrar os códigos dos pais. Recorre então à simulação (M. y Lopez), rebeldia, ao fazer-escondido. A mãe começa a achar que ele é fingido. O pai acha que ele representa. [...] Em grifo ou parênteses virão os conceitos que não pertencem ao seu campo intelectivo; no final, as palavras grifadas são um mínimo, porque ele domina a linguagem). (p. 113)

Conforme as “anotações do escritor” aparecem, é possível perceber que ele é também uma personagem do romance. E, embora possa ser considerado um autor alienado, já que se preocupa somente com os romances que poderá criar enquanto o conflito com os retirantes na Estação acontece, este escritor/repórter, assim como Samuel Fereszin, também acaba por abandonar a passividade em nome da ação, ao tomar a iniciativa de burlar a vigilância da polícia para falar com Marcionílio. Ivan Angelo lança mão de tal estratégia para dar voz à sua geração de escritores, que questiona o próprio ato da criação literária. A metalinguagem em uma narrativa fragmentária, cujas peças precisam ser recompostas para formarem um romance com começo, meio e fim, permite o que Wolfgang Iser chama de interação com o leitor. Segundo o teórico, são esses vazios existentes na narrativa que possibilitam “a participação do leitor na realização do texto”, já que eles são “a assimetria fundamental entre texto e leitor” (ISER, 1979, p. 131). Essa assimetria causada pelos vazios resulta, conforme Iser, em projeções imaginativas do leitor atento, que será provocado a interagir e compreenderá, desde o primeiro capítulo de A festa, a crítica exposta nos fragmentos documentais, mas não explicitada, que o autor pretende fazer à ditadura militar. [Os vazios] jogam o leitor dentro dos acontecimentos e o provocam a tomar como pensado o que não foi dito. Daí decorre um processo dinâmico, pois o que foi dito só parece realmente falar quando cala sobre o que censura. Como, no entanto, o calado é a implicação do dito, é por ele que o dito ganha seu contorno. Como o calado

 

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adquire vida pela representação do leitor, o dito passa a apresentar um fundo, que agora (...) é muito mais significativo do que permitia supor a descrição do dito. (ISER, 1979, p. 90)

Tal pressuposto fica ainda mais evidente nos dois últimos capítulos do romance. A festa acontece, mas ao leitor não é relatado o que se passa nela. Do capítulo “Antes da festa”, o livro salta diretamente para o capítulo “Depois da festa” e apenas alguns flashes posteriores mostram o que aconteceu no apartamento de Roberto naquela noite do dia 30 de março de 1970. A sensação de que algumas páginas foram arrancadas do romance é representativa de uma realidade bastante concreta no período em que a narrativa foi construída: a da censura, que impedia a sociedade de tomar conhecimento de fatos importantes no país. A festa ausente, velada, num período de truculência e autoritarismo pode ser encarada como a própria imagem do silêncio da classe artística e da imprensa censuradas. Festa x poder Constantemente associado às noções de transgressão e subversão, o termo “festa” já foi estudado por antropólogos, historiadores, linguistas, psicanalistas e filósofos entre outros pensadores. Entre os estudos mais conhecidos está o de Mikhail Bakhtin sobre os festejos populares, em especial o carnaval, no qual elabora a teoria da carnavalização na literatura. Se tomarmos a definição do filósofo russo, podemos entender a festa como a ocasião em que se consagram a liberdade, o riso e a subversão à ordem estabelecida, ainda que tais transgressões sejam temporariamente permitidas pelos meios oficiais. As leis, proibições e restrições, que determinavam o sistema e a ordem da vida comum, isto é, extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade (inclusive a etária) entre os homens. Elimina-se toda distância entre os homens e entra em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar entre os homens. (BAKHTIN, 2010, p. 140)

 

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  Note-se que Bakhtin se refere a uma festa popular – o carnaval – e enaltece a quebra temporária da distância entre cidadãos de classes sociais distintas, que se reúnem nos mesmos locais públicos e com o mesmo objetivo de se divertirem. As duas festas – comemorativas aos 29 e 30 anos de Roberto – referidas no romance de Ivan Angelo, no entanto, encontram-se em outro patamar. Ora, ao situálas em um espaço privado (o apartamento em bairro nobre do personagem), a definição de festa popular não se aplica ao enredo. Não é no espaço público, mas em um ambiente da tradicional burguesia mineira onde se desenrolam as festividades. A(s) festa(s) de A festa são elitistas. Os participantes, previamente selecionados e convidados pelo aniversariante, são artistas, jornalistas e alguns indivíduos diretamente implicados na revolta dos retirantes nordestinos na Estação. Portanto, em nenhum momento há uma anulação da desigualdade social hierárquica, conforme definição de Bakhtin. Por outro lado, configuram-se ainda assim em um território de liberdade de ação e livre expressão de ideias, onde se revogavam, nos termos de Bakhtin, “as leis, proibições e restrições, que determinavam o sistema e a ordem da vida comum”. O depoimento à polícia do personagem Jorge, um advogado presente na festa, sintetiza o clima híbrido da ocasião: tenso para os envolvidos no incidente da Estação; despretensioso e liberal ao extremo para a maioria dos presentes: Jorge Paulo de Fernandes. Página 77. As coisas que Jorge contou à polícia: a) havia tóxicos na casa, maconha e cocaína; [...] c) a turma do suplemento esteve na praça da Estação antes da festa; [...] l) Otávio Ernâni foi chamado ao telefone duas ou três vezes, durante a festa, a respeito dos nordestinos e da prisão de Carlos Bicalho, o estudante; [...] n) no quarto grego, uma bicha fez strip-tease; [...] p) os escritores e outros intelectuais do suplemento souberam da prisão de Carlos Bicalho durante a festa e não na praça da Estação, por intermédio de Samuel; q) a reação deles na festa era de medo do que poderia acontecer com eles agora; [...]

 

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u) para falar a verdade, ninguém na festa parecia muito preocupado com o que estava acontecendo na praça da Estação, a menos que falassem escondidos; v) quem quisesse beijar Andrea na boca, beijava. (ANGELO, 1976, p. 153-154)

Lembremos que o momento era de radicalizações no posicionamento político: se, por um lado, a classe intelectual se via na obrigação de resistir à opressão e denunciar os abusos da polícia e do governo, por outro, nem todos os integrantes dessa mesma classe intelectual eram radicalmente engajados na luta política. Seria a festa bem aceita pela patrulha ideológica de esquerda que acusava de “alienados” todos os que privilegiavam o prazer em detrimento das preocupações políticas? Tal conflito é evidente na narrativa por meio das “anotações do escritor”. Em uma passagem do romance, o escritor/narrador registra a participação dele no encontro de jornalistas do suplemento literário no Bar e Restaurante Lua Nova para praticarem um jogo que “dava-lhes a ilusão de serem, ao mesmo tempo, participantesdo-problema-social-brasileiro e/ou escritores-impedidos-de-escrever-porque-o-Brasilnão-estava-precisando-disso-agora” (p. 114). Em comum com as conclusões de Bakhtin a respeito do carnaval e de outras festas populares, há no romance de Ivan Angelo as noções de subversão temporária aos valores e de válvula de escape para as tensões e conflitos vividos pela sociedade, sobretudo quando em um regime ditatorial. Nesse caso, indagamos se a festa propositalmente suprimida do romance indicaria a incompatibilidade entre celebração e repressão. É possível festejar em liberdade sob uma ditadura? O encerramento da narrativa parece apontar para uma resposta negativa. Todas as personagens do romance, sobretudo aquelas que haviam participado dos acontecimentos na praça da Estação e da festa dos 29 anos de Roberto, encontram um desfecho nas palavras finais do livro. É aí que percebemos o quanto “o vazio torna a estrutura dinâmica, pois assinala aberturas determinadas, que só se fecham pela estruturação empreendida pelo leitor” (ISER, 1979, p. 132). O narrador revela o que aconteceria na festa do ano seguinte, num trecho em que toda a truculência e a repressão do regime militar são exibidas: “um grupo de trinta rapazes armados com longos cacetes de madeira invadiu a festa de aniversário de Roberto em 1971” (ANGELO, 1976, p. 193). A crítica aos militares, no entanto, não é explícita, mas apenas insinuada, já que os invasores são descritos como “rapazes de cabelos muito curtos, civis”, que promovem um verdadeiro quebra-quebra, destruindo tudo o que veem pela frente, rasgam  

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  as roupas das mulheres, xingando-as e agridem também os que tentam escapar. Tal cena é apontada por alguns críticos como uma referência aos ataques como o que o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) realizou em julho de 1968 aos atores que encenavam a peça “Roda Viva”, dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Quem tentava fugir era espancado na porta por um grupo que formava uma parede. Roberto apanhava, sangrando, e ouvia: “Está pensando que pode debochar da gente e ficar por isso mesmo, veado?” Veado, comunista e puta eram seus gritos de guerra e excitação. Soou um apito e todos juntos largaram suas vítimas e desapareceram pela porta, compactos, poderosos. (p. 193)

Ao encerrar o livro, o narrador não deixa brechas para a esperança em dias melhores e sentencia: “Foi a última festa”. Um dos últimos espaços de liberdade de ações, a cena privada estilhaçava-se juntamente com as vidas desses personagens, igualmente fragmentadas e destroçadas pelo autoritarismo. Um desfecho nada redentor, porém coerente para um romance a um só tempo crítico e autorreflexivo, experimental e político, que, no entanto, em nenhum momento resvala para o panfletarismo. Entre a arte e a denúncia, Ivan Angelo optou pelo meio do caminho: abraçou o dilema, trouxe à baila a discussão e, não por acaso, A festa figura ainda entre as obras de maior representatividade da literatura contemporânea praticada no Brasil. Referências bibliográficas ANGELO, Ivan. A festa. São Paulo: Vertente, 1976. ARISTÓTELES. Arte poética. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BASTOS, Alcmeno. Introdução ao romance histórico. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007. CAMPOS, Haroldo de. “Entrevista”. In. ROCCO, Maria Thereza Fraga. Literatura/Ensino: uma problemática. São Paulo: Ática, 1981.  

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COSTA, Cristiane. Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil (1904 a 2004). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: UNB, 1996. ISER, Wolfgang. “A interação do texto com o leitor”. In: COSTA LIMA, Luiz (org.). A literatura e o leitor. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. REUTER, Yves. “A transtextualidade”. In: ________. Introdução à análise do romance. São Paulo: Martins Fontes, 1996. SANTIAGO, Silviano. “Poder e alegria – A literatura brasileira pós-64 – Reflexões”. In: ______. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. SCHØLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

 

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