Entre o próximo e o distante: modernidade e tradição na produção de Alberto da Veiga Guignard.

June 15, 2017 | Autor: Taisa Palhares | Categoria: Modernism, Brazilian Art, Brazilian modernism
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Entre o próximo e o distante: modernidade e tradição na produção de Alberto da Veiga Guignard. Taisa Palhares (Curadora e pesquisadora, Pinacoteca do Estado de São Paulo)

Reconhecido como um dos mais importantes artistas modernos em atividade no Brasil na primeira metade do século 20, Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) se destacou principalmente por suas paisagens montanhosas de tom lírico que aludem às noites de festa de São João, e que foram pintadas em sua maioria nos dez últimos anos de sua vida [fig.1]. Artista de formação europeia, Guignard se fixa no Rio de Janeiro em 1929, quando as primeiras manifestações a favor da arte moderna já tinham ocorrido. Sua obra se desenvolve de modo concomitante ao chamado período de institucionalização e “rotinização” das linguagens modernas que se daria nas duas décadas subsequentes, momento em que se adensam as discussões em torno do nacionalismo, da identidade brasileira da arte moderna e de seu papel social. A primeira fase da recepção crítica de sua produção, com interpretações que perduram até hoje, será marcada por tal debate. Nossa apresentação irá apontar de maneira sucinta como essa recepção ajudou a forjar um visão da obra que de alguma maneira determina até mesmo um segundo momento de sua recepção, em si crítico em relação à ela. Ao abordar esses dois momentos do discurso, busca-se apontar como ambos deixam de lado um aspecto muito próprio de seu trabalho, que pensa a arte moderna não como ruptura com o passado, mas sim como sua atualização. O crítico de arte paraibano Ruben Navarra escreve em 1943, no ensaio “Iniciação à Pintura Brasileira Contemporânea” (texto originalmente elaborado para servir de apresentação da mostra de pintura moderna brasileira na Royal Academy of Art em Londres, em benefício da RAF em 1944/45) a seguinte interpretação sobre a posição de Guignard na história da arte moderna nacional:

Quando já tinham serenado as barricadas dos paulistas, Alberto da Veiga Guignard voltou da sua longa estadia na Europa, em cujas escolas de arte decorreu toda a sua juventude. Pois bem, Guignard que é dos pintores brasileiros o que recebeu mais longe formação europeia, é justamente um dos representantes mais autênticos do espírito regional da pintura brasileira. Dono de uma técnica apuradíssima nos anos de estudo na Europa, ele é, todavia, a negação do espírito de virtuosismo. Há na sua pintura uma espécie de ingenuidade que não vem da deficiência de técnica, mas do sentimento com que contempla a paisagem nativa, sobretudo a das velhas cidades de fisionomia colonial. Ele nos transporta evidentemente ao âmago do Brasil, e sua pintura tem uma nota enormemente enternecedora e íntima, cujo segredo é perceptível a qualquer coração brasileiro. Esse grande lírico é o primeiro nome de importância que encontramos na fase que poderíamos chamar de ‘post-modernismo’ (sic), indicando um caminho já consolidado.   Vale lembrar que nesse texto Navarra disserta sobre as origens e o desenvolvimento da arte moderna no Brasil, no momento em que, na sua opinião, ela parecia finalmente ter se estabelecido no país, pois chegamos, eu cito, “à existência incontestável de uma atmosfera brasileira em nossa pintura moderna – algo que nos fala da terra, do povo, da tradição humana, do cenário social, das luzes e cores dos trópicos” 1 . Do ponto de vista histórico, seria na fase de consolidação da arte moderna, que o artista desempenharia um papel de destaque. Pois naquele momento já havia se formado uma tradição moderna, a qual Guignard se junta um pouco tardiamente, sem ter participado propriamente de suas origens ou definição. Mas o que há de moderno em sua pintura? Por um lado, o regionalismo. Para Navarra, a singularidade da arte moderna brasileira é dada fundamentalmente por seu caráter regional, logo, um dos pontos                                                                                                                 1

Ruben NAVARRA. “Iniciação à pintura brasileira contemporânea”, in: PALHARES, Taisa (org.) Modernidade negociada: um recorte da arte brasileira nos anos 1940. São Paulo, Museu de Arte Moderna, 2006

principais do programa do movimento moderno teria sido a redescoberta do “Brasil nativo”. Seu regionalismo teria algo de sentimental, marcado pelo enternecimento e pelo intimismo, e falaria não à consciência crítica, mas ao coração. Por outro lado, destaca-se no seu caso o equilíbrio entre profundos conhecimentos técnicos e a ingenuidade de sentimento diante da paisagem e da realidade brasileiras. Para ele, a passagem da “formação europeia” à poética lírico-nacionalista teria se dado naturalmente e sem sobressaltos, quase num abandono da primeira em favor da segunda. Tal caminho é seguido por Lourival Gomes Machado quando utiliza a expressão “lirismo nacionalista” para definir a poética guignardiana em contraponto à estética nacionalista de Cândido Portinari, no seu ensaio “Retrato da arte moderna no Brasil” de 1945. A comparação entre os dois artistas ocorre porque eles seriam os dois mestres-fundadores do que chamaria de “Escola do Rio” 2, que nasce a partir da atuação, de ambos enquanto

professores

de

pintura

e

desenho,

respectivamente,

na

Universidade do Distrito Federal nos anos 1930. Machado acredita que Guignard tem uma visão do homem brasileiro como um ser de “bondade e candura”, o que o aproximaria ao romantismo. Ele teria recuado, eu cito “para o campo da técnica a sabedoria adquirida lá fora e penetrou no mais íntimo do brasileirismo de assunto e de sentimento” e continua “(...) a paisagem logo o atraiu e então são as igrejas, peroladas de lâmpadas de cor e coroadas de rojões e balões, que fazem um deslumbramento humilde que só a pureza é capaz de emprestar tamanho encanto. O seu lirismo nacionalista é passo legítimo da segunda fase do modernismo” 3. Para ambos os críticos, a singularidade da pintura de Guignard residiria na temática de sua obra e no “sentimento” por meio do qual é contemplada, sua visão pura, simples e emocionada do povo brasileiro. Seguindo essa visão, como notou o crítico de arte Ronaldo Brito, se fixa o conteúdo da obra (seus assuntos) para privilegiar, eu cito, “uma leitura literária e sublimante que esconde o processo de formalização de Guignard                                                                                                                 2

Lourival G. MACHADO, Retrato da arte moderna no Brasil. São Paulo: Departamento de Cultura, 1947. P. 63. 3 Idem, p. 64-65.

sob os clichês naturalistas de alegre, ingênuo etc”4, relegando ao segundo plano as questões propriamente de linguagem. É a partir da década de 1980 que discursos como de Brito procuram rever a obra de Guignard, ora problematizando-a, ora tentando compreender seu sentido no interior de um panorama mais complexo no qual a formação da modernidade no Brasil seria caracterizada por movimentos de avanço e recuo. A grosso modo esse segundo momento de recepção acredita que Guignard não poderia ser considerado moderno “no sentido rigoroso do termo”. Para Brito, o artista usa a liberdade moderna “um pouco à antiga”, na medida em que algumas características formais de sua pintura reatam com uma tradição que o impressionismo deixara para trás como, por exemplo, a conotação atmosférica das cores e a impregnação afetiva do assunto no próprio processo pictórico. Já para o crítico Rodrigo Naves, as contradições de sua obra se materializariam naquilo que ela produziu de mais original: sua espacialidade. Longe de querer retornar à concepção tradicional do espaço pictórico, Guignard também parece passar ao largo do espaço gerado segundo a rearticulação de planos fragmentados que foi estabelecida pelo Cubismo. É nessa ambiguidade espacial, no que chama de “espaço difuso” relutante a se afirmar, que residiria sua modernidade relativa, interpretada como uma dificuldade social própria do Brasil5. Para a crítica e historiadora Sônia Salzstein, a trajetória de Guignard será cunhada, eu cito, por “um misto de conservadorismo e renovação que marcam uma vida cultural precária, debatendo-se sob o fardo acadêmico e a letargia paroquial, mas afinal tentando consolidar sua própria experiência moderna”6. Neste sentido, sua modernidade surgiria “a posteriori” a partir de exigências internas à própria obra e passaria ao largo de um aprendizado e adoção de uma linguagem ou repertório “que se enfeixava sob a rubrica ‘moderno’”.                                                                                                                 4

Ronaldo BRITO, “Só olhar” in: Experiência crítica. São Paulo: CosacNaify, 2005. P. 155. Cf. Rodrigo NAVES, “O Brasil no ar: Guignard”, in: A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 6 Sônia SALZSTEIN, A questão moderna: impasses e perspectivas na arte brasileira, 1910 a 1950 (Tese de doutoramento). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2000. P. 65. 5

Se é certo que para cada um dos críticos supracitados os aspectos paradoxais da obra de Guignard terão um sentido específico, essas argumentações coincidem naquilo que apontam em seu trabalho como a ausência de uma dimensão reflexiva mais forte, a autoconsciência crítica que caracterizaria, numa chave formalista, a pintura moderna em seus lances mais radicais. Tendemos a concordar em parte com essas leituras, cujo lado positivo foi o de abrir a possibilidade de outra interpretação do trabalho de Guignard para além de seu viés nacionalista, alicerçado, como vimos, na ideia de uma visão pura e ingênua do Brasil. No entanto, ao enfocarem a “modernidade relativa” de seu trabalho, esses intérpretes talvez deixem de lado um aspecto que julgo fundamental para compreensão da poética guignardiana: sua perene relação com a tradição pictórica europeia. Seguindo as indicações do próprio artista, ao ser questionado sobre o sentido da pintura moderna, Guignard declara: “A verdadeira pintura moderna? Não é mais do que, em nossa época, seguir os passos da penetração artística deu um Leonardo da Vinci, de um Holbein, de um Goya (...) Já estamos longe de nos impressionar com as excentricidades do cubismo e de todos os ‘ismos’, porque já passaram, morreram e estão enterrados. A pintura surrealista que se deve ao espanhol Salvador Dali, não é mais nada do que um esforço de reintegração no caminho da pintura clássica – (...) em muitas obras de Pieter Brueghel e outros surrealistas de 1500...”7 . Sem podermos nos deter em todos os aspectos dessa afirmação – e apontar o quanto ela mantém relação com o ambiente artístico no qual Guignard se “formou”, a saber, o meio cultural da cidade de Munique nas duas primeiras décadas do século 20, ainda sob a influência das tendências secessionistas do final do século anterior, sobretudo na Academia – chamo atenção para o fato de que para ele a arte moderna está longe de partir duma tabula rasa a instituir uma ruptura total com o passado. Neste sentido, é importante perceber como esse discurso se manifesta na dinâmica constitutiva de seus trabalhos. Toma-se como exemplo suas                                                                                                                 7

Entrevista de Guignard a Raul de SÃO VICTOR, “A pintura moderna no Brasil”, jornal A Manhã, Rio de Janeiro, 01/01/1944.

paisagens, exatamente por serem consideradas como a parcela mais original de sua produção. É notável perceber o quanto a espacialidade de telas como Paisagem de Minas, 1940 (óleo sobre tela, 32 X 40 cm) [fig.2] é devedora da tradição da pintura de paisagem flamenga, cujos principais expoentes Guignard teve a oportunidade de estudar na coleção da Alte Pinakothek de Munique durante os anos em que lá viveu. Trata-se de pequenas paisagens montanhosas de artistas maneiristas como Jan Brueghel, o Velho (c. 1568-1625) ou de Joos de Momper (15641634/35), fundamentais para constituição e popularização desse gênero a partir do século 17, e que têm sua origem no trabalho de Pieter Brueghel, o Velho (c. 1525-1569). Essas pequenas pinturas se destacam pela fatura lisa, pelo contraste entre as figuras muito próximas em primeiro plano, desenhadas com um pincel bem fino e às vezes na forma de notação, e a vista distante ao fundo, intensificando a percepção de profundidade espacial [fig.3; 4; 5; 6). Há o recurso ao “enevoamento” das figuras representadas ao longe como forma de reforçar a profundidade, numa alternância entre cenas apresentadas de perto e vistas em forma de túnel que direcionam nosso olhar para o fundo distante, sendo por isso descritas como “vistas de longe e de 8

perto”

.Seus

horizontes

altos

determinam

uma

forma

de

Überschaulandschaft. Em termos de cor, a ilusão espacial é construída a partir da utilização do “esquema clássico tricolor” (tons castanhos para o primeiro plano, verde para o plano intermediário e azul para o fundo). A maneira “miniaturizada” como Guignard trabalha muitos dos seus elementos

em

primeiro

plano,

sejam

arquitetônicos

ou

humanos,

contrapostos às paisagens montanhosas de limites indefinidos ao fundo, parece querer alcançar o mesmo tipo de contraste espacial típico das paisagens flamengas. Por isso, podemos supor que nosso artista não teria se dedicado com tanto interesse às paisagens montanhosas que encontrou no Brasil se não conhecesse anteriormente toda essa tradição. Como nota Gombrich em um texto fundamental sobre a origem da paisagem, “para o pintor, por sua vez, nada pode tornar-se um motivo, exceto aquilo que ele pode assimilar ao vocabulário que já domina”; sendo assim “se Pieter                                                                                                                 8

Cf. Hans VLIEGHEN, Arte e arquitetura flamenga 1585-1700. São Paulo: CosacNaify, 2001.

P. 179.

Brueghel de fato achava inspiradores os picos dos Alpes, era porque a tradição da arte desses mestres provera-os com um símbolo visual propício à representação de rochas íngremes, permitindo-lhes apreciar essas formas na natureza” 9. Com isso, não queremos afirmar que Guignard gostaria simplesmente de “imitar” seus mestres ou adaptá-los à paisagem local. No entanto, perceber a dinâmica visual entre elementos tradicionais e modernos ajude a ampliar o entendimento de sua obra - já distante dos clichês nacionalistas, mas também de uma leitura que vê em sua forma uma modernidade não totalmente realizada. Pois, a meu ver, é na relação de proximidade e distância da tradição que o artista irá constituir sua poética moderna.

                                                                                                                9

E. H. GOMBRICH, Norma e forma. São Paulo: Martins Fontes, 1990. P. 154.    

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