Entre o riso e a história: um conto de Ronaldo Correia de Brito

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ENTRE O RISO E A HISTÓRIA: UM CONTO DE RONALDO CORREIA DE BRITO RAFAEL VOIGT LEANDRO1

A literatura do cearense Ronaldo Correia de Brito (1950-) finca fundas raízes no solo do neorrealismo de 1930. Evidências não faltam. Aqui, centro-me apenas em um vestígio deixado na breve narrativa “O dia em que Otacílio Mendes viu o sol”, publicado em Faca (2003)2. Esse rastro guarda relação com o ciclo econômico da borracha na Amazônia, bastante abastecido pela força de trabalho do Ceará e regiões adjacentes, situação histórica representada, por exemplo, em O quinze (1930), de Rachel de Queiroz, e Seara Vermelha (1946), de Jorge Amado. Ambientado em um sertão nordestino pressuposto, o enredo do conto de Correia de Brito mantém-se na tensão de uma expectativa de suicídio do protagonista Otacílio Mendes. Respira-se um ar cômico no desenrolar da trama. As investidas de Dolores Mendes contra o marido movimentam o caso, pelo incentivo dado ao suicídio, apontando como motivos: a traição ou a catinga do corpo de Otacílio. No meio do conto, um diálogo do casal parece ser um golpe de misericórdia: “- Otacílio, não vá -, pediu Dolores chorando. – Vou – e foi.” (p. 66) O que parecia ser a sentença de morte explica, entretanto, o espírito atarantado de Otacílio, prenhe de decisões extemporâneas. Em verdade, esse diálogo anuncia a incursão de Otacílio pelo ciclo da borracha amazônico, apenas por ter ouvido um homem dizer: “- Eu, se tivesse tanto dinheiro, iria ficar mais rico nos seringais do Amazonas”. A comicidade do fato é enganadora, especialmente pelas consequências de sua decisão: “(...) Já usava roupas esfarrapadas, quando partiu para voltar após três anos. Amarelo, tremendo de malária, uma crosta de grude no corpo que não largou nem raspada com telha.” (p. 67) O tipo cearense de Otacílio, por trás da figura cômica, traz em si esse capítulo trágico de sua existência. Pai de doze filhos, proprietário de terras e Doutor em Literatura Brasileira pela UnB. Professor de Língua Portuguesa no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). 2 BRITO, Ronaldo Correia de. Faca. Posfácio de Davi Arrigucci Jr. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2009. 1

rebanhos, constitui sujeito meio andrajoso, meio carnavalizado (com fantasia pela pobreza?). Essa dubiedade sugere o riso. Mas sua experiência na Amazônia – condensada em poucas linhas de um parágrafo - não nos leva a gargalhadas, ainda mais se bem compreendermos o valor simbólico e histórico dessa passagem. O deslocamento de Otacílio para os sertões amazônicos não amaina sua insatisfação com a ordem do mundo de seu torrão natal. A simples citação dessa partida torna-o representante de um mundaréu de trabalhadores “escravizados” no sistema brutal dos seringais dos confins do Eldorado. Sabemos que, em grande parte, esses trabalhadores eram provenientes do Nordeste. O tempo da narrativa não indica, mas o fato pode ter ocorrido no primeiro boom da borracha, na primeira década do século 20, ou no segundo, durante a II Guerra, com os “soldados da borracha”. A tal “crosta de grude no corpo” metaforiza um tempo histórico adensado nesse personagem, experiência temporal esta impossível de raspar ou desfazer, mesmo numa narrativa com estacas temporais ressequidas. O trauma histórico embrenha-se como um fardo no corpo de Otacílio. Pode-se suspeitar que dos seringais tenha trazido uma pulsão por tânatos, como se fosse um daqueles bonecos da malhação do Judas lançados nos rios amazônicos e tão bem descritos por Euclides da Cunha no conto “Judas Asvero”, de À margem da história (1909). Na volta ao tempo do suicídio irrealizável, a mulher e os filhos parecem impacientes por uma decisão do condenado que não assina sua própria sentença. Julgamento que valeria o destino de todos. O gosto pela morte era alimentado de modo doentio por Otacílio, tanto que dormia avistando um “caixão de defunto” que mandara fazer. Contudo, o defunto-vivo prefere não morrer. Quando menos se espera, quando a vida não espera mais vida e não cogita permanecer como uma “ameaça de morte”, vem a decisão de Otacílio num ensurdecedor estampido. Decidiu-se por matar a galinha intrusa que lhe fez companhia no quarto, transformando-a em iguaria para o almoço. E este instante epifânico traz Otacílio de volta à ordem normal da vida, com roupa limpa e um novo lugar ao sol no terreiro.

A reviravolta do enredo pode conceder a essa narrativa uma linhagem cômica. O humor evidente da história de Otacílio pode, sim, indicar traços de comédia na narrativa. O riso do leitor não pode prevalecer diante das sugestivas condições históricas que atravessam o discurso literário, como a assinalada pelo ciclo da borracha ou pelo novo rumo existencial escolhido por Otacílio. No terreiro da narrativa, num dia ensolarado, ao incauto leitor deve-se alertar que a boca do riso desvia a atenção do olhar. Agosto de 2015.

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