Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas Tata Nkosi Nambá (wanderson flor do nascimento)1

“Se queres saber quem sou, Se queres que te ensine o que sei, Deixa um pouco de ser o que tu és E esquece o que sabes”. (Tierno Bokar apud Hampâté Bâ, 2010, p. 212)

Palavras iniciais... Em um encontro de teólogas e teólogos de matrizes africanas e afroindígena, que lugar teriam as discussões sobre as filosofias africanas? Há alguma contribuição

que

as

filosofias

africanas

possam

trazer

para

a

melhor

compreensão e difusão das teologias afrocentradas? Gostaria de ter essas questões como pano de fundo para as considerações que trago aqui. E também gostaria de frisar que falo de um lugar específico: sou um iniciado no candomblé de angola, ocupando o cargo de tata ria Nkisi, (Pai pelo Nkisi). Essa tradição é bem diferente daquela que costumeiramente vemos nos Batuque do Rio Grande do Sul, ou mesmo nas imagens hegemônicas dos candomblés, que ressaltam as características de um dos cultos iorubanos que se consolidaram no Brasil. Por outro lado, sou um pesquisador acadêmico das filosofias africanas, sobretudo de origem bantu e iorubá. Nas duas posições, de iniciado e de pesquisador, falo desde vozes ocultadas, marginalizadas nos meios religiosos de matrizes africanas e na academia. E aqui evoco a intuição da

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Iniciado no candomblé de Nação Angola, Ndanji Kassanji, Nzo ria Ndandalunda – SP. Graduado, Especialista e Mestre em Filosofia e Doutor em Bioética pela Universidade de Brasília (UnB). Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Bioética da UnB.

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antropóloga Rita Laura Segato de que as margens nos oferecem locais interessantes para o pensamento. Isso significa que não partirei de imagens hegemônicas para pensar, mas de locais de resistência que se formam em torno das margens (a imagem das margens que resiste à força das águas e, ainda assim, as deixam passar, mantendo a existência do rio, me é cara!). O pensamento desde as margens não é um pensamento menor. É um pensamento de resistência, de força e de luta. Feitas estas advertências, parto para minha discussão com vocês.

O debate semelhante sobre as teologias e as filosofias africanas O atual debate sobre a existência de uma teologia africana coloca muitas questões interessantes para interrogar o modo como o ocidente pensa sobre o mundo. O mundo ocidental se apropria de experiências, palavras, noções e, a partir dessa apropriação, determina limites, fronteiras que deslegitimam aquilo que não se enquadra ao modo como essa apropriação determina que os fenômenos aconteçam. Observamos essa prática tanto no que diz respeito às teologias quanto às filosofias africanas. O ocidente forjou duas palavras que deveriam denominar um leque vasto de experiências, mas que finda por determinar critérios de exclusão sobre o que “cabe” e o que “não cabe” nessas experiências. A palavra filosofia (vinda do grego filen; filos – amizade/amigo e sophia – sabedoria) que deveria determinar toda e qualquer prática, tentativa de, através do pensamento, atribuir sentido e buscar compreender o mundo em seu funcionamento e fundamentos, isto é, ter amizade pela sabedoria, sem, no entanto, possui-la de modo definitivo. Até a Modernidade (o que corresponderia até, mais ou menos o Nkosi Nambá - Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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século XVI ou XVII), não havia uma preocupação forte em definir o que era a filosofia, pois não havia uma disputa sobre quem fazia ou não a filosofia. Não havia ainda a Europa ou a África como lugares “específicos”, não havia ainda a ideia atual de continente e, muito menos, de país. Um movimento semelhante ocorreu com a teologia, palavra que vem dos vocábulos gregos Theos (Deus ou divindade) e Logos (razão, discurso ou estudo). Também até a Modernidade não havia nenhuma polêmica acerca de quem fazia ou não teologia, ou seja, essa tarefa de tentar entender a divindade, seus desígnios, seus atributos, suas relações com o mundo e com os seres humanos. Mas o que faz da Modernidade um momento decisivo para que essas questões sobre a filosofia e a teologia sejam colocadas de modo crucial, definindo o modo europeu de pensar essas práticas como o único “legítimo” e aceito nos meios de prestígio? Foi na Modernidade que se instaurou um novo padrão de poder – chamado por Aníbal Quijano de Colonialidade – que estruturou os modos de pensar o mundo diferentemente do que se vinha pensando antes. A colonialidade é marcada por quatro eixos fundamentais: 1. A racialização das populações mundiais; 2. O direcionamento do trabalho para as estratégias de acumulação; 3. O estabelecimento da maneira europeia de produção de conhecimento como o único padrão legitimado; 4. O estabelecimento dos Estados-Nação como forma legítima

de

autoridade

coletiva.

(Quijano,

2006).

Nos

interessam,

aqui,

sobremaneira, os eixos 1 e 3. A racialização das populações funcionou como uma maneira de naturalizar as relações de opressão estabelecidas no início do processo de colonização do

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restante do mundo pelo “ocidente”. E a racialização funciona não apenas identificando as diferenças entre as pessoas, mas também hierarquizando essas diferenças. Com isso cria-se um sistema de classificação universal das populações do mundo, que atua de modo opressivo. As populações negras e indígenas, ao serem assim classificadas – pois antes da modernidade, ninguém chamava as pessoas que viviam nos continentes hoje chamados de África e América de “negros”, “índios” ou “indígenas” – são pensadas como intelectual, cultural, espiritual e ontologicamente inferiores aos bancos europeus. Por outro lado, o eurocentrismo, entendido como o estabelecimento da Europa como o centro da produção de conhecimento, cultura, economia, ciência, arte e religião – isto é, com a maneira localmente produzida de realizar essas atividades –, faz com que todas as populações que vivam fora do pequeno espaço que é conhecido como “Europa ocidental”, sejam portadoras de um tipo de

saber

inferior,

de

uma

interpretação

inferior

do

mundo,

de

uma

espiritualidade inferior, notadamente marcada pelo folclore e pela superstição, e não pela “verdade”. É, nesse cenário, que a filosofia e a teologia serão pensadas a partir das práticas europeias; pela primeira vez na história, marcadas por aquilo que é conhecido como colonialidade do saber (Quijano, 2010). Esta é definida como sendo a estruturação dos modos de se relacionar dos saberes de maneira que o conhecimento produzido e legitimado na Europa seja superior aos outros. Enquanto a Europa tem ciência, as outras partes do mundo, que não sigam os ditames europeus de produção de conhecimento e ciência, possuem crenças, superstições, folclores. Assim, as práticas de pensamento que não assumem o modo de tratados escritos, com um tipo específico de lógica argumentativa, que não assumem a história europeia da filosofia como marco canônico, não são Nkosi Nambá - Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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consideradas filosofias. Do mesmo modo, as práticas que tentam buscar a compreensão da divindade e das relações desta com os seres humanos e com o mundo que não sigam os ditames da revelação, que não assumam a recolecção dos dados da história europeia da teologia, que não assume o modo usual de espiritualidade dos países europeus que dominam o mundo (os cristianismos), não são consideradas teologias. E, considerando-se a história do ocidente, vemos que a teologia, aqui considerada sob a ótica da colonialidade do saber, foi atrelada à filosofia, a “verdadeira” filosofia, decretada pelas práticas europeias de produção do pensamento; de modo que só é válida a teologia que possa ser vinculada a essa tradição filosófica eurocêntrica. Por isso, me parece que as reflexões sobre a autenticidade filosófica do pensamento africano, que não refuta, mas alarga e enriquece a própria noção de filosofia são ricas para compreender as disputas políticas em torno da discussão sobre a autenticidade de uma teologia afro-centrada. Deste modo, entender o modo como funciona o debate sobre a filosofia africana, ajuda a entender o modo como o ocidente lida com a teologia afro-orientada e em que termos, aquilo que chamamos de colonialidade do saber é algo com o que temos de lidar cotidianamente nessas discussões.

A questão do plural e do singular Em vez de recolocar o problema da existência ou não da filosofia africana, seguirei a sugestão do pensador beninense Honorat Aguessy (1977, p. 103), quando propõe que é mais interessante observar elementos que contribuam para entender a concepção de mundo da África Tradicional que seguir a discussão Nkosi Nambá - Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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sobre a legitimidade das filosofias africanas (ou, quem sabe, das teologias afroorientadas). Este passo será importante em meu argumento para pensar em colaborações das filosofias africanas para as discussões em torno das teologias afro-centradas. De um modo geral, as percepções sobre as filosofias africanas tradicionais concordam que elas estão completamente inseridas no seio das culturas tradicionais africanas. Aqui a noção de tradicional está afirmada para fazer notar que há um variado conjunto de experiências culturais em África que foi atravessado pela experiência da colonização, de modo que há culturas coloniais em solo africano. E não é com essas experiências culturais coloniais/modernas que estabeleceremos nosso diálogo, mas com as experiências que resistem, se modificam, se rearticulam, apesar da colonização. Tradicional, portanto, não é apenas o antigo, mas o que se manteve em movimento, conservou-se em mudanças, diante das forças coloniais que construíram a África, tal como a conhecemos hoje (Mudimbe, 1988). Um dos principais problemas que surgem em torno de buscar entender o que seja “tradicional” no continente africano é exatamente a questão colocada sobre a existência de algum tipo de unidade cultural no vasto continente africano (Sow, 1977, p. 12). Muitos pensadores tradicionais africanos insistem na inexistência de uma unidade fundamental nas culturas africanas. Entretanto, essa inexistência é posicional: Ainda que exista uma única África, não há uma cultura tradicional que valha para toda ela. Ainda assim, existiriam, realmente, culturas tradicionais na África ao sul do Saaara? A resposta, certamente, é sim (Hampâté Bâ, 1975, p. 35).

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A inexistência de uma unidade fundamental, não impede daquilo que Aguessy chamou de “proprium africanum”, que tem a ver com o modo como os diversos povos do continente africano, tradicionalmente, têm articulado suas concepções de mundo (Aguessy, 1977, p. 96).

E aqui vemos que esse modo

próprio não apaga a diversidade e não deveria entravar seu reconhecimento; e essa diversidade, que se inscreve na natureza das coisas e no itinerário histórico dos povos, não poderia constituir um objetivo em si e, ainda menos, substituir-se à simbiose para a qual se tende (SOW, 1977, p. 21).

E é exatamente em função desse proprium, que podemos definir as filosofias tradicionais africanas (que mesmo em sua diversidade seguem sendo africanas) na diferença das filosofias produzidas no ocidente. Um dos elementos do proprium, e, talvez, sua característica fundamental é a oralidade. A oralidade não se torna central pelo desconhecimento da escrita, mas porque esta tem uma importância menor, não captando o movimento do pensar, do saber, do querer, das forças vitais (Aguessy, 1977, p. 108). No

esteio

da oralidade, encontramos, então, diversas práticas de

pensamento, filosofias, que se ancoram nas tradições que os povos africanos construíram em suas histórias. E é importante notar que pensar essas práticas no plural, deve manter o cuidado de levar em consideração os modos africanos de lidar com a diversidade e com a unidade, advindas da própria oralidade. O ocidente tem formas muito particulares, em função da colonialidade do saber, de pensar a diversidade e a unidade. E temos de evitar esse modo colonial de pensar seja a unidade, seja a diversidade, para pensarmos tanto nas filosofias africanas, quanto nas teologias afrocentradas.

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Os tratos coloniais do ocidente de lidar com a unidade tentem a pensá-la em termos de homogeneidade, de contraposição ao múltiplo. Isso coloca o trato com a unidade em esquemas de poder, em hierarquias opressivas. Tudo aquilo que não se adequa ao padrão homogêneo não pode ocupar lugares de dignidade no pensamento. O unitário, o uno, o mesmo, o contínuo é, para essa perspectiva, superior ao diverso, múltiplo, outro, descontínuo. Dessa maneira, a mesma estratégia colonial do ocidente pensa a diversidade

como

elemento

desmobilizador,

desarticulador,

enfraquecedor,

inferiorizador. Sobre esse aspecto, encontramos o diagnóstico em um encontro ocorrido em Abomey, atual Benin, em 1974, no qual pensadores reconhecidos e jovens de diversos países africanos e de outros lugares do mundo discutiam sobre as tradições culturais no continente negro; no relatório desse encontro encontramos a seguinte afirmação: alguns observadores estrangeiros não hesitam em ver nas diversidades um fator essencial de divisão. Eles têm mantido o hábito de apresentar aos africanos a multiplicidade de suas culturas como um espantalho, um obstáculo fundamental à sua reaproximação. Esses observadores estão, sobremaneira, preocupados quando não em difamar as culturas africanas, ao menos de marginalizá-las, isso quando não falam em subculturas. Eles têm deliberadamente insistido sobre as diferenças e os antagonismos, com o objetivo evidente de dividir os povos africanos. Eles, muitas vezes, têm sido capazes de impor seu próprio modo de pensar e de viver, em uma palavra, sua cultura (UNESCO, 1975, p. 101).

Assim vemos que os “estrangeiros” (os ocidentais) usam a o discurso da diversidade como modo de marginalização. Mas se os próprios mestres tradicionais afirmam indelevelmente a diversidade das culturas tradicionais, como nos posicionarmos sobre isso?

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Aqui, o apelo às próprias tradições pode nos auxiliar. O pensador malinês Amadou Hampâté Bâ (2010) nos recorda que a oralidade com sua estratégia fluida e rigorosa, ao mesmo tempo, mantém a tradição viva, em um movimento constante, ora apelando para significantes estáveis, ora abrindo espaços para a criação de novos sentidos e interpretações, múltiplos, plurais. Isso se dá, porque as estratégias de lidar com a unidade e com a multiplicidade nas tradições africanas são diametralmente opostas às do ocidente. Enquanto o ocidente busca a unificação para padronizar e estabelecer hierarquias

de

enfraquecimento

poder, e

o

normalmente

opressivas,

empobrecimento,

as

e



na

tradições

diversidade

africanas

o

usam,

estrategicamente, tanto a unidade como a diversidade com o intuito de integrar e criar. Para as tradições africanas, há momentos no qual a unidade deve ser evocada, na tentativa de escapar das armadilhas do disperso e do desunido, que empobrecem e há momentos no qual a diversidade deve ser evocada quando a homogeneização, armadilha do mesmo e do único, empobrece. E isso me faz entender um ditado banto – originário de Cabinda – que escuto desde minha infância, que afirma: “não há floresta boa com um tipo só de árvore”. Nesse cenário, é importante saber que tanto a unidade quanto a diversidade estão a nosso dispor, na medida em que buscamos amparo nas tradições africanas. O que não podemos fazer é vê-las como opostas, como ardilosamente nos propõe as estratégias coloniais do ocidente.

Ainda sobre o “proprium africanum” Uma vez feitas essas considerações, podemos voltar, sem medo de homogeneizações àquilo que Aguessy chamou de proprium africano, que estaria Nkosi Nambá - Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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presente, de modos diversos, nas mais variadas culturas tradicionais africanas e, portanto, na filosofias africanas. Desde minha experiência e estudos das tradições africanas, só posso lê-las a partir de meu próprio lugar de vivência dessas tradições. E desse lugar, que é pensado desde a experiência da diáspora, vejo alguns elementos que, visto de onde vejo, me parecem centrais para as tradições e filosofias africanas que herdamos do velho continente negro. Venho pensando que alguns elementos aparecem constantemente nas narrativas tradicionais e que constituem não apenas a visão de mundo das mais variadas populações tradicionais africanas, mas também seu modo de pensar, agir, projetar os futuros possíveis. Esses elementos são as específicas e diversas relações que se estabelecem, nas tradições africanas, com a comunidade, com a ancestralidade e com a natureza (flor do nascimento, 2012, p. 45). Dito de outra maneira, o fundamento do proprium africanum é seu modo de relação com esses elementos. É importante notar que todas as culturas do planeta estabelecem relações com a natureza, com a comunidade e com a ancestralidade, mas entendendo cada um desses elementos de modo diverso e mantendo relações também diferentes. O que parece marcar que é próprio do continente africano, no que diz respeito a esses elementos é uma forma articulada, integrada, contínua e desconectada de dualismos. Entendo aqui por dualismo, a percepção de mundo que pensa que ele tenha uma organização dupla, que origine uma espécie de dupla natureza, normalmente hierarquizada e que se apresenta como fonte do poder, do conhecimento e da ação. Normalmente os dualismos se expressam por meio de pares atritantes, como bem e mal, natureza e cultura, corpo e alma, céu e inferno etc. As culturas tradicionais africanas, tal como nos aparecem na Nkosi Nambá - Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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diáspora, operam sem essas dualidades, integrando aquilo que na perspectiva dualista parece dicotomizado. Pensar a relação com a natureza estabelecida pelas tradições africanas implica em reconhecer que a própria noção de natureza não pode ser desconectada da noção de cultura ou de história, como nos lembra Hampâté Bâ (2010, p. 184). O que é material, natural e o que é espiritual e histórico são duas dimensões do mesmo mundo, que em muitas narrativas tradicionais, aparecem como metades de uma cabaça única. Um interessante exemplo, para entendermos o modo como as culturas tradicionais se relacionam com a natureza, é visualizar alguns traços da ideia de pessoa que aparece em diversas tradições africanas. A pessoa é corpo, é natureza, é história, é cultura, é palavra. Não há uma ruptura entre história e natureza, quando se pensa a relação que a pessoa tem consigo mesma e com o mundo. O que estabelece uma diferenciação (sem quebra de "natureza") entre estes elementos é exatamente a relação que a comunidade estabelece com eles. Desta forma, a distinção entre natureza e história é contingencial, localizada e dinâmica. O corpo é a marca dessa dificuldade de separar a natureza da história. O corpo é, ao mesmo tempo, uma materialidade marcada por uma continuidade imemorial com o início do mundo das coisas, tendo carne, ossos, sangue, que partilham com o restante dos objetos seu caráter material e, também, histórico, na medida em que, decisões, os valores coletivos que constituem a comunidade e, mais tenuemente, as famílias, marcam um caráter histórico deste mesmo corpo (flor do nascimento, 2012). O ocidente tende a pensar uma dicotomia entre natureza e cultura ou história para afirmar que a natureza tem uma essência que não se modifica com facilidade, enquanto a cultura e a história são dinâmicas, fluidas. O que as tradições africanas pensam, de outro modo, é que Nkosi Nambá - Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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tanto

a

história

como

a

natureza

são

dinâmicas,

se

movimentam,

se

transformam; e isso é a essência da natureza: a dinâmica, o movimento. A

noção

de

comunidade

que

aparece

nas

tradições

africanas

é

radicalmente diferente do modo como a percebemos no ocidente, para o qual a comunidade aparece praticamente sempre contrastada com a percepção de individualidade. Para as tradições africanas há uma radical continuidade entre a comunidade e a individualidade: não há pessoas sem comunidade e não há comunidade sem pessoas. Como a imagem da cabaça com suas metades, vemos aqui uma espécie de dupla dimensão do mesmo fenômeno. Porém longe de indicar uma imposição da comunidade sobre o indivíduo, porque não há uma distinção nítida entre ambos, afirma-se, de modo radical, um processo de subjetivação colaborativa, onde a conexão solidária entre as pessoas é doadora de sentido para cada uma delas (Gbadegesin, 2005). A comunidade é imbricada nas pessoas e as pessoas são imbricadas na comunidade: ambas são completamente interligadas, assim como também a natureza e as comunidades são, também, integradas. O outro elemento central é a ancestralidade, que é a maneira como a história e a natureza, integradas, se manifestam através de seus filhos, criando e gerindo a tradição, mantendo e modificando o mundo. A ancestralidade é, além da relação que se estabelece com os ancestrais, também um esquema de continuidade que atribui sentido – a partir do presente – ao passado, que confere contornos à memória, criando as condições de que projetemos futuros. A ancestralidade, para as tradições africanas, aparece como um dos fundamentos da cultura que, seguindo a movimentação ancestral, é sempre dinâmica. A ancestralidade é sempre uma experiência relacional, que liga, inclui e se move na perspectiva da multiplicidade – haja vista que somos herdeiros de diversos Nkosi Nambá - Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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ancestrais. A memória, espelho da ancestralidade, em uma movimentação vinculante com a palavra falada, apresenta-se como uma manifestação da história que não cessa de mover-se tanto em direção ao passado, quanto ao futuro, com os pés orientados pelo presente. O mundo, a vida, a existência são lidos pela ótica desta ancestralidade (flor do nascimento, 2012). Esta ancestralidade – inscrevendo-se no corpo-história, no corpo-memória e no corpo-matéria da comunidade e das individualidades – forja sujeitos nessa trama que enreda natureza e comunidade, figurando assim, como “um modo de interpretar e produzir a realidade” (Oliveira, 2007, p. 257). As pessoas vão surgindo continuamente (e não apenas porque as pessoas não cessam de aparecer, mas porque elas jamais estão plenamente prontas), vão se formando em um processo sem fim; assim como interminável é a história que mantém viva a tradição e os projetos de futuro (flor do nascimento, 2012). A especificidade dos modos de relação com a natureza, a comunidade e a ancestralidade não implica que cada tradição africana tenha uma única e exata maneira de lidar com esses elementos. Essa especificidade é uma espécie de balizador comum, que permite variações em suas práticas concretas, mas que mantém sentidos partilhados. Embora sejam pontos mínimos em quantidade, são absolutamente fundamentais em importância. E, por isso, devemos valorálos em nossas tentativas de entender o proprium africanun que consubstancia o pensamento, as filosofias, as teologias afro-orientadas. As filosofias africanas explicitam as visões de mundo das tradições a partir desses elementos articulados entre si. E muitas vezes, por isso, são vistas pelo ocidente racionalista/dualista como um sistema de pensamento folclórico ou apenas místico e sem rigor. Certamente, para uma tradição (a ocidental) – que só consegue pensar em termos duais, opondo a razão ao mito, à fantasia, ao Nkosi Nambá - Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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místico – as filosofias africanas não podem ser outra coisa que uma manifestação do misticismo, sendo, em virtude disso, inferior (se puder, por fim, ser chamada de “filosofia”). Por sorte, nós, que experienciamos as tradições africanas, não precisamos ter uma mentalidade tão redutivista.

Considerações finais Retomando o debate das contribuições que as discussões sobre as filosofias africanas podem trazer à discussão sobre o estatuto das filosofias teologias afro-centradas, gostaria de lembrar que a compreensão do contexto da colonialidade do saber é fundamental. Da mesma forma que há uma racialização (e, portanto, inferiorização) do pensamento africano, há também uma inferiorização das teologias que estejam desconectadas do modo eurocêntrico de fazer teologia. Entender esse contexto é importantíssimo para poder desarticulá-lo e construir, criticamente, outros espaços para as nossas maneiras de fazer filosofia e teologia. Algumas das questões que me são frequentemente feitas quando discuto as filosofias africanas são “Por que insistir em chamar de filosofia a uma prática de pensamento que parece mais interessante, mais abrangente e menos limitada, já que se sabe que o ocidente chama de filosofia a uma coisa tão mais restrita? Não seria melhor chamar de outra coisa? Por que não apenas vangloriar a ideia do ‘pensamento africano’ em vez da ideia de ‘filosofia africana’?” Penso que, em alguma medida essas questões poderiam – se, de fato não o for – ser colocadas para alguém que queira discutir a teologia afro-orientada. Nesse tipo de discussão, para nós da tradição, não está em jogo se o que fazemos tem legitimidade ou não. A questão parece estar ligada com o conflito que se instaura nos locais de prestígio que definem o que tem e o que não tem status de filosófico ou teológico. Não são as pessoas das comunidades tradicionais de matrizes africanas que se perguntam se o pensamento africano é ou não filosófico ou se as maneiras como buscamos entender e fundamentar as relações entre as divindades e os seres humanos é teológica ou não. No momento político de pensar a formação de professoras e professores de filosofia Nkosi Nambá - Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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de teólogas e teólogos – o que, no ocidente, se dá no âmbito da academia – essas questões emergem de modo contundente e tendem a afastar a possibilidade de reconhecimento filosófico e teológico do que fazemos. É

nesse

cenário

que

entender

os

modos

de

legitimação

se

faz

absolutamente fundamental. Ter bons argumentos, conhecer a estratégia dos poderes legitimadores é muito importante. Não porque as tradições precisem da legitimação ocidental, mas porque, no jogo de prestígio, é essencial que possamos nos munir de instrumentos para transitar por esses espaços que são importantes em função dos poderes que neles circulam, mas também porque isso implica acesso a outras frentes de articulação. Hoje com a criação de cursos de teologia (que sistematicamente excluem em seus currículos os saberes e tradições teológicos africanos por não julgar teológico o que fazemos) vemos a criação de outros espaços de prestígio que funcionam de modo a decidir que espaços nossas tradições podem ou não ocupar. A afirmação de uma imagem excludente de teologia é algo preocupante, nesse cenário. O mesmo se dá com o reconhecimento das filosofias africanas. No contexto da implementação do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, introduzido pela lei 10.639/2003 e modificado pela lei 11.645/2008, vemos que o pensamento africano tem sido deixado de fora da discussão no âmbito do ensino de filosofia, o que faz com que toda a discussão filosófica

africana

seja

marginalizada

e,

também,

que

a

filosofia

se

descomprometa com a determinação da lei em discutir, como componente obrigatório dos currículos escolares dos ensinos fundamental e médio, elementos da história e cultura africana e afro-brasileira. O que está, aí, novamente em jogo, é o poder de legitimação e afirmação de algo como digno de ter o nome dado pelo ocidente. A discussão que vem sendo travada em torno das filosofias africanas tem uma historicidade mais antiga no que diz respeito à tentativa de implementação do referido artigo da LDB. Infelizmente, não se tem avançado muito no que diz respeito ao reconhecimento da filosofia africana no cenário da busca do cumprimento da lei, fato que deve-se muito mais à resistência racista, à falta de formação que impede que qualquer coisa que tenha ligação com o continente africano seja reconhecido para além do caráter folclórico ou estereotipado. Nesse Nkosi Nambá - Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas

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meio tempo, a tentativa que as pensadoras e pensadores das filosofias africanas no Brasil têm conseguido fazer um bom diagnóstico do cenário e buscar algumas alternativas

que

têm

surtido

efeitos

interessantes, embora

ainda

pouco

expressivos no contexto nacional. E, talvez, a história e o contexto dessa movimentação nacional em torno da introdução das filosofias africanas no ensino de filosofia, no que ela mostra de possibilidades de avanços, possam ser uma interessante contribuição para o processo, que a mim parece semelhante, de legitimação das teologias afrocentradas.

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