Entre o estereótipo e a emancipação: a construção da identidade da mulher brasileira pela sensualidade na personagem feminina da crônica e adaptação televisiva \"A dama do lotação\" em \"A vida como ela é...\"

May 30, 2017 | Autor: Nayane Taniguchi | Categoria: Comunicação, Identidade De Gênero, Personagem, Estudos narrativos midiáticos
Share Embed


Descrição do Produto

ENTRE ESTEREÓTIPO E EMANCIPAÇÃO: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA MULHER BRASILEIRA PELA SENSUALIDADE NA PERSONAGEM FEMININA DA CRÔNICA E ADAPTAÇÃO TELEVISIVA “A DAMA DO LOTAÇÃO”, EM “A VIDA COMO ELA É...”, DE NELSON RODRIGUES Resumo

Nayane Yuri Taniguchi Cunha1

Este artigo tem como finalidade observar como foi construída a identidade da mulher

brasileira pela sensualidade a partir de um estudo de caso, nomeadamente a análise da personagem

feminina da crônica e adaptação televisiva “A Dama do Lotação”, em “A Vida Como Ela É...”. Tal estudo reflete sobre a sensualidade da brasileira e se esta é resultado de heranças culturais. Desta

forma, recorre-se aos conceitos de identidade, sensualidade, às teorias sobre o estudo da

personagem e processos de figuração, e aos diferentes contextos acerca das questões da mulher que marcaram os dois períodos de circulação na narrativa, publicada, primeiramente, na coluna de Nelson Rodrigues do jornal carioca Última Hora entre as décadas de 1950 e 1960, e adaptada, nos anos 90, para série televisiva da Rede Globo.

Palavras-chave: A Dama do Lotação; Identidade; Sensualidade; Mulher Brasileira; Personagem; Figuração.

“Para qualquer pessoa que investigue sexualidade, raça, gênero, ou qualquer outro

fenômeno que, de uma forma ou de outra, esteja relacionado com as dimensões mais pessoais da

identidade e da subjetividade, existe sempre uma negociação entre quem você é e como vai

construir seu próprio campo de investigação (...). Em outros campos que não estejam relacionados com a construção da identidade, talvez essa implicação seja menor, menos problemática, ou

requeira menos negociação. Na investigação de sexualidade, gênero ou raça, essas questões passam sempre por um viés pessoal, que tem de ser administrado, pensado e interpretado”.

(Parker, 2003) 2

Mestre em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra (Faculdade de Letras), desenvolveu a dissertação de Mestrado A Sobrevida das Personagens de A vida como ela é... Refiguração Seriada (2016), sob orientação do doutor Carlos Reis. Obteve como menção Excelente (18 valores). Integrou, entre os anos de 2015 e 2016, o projeto de investigação Figuras da Ficção, do Centro de Literatura Portuguesa (CLP). 2 Trecho de entrevista publicada no Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19, 455-S464, 2003. Acedido Junho 9, 2015, em http://www.scielo.br/pdf/csp/v19s2/a26v19s2.pdf. 1

Introdução As personagens marcantes de Nelson Rodrigues, que integram as narrativas de “A Vida Como

Ela É...”, e a própria personalidade do escritor e jornalista brasileiro, conhecido como o anjo

pornográfico (Castro, 1992a), instigam a realização de estudos em múltiplos campos de

investigação, quer nas Ciências Sociais e/ou nas Humanidades. Este artigo, considerado percurso inicial de investigação a ser aprofundada no âmbito de tese de Mestrado, tem como objetivo

observar, a partir do processo de figuração (Reis, 2015), como foi construída a identidade da mulher brasileira pela sensualidade na personagem feminina Solange.

Este é um tema caro à sociedade brasileira e uma questão ainda mal resolvida no Brasil. É

recorrente a ênfase dada à sensualidade e à sexualidade nas diversas representações da mulher

brasileira não só em telenovelas, filmes, séries e na publicidade, mas também na literatura e nos

conteúdos publicados em jornais e revistas. Afinal, todas as mulheres brasileiras são sensuais? A sensualidade é nata à mulher brasileira ou uma aquisição resultante de heranças culturais diversas? A partir de um estudo de caso, a análise do episódio “A Dama do Lotação”

3

da série

televisiva “A Vida Como Ela É...”, transmitida pela TV Globo em 1996 (e retransmitida em 2012),

e da crônica que deu origem a esta adaptação, pretende-se observar se a construção da identidade da personagem Solange é uma afirmação da sensualidade da mulher brasileira; se a figuração desta

personagem corrobora com o imaginário (Appadurai, 1996) de que a sensualidade é nata à mulher brasileira ou se esta se apresenta como reflexo da construção da sua identidade cultural.

A escolha de “A Dama do Lotação” como objeto de estudo justifica-se, principalmente, por

dois aspectos: esta é, talvez, uma das narrativas mais conhecidas de Nelson Rodrigues, que inspirou

a produção cinematográfica e teatral de mesmo nome; e o fato de ter uma personagem feminina marcante como protagonista, envolvida em uma história de adultério e sedução.

Aliás, em “A Vida Como Ela É...”, muitas das tramas sobre infidelidade, sexualidade, crime,

inveja, ciúme, traições e desejo tinham mulheres como protagonistas. As personagens femininas (donas de casa, esposas, filhas, sogras, amantes), apesar de marcadas por estereótipos que poderiam

limitá-las apenas aos papéis estabelecidos pela sociedade patriarcal da década de 1950 e 1960,

rompem algumas das rígidas estruturas dessa ideologia dominante para viverem suas vidas e serem donas de seus corpos, mesmo que ainda exerçam tais papéis.

3

Acedido em Junho, 8, 2015, em https://youtu.be/9YdRnXcAqxU.

2

O estudo de Parker (2009) sobre a cultura sexual do brasileiro, focado nas questões da

diversidade e da construção social e histórica, é central neste artigo. Como metodologia de análise, adota-se o modelo teorético da personagem mimético ou representacional, com ênfase nas teorias semânticas, que envolvem os sistemas de significação (Margolin, 2005). Este estudo observará o processo de figuração da personagem feminina, nomeadamente os dispositivos de conformação acional, retórico-discursivos e de ficcionalização (Reis, 2015).

1. Da “não ficção” para a ficção: a crônica e a série televisiva “A Vida Como Ela É...” O escritor e jornalista brasileiro Nelson Rodrigues dedicou-se, por quase 10 anos, às crônicas

da coluna “A Vida Como Ela É...”, veiculadas no jornal carioca Última Hora, entre os anos de 1951

e 1960. O periódico era conhecido por expressar a posição do então presidente Getúlio Vargas, e tinha como proposta política destacar o nacionalismo popular de massas, fruto do contexto das lutas

sociais do pós-segunda guerra mundial, com a implementação das leis trabalhistas e da campanha do nacional-desenvolvimentismo (Macedo & Melo, 2008: 5-6).

As crônicas abordavam de forma muito específica temas do cotidiano do Rio de Janeiro,

relacionados ao comportamento da sociedade carioca da época, aproveitando o que Nelson havia

observado na Zona Norte do Rio, sua região natal (Rezende, 2006: 10-11). Estas se constituíam como relatos da cidade dos anos de 1950, e, tal como característico deste gênero narrativo híbrido – “espaço de divagação e desenvoltura, de interação do rigor jornalístico e da criatividade literária” (Mesquita, 1988: 202) –, transitavam pelo mundo da ficção e da não ficção. Mas, como

destacado por Castro (1992b: 5), "as histórias saíam de casos que lhe contavam, da sua própria observação dos subúrbios cariocas ou das cabeludas paixões de que ele ouvira falar em criança".

As crônicas de “A Vida Como Ela É...” não ficaram restritas ao jornal impresso. Na década

de 1960, foram reunidas em antologia com o mesmo título da coluna. Em cinquenta anos, transformaram-se em livro, radionovela, filme, fotonovela, peça de teatro e série televisiva (Rezende, 2006: 36).

No contexto televisivo, a adaptação audiovisual constituiu-se na série “A Vida Como Ela

É...”, composta por 40 episódios, exibidos pela primeira vez na Rede Globo entre março e dezembro de 1996 no Fantástico, programa popularmente conhecido como revista eletrônica

semanal, com exibição aos domingos. Segundo o Almanaque da TV Globo, os episódios dirigidos por Daniel Filho e Denise Saraceni foram produzidos em apenas nove meses.

"Os episódios de ‘A Vida Como Ela É...’ tinham oito minutos de duração cada um, foram filmados em película e tiveram tratamento cinematográfico. Os roteiros foram assinados por Euclydes Marinho e contavam com um

3

elenco que reunia Tony Ramos, Malu Mader, Maitê Proença, Cássio Gabus Mendes, Antônio Calloni, Laura Cardoso, Mauro Mendonça, José Mayer, Gabriela Duarte, entre outros. A narração ficou a cargo de Hugo Carvana e José Wilker" (Almanaque da TV Globo, 2009).

Em 2002, a série, com a coletânea dos episódios, foi lançada em DVD. Em 2013, reprisada no

Fantástico em comemoração aos 100 anos de idade que Nelson completaria a época. A série

televisiva é considerada como um dos melhores “trabalhos de adaptação de Nelson Rodrigues até

hoje, capaz de dar uma visão de conjunto e de detalhe de sua forma de pensar" (Gomes, 2010: 6). Para Marcelino, Gothardo e Vieira (2014), a adaptação deixa clara a intenção de levar Nelson

Rodrigues à televisão, "em um texto que muitas vezes chega a ser literal", e afirmam que o formato escolhido facilita a transposição das crônicas para o meio televisivo, como observam:

"(...) são episódios curtos, com cerca de 10 minutos, os quais ocupariam o mesmo lugar (de crônica do cotidiano) no macro cenário do 'Fantástico', assim como ocupavam no jornal Última Hora. Portanto, altera-se o dispositivo, mas a crônica se mantém como se fosse uma coluna semanal do jornal, em forma de crônica audiovisual" (Marcelino et. al., 2014: 6).

2. A vida como ela é: considerações sobre a questão da mulher no Brasil Para compreender o processo de construção da identidade da personagem Solange é preciso

observar o contexto no qual essa narrativa se insere tanto no período da crônica, visto que a figuração da personagem é inspirada na sociedade brasileira das décadas de 1950 e 1960, como no período da série televisiva, dada toda a mudança social e cultural ocorrida até os tempos atuais, que

certamente influenciou a produção da adaptação da crônica para a série televisiva. Nesse contexto, destaca-se a sociedade patriarcal brasileira, essencial para o movimento de autointerpretação da sociedade brasileira (Parker, 2009: 34).

2.1 “A Vida Como Ela É...”: a crônica, as mulheres e as décadas de 1950 e 1960 Os anos que antecederam o início da década de 1950, especificamente a partir de 1945, foram

marcados pelo fim da Segunda Guerra Mundial e pelo retorno da força de trabalho masculina, que

resultou na forte reativação da ideologia de diferenciação dos papéis por sexo e da inferioridade feminina (Fujisawa, 2006: 33-35). “Os meados do século XX são tidos, para uma grande parte das mulheres ocidentais, como os anos em que o pós-guerra as remete novamente para a esfera do

privado e procura definir de modo rígido os seus papéis como mães e cuidadoras do lar” (Carvalheiro & Silveirinha, 2010: 2).

“Por muitos anos, a mulher continuou nesse papel de submissão, mas na década de 1960 houve uma ruptura com tal sistema, iniciando o movimento de libertação feminina no Brasil. Houve mudanças radicais nos hábitos e nos

4

conceitos sobre a mulher; os tradicionais papéis femininos, fortemente influenciados pela origem patriarcal da cultura brasileira, sofreram uma brusca ruptura” (Fujisawa, 2006: 36).

Segundo Fujisawa (2006), foi apenas após a década de 1960 que ocorreram mudanças mais

significativas acerca da questão da mulher, ou seja, período posterior à publicação da coluna de

Nelson Rodrigues. Dado o contexto vivido pela mulher brasileira neste período, Nelson antecipou (e problematizou), em “A Vida Como Ela É...”, questões que seriam amplamente discutidas apenas

nos anos seguintes. No período em que as crônicas foram escritas, as mulheres lutavam pelo sufrágio universal, associado à garantia de direitos políticos.

2.2 “A Vida Como Ela É...”: a série, as mulheres e os anos de 1990 e 2000 Apesar da permanência de muitos desequilíbrios nas questões de gênero, a situação das

mulheres nos anos 1990 e 2000 possui outra conformação, resultado das conquistas alcançadas nos

anos anteriores e da luta pelo reconhecimento da individualidade, do direito ao próprio prazer e o exercício da livre sexualidade, como o advento da pílula anticoncepcional e a garantia de direitos políticos, sociais e econômicos (Fujisawa, 2006: 37).

A década de 90 também é marcada por mudanças no movimento feminista, caracterizado por

Pollock (1992; 1993; 2002: 200) como novos feminismos, centrado na política do corpo, com campanhas em torno da saúde e das reivindicações para a sexualidade feminina, na luta contra a violência e a agressão, contra a pornografia, nas questões sobre a maternidade e o envelhecimento.

Neste contexto, a mulher ganha espaço no mercado de trabalho e luta por sua independência

financeira, liberdades vinculadas também à esfera pessoal. Surgem novas discussões sobre o corpo e o sexo, a desigualdade de gênero e o androcentrismo. Ampliam os debates sobre o sexismo e a

imagem da mulher, uma vez que neste período a mulher é vista também como objeto sexual, situação influenciada pelos meios de comunicação de massa e pela publicidade.

“A renovada vaga de feminismos no final deste século [XX] consistiu uma resposta ao facto de reformas económicas e políticas, tais como foram conseguidas pelas precursoras do século XIX, não alterarem as estruturas profundas das divisões sexuais na sociedade ou a mudança das estruturas ideológicas e psicológicas que defendiam. (...) A palavra-chave que compreende a versão especificamente feminista deste discurso mais amplo é o ‘corpo’. Tal como afirma Rosalind Delmar, ‘A busca de questões sobre o corpo feminino e as suas necessidades sexuais tem-se tornado característica do feminismo contemporâneo’” (Pollock, 2002: 200).

A década de 90 é também marcada pela imagem da mulher contemporânea. McRobbie (2006)

ressalta a influência da cultura popular na configuração de um novo regime de gênero surgido no

contexto do pós-feminismo, influenciado ainda por um duplo enredamento (Butler, 2000, citada por Mc Robbie, 2006: 60), ou seja, a coexistência de valores neoconservadores em relação ao gênero,

sexualidade e vida familiar com processos de liberação em relação à escolha e à diversidade nas 5

relações domésticas, sexuais e de parentesco. Ainda de acordo com McRobbie (2006), este período é marcado por uma hipercultura da sexualidade comercial. 3. Brasil: identidade e sensualidade Hall (1992; 2005) afirma que o conceito de identidade é extremamente complexo, muito

pouco desenvolvido e compreendido na Ciência Social contemporânea. No estudo sobre a identidade cultural da pós-modernidade, o autor discorre sobre questões relacionadas à identidade cultural na modernidade tardia e sobre a atual crise de identidade na sociedade.

“A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (Hall, 2005: 7).

Ao abordar a cultura nacional, Hall (2005: 50) diz que esta, composta de símbolos e

representações, é um discurso, ou seja, “um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos”.

“As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre ‘a nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar’, constroem identidades. Esses sentidos são estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma ‘comunidade imaginada’” (Hall, 2005: 50-51).

Acerca da construção da identidade no Brasil, Brito (2005) afirma que, assim como nos

demais países latinoamericanos, este processo esteve associado à necessidade de busca de uma

identidade moderna, “para acertar o passo com o discurso civilizatório do colonizador. A síntese na constituição de nossa identidade passa, portanto, pela formação de um imaginário moderno que vai permear diferentes momentos desse processo desde o século XIX” (Brito, 2005: 2).

Em Bodies, Pleasures and Passions, Parker (2009) faz um amplo estudo sobre a cultura

sexual brasileira, com foco nas questões da diversidade e da construção social e histórica que a caracterizam, e auxiliam o entendimento sobre como a sensualidade, e a própria sexualidade, foram inseridas no processo de construção identitária do povo brasileiro.

Parker (2009) diz ter observado histórias que foram contadas sobre brasileiros, “e que os

brasileiros contaram (e continuam a contar) sobre a sua história como povo, sobre as suas raízes

6

históricas e sua orientação sensual para o mundo, sobre sua identidade como seres sexuais, e sobre sua identidade sexual como brasileiro”4 (Parker, 2009: 6).

A investigação, concentrada nas dimensões simbólicas da experiência humana, compreende

que a experiência sexual, assim como toda experiência humana, é mais produto de um complexo conjunto social, cultural e de processos históricos que resultado de algumas naturezas humanas imutáveis (Parker, 2009: 1).

A partir do estudo de Parker (2009), nota-se que a cultura sexual brasileira possui fortes

ligações com Portugal, tanto em relação ao período do descobrimento e colonização do Brasil -

cujos relatos enfatizam a questão da vida sexual e fazem análises dos brasileiros nativos em termos sexuais -, como nas influências do Catolicismo português no país. “A divisão dos sexos, a estrutura

de dominação masculina, a importância da virgindade feminina e, assim por diante, podem ser ligados a um conjunto de valores religiosos que atuam para legitimar e reproduzir o aceite à ordem do universo sexual”5 (Parker, 2009: 77).

Parker (2009) explica que os encantos sedutores dos nativos possui relação com a sedução da

própria terra (Brasil), que liberta a sensualidade inerente aos jovens exploradores europeus. “A ênfase nas mulheres nativas, nos prazeres e produtos de seus corpos, na sua desenfreada sensualidade e fácil sedução em relação ao ‘macho’ europeu é crucial na configuração dos próprios mitos de origem do Brasil”6 (Parker, 2009: 21).

Ainda neste contexto histórico e cultural, Parker (2009) menciona os escritores

contemporâneos ao afirmar que algumas obras literárias também reforçam alguns mitos de origem, tal como Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, publicada em 1933, que enfatiza a formação da sociedade brasileira no contexto da miscigenação entre o branco europeu, o negro africano e o

indígena que habitava o país. Para o autor, a obra de Freyre deu a expressão mais plena e enraizada do caráter unicamente sensual da vida e do povo brasileiro.

De acordo com Parker (1991:17), com a ênfase dada na mistura das três etnias (o indígena, o

português e o africano) como chave para constituição histórica do brasileiro, a questão da interação

sexual como o mecanismo concreto da mistura racial tem assumido uma grande importância no pensamento moderno brasileiro, tornando-se central para a própria interpretação do brasileiro, de si

mesmo e da sua história, ou seja, dos seus próprios mitos de origem. Enquanto na América do Norte 4 5 6

Tradução nossa. Tradução nossa. Tradução nossa.

7

e na Europa a vida sexual é tratada como fenômeno essencialmente individual, no Brasil esta surge como uma questão central em um nível social e cultural (Parker, 2009: 32).

A configuração ideológica da sociedade patriarcal que define o processo de diferenciação e

oposição entre homem e mulher; a linguagem do cotidiano e do corpo que, juntamente com as

categorias sexuais atribuídas, compõem os entendimentos acerca das primeiras construções sobre

masculinidade e feminilidade e influenciam a construção de significados acerca da sensualidade do corpo na sociedade brasileira são detalhados por Parker (2009). “Enquanto certa imagem da tradição patriarcal providencia um contexto no qual os brasileiros continuam a interpretar as relações entre homem e mulher, é a linguagem do cotidiano que salienta como os entendimentos sobre masculinidade e feminilidade são primeiramente construídos”7 (Parker, 2009: 40).

Parker (2009) defende a existência de uma carnavalização (termo utilizado pelo autor em

referência ao Carnaval no Brasil) na vida diária do brasileiro, que lê práticas sexuais nos termos das possibilidades de prazer e, através desta leitura, inventa e reinventa noções de excitação e desejo, sensualidade do corpo e até mesmo a experiência do prazer (Parker, 2009: 85).

O mesmo autor introduz uma série de aspectos que influenciam a construção de significados

acerca da sensualidade, do desejo, do prazer e da paixão, e, obviamente, da sexualidade. Estas

noções estão relacionadas, principalmente, ao corpo (físico e estética), à linguagem e expressões

(verbais e corporais), às considerações da sociedade patriarcal acerca da aprovação ou reprovação de certos tipos de comportamentos e dos papéis a serem desempenhados por homens e mulheres, às

sensações (de temperatura, paladar), às práticas diárias (alimentação), aos espaços e situações considerados eróticos, e, inclusive, à religião (pecado, virgindade, pureza).

Castells (2013) diz que o processo de construção de significado opera em um contexto

cultural caracterizado por uma grande diversidade, mas que há uma característica comum a todos os processos de construção simbólica:

“São em grande parte dependentes das mensagens e dos quadros criados, formatados e difundidos em redes de comunicação multimédia. Apesar de cada mente individual humana construir o seu próprio significado, interpretando os materiais comunicados nos seus próprios termos, este processamento mental é condicionado pelo ambiente da comunicação” (Castells, 2013: 548).

A análise faz uso de alguns dos elementos pontuados por Parker (2009) acerca da

sensualidade, considerada pelo autor como um dos pilares para a compreensão do indivíduo e da

7

Tradução nossa.

8

sociedade brasileira, que serão identificados no processo de figuração da personagem feminina Solange (Reis, 2015).

4. Metodologia de análise: estudo da personagem Este artigo adota o modelo teorético da personagem mimético ou representacional (Margolin,

2005), cujos paradigmas subdividem-se em semântico (possible-worlds theory), cognitivo ('readers'

mental models) e comunicativo (the process of narrative models). Para Margolin (1995, citado por Jannidis, 2012), as personagens podem ter vários modos de existência no storyworlds: factuais, contrafactuais, hipotéticas, condicionais ou puramento subjetivas.

Por compreender a introdução de uma investigação a ser aprofundada no âmbito de tese de

Mestrado, esta etapa enfatiza as teorias semânticas (Margolin, 2005), que envolvem os sistemas de

significação da personagem localizada em um espaço e tempo, e dotada de propriedades tipicamente humanas.

Desta forma, são observados os processos de figuração da personagem Solange,

nomeadamente os dispositivos de conformação acional, como, por exemplo, a narratividade

(interação, ação, temporalidade e conflitualidade) e os comportamentos manifestados na ação

narrativa pela personagem feminina (feição psicológica, ideológica ou moral); e os dispositivos retórico-discursivos, importante componente do processo e dinâmica constitutiva da personagem (Reis, 2015), a fim de identificar elementos da dimensão narratológica da descrição, temática e da caracterização da personagem. A caracterização tanto se refere à atribuição de uma propriedade como ao processo geral e resultado da concessão de traços à personagem (Jannidis, 2012: 1).

Acerca do estudo da personagem, Reis (2015) ressalta a investigação de Jannidis (2009), que

conduz a domínios como os da análise da construção social de identidades. Para Reis (2015: 11) “as análises de incidência identitária devem ser enriquecidas pelo estudo narratológico da personagem

(é ele que, obviamente, está no centro da problemática da identidade)”. O autor acrescenta: “a análise narratológica da personagem não deve descurar o significado das construções identitárias, bem como o de manifestações de teor semelhante reveladas pelos estudos culturais" (Reis, 2015:

25-26). Jannidis (2012: 3) salienta a importância de questões que observam como as personagens passam a existir e o que constitui a identidade deles, especialmente no storyworlds como um conceito transtextual.

Como o episódio televisivo é uma adaptação à crônica, que preservou quase na íntegra a

narrativa original, a análise contempla os dois formatos. Para o estudo de caso, consideram-se os

discursos das personagens Solange, Carlinhos (marido), pai de Carlinhos, Assunção (amante) e do 9

narrador. Na série televisiva, são destacados aspectos relacionados à refiguração, visto a transposição da crônica para a um conteúdo multimodal, como a imagem (visual e sonora) e o casting.

5. Solange: sensualidade e pureza ou pura sensualidade? Ao comparar as duas narrativas (crônica e episódio televisivo), notam-se algumas alterações

em relação ao texto original, relacionadas à temporalidade, sequências no desenvolvimento da trama e a supressão de algumas informações.

Entretanto, muitas componentes são idênticas, e mesmo que tenham sido configuradas em

dispositivos diferentes, indicam os mesmos elementos de sensualidade do estudo de Parker (2009). Cabe esclarecer que a sensualidade é uma componente da sexualidade, do erotismo. Esses também

são observados na análise, mas com o objetivo de identificar as noções que contribuem para a construção de significado da sensualidade.

O título da crônica e do episódio televisivo – “A Dama do Lotação” – situa a personagem

Solange, a partir do termo dama, na sociedade patriarcal brasileira; e o tipo de transporte, o lotação,

na segunda metade do século XX, período no qual os veículos automotivos se popularizaram no país. Em um primeiro momento, a expressão dama é utilizada apenas para ressaltar a condição de Solange na sociedade; entretanto, ao longo da narrativa, constata-se a ironia do autor (característica

típica de Nelson Rodrigues e de suas crônicas) ao usá-la, dado o comportamento transgressivo da personagem feminina revelado durante a narrativa, desaprovado por essa sociedade.

“A visão da mulher tem sido tradicionalmente construída em relação à variedade de outras

figuras: a virgem, a piranha ou puta, e numa menor extensão, a sapatão”

8

(Parker, 2009: 55).

Tecnicamente, a expressão virgem é definida pela experiência sexual, mas também tem relação com

as expressões donzela, moça, mocinha e santinha. A piranha ou a puta pronunciam a masculinidade do homem. Para a família ou para as outras pessoas cujas vidas ela interfere, é vista como um

agente de destruição, como uma mulher que come, devora os homens, as famílias, e tudo que está em seu caminho (Parker, 2009: 56-58).

Outros fragmentos também situam a personagem feminina na sociedade patriarcal e indicam

desvio no seu comportamento. Quando Carlinhos diz: “Meu pai, desconfio de minha mulher”9 e “Se 8 9

Grifos do autor. Tradução nossa. Grifo nosso.

10

for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher”10, ele reafirma a posição de dominação e posse em relação à Solange ao mesmo tempo que introduz a questão do

comportamento transgressivo da esposa, situação que, na narrativa, enfatiza a sensualidade da personagem, a ser revelado a seguir.

Dois outros atributos destacam a sensualidade da personagem feminina na construção da sua

identidade: o nome (Solange) e a mudança de comportamento mencionada por Carlinhos, a exemplo do trecho “Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é mesma, mudou

muito”11. Entretanto, indicam percepções diferentes acerca da sensualidade de Solange. O nome da personagem resulta do neologismo “Sol + ange”. O Sol pode ser uma metáfora para luz, calor. E

“ange” é uma referência à palavra anjo em latim (ângelus). Ou seja, a primeira marca da sua identificação – o nome - traz em si uma ambiguidade entre o calor, que segundo Parker (2009), também remete à sensualidade, e ao anjo, que indica a pureza.

“As noções de quente e frio são extensivamente usadas para falar sobre o desejo e liga-lo, de várias formas, à excitação do corpo. Embora seja um pouco menos comum, a expressão ‘estou com calor’ (ou sou/estou quente) pode ter precisamente as mesmas implicações sociais que ‘estou com fome’. A experiência física da excitação sexual é entendida como uma experiência de calor. A energia sexual é quente, e ficar sexualmente excitado está associado com o esquentando, com a temperatura do corpo a subir, uma sensação de calor físico focado na região genital e difusa ainda por todo o corpo” 12 (Parker, 2009: 120).

Subentende-se desta metáfora: Solange é quente como o Sol, e, ao mesmo tempo, Solange é

como um anjo. Esta identificação conduz à interpretação de que a sensualidade é algo nato à

personagem, já que a acompanha desde o seu nascimento e antes mesmo da sua inserção na cultura brasileira, mas não só isso. A identidade de Solange é também composta por pureza, santidade.

No entanto, ao mencionar que Solange mudou muito e não é a mesma, Carlinhos, por

desconhecer esse aspecto da identidade da mulher, sugere que a sensualidade de Solange é uma aquisição, ou seja, insere-se num processo de construção identitária. 5.1. A crônica: Solange e os traços sensualidade

Dos discursos do narrador e das personagens extraem-se ainda outras noções de sensualidade

ligadas às sensações de calor, prazer, sabores, e também relacionadas ao corpo, à religião e à

alimentação, como ilustrado acima. Após introduzir a desconfiança de Carlinhos em relação ao 10 11 12

Grifo nosso. Grifo nosso.

Tradução nossa.

11

comportamento de Solange, o narrador descreve outros aspectos da identidade da personagem

feminina, relacionadas ao seu estado civil, em “Casados há dois anos”, e à classe social, em “ambos de ótima família”.

Ao continuar a descrição, o narrador, diz: “na família de Solange havia de tudo: médicos,

advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado”. Apesar de elencar várias profissões de prestígio,

a expressão havia de tudo indica diversidade, e amplia a desconfiança acerca das origens da personagem feminina, visto que engloba, no contexto da sociedade patriarcal, tanto as boas quanto às más ocupações.

A seguir, o narrador diz: “Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era ‘um amor’; e os mais

entusiastas e taxativos afirmavam: ‘É um doce-de-coco’. Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina

e frágil qualquer coisa de extraterreno”. Além de exaltar características que ressaltam a

sensualidade de Solange no corpo – figura fina e frágil –, mais uma vez o narrador menciona, ao mesmo tempo, a pureza e a sensualidade, com o uso da expressão doce-de-coco, utilizada tanto para descrever a simpatia da personagem quanto a sensualidade intrínseca aos cheiros e sabores, que sugerem prazer.

“Talvez mais do que qualquer outro conjunto de imagens, esta linguagem de sabores e aromas, de comida e comer domina a metáfora erótica na cultura brasileira. Prazeres sexuais estão amarrados aos prazeres do paladar, e a definição da sensualidade é ampliada e expandida. A imagem do alimento e do ato de comer percorre a cultura sexual brasileira” 13(Parker, 2009: 130).

Em oposição ao doce de coco, ainda há a expressão amargo, utilizada pelo narrador para

descrever a sensação de Carlinhos no momento em que relata a mudança de comportamento da mulher.

A hora do jantar, ou da comida, marca o momento de confirmação da desconfiança de

Carlinhos, que flagra o contato físico entre Solange e o amigo Assunção, escondido sob a mesa. Neste caso, a hora do jantar descreve tanto o rito do brasileiro de fazer as refeições em conjunto, à mesa, como o contato sensual entre a personagem feminina e o amante.

“(...) coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa (...) O que vira, afinal, parecia pouco. Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso”.

13

Tradução nossa.

12

O contato físico entre Solange e Assunção enfatiza mais uma vez a sensualidade da

personagem feminina, visto que “as mais diversas partes do corpo tornam-se fontes para sensação de prazer sexual”

14

(Parker, 2009: 136). A sensualidade é enfatizada ainda pelo ambiente onde se

come, e quando o narrador diz que “essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso” 15, introduzindo a noção de nojo, de sujeira ao relato.

“(...) o uso da sujeira como metáfora segue a lógica subjacente de sacanagem, em si. Ela inverte os significados da vida diária e oferece uma leitura radicalmente diferente do significado na prática sexual. Sujeira torna-se, assim, mais um componente de um vocabulário erótico que reconstrói o corpo como uma fonte de prazer e integra-o, plenamente, por meio de sua sensualidade, com o mundo físico ao seu redor” 16 (Parker, 2009: 136).

A sujeira é contextualiza ainda no aspecto religioso, visto a impureza do pecado (a mentira, o

adultério, por exemplo), como em: “Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias”.

O discurso do narrador, ao inserir na trama a figura de um mecânico, também conduz à noção

de sujeira, no aspecto relacionado ao ambiente de trabalho desse profissional (sujo de graxa e decorado, muitas vezes, com pornografia).

“Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica: — Um mecânico? Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou: — Sim. Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: ‘Eu desço contigo’. O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais? Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: ‘Basta! Chega!’. Em voz alta, fez o exagero melancólico: — A metade do Rio de Janeiro, sim senhor! O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação”.

O trecho “velho, moço, feio ou bonito” reforça que o desejo sexual de Solange transcende a

atração física por um tipo específico de homem. Na verdade, é a sedução que importa. Do

fragmento, compreende-se que a sensualidade e o comportamento provocativo de Solange, 14 15 16

Tradução nossa. Grifo nosso.

Grifos do autor. Tradução nossa.

13

concretizados nas propostas que ela faz aos desconhecidos, inibem até mesmo o pobre-diabo, ou seja, a figura que nos induz ao pecado, na religião.

Este é, talvez, o fragmento da narrativa que reúne mais elementos que descrevem a

sensualidade na identidade de Solange: a tranquilidade e a frieza da personagem, que corroboram

com a naturalização do seu comportamento sensual (e sexual), em “sem excitação, numa calma intensa, foi contando”; a ruptura ao papel da mulher na sociedade patriarcal e à condição de dama,

enfatizada no trecho “Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação”; os inúmeros encontros casuais, a aventura

inverossímil, com anônimos, conhecidos, remetem ao prazer proibido; a beleza física e elegância da personagem, em “linda e granfa”; a sujeira; o desejo explícito no discurso de Solange, quando ela

faz a proposta ao cavalheiro sentado ao seu lado. O termo cavalheiro possui relação com a expressão dama, do título da narrativa, e confirma a ironia do autor/narrador. Ao final, todos estes

elementos são ainda reforçados pela quantidade de relações vividas por Solange, no trecho: “Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano...(...) — A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!”.

No mesmo trecho, é relatada novamente a pureza da personagem: “Solange, na sua maneira

objetiva e casta”. A seguir, Carlinhos novamente coloca a imagem de santa que a esposa possui em oposição ao comportamento de Solange:

“O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como é possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: ‘Não sou culpada! Não tenho culpa!’. E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: - ‘Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua’. Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer: Morri para o mundo”.

Em “O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada”, o discurso do narrador

sugere que o comportamento sensual de Solange não possui um biótipo ou que seja atribuído a apenas determinado tipo de pessoa, ou seja, a sensualidade pode ser característica de uma mulher

mesmo que ela não aparente tais traços, tal como Solange. Mais uma vez, indica que a sensualidade é nata, ideia reforçada pelo discurso da personagem feminina e do narrador, no trecho: “Solange

agarrou-se a ele, balbuciava: ‘Não sou culpada! Não tenho culpa!’. E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma”.

O comportamento sexual de Solange é também evidenciado no momento que o marido a

flagra sem calça, ato reprovável pela sociedade patriarcal, que dá significado à liberdade sexual

protagonizada pela personagem. O detalhe de a personagem andar sem calça refere-se ainda ao

órgão genital feminino, o qual Parker (2009: 44) afirma ser ponto focal para as noções de impureza 14

da vida brasileira, representando a sujeira, a poluição e a contaminação, por estar relacionado aos produtos residuais do corpo – urina e fluxo menstrual.

O desfecho contribui para a compreensão da construção da identidade da personagem

feminina na crônica, a partir da junção de elementos que reiteram sua condição de mulher na

sociedade patriarcal, em “durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada”, “a outra não insistiu” e “o jantar está na mesa”. Entretanto, este último fragmento

indica novamente uma ambiguidade, visto que está tanto associado à condição de boa esposa de Solange quanto, novamente, ao prazer ligado ao ato de comer, como uma tentativa de sedução da personagem feminina para fazer o marido a mudar de ideia. O discurso do narrador enfatiza ainda a

religiosidade de Solange, que decide velar o marido vivo, embora não abra mão da sua sensualidade, no trecho: “e só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação”.

No desfecho, a personagem, no discurso do narrador, deixa de ser Solange e passa a ser a

mulher, a outra e a viúva, mas mantém as características que constroem sua identidade. Ao mesmo tempo é pura, sensual, religiosa, pecadora, adúltera e esposa. Esta dualidade presente no início e no

trecho final da narrativa (religião/casamento e pecado/sensualidade) confirma que Solange não é só sensual. E esta sensualidade é tanto algo nato quanto uma aquisição resultante de heranças culturais.

“Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando: — O jantar está na mesa. Ele, sem se mexer, respondeu: — Pela ultima vez: morri. Estou morto. A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo”.

5.2 O episódio televisivo: Solange, traços de sensualidade e marcas da sexualidade No episódio televisivo, a identidade sensual de Solange ganha contornos mais sexuais,

eróticos, enfatizados pelas cenas de sexo, pelos vários momentos de contato físico entre Solange e os homens com os quais ela se relaciona, pelas expressões faciais e pelo destaque a algumas partes

15

do corpo da personagem feminina. “Essa ênfase constante sobre a sensualidade do corpo marca claramente a construção de significados eróticos na cultura brasileira”17 (Parker, 2009: 136).

As imagens do corpo da personagem são evidenciadas nos momentos em que Solange está no

espaço externo a sua casa, onde ela se liberta das estruturas patriarcais e libera sua sensualidade.

Nestas cenas, ela expõe os seios (ao usar decotes mais profundos, ao abrir os botões da blusa) e as

pernas, ao levantar a saia para provocar o passageiro sentado ao seu lado, ou ainda pelo movimento

dos seus quadris, ao entrar no lotação. Segundo Parker (2009), o potencial erótico do corpo pode

estar centrado nos órgãos genitais, mas se manifesta em praticamente todas as partes. “Os olhos, nariz, cabelo, pescoço, costas, braços, coxas, pernas, e até mesmo as mãos e os pés podem ser investidos, sob as circunstâncias corretas, de significado erótico”

18

(Parker, 2009: 128). Para o

mesmo autor, algumas partes do corpo, como a boca e os seios, por vezes ultrapassam os significados eróticos atribuídos aos órgãos genitais.

Como já mencionado, a adaptação altera alguns elementos da narrativa, que não

comprometem a construção da identidade da personagem feminina. Na série, o flagra de Carlinhos acontece na sala de estar, e não na sala de jantar, como na crônica. O contato não é pelos pés, mas

por um possível beijo, que deixa até o expectador em dúvida, colocando-o, desta forma, na mesma posição de Carlinhos sobre o acontecimento, de desconfiança.

A noção de sujeira é transferida para os espaços onde ocorrem as cenas de sexo, em dois

momentos distintos (na crônica, é relatado apenas um destes encontros sexuais): em cima de uma mesa do que parece ser o escritório de uma oficina mecânica, e um barraco de madeira.

A indumentária da personagem Solange indica a dualidade na identidade da personagem, que

muda radicalmente a depender do espaço. Em casa, Solange está sempre com um penteado e veste

roupa com cores neutras, tecidos delicados e decotes sutis. A roupa muda conforme a personalidade: fora de casa, a sensualidade é manifestada nas vestimentas com cores vivas, decotes

profundos, cabelos soltos e corpo empinado. A sensualidade é reforçada ainda pela música escolhida para as cenas em que Solange entra no lotação.

O episódio introduz outra importante questão que enfatiza a sensualidade da personagem: o

casting. O papel da personagem Solange é vivido por Maitê Proença, considerada uma das atrizes

brasileiras que representa a sensualidade da mulher brasileira. Tal associação pode estar relacionada ao fato de a atriz ter protagonizado uma das primeiras cenas de nudez (banho de cachoeira) em 17 18

Grifo nosso.

Tradução nossa.

16

horário nobre, na telenovela Dona Beija (1986) 19, e, por duas vezes, em 1987 e 1996 (este último, mesmo ano da transmissão de “A Vida Como Ela É...”), ter participado de ensaios de nu artístico publicados na revista Playboy.

Entretanto, em “A Vida Como Ela É...”, Maitê Proença fez mais de uma personagem. Dos 40

episódios, participou de oito, além de “A Dama do Lotação”: “Divina Comédia”, “O Grande

Viúvo”, “O Decote”, “Uma Senhora Honesta”, “Viúva Alegre”, “O Único Beijo”, “Desprezada” e “A Grande Mulher”.

O casting está inserido no processo de sobrevida da personagem, visto que é “também o

reaparecimento da personagem, por refiguração, em transposições intermediáticas (no cinema, na televisão, etc.)” (Reis, 2014). Segundo Reis (2014), a “remediação procura, então, nos media de

base tecnológica, compensar as alegadas limitações de um primeiro médium (p. ex., o livro em que o relato escrito é lido) e atingir uma mais expressiva representação ficcional” 20. Conclusão Parker (2009), no trabalho de investigação sobre a cultura sexual do Brasil, buscou a

ressignificação do desejo de um indivíduo num fenômeno coletivo em quadros de referências

culturais que organizam os significados sexuais (Parker, 2009: XIV), utilizados neste estudo para observar, na figuração da personagem feminina, como se deu o processo de construção identitária pela sensualidade.

Apesar da mudança de dispositivo midiático, a adaptação da crônica para episódio televisivo

não alterou de forma significativa essa construção, embora na crônica esta pareça ser mais natural à personagem Solange que no episódio televisivo. O recurso das imagens e o processo de edição

tendem a confirmar a sensualidade mais como uma aquisição resultante de heranças culturais que

algo nato à personagem, impressão realçada ainda pela indumentária da Solange, que muda radicalmente a depender do seu comportamento e do espaço que interage. Esta brusca mudança remete a uma artificialidade, diferente do que ocorre na crônica.

Em 14 de abril de 2013, Maitê Proença participou do Programa Roda Viva da TV Cultura. Na ocasião, falou sobre sua carreira de atriz, escritora, e comentou ainda sobre alguns trabalhos realizados na TV, entre eles, Dona Beija. Acedido em Junho, 18, 2005, em http://youtu.be/h_mqs3dAfmI. 19

Grifos do autor. Informações extraídas do Blog Figuras da Ficção. Acedido em Junho, 18, 2015, em https://figurasdaficcao.wordpress.com/category/casting/. 20

17

Desta forma conclui-se que a sensualidade da personagem Solange é tanto uma característica

natural da personagem quanto resultado de heranças culturais. Parker (2009) diz:

“De fato, os brasileiros se veem como seres sensuais não simplesmente em termos de sua individualidade (embora isso também seja importante), mas a um nível social ou cultural – como indivíduos sensuais, pelo menos em parte, em virtude da sua brasilidade ou ‘brasilianidade’ compartilhada. E este ponto de vista, por sua vez, parece desempenhar um papel chave na definição da natureza da vida brasileira tanto em si e em relação ao mundo ao seu redor, o mundo estrangeiro” (Parker, 2009: 8).

Acerca das outras reflexões propostas por este estudo, argumenta-se que a crônica possui

traços de emancipação feminina principalmente pelo contexto em que se insere (décadas de 1950 e

1960), visto que são introduzidas ideias sobre emancipação e empoderamento feminino no que diz respeito à liberdade sexual da mulher, antes mesmo do início da segunda vaga do feminismo.

Entre as crônicas de “A Vida Como Ela É...”, há narrativas nas quais as mulheres defendiam

suas escolhas, modos de vida e sexualidade, e buscavam liberdade em histórias atribuídas e aceitas

pela sociedade patriarcal apenas quando vivenciadas por homens. Algumas feministas do movimento radical libertário, por exemplo, defendiam que as mulheres deveriam incorporar, em

seus comportamentos, tanto características femininas quanto masculinas, independente de serem boas ou ruins, para alcançarem a liberdade sexual e a sua emancipação.

Já no episódio televisivo, a ênfase dada ao corpo de Solange e a forma como é feita sua

representação, somadas a um processo de normalização e naturalização do sexo reforçado pelos

meios de comunicação de massa nas últimas décadas, reforçam mais o estereótipo da mulher brasileira que a emancipação feminina. Sendo assim, neste estudo, a representação da mulher

perpassa tanto pela emancipação feminina quanto pela imagem estereotipada da mulher brasileira, se considerados os contextos e períodos de produção da narrativa nos diferentes dispositivos.

Apesar de o processo de recepção desse conteúdo não ter sido abordado neste artigo, é

importante observar que “as relações de poder são feitas e refeitas através de textos prazerosos e de rituais de relaxamento e abandono” (McRobbie, 2006: 69), principalmente produzidos no contexto

da cultura de massa. E as relações de poder baseiam-se, em grande medida, na capacidade para moldar as mentes construindo significados através da criação de imagens (Castells, 2013: 267).

A origem da sensualidade e da sexualidade do brasileiro continuará a ser questionada pela

própria sociedade brasileira. Principalmente, e utilizando as palavras de Parker (2009), por ser

celebrada e desprezada. Desta forma, chega-se ao fim deste estudo com uma citação da feminina Adrienne Rich (2002: 18), que certamente norteará mais investigações sobre esta questão: “se

aprendemos algo nestes anos sobre o feminismo de finais do século XX, foi o facto de que aquele ‘sempre’ escamoteia aquilo que realmente precisamos saber: quando, onde e em que circunstâncias, esta afirmação foi verdadeira”.

18

Bibliografia

Almanaque da TV Globo. Acedido Março, 20, 2015, em http://redeglobo.globo.com/Tv_globo/Noticias/ 0,,MUL1226092-16162,00VOCE+SABIA+A+VIDA+COMO+ELA+E+TEVE+EPISODIOS+PRODUZIDOS +EM+NOVE+MESES.html. Appadurai, A. (1996). Dimensões Culturais da Globalização. Lisboa: Teorema. Brito, R.S. (2005). Mídia, construção do imaginário moderno e identidade no Brasil. In Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo: Intercom. Acedido em Junho, 1, 2015, em http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R1775-1.pdf. Castro, R. (1992a). O Anjo Pornográfico: A vida de Nelson Rodrigues. (2ª ed.). São Paulo: Companhia das Letras. Castro, R. (1992b) (seleção). A vida como ela é...: O homem fiel e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras. Castells, M. (2013). O poder da comunicação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Carvalheiro, J. R. & Silveirinha, M. J. (2010). Agindo sobre o corpo da audiência: ditadura, hegemonia e censura de género. Acedido em Junho, 2, 2015, em https://www.mediarecepcao-ememoria.ubi.pt/ficheiros/GenderCensorship.ArticleSubmitted.FeministMediaStudies.pdf. Fujisawa, M. S. (2006). Das Amélias às mulheres multifuncionais: a emancipação feminina e os comerciais de televisão. 1ª edição. São Paulo: Editora Summus. Figuras da Ficção (2014). José Wilker ou a sobrevida do ator. Acedido em Junho, 18, 2015, em https://figurasdaficcao.wordpress.com/category/casting/. Gomes, M. (2010). Interpretando Nelson Rodrigues. Biblioteca Online de Ciências da Comunicação. Acedido em Março, 10, 2015, em http://www.bocc.ubi.pt/pag/gomes-marcelointerpretando-nelson-rodrigues.pdf. Hall, S. (2005). A identidade cultural da pós-modernidade. (10ª ed.). Rio de Janeiro. DP&A editora. Jannidis, F. (2012). Character. In The Living Boof Of Narratology. Acedido em Abril, 27, 2015, em http://www.lhn.uni-hamburg.de/article/character. Marcelino, A. B., Gothardo, J. & Vieira, M. C. (2014). A tela rodrigueana como palco das crônicas da "A Vida Como Ela É...": do literário ao audiovisual. Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Acedido em Março, 10, 2015, em http://www.intercom.org.br/sis/2014/resumos/ R9-1900-1.pdf. Margolin, U. (2005). Character. In D. Herman et. alii.(Eds.), Routledge Enclyclopedia of Narrative Theory (52-57). London: Routledge. 19

Macedo, R. G. & Melo, W. F (2008). O periódico Última Hora e sua relevância na história da mídia impressa brasileira. Associação Brasileira de Pesquisadores da História da Mídia (Alcar). Acedido Junho, 2, 2015, em http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontrosnacionais/6o-encontro-20081/O%20PERIODICO%20ULTIMA%20HORA%20E%20SUA%20RELEVANCIA%20NA% 20HISTORIA%20DA%20MIDIA.pdf. McRobbie, A. (2006). Pós-feminismo e cultura popular: Bridget Jones e o novo regime de gênero. In Curran, J, Morley, D. Media and Cultural Theory, (59-69). London/New York: Routlege. Mesquita, M. (1988). Deve & Haver. Lisboa: Distri Editora. Parker, R. G. (2009). Bodies, Pleasures and Passions: Sexual Culture in Contemporary Brazil. (2ª ed.). Nashville: Vanderbilt University Press. Pollock, G. (2002). A política da teoria: gerações e geografias na teoria feminista e na história das histórias de arte. In A. G. Macedo (org.), Género, Identidade e Desejo: Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo. Lisboa: Edições Cotovia. Reis, C. (2015). Pessoas de livro. Estudo sobre a personagem.Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. Rezende, M. I. M. (2006). “A vida como ela é...: um fenômeno comunicacional”. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Artes, Arquitetura e Comunicação – Universidade Estadual de São Paulo, Brasil. Rich, A. (2002). Notas para uma política da localização. In A. G. Macedo (org.), Género, Identidade e Desejo: Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo. Lisboa: Edições Cotovia. Rodrigues, N. (2012). A Vida Como Ela É.... (3ª ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

20

ANEXO

A Dama do Lotação (Nelson Rodrigues)

Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai. O velho, que

andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto: — Você aqui? A essa hora?

E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro: — Pois é, meu pai, pois é!

— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar

o jardim pelo vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba: — Meu pai, desconfio de minha mulher. Pânico do velho:

— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa? O filho riu, amargo:

— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas

coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.

Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer

suspeita, teve uma explosão:

— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão! Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou: — Imagine! Duvidar de Solange!

O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:

— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha mulher! Pela luz que me alumia,

eu mato, meu pai!

A suspeita

Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general,

em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange havia de tudo:

médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era "um amor"; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: "É um doce-de-coco". Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O velho e diabético general

poderia pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era

desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No 21

meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se

para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas já não

era o mesmo. Fez a exclamação interior: "Ora essa! Que graça!". A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco, Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois

que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:

— Conta o que houve, direitinho!

O filho contou. Então o general fez um escândalo:

— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!

Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão, o militar condescendeu em fazer

confidências:

— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive

ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!

A certeza

Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o

quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com

os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava "certo". Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente: — Ontem viajei no lotação com tua mulher. Mentiu sem motivo: — Ela me disse.

Em casa, depois do beijo na face, perguntou: — Tens visto o Assunção?

E ela, passando verniz nas unhas: — Nunca mais.

— Nem ontem?

— Nem ontem. E por que ontem? — Nada,

22

Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabinete, apanhou o revólver e o

embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete: — Vem cá um instantinho, Solange. — Vou já, meu filho. Berrou:

— Agora!

Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos fechou a porta, a chave. E mais:

pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:

— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à parede, perguntava: — Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!

Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive

particular; que todos os seus passos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o

amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver, completou:

— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!

A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando: — Não, ele não!

Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão selvagem. Mas ela o imobilizou, com

o grito:

— Ele não foi o único! Há outros! A dama do lotação

Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as

tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu

que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica: — Um mecânico?

Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou: — Sim.

Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o rapaz: "Eu desço contigo". O

pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura

23

inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os

motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?

Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano... Carlinhos berrou: "Basta! Chega!".

Em voz alta, fez o exagero melancólico:

— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!

O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse apenas o Assunção, mas eram tantos!

Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias,

quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos sentimentos e atos não

exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: "Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se

entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — "Sem calça! Deu

agora para andar sem calça, sua égua!". Empurrou-a com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer: — Morri para o mundo.

O defundo

Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem

os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na

porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:

— O jantar está na mesa.

Ele, sem se mexer, respondeu:

— Pela ultima vez: morri. Estou morto.

A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não

faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário,

sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia

seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.

24

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.