Entre os sons do reisado de Raimundo Branquinho, tradições e invenções.

October 5, 2017 | Autor: Laila Caddah | Categoria: Etnomusicology, Antropología cultural, Antropología Social, Antropología, Etnomusicologia
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IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste 04 a 07 de agosto de 2013 Fortaleza-CE

Grupo de Trabalho: GT 03 - Antropologia das Práticas Musicais Título do Trabalho: Entre os sons do reisado de Raimundo Branquinho, tradições e invenções.

Laila Ibiapina Caddah [email protected] Universidade Federal do Piauí

Entre os sons do reisado de Raimundo Branquinho, tradições e invenções Laila Ibiapina Caddah1 I Conforme Lévi-Strauss (1967), o etnólogo se interessa especialmente pelo que não é escrito, por aquilo que os homens não se preocuparam em fixar na pedra ou no papel. O estudo das manifestações do homem em uma comunidade deve promover a análise das relações entre seus elementos constitutivos no presente, ao tempo em que deve considerar o contexto no qual pesquisador e pesquisado se inserem. O trabalho deve compreender os processos dinâmicos nos quais indivíduo e sociedade se relacionam. (LéviStrauss, 1967). Estudar as manifestações musicais por um enfoque antropológico consiste justamente em considerar esta perspectiva ampla e relacional, que nos permita irmos além do registro, da transcrição e da análise de sons (Oliveira Pinto, 2011; Seeger, 2008). Para Seeger (2008, p.239), música inclui seres humanos, “é um sistema de comunicação que envolve sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se comunicam com outros membros”, é uma inter-relação envolvendo sujeitos que performam e uma audiência. Música é um fenômeno singularmente humano que existe somente em termos de interação social [...] Ela não existe e não pode existir por, a partir de e para si mesma [...] não pode ser definida como um fenômeno de som isolado, pois envolve o comportamento de indivíduos e de grupos de indivíduos, e sua organização particular exige o consentimento social de pessoas que decidem o que ela pode e o que não pode ser. (Merriam, 1964, p.27, tradução minha).

1

Mestranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Piauí, sob a orientação do prof. Dr. João Miguel Manzolillo Sautchuk.

Ainda que consideremos o som musical como sistema de partes integradas, reforça Merriam (1964), devemos atentar para o fato de que a música é produzida inevitavelmente por humanos para outros seres humanos em um contexto social e cultural. Portanto, como toda linguagem, a produção musical de uma localidade possui seus próprios códigos e não deve ser estudada

apenas

em

seus

aspectos

estéticos

e

formais,

mas

em

circunstâncias diversas (Oliveira Pinto, 2001; Seeger, 2008). Em nossa pesquisa intentamos estudar os sons e os processos criativos no reisado de Raimundo Branquinho, observando o diálogo entre tradições e invenções, analisando a música enquanto processo dinâmico que realiza trocas com o contexto social no qual se insere. O trabalho de campo foi realizado especialmente em três momentos: janeiro/2012, dezembro/2012 a janeiro/2013, e junho/2013. Durante a imersão na comunidade, participamos das jornadas e festas organizadas por mestre Branquinho, e acompanhamos o Boi Estrela em apresentações realizadas em Teresina. Fizemos também eventuais visitas nos meses intermitentes. A metodologia utilizada foi a da observação participante associada ao método da história oral, que preconiza a utilização de entrevistas e a análise de narrativas, possibilitando o acesso às elaborações que mestre Branquinho e os demais brincantes fazem de sua prática. O reisado Boi Estrela é liderado por Raimundo Branquinho na comunidade Boquinha, zona rural do município de Teresina. Consiste em uma prática musical que tem vivenciado contínuas transmutações. Ligado ao entretenimento e ao lazer, o Boi realiza apresentações especialmente no período dedicado ao Santo Reis, em dezembro e janeiro, e nas festas de São João, no mês de junho. Os recursos financeiros provêm especialmente da parceria com Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves (FMC) e das rendas próprias de Seu Branquinho, que é agricultor. A manutenção do reisado está profundamente associada a estratégias de sobrevivência daqueles que o fazem.

O povoado Boquinha localiza-se a aproximadamente 30 km do centro da cidade, com a qual realiza trocas que conferem um caráter liminar ao reisado, situado entre tradição e contemporaneidade, velho e novo, passado e presente, local e global. A cada ano, mudam os modos de viver, outras necessidades surgem e a brincadeira se reordena em novas formas e significados. Em um processo fluido, o Boi Estrela se transforma diariamente o que inclui a mudança em suas concepções e expressões musicais. O reisado se reconfigura a todo momento, tanto no decorrer das práticas ordinárias de seus participantes quanto nas ocasiões festivas, em interação com a audiência ou com as instituições de cultura. Branquinho diz que hoje em dia as pessoas estão diferentes, a exigência é outra, e que o público tem dado mais valor a coisas agoniadas. Para ele, o foco do reisado é a música que deve estar sempre adequada a sua audiência. As mudanças se dão em todos os aspectos e em grande velocidade. A cada visita que fazemos, Raimundo Branquinho tem uma novidade: a toada não é mais essa, vou reformar o galpão, essas palhas não servem mais, a roça secou, vou comprar uma sanfona, vou ganhar um violino, vou mudar tudo. E muda. Às vezes com uma transformação bem diferente daquela prevista, seja por conta do contexto ou da própria distância que separa o pensamento da ação. De acordo Magnani (1984), as festas e tradições populares são um espaço fecundo para análise de processos de mudança, tendo em vista que estruturas sociais, econômicas e políticas são expressas em valores e práticas cotidianas. Conforme Seeger (2008), nos últimos anos, tradições musicais específicas, especialmente a música popular, têm se constituído em um grande objeto de pesquisa interdisciplinar. No presente trabalho, procuramos expor uma interpretação

do

reisado

Boi

Estrela

fundamentada

especialmente

na

Antropologia Musical de Seeger (2003; 2004; 2008), estabelecendo relações entre formas, conteúdos e funções sociais na prática de mestre Raimundo Branquinho.

II No reisado Boi Estrela, texto e contexto se confundem. a música e a dança estão intimamente envolvidas em processos sociais humanos. Elas ganham e dão significados ao tempo, ao espaço, ao corpo e às suas partes, aos artefatos humanos, à experiência pessoal, à identidade social, às relações de produção e de status social. (Seeger, 2003, p.686, tradução minha)

Vistas dessa forma, música e dança são processos de significado social que vão além de aspectos meramente relacionados a sons e movimentos. Além do espaço e do tempo outros signos se fazem presentes na interpretação, na entonação, nos aspectos visuais, na espacialidade, nas expressões e linguagens corporais, nas sonoridades diversas da prática musical. (Oliveira Pinto, 2001). Assim sendo, Seeger (2003) e Oliveira Pinto (2001) chamam atenção para a performance, ressaltando a importância de documentarmos a música em seu contexto de execução, buscando a sonoridade geral do evento, em seu desenvolvimento imediato. É necessário quebramos as ideias estreitas do fenômeno musical, diz Oliveira Pinto (2001), devemos, portanto, estar abertos ao que o campo nos traz. Seeger (2003), ao analisar os processos musicais dos índios Suyá na região do Xingu, observa que eles normalmente não diferem os movimentos dos sons. A execução correta de uma performance depende ao mesmo tempo dos dois parâmetros, que são identificados em um único vocábulo: ngere. Assim, sons e movimentos podem ser diferenciados, mas de um modo bastante diferente dos usuais padrões europeus aos quais estamos acostumados. (Seeger, 2003). No caso específico do reisado Boi Estrela, a música e a dança fazem parte de um mesmo processo performático, que se dá em tempo real. Sons e os movimentos estão juntos na evolução de cada apresentação. O baião dos caretas, a dança da burrinha, a dança da piaba, a toada do boi - ou somente

o nome de cada um dos personagens: careta, burrinha, piaba, boi - identificam ao mesmo tempo a música e a dança a ser realizada. A performance como um todo, não é ensaiada coletivamente. No período em que acompanhamos o Boi Estrela, presenciamos esparsos encontros musicais e não ouvimos falar da realização de outros durante nossa ausência. O primeiro deles foi dia 05 de janeiro de 2012. Estavam presentes o mestre e dois tocadores, cada um deles com um cavaquinho. Branquinho sussurrava a toada do Boi e com as mãos indicava o andamento, enquanto os músicos o acompanhavam. Quase um ano depois, em 24 de dezembro de 2012, com Antonio Francisco na zabumba, Raimundo repassava as toadas para que Seu Vicente o seguisse na guitarra. Satisfeito, Branquinho disse: Ah, meu amigo, aqui ficou bom demais! Aí foi aprovado. [...] Agora que pena que não pode levar essa bicha nas costas. Branquinho referia-se à caixa de som, concluindo que a guitarra seria acrescentada ao reisado, mas não poderia acompanhar a jornada, visita às casas que antecede a festa de Santo Reis. Portanto, a participação do instrumento elétrico ficou restrita às apresentações no Shopping da Cidade de Teresina e no Espaço Cultural do povoado Boquinha. Restava saber que instrumento faria a melodia durante a caminhada na comunidade. Raimundo não poderia contar com os cavaquinhos do ano anterior, pois desaprovou o comportamento do músico dono dos instrumentos, que mora na Usina Santana (zona urbana mais próxima). Nem mesmo com a sanfona de João Erundino, que não poderia vir, pois estaria organizando sua festa em Buriti Alegre (município de Beneditinos) nos dias da peregrinação no Boquinha. Os violões da Escola Municipal estavam todos quebrados. Branquinho então decidiu procurar por um instrumento em Teresina e perguntou se eu poderia levá-lo de carro nessa busca. Falei que tinha um violão em casa e que poderíamos trazêlo. A notícia soou como um alívio e as expressões do mestre e de seu zabumbeiro saltaram de seus olhos: Por que não disse antes?! Fui então à Teresina e voltei com o novo instrumento para o reisado, meu velho violão.

Quando retornei da missão, na noite de 03 de janeiro de 2013, Raimundo Branquinho reuniu Seu Vicente e Antonio Francisco para passar o som. Seu Vicente mora ao lado e vem todos os dias ao Espaço Cultural Boi Estrela, galpão onde residem Branquinho e sua esposa Luisinha. Janta e assiste à televisão. De acordo com Luisinha, o bichim mora só [...] não é valente e é calado, veio do Ceará faz alguns anos à procura de trabalho. De vez em quando, presta serviços à empresa que tem realizado obras na estrada que liga a Usina Santana ao Boquinha. Em janeiro de 2012, tocou triângulo no reisado, mas diz que seu instrumento mesmo é a guitarra, porém no momento não está trabalhando com nenhuma banda. Antônio Francisco mora na Formosa, povoado situado a dois quilômetros, no sentido da Usina Santana. Foi aluno de percussão no projeto Casca Verde, coordenado pelo ator e diretor de teatro Chiquinho Pereira, realizado em parceria com a FMC e a Escola Municipal Areolino Leôncio da Silva, no Boquinha. Hoje, Francisco dá aulas na escola em que foi aluno. Durante o ensaio, assumiu a zabumba e o pandeiro, enquanto seu Vicente improvisou uma palheta e se manteve no violão. Raimundo Branquinho pegou o triângulo, percutindo algumas vezes. Todos tocam sentados. Chega Chiquinho, sobrinho de Valdênia que é mulher de Chico, filho mais velho de Branquinho e Luisinha, que mora no terreno aos fundos. O careta mirim veio atraído pelo som. Aproxima-se, observa e começa a dançar conforme a música. Na noite seguinte, em 04 de janeiro de 2013, iniciamos a jornada pelas casas. Seu Vicente não pode ir porque havia machucado o pé no trabalho. Antônio Francisco assumiu o violão e trouxe seu sobrinho da Formosa, Chiquinho, para tocar a zabumba. Branquinho levou o triângulo e o pandeiro. Na manhã do dia de Reis, 06 de janeiro, saímos para divulgar a festa no galpão. Enquanto dirijo o carro, ao meu lado Seu Branquinho anuncia no megafone: A festa de Santo Reis, hoje dia seis de janeiro na comunidade Boquinha [...] Essa festa tradicional [...] os caretas, os tocadores, a imagem de Santo Reis, a bandeira de Santo Reis [...] Quero a participação de todos vocês.

III Ao anunciar o reisado, Branquinho utiliza-se da linguagem conativa no intuito de chamar atenção, influenciar e convencer o receptor por meio do apelo, do convite à festa de Reis. Outro recurso também bastante empregado por Branquinho, mesmo durante os diálogos informais, é o uso de elementos anafóricos. Pela repetição seguida de palavras no início das frases, ele enfatiza o que diz, envolvendo e conquistando o ouvinte. Eis um trecho de seu pronunciamento no Shopping da Cidade de Teresina, em janeiro de 2012: Aí o exatamente é esse. A partir das oito horas da noite, quem tiver acesso à Usina Santana, chegue na festa de Santo Reis. Lá nós temos bolos de tapioca, nós temos galinha caipira, nós temos várias outras brincadeiras por lá, e nós temos uma noitada de alegria. [...] Então chegaram em casa, fizeram uma festa, os três reis magos, eles foram de burro, eles foram de cavalo, eles foram de todas as coisas. [...] então eu chamo Santo Rei, uma três pessoa em uma só pessoa. Então, obrigado vocês. Agora com vocês o Boi Estrela! A novidade aí. Som na caixa maetro!

Mais do que identificar os temas recorrentes, para Magnani (1984), devemos ir além da análise do conteúdo das falas, temos que observar os múltiplos e expressivos códigos. Buscar o essencial na fragmentação do discurso, no titubear, nos silêncios, nas redundâncias, no não dito, no gesto que acompanha, modifica ou substitui a palavra. Pois na narrativa, o corpo se expressa, ainda que as falas possam contradizer gestos, olhares e movimentos. As palavras, por sua vez, podem ser utilizadas mais pelo efeito sonoro do que pelo significado literal. Ao apresentar o grupo Boi Estrela no Shopping da Cidade, Branquinho fala ao microfone como se o alcance do dito fosse além da audiência, o que também verificamos durante a festa no galpão do Boquinha, na noite de Santo Reis. Para Magnani (1984), o fato de estar sendo ouvido fora de casa representa passagens entre seu pedaço e a sociedade mais ampla. Ao fazer o

pronunciamento, Raimundo exibe seus laços e sua identidade, produto de uma rede de relações. A audiência é o sinal de reconhecimento, o que lhe confere prestígio e poder. Desse modo, o público, além de participar do processo de construção imediata da performance, interfere continuamente na composição do reisado Boi Estrela. (LEACH, 1995; MAGNANI, 1984; SEEGER, 2004; TURNER, 1985). Em entrevista, Raimundo Branquinho nos disse que certa vez foi contratado para fazer uma apresentação particular a um profissional de dança. Conta que naquele instante inventou uma coisa totalmente diferente, sem que o pesquisador soubesse, para que este não o copiasse posteriormente. Conforme Seeger (2004), as músicas, danças e pronunciamentos são executados por sujeitos conscientes que criam e recriam sob circunstâncias únicas. As reinvenções no Boi Estrela se dão a todo instante. Situações diversas vão determinando sua configuração temporária em um processo dinâmico e interativo. Uma performance nunca será exatamente a mesma, diz Seeger (2004), seja em termos de som ou de movimento. Ainda “que se repita uma peça musical, ela nunca se faz ouvir de maneira idêntica à execução anterior”, pois a composição enquanto ideia pode ser repetida, mas não a sua realização no tempo, pois este mesmo já será outro (Oliveira Pinto, 2001, p.231). No reisado, os movimentos sonoros e coreográficos, os deslocamentos, são executados por sujeitos que se modificam em um processo cognitivo imediato. Uma apresentação feita pelo reisado Boi Estrela nunca será igual à outra. Independentemente das diferenças contextuais, das convicções daquilo que se quer mudar ou de se ter previamente ensaiado, sempre haverá a interação com a plateia, ainda que esta seja restrita. A reação e o acaso são elementos intangíveis, e nas apresentações escapam a qualquer planejamento. Somemos isto ao fato de que o Boi não realiza encontros regularmente, tampouco reúne o grupo todo antes de fazer uma apresentação, como dissemos anteriormente. A

música e a dança são executadas por seus integrantes de forma espontânea, o desempenho é instantâneo, a composição acontece em tempo real. muitos antropólogos são presos a falas e categorias. Mas em música e ritual, o importante é o desempenho, que faz com que as coisas aconteçam. O processo de fazer é a coisa importante [...] Quando falo em Antropologia Musical em Why Suyá Sing? é porque eu achava que o estudo da música, a atenção dada ao desempenho e a atenção às coisas acontecendo no momento da ação poderiam trazer coisas boas para a Antropologia. (Cohn et alli, 2007, p.409)

Seeger ressalta que a Antropologia já foi um pouco mais rígida, mas que agora incorporou a ideia de processo (Cohn et alli, 2007). A etnografia da música corresponde justamente a uma abordagem descritiva que vai além do registro escrito dos sons, que busca observar a forma como as sonoridades são concebidas e apreciadas, como elas influenciam e são influenciadas pelas relações sociais (Seeger, 2008). IV As apresentações do Boi Estrela são organizadas por Raimundo Branquinho. São realizadas nas casas, durante a jornada de reis, ou nos palcos, em eventos e festas. O mestre comanda o grupo e desempenha a função de cantador principal durante a performance. A música, intimamente ligada à dança, informa a entrada do reisado e de cada um dos personagens, bem como sinaliza a saída do grupo. As fontes sonoras estão presentes não apenas nos instrumentos, mas também no universo corporal dos participantes, nas suas indumentárias e acessórios. A audiência e os sons circundantes, também participam da construção da paisagem sonora. Durante a peregrinação na comunidade, é comum ouvirmos o relinchar de jumentos e o latir de cachorros, ruídos e sonoridades inesperadas que provocam reações nos dançarinos mascarados, os caretas, que são a grande atração do reisado.

A performance do reisado Boi Estrela é predominantemente masculina. O grupo é composto por um cantador, tocadores, dançadores e caretas, que moram na comunidade Boquinha ou em localidades adjacentes. Os participantes não são sempre os mesmos, variam conforme a disponibilidade, a aptidão e as concepções estéticas do mestre. Raimundo Branquinho acumula as funções de dono, cantador e coordenador do reisado. As letras das músicas são ditas de improviso e elaboradas com base em um repertório de versos e palavras que apresentam combinações variadas. Quando é prevista uma apresentação, a preocupação primeira de Branquinho é com os músicos, que o acompanham com os instrumentos, com a segunda voz e o coro. Entre os instrumentos que já ouvimos soar no Boi Estrela, destacamos: o cavaquinho, o violão, a guitarra, a sanfona, o triângulo, o pandeiro e o ganzá. Para Oliveira Pinto (2001), o grande compositor é aquele que impõe sua versão subjetiva sem ignorar as regras musicais. Consideramos improviso como sendo o desenvolvimento inesperado dentro do que é previsto (Oliveira Pinto, 2001). No reisado Boi Estrela, as variações se dão conforme o contexto da apresentação. As ocorrências durante a performance do reisado são aproveitadas e transformadas pelos seus intérpretes criadores. O improviso encontra lugar especialmente nas letras cantadas por Branquinho, nas músicas executadas pelos tocadores e nas danças dos bichos. Branquinho diz que, diferentemente do bumba meu boi que possui apenas uma toada, o reisado apresenta uma grande variação musical. Reforça que são oito toadas diferenciadas, o que exige criatividade por parte do compositor e maior responsabilidade sobre os músicos - os tocadores e o cantador. As toadas estão intrinsecamente ligadas aos personagens, que ganham vida com os dançadores, e mudam conforme a entrada de cada um deles. Em uma apresentação completa, esta costuma ser a sequência: Toada do Reisado, Dança da ema, Dança da piaba, Dança do jaraguá, Dança dos caretas,

Dança da burrinha, Toada do boi e Saída. Com exceção da burrinha, da piaba e dos caretas, todas as músicas são classificadas como xote. A primeira, conhecida como Reisado, é o canto de chegada, que assim começa: Ô de casa, ô de fora, menino vai ver quem é. É o tirador de reis e o divino São José. Raimundo Branquinho canta enquanto os caretas respondem, repetindo o final das frases. É também chamado xote dos reis. Em seguida vem a apresentação dos bichos, que dançam e animam a plateia. A toada da Ema, conforme Seu Branquinho é um xote tipo baião valseado. Sai a ema e entra a dança da Piaba que para o mestre soa como forró, enquanto que Antonio Francisco, diz tocar como xaxado. Depois vem a toada do Jaraguá que é um xote, como o da entrada. O ser encantado interage bastante com a plateia, assustando a todos com sua carcaça de jumento, provocando gritos e alvoroço, principalmente nas crianças. O auge da apresentação se dá com o baião dos caretas, um baião arrochadinho, para Branquinho, um xaxado para Antonio Francisco. Com suas roupas de palha e suas máscaras, os caretas são figuras animadas, brincalhonas e assustadoras. Durante a performance modificam o tom da voz, fazem jogo de palavras, emitem sons e ruídos, fazem movimentos e gestos rápidos, sacodem suas saias e mostram sua dança, misturando cerimônia e entretenimento (Seeger, 2004). Velhos ou mirins, respondem aos estímulos diversos, tirando piadas e emitindo roncos. Eles devem ao mesmo tempo falar, ouvir, movimentar-se, cantar, grunhir, e sempre provocando a plateia. O farfalhar das palhas combinado aos estalidos do sapateado, criam um ambiente sonoro singular no reisado. Para Raimundo Branquinho, uma qualidade essencial ao careta é o áudio, além de resistência e energia para dançar com vivacidade, ele precisa ter uma boa atuação no diálogo com o dono da casa e com o público. Após o alvoroço dos caretas, entra a Burrinha, com seu animado xaxado. Na sequência vem a esperada atração da noite: a dança do Boi Estrela, cuja toada é um xote. Ao final da apresentação, vem a Despedida, que pode ser

acompanhada por um xaxado. Segundo Branquinho, o modo como vai ser cantada e dançada, vai depender do palco, isto é, do contexto local, da plateia e das circunstâncias. V No dia 06 de janeiro de 2013, dia de Santo Reis, depois de termos seguido a jornada nas casas junto ao grupo, acompanhamos a festa do reisado no galpão do Boi Estrela. Assim como as apresentações, a festa é dirigida por Raimundo Branquinho e realizada com ajuda de seus familiares. As rotinas são modificadas e as atividades começam bem cedo. Às cinco e meia da manhã, Branquinho solta os foguetes. Agitado, fuma um cigarro e contabiliza moedas. Um cachorro passa por várias vezes tossindo engasgado. Branquinho procura por um cd para tocar e diz: Luisinha, acender o fogão! Começam a chegar os parentes, irmãs e sobrinhas de Luisinha que moram na Boa Vista, município de Demerval Lobão, que fica do outro lado do rio. Sentam e ficam conversando na cozinha. Branquinho começa a arrumação do galpão, colocando mesas e cadeiras próximas ao freezer. Põe em volume alto uma música tipo seresta. Pega o megafone e diz que vamos anunciar a procissão. A cada fala, um novo texto improvisado mencionando tradição, Santo Reis e reza. Aos poucos, as pessoas começam a chegar, vão sentando e tomando cerveja. O galpão exibe uma atmosfera de bar: som alto, pessoas entrando, bebidas nas mesas, conversas entusiasmadas. Quem serve é Seu Raimundo Branquinho que recebe a todos com simpatia em clima de popularidade. Ao cair da tarde, os últimos clientes do botequim se despedem enquanto começam a chegar os convidados para a festa de Santo Reis. Às 19 horas, o anfitrião diz: Vamos começar. Então pega o microfone, dá boa noite a todos e avisa que vai fazer visita das casas tradicionais. Acompanhado dos músicos e dos caretinhas, Branquinho parte para a casa de Seu Joca, pai de Valdênia, que também mora no terreno aos fundos. Luisinha leva o santo e sua sobrinha

Sandra, a bandeira. Fazem o canto de chegada e o baião apenas com os caretas mirins, que ao final recebem suas esmolas do dono da casa. Na saída, o mestre diz que vão apenas arrodear o terreno em procissão e voltar logo pra festa. Partem com Antonio Chico no violão, Chiquinho na zabumba e Alberto no triângulo. Chegando ao galpão, as pessoas estão distribuídos em núcleos diversos, umas em pé, algumas sentadas e outras transitando. Os espaços vão se configurando naturalmente. Luisinha põe o santo no altar, situado no final do salão, junto ao local da apresentação. Ao microfone, Seu Raimundo anuncia um baião para antes da reza. Em seguida, entra um careta adulto improvisado, acompanhado pelos músicos e caretinhas. Branquinho agoniado vai de um lado a outro e suspira: as rezadeiras estão atrasadas! Por fim, chega Dona Expedina, mãe de César que ano passado ajudou a arrumar a saia do Boi, e comanda a reza. As mulheres vão se aproximando aos poucos e as cantadeiras entoando: a nós descei divina luz. Nas mesas, a conversa continua, nos bancos também. Depois vão chegando mais mulheres, algumas crianças e esparsos homens para juntar-se ao canto. Encerrada a reza, algumas pessoas se dirigem individualmente o altar, fazem orações e colocam ofertas para o santo. Os visitantes da festa vêm de localidades diversas: Boa Vista, Extrema, Reboleira, Nova Olinda, Formosa, vila Dagmar Mazza e Dirceu (Teresina). Branquinho, ao microfone, convoca a todos para verem os caretas e anuncia o leilão. Luisinha o chama de bagunçado, pois onde já se viu misturar leilão com careta. Enquanto isso, seu Raimundo procura alguém para gritar o leilão. Não encontrando ninguém disposto, ele mesmo toma a frente e me chama pra ajudar. Inicia: Primeira joia! Um bolo de chocolate! Alguém da plateia responde: Nove reais. E Branquinho: Noooove reais!.A plateia continua a subir o preço, até que a joia é arrematada. O leilão segue. Após o leilão, já rouco, Raimundo Branquinho foi providenciar a apresentação, que durou aproximadamente quinze minutos. O Boi Estrela trouxe essa noite a seguinte formação: zabumba, guitarra e triângulo. Seu

Branquinho correu durante toda a festa, estando sempre atento a tudo. Acumulou vários papeis: foi mestre de cerimônias por toda a noite, visitou casa e fez caminhada com o reisado, apresentou os caretas, gritou o leilão e mostrou sua brincadeira. Depois da performance do Boi Estrela, começa a tocar a banda Texas do Forró. O grupo musical é da comunidade Boquinha e todos os componentes são de uma mesma família: o tio é tecladista e o sobrinho é vocalista. José, que cuida da mesa de som, disse que veio do povoado São Francisco, município de Pau D’Arco, e que também participou do projeto Casca Verde, anteriormente mencionado. Enquanto conversamos, Seu Branquinho, sorrindo e dançando, molha o chão do salão com um balde d’água pra não subir a poeira quando as pessoas começarem a dançar. A participação das mulheres no reisado é taciturna. Na comunidade, cabe a elas prepararem o altar no galpão para receber o Santo Reis na última noite da jornada, comandar a reza e o canto de chegada do santo ao altar. São responsáveis também pelo preparo das joias a serem leiloadas durante a festa: assado de porco, frango, carneiro e bolo. Durante a peregrinação, uma mulher conduz a imagem do santo e outra a ajuda carregando a bandeira. Esses objetos não são levados para as apresentações nos palcos, assim, em tais ocasiões as mulheres acompanham o grupo com a função exclusiva de ajudante. Em janeiro de 2012, o Boi Estrela realizou a peregrinação nas casas durante cinco dias, finalizando com a tradicional festa de Reis no dia seis de janeiro. Participaram da folia: o mestre, três tocadores, três caretas, um dançador para o boi, outro para a piaba, a burra e o jaraguá. O santo e a bandeira foram levados na maioria das vezes por mulheres. Cada um dos componentes apresentava seus papeis definidos, sendo que o mestre comandava a peregrinação e a festa como um todo, conforme já descrito na folia de 2013, agregando papeis de coordenador, dono do boi e cantador. Branquinho certa vez me disse: não tenho a memória de um cantador para repetir a música

do mesmo jeitinho que foi cantada. Assim, os versos são ditos de memória e de improviso. Em uma das visitas da jornada, um careta convidado cantou a pedido de Seu Raimundo, que estava sentindo a garganta. Porém os músicos criticaram a participação, não com palavras, mas com expressões e olhares de reprovação durante o desempenho do cantador, logo o mestre teve que retomar seu papel. VI Raimundo Branquinho diz que herdou a prática de reisado do pai e que inventou o Boi Estrela na comunidade Boquinha. As criações diárias, sua inventividade pulsante, corroboram seu pensar. Destaca uma diferença: o do meu pai é de promessa, o meu é tradição. Assim, o reisado Boi Estrela se reinventa por um fluxo permanente entre memórias e estratégias do viver. O fato de que sempre existirá uma próxima vez, aponta para o que podemos chamar de tradição. O fato de que a próxima vez não será nunca igual à vez anterior produz o que podemos chamar de mudança. As descrições desses eventos formam a base da etnografia da música. (Seeger, 2008, p.238)

A preocupação de Branquinho em manter a tradição do reisado, não consiste em reproduzi-la de forma igual, mas sim em fazer sua apresentação adequada ao momento e interessante ao público. O mestre aprende, digere e apreende o novo à sua maneira. Diz que todo ano modifica a prática, seja o formato dos bichos, os acessórios, a saia do boi, a decoração, a dança ou a música. O reisado Boi Estrela é movimento. Em visita recente, Branquinho me disse: Eu não falei que ia mudar tudo? Mostrou a piaba em novo formato, a nova cabeça da burrinha que fez com talo de buriti e a taca dos caretas secando ao sol - chicote feito de couro de boi esticado lambuzado com gordura. Exibe também as peças artesanais que está fazendo para decorar o galpão para o Festival de Folclore que está previsto para ser realizado no dia 24 de agosto, em parceria com a FMC. Necessidades e oportunidades também fazem parte desse processo de transmutação.

As escolhas musicais no Boi Estrela vão desde os instrumentos e composições, aos diversos elementos agregados à sua performance, como o farfalhar das palhas, o arrastar das saias, o estalar das chinelas e dos chicotes, o grunhir dos caretas, que unidos à ambiência local formam uma paisagem sonora própria ao reisado do Boquinha. As relações sociais se fazem presentes nos sons da brincadeira de Raimundo Branquinho. como a música e a dança, a vida social se mostra repleta de estruturas e repetições, cuja aprovação depende de sua significância para os atores e para as audiências, estando sujeitas a variações. Isso sugere uma oportunidade para uma abordagem musical e cinética da antropologia – na qual somos obrigadas a buscar a entender o sentido da repetição, as implicações da inovação e a emoção da participação. (Seeger, 2003, p.689)

A música do Boi Estrela, como o próprio reisado, não consiste em produto, mas em processo imbricado às pessoas que dela fazem parte. A vida social recria a performance musical. As invenções resignificam a tradição, tão dinâmica quanto o contexto no qual é produzida. O reinventar da música na vida diária corresponde ao reinventar das práticas e relações na comunidade, as quais se renovam em um processo dinâmico de trocas. O reisado muda por fazer sentido à comunidade a que pertence. A manifestação musical do Boi Estrela existe por sua capacidade de adaptação à contemporaneidade, por uma pulsação inerente ao tempo presente. (Seeger, 2004; Velho, 1978). Podemos registrar uma tradição e dizer como ela foi inventada naquele instante em que a presenciamos. Mas o conceito do que é esta expressão não é fixo, se renova a todo momento. As manifestações do homem estão imersas em um tempo imaginado, que muda a cada instante. Não podemos caracterizar o reisado de mestre Branquinho como sendo o que ele é. Podemos sim, preencher um formulário

descrevendo

o

número

de

componentes,

a

indumentária, a idade dos participantes, o roteiro das casas visitadas, o enredo da performance, as pessoas envolvidas, as funções de cada uma, as relações

entre elas, as tipologias musicais, as melodias, os ritmos e as letras das músicas. Posso interpretar e relacionar os dados, mas não posso dizer que o Boi Estrela é formado por doze pessoas, que possui um cantador, quatro músicos, três caretas velhos, três caretas mirins, dois dançadores de bicho. O tempo verbal que utilizamos refere-se apenas ao presente etnográfico. Quando voltarmos em outro momento, os dados já serão ultrapassados. Os papeis trocam e as pessoas se transformam, ou às vezes, nada tão visível acontece. Apenas alguma coisa muda. Um certo algo sublime, que não se pode capturar ou fixar no papel.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COHN, Clarice et alli. Entrevista: Por que canta Anthony Seeger? Revista de Antropologia,

São

Paulo,

v.50,

n.1,

jun.

2007.

Disponível

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