Entre velhos e novos sentidos: \"povo\" e \"povos\" no mundo Iberoamericano

July 8, 2017 | Autor: Fátima Sá | Categoria: Conceptual History
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Entre velhos e novos sentidos: “povo” e “povos” no mundo ibero-americano, 1750–1850

por Fátima Sá e Melo Ferreira

Abstract. – This article is based on the texts about the concept of “people/peoples” within the project “Iberconceptos”. It presents a comparative study of the semantic changes of this concept in nine countries of the Iberian Atlantic world between 1750 and 1850. The most important caesura in the evolution of the use of the concept – moving it from the margins to the centre of the political vocabulary – are the years 1808–1810, when the Napoleonic invasions lead to the abdiction of the Spanish king, the exile of the Portuguese court and king in Brazil, and the beginning of the independence movements in Spanish America as effect of the kingdom’s acephaly. In the wake of these events, the double concept “povo”/“povos” functions as a legitimising factor of the political transformations towards representative regimes. The often conflictual use of the concept in its singular and plural forms is particularily revealing in Spanish America with its socially and ethnically diverse societies and the struggle between centralistic and federal projects.

Introdução No início do ensaio que, no quadro do projecto “Iberconceptos”, consagra às transformações experimentadas pelo termo “povo” em Espanha entre 1750 e 1850, Juan Francisco Fuentes destaca uma linha de evolução que considera uma direcção maior nesse caminho: “[...] su desplazamiento de los márgenes del vocabulario político y social hacia el centro mismo del discurso político”.1 Para uma discussão mais alargada de “povo” enquanto categoria histórica: Hélène Desbrousses/Bernard Peloille/Gerard Raulet (dirs.), Le Peuple. Figures et concepts. Entre identité et souveraineté (Paris 2003). Ver também a entrada “pueblo” de autoria de 1

Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas 45 © Böhlau Verlag Köln/Weimar/Wien 2008

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Poder-se-ia fazer um balanço semelhante do conjunto dos nove ensaios relativos aos rumos prosseguidos pelo termo “povo” no mundo ibero-americano no período considerado que servem de base a este texto: ensaios propostos por Noemí Goldman e Gabriel Di Meglio (Argentina/Rio de la Plata); Luísa Rauter Pereira (Brasil); Marcos Fernández Labbé (Chile); Margarita Garrido Otoya e Marta Lux Martelo (Colômbia/Nueva Granada), Juan Francisco Fuentes (Espanha); Eugenia Roldán Vera (México); Cristóbal Aljovín de Losada (Peru); Fátima Sá Melo Ferreira (Portugal); e Ezio Serrano (Venezuela).2 Nessa mudança de posição das margens para o centro, dotada de enormes implicações, o termo “povo” não está isolado. Alguns termos que participam igualmente do novo léxico político em construção no mundo ibero-americano – tais como “direitos”, “cidadania”, “opinião publica”, entre outros – que mantêm com ele relações próximas, como notaram Margarida Garrido Otoya e Marta Lux Martelo no texto que consagraram às transformações do vocábulo em Nueva Granada, adquiriram também uma nova centralidade neste período para além de terem sido investidos de sentidos radicalmente novos. A particularidade de “povo” neste panorama de profundas transformações semânticas resulta no entanto evidente em termos comparativos na medida em que o próprio termo – ou termos dele derivados, como “popular” – serve frequentemente para precisar a acepção específica de alguns desses outros vocábulos. Fala-se assim de “direitos do povo” ou “dos povos”, de “soberania popular”, sem esquecer a notável imbricação entre “povo” e “público” que a expressão “opinião pública” contém.3 Esses sintagmas revelam eloquentemente uma característica do termo “povo” que está na base da peculiaridade do seu trajecto das margens para o centro do vocabulário político: o papel que irá desempenhar enquanto instância legitimadora do processo de refundação social e política que afecta a Europa e as Américas no fim do século XVIII e no início do século XIX. Juan Francisco Fuentes em Javier Fernández Sebastián/Juan Francisco Fuentes (dirs.), Diccionario político y social del siglo XIX español (Madrid 2002). 2 Para não multiplicer as notas de rodapé estes escritos são citados dentro do texto e do seguinte modo: Apelido, País. 3 Ver François-Xavier Guerra, “‘Voces del pueblo’. Redes de comunicación y orígenes de la opinión en el mundo hispánico, 1808–1814”: Revista de Indias LXII, 225 (2002), pp. 357–384.

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Ainda que se tenham registado múltiplas formas de convivência e contaminação entre antigos e novos sentidos, e por muito que esses cruzamentos tenham sido duradouros, o movimento de ressemantização do termo “povo”, que o trouxe para o centro do discurso político, ficou indelevelmente ligado à necessidade de dotar de legitimidade a ruptura com o antigo regime e com a respectiva concepção da soberania. Se considerarmos mais especificamente o mundo ibero-americano, devemos reconhecer que, ainda que novos sentidos se anunciem já durante boa parte do século XVIII – ligados ao pensamento ilustrado primeiro, e depois aos ecos produzidos pela revolução francesa – é no período compreendido entre as crises dos antigos regimes ibéricos, as primeiras revoluções liberais e os processos de emancipação das Américas que deve ser situada a ruptura nos usos convencionais do termo. O início do período situar-se-ia nos anos de 1808/1810, remetendo estas datas para a quebra da monarquia espanhola depois dos acordos de Bayonne, para a transferência do rei e da corte portuguesa para o Brasil e para o início dos processos de independência na América espanhola. A partir deste período não só se consagram sentidos do vocábulo “povo” que se distinguem de forma bastante radical de muitos dos seus antigos usos – embora, como sublinha Marcos Fernández Labbé, autor do texto consagrado ao Chile, o percurso aqui considerado não tenha sido apenas pautado pela ruptura mas também pela continuidade – mas ele passa a inscrever-se no discurso político com uma nova vitalidade quer no singular “povo” quer no plural “povos”. Com efeito, com excepção da Espanha, de Portugal e, no outro lado do Atlântico, do Brasil, o plural “povos” foi, nestes anos de profundas rupturas políticas, usado com insistência comparável à do singular como argumento legitimador da nova ordem de coisas que a crise da monarquia espanhola contribuiu decisivamente para desencadear. Porém, ao contrário do que ocorre com o singular, a vitalidade, também ela nova, alcançada pelo plural “povos” será de duração mais curta, não se podendo observar aqui o fenómeno de permanência ao longo da segunda metade do século XIX no novo lugar ocupado no vocabulário político e social que Francisco Fuentes referiu para “povo” no singular (Fuentes, Espanha). Uma outra direcção a considerar na evolução deste termo de 1750 a 1850 seria a da “ascensão e queda” do plural “povos” enquanto forma de designação de unidades básicas de legitimidade do poder sobe-

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rano – um poder que poderia regressar aos “povos” na ausência dos reis legítimos segundo as concepções pactistas que estão na base da doutrina, uma doutrina usada e abundantemente reinventada no início dos processos de emancipação da América espanhola. Mas a vitalidade do plural “povos” não se limitará, em vários dos novos espaços políticos aqui considerados, ao período das independências. Para lá das independências, o uso do plural irá marcar espaços de confronto entre projectos federativos ou confederativos e projectos unitaristas da ordem política em construção, confronto no qual o termo “povos” sustentará uma concepção plural da soberania oposta à concepção centralista de uma soberania única. Os termos “povo” e “povos” serão esgrimidos como fundamento de concepções opostas de soberania em toda essa área na primeira metade do século XIX e estão claramente inscritos na construção política de países como a Argentina, o Chile, a Colômbia, o México, o Peru e a Venezuela, embora em graus possivelmente distintos. Como este confronto foi geralmente vencido pelas concepções e práticas unitaristas de governo, não é de estranhar que, nos meados do século XIX, essa vitória seja expressa na afirmação do singular e na sua posterior hegemonia. Não será, assim, errado considerar a redução do plural ao singular como uma outra direcção maior na evolução do vocábulo no espaço da antiga América espanhola; uma evolução que Noemí Goldman e Gabriel Di Meglio exprimiram com grande clareza para o Rio de la Plata ao afirmarem que, depois da queda de Rosas em 1852, o termo “povo” seria marcado por “un desplazamiento semántico sustancial” caracterizado por “el pasaje de un concepto plural a uno unívoco” (Goldman/Meglio, Argentina). Cabe lembrar que esta outra “direcção”, passível de ser encontrada no caminho seguido pelo termo “povo” no espaço de tempo agora considerado, grosso modo o período de 1808/1810 a 1850, não deve ser vista como o resultado de uma evolução linear em que da configuração antiga e plural do termo, no contexto da concepção pactista de soberania, se teria passado, “naturalmente”, ao sentido político moderno e singular; sentido que se poderia caracterizar, como o faz Eugenia Roldán Vera no seu ensaio sobre o México, como o de “el conjunto de ciudadanos individuales e iguales ante la ley que ejercen su soberanía a través de los órganos de representación” (Roldán, México). Não se trata, na realidade, ao falar de “direcção”, de a entender no sentido de trajectória única que, como uma flecha certeira, nos levasse do antigo regime à modernidade e do plural “povos” ao sin-

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gular “povo”, nem apenas de considerar a coexistência entre velhos e novos sentidos, mas de ter também em conta os sentidos revitalizados pela conjuntura, como os que estão presentes em “povos”, que se afirmaram conflituosamente durante algumas décadas mas que não prosperaram ou foram derrotados por outros. Uma outra expressão destes fenómenos de conflito e concorrência não inteiramente resolvida no período observado encontra-se também nesse outro eixo conflitual que marcará todos os espaços aqui considerados, europeus e americanos, ainda que com configurações e resultados diferentes, que é a tensão que se verifica entre “povo” e “plebe” ou, melhor dizendo, a que resulta do desafio que a doutrina da soberania popular coloca às dimensões mais sociológicas do termo “povo”. Essa tensão, como a grande maioria dos textos que nos servem de base permite constatar, existe já em termos semânticos no século XVIII, mas ganhará posteriormente novas formas e dimensões tanto mais importantes quanto o apelo ao “povo” se generaliza no discurso político e o “povo” passa a ser entendido como fonte de soberania. Depois das rupturas representadas pela instauração na península ibérica de regimes monárquico-constitucionais e pelas independências americanas, essa tensão passará a constituir um importante eixo do debate entre “moderados” e “exaltados” ou “conservadores” e “liberais” na maior parte dos países considerados. Os pólos “povo/povos” e “povo/plebe” apresentam-se, assim, como os principais núcleos de tensão por que passa a ressemantização do termo no período analisado, se não na totalidade pelo menos na maioria dos espaços considerados, e devem por isso ser destacados. Destacada a ideia de um percurso não linear de ressemantização do termo “povo” do antigo regime à modernidade, deve-se acrescentar ainda uma outra noção: a de que o espaço desse percurso se desenrola entre dois limites temporais que não podem, também eles, ser tidos por estáveis, embora a historicização do termo nos imponha em parte essa ficção. “Povo” e “povos” no final dos antigos regimes europeus e coloniais

O pressuposto de alguma estabilidade no ponto de partida é, no entanto, importante de considerar, já que nos permite percepcionar não

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só as transformações do período de que nos ocupamos mas também as linhas de convergência e divergência dos caminhos prosseguidos pelo termo “povo” nos vários espaços considerados. Utilizando os materiais que os ensaios analisados nos fornecem sobre esse ponto de partida, a situar nos meados do século XVIII, deparamonos com duas situações bastante distintas de acordo com as fontes utilizados. A primeira manifesta-se na homogeneidade de sentidos do termo “povo” no espaço ibero-americano tendo em conta os significados codificados nos dicionários; uma homogeneidade que não deve surpreender e que advém do facto de os dicionários utilizados serem os mesmos dos dois lados do Atlântico, como sucede com o Diccionario de la lengua castellana de la Real Academia Española (DRAE) nas suas várias edições no caso do universo hispano-falante, e com o Dicionário de Língua Portuguesa [...] de António de Moraes Silva para Portugal e para o Brasil. A segunda aponta para usos discursivos diferenciados, apesar da existência deste núcleo comum, correspondendo às realidades plurais que separavam os contextos peninsulares dos contextos americanos. De notar também que, embora com algumas pequenas diferenças, existe igualmente uma notável confluência entre os dicionários espanhóis e portugueses nesta mesma época. Para melhor percebermos estes pontos de partida comuns podemos utilizar algumas definições. Considerando a edição de 1780 do Diccionario de la lengua Castellana [...] da RAE, Marcos Fernández Labbé escreve: “De esa forma Pueblo será entendido a la vez como el lugar poblado de gente, como el conjunto de habitantes, y en particular aquellos definidos como ‘la gente común y ordinaria de alguna ciudad, o población, a distinción de los nobles’”.

Faze notar que la “noción social de Pueblo” estava vinculada a “lo más despreciable de la República, la gente baja de poca estimación, el vulgo o plebe [...]” (Fernández, Chile). Dois dos três sentidos referidos, o sentido territorial ou demográfico e o que poderíamos designar como social, podem ser encontrados em termos não muito distintos na primeira edição do Dicionário de Moraes Silva de 1789, que regista no início da entrada: “Povo, s. m. os moradores da Cidade, vila, ou lugar. § Povo miúdo, a plebe, gentalha. § Nação, gente”. Na edição de 1813 do mesmo Dicionário explicar-se-á também que “[...] plebe significa precisamente o povo miúdo e gentalha, o mais baixo do povo”. Por outro lado, o signifi-

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cado repetido sucessivamente de “nação”, que encontramos em múltiplas edições do “Moraes”, é confluente com um dos referidos no Diccionario Castellano con las voces de Ciencias y Artes de 1786–1788, citado por Cristóbal Aljovín de Losada: “nombre colectivo, conjunto de muchas personas que habitan un país, y componen una Nación”. Este pequeno exercício comparativo, que não importa agora levar mais longe, serve apenas para mostrar que estamos, efectivamente, diante de um tronco comum de acepções do termo “povo” que, ao menos sob a forma codificada dos dicionários, circulava pelos espaços ibero-americanos em termos muito próximos, o que se explica não só pelo contexto imperial que ligava os dois lados do Atlântico mas também, naturalmente, pela genealogia latina do termo e pela sua remissão para as três categorias de cive: populus, gens ou natio e plebs ou vulgus, que Eugenia Roldán Vera, no seu texto sobre o México, justamente sublinha (Roldán, México). As acepções que podemos interceptar no discurso público dos dois lados do Atlântico no período anterior às independências americanas e às rupturas políticas da península ibérica, ou seja durante a primeira delimitação cronológica aqui considerada (1750–1808/10), são mais dispersas mas susceptíveis de se organizarem, sem forçar a sua agregação, a partir da influência das ideias ilustradas que parecem traduzir-se num balanceamento entre a consideração da ignorância, fanatismo e propensão à violência do “povo”, e a atitude paternalista que defendia a felicidade dos “povos” e a sua instrução num discurso apoiado, como referem as autoras do texto relativo a Nueva Granada, numa “visión a la vez compasiva y depreciativa del bajo pueblo [...]” (Garrido/Lux, Colômbia). A esta visão ambivalente haveria que acrescentar a importância atribuída pelas administrações ilustradas à ordem e salubridade publicas, à policia do território, que Marcos Fernández Labbé interpreta, no seu texto sobre o Chile, como orientadas também pelo objectivo de “regeneración y fortalecimiento de la población como un agente económico efectivo de la noción ilustrada de progreso”. Sublinhando a preocupação da administração crioula com “la miseria de los pobres”, Marcos Labbé refere, por seu lado, a ambivalência da concepção ilustrada de “povo” em termos de associação entre “la policía y la caridad”, introduzindo, assim, uma linha de articulação entre “povo” e “pobreza” (Fernández, Chile). Corroborando a perspectiva anterior, Juan Francisco Fuentes dá conta, para a Espanha deste mesmo período, das preocupações ilus-

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tradas com o carácter “anárquico, irracional e violento” da “plebe”, designada também com os termos pejorativos de “vulgo”, “populacho”, “chusma”, ou “canalla”. Assim, “los problemas de policía relacionados con las clases populares [...]” ter-se-ão tornado “una constante preocupación de las autoridades en la segunda mitad del siglo [XVIII], y no sólo los relativos al mantenimiento del orden social y la seguridad pública, sino también a la salubridad, al urbanismo y al abastecimiento de las poblaciones” (Fuentes, Espanha). Em Portugal, deparamo-nos com um outro significado de “vulgo” dotado também de grandes implicações no processo de ressemantização que nos ocupa. Numa das edições do Dicionário de Moraes Silva podemos encontrar a seguinte definição: “Vulgo é propriamente o comum do povo, e refere-se não tanto a classe alguma de cidadãos distinta das outras classes, quanto às pessoas (de qualquer classe que sejam) que, ou por sua ignorância, ou por seus baixos sentimentos e acções, pertencem ao comum da gente, ao que é mais ordinário, ao maior numero. E por isso se usa muitas vezes com a significação de plebe” (Sá, Portugal).

Juan Francisco Fuentes destaca ainda algumas configurações do comportamento “tumulturio y a menudo violento del pueblo en fiestas, carnavales y espectáculos”, considerando-o um sintoma de mal estar social difuso, e chamando a atenção para o abaixamento do limiar de tolerância das autoridades face a essas manifestações, bem como às de diversas formas de “ilegalismos populares”, relativamente ao que ocorrera no passado (Fuentes, Espanha). Em caso de protesto ou rebelião este olhar depreciativo pode assumir outras proporções e a “plebe” ser qualificada de “sediciosa y tumultuada”, como em Nueva Granada em 1781, aquando do movimento dos “comuneros”, em que, segundo um religioso que contribuiu para a sua pacificação, foi solto o “sacrílego grito de ¡Viva el rey y muera el mal gobierno!”; um “grito” que encontramos em Portugal, praticamente nos mesmos termos, um pouco mais tarde, em 1790, ainda que num motim de muito menores dimensões. “Viva El-rei, acabe-se o mau-governo” foi, com efeito, registado no norte do país, perto da fronteira com a Espanha, num motim contra a cobrança de um novo tributo,4 sugerindo a necessidade de equacionar também de 4 José Augusto dos Santos Alves, A Opinião Pública em Portugal, 1780–1820 (Lisboa 2000), p. 73.

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maneira ampla os reportórios do protesto popular nos antigos regimes nos espaços do mundo ibero-americano. A revolta de 1781 em Nueva Granada, designada “de los comuneros”, suscita ainda uma reflexão sobre o uso do termo que está na origem do seu nome: o substantivo “comum”, utilizado muitas vezes como sinónimo de “plebe”. Na verdade, o movimento dos comuneros teria intermediado a passagem de noções de “povo” com acento social, racial e moral “a nociones de pueblo como agente político nombrado generalmente como ‘el común’, aunque denominado plebe por los gobernantes” (Garrido/Lux, Colômbia). Assim, de acordo com as mesmas autoras, “el concepto político de pueblo en la Nueva Granada emerge definitivamente unido a las antiguas expresiones castellanas de ‘el común’ y la ‘comunidad con un sentido semejante al que tuvo para los Comuneros de Castilla de 1521 [...] la costumbre de juntarse “el común” y eventualmente proclamarse cabildo abierto, en momentos en que era convocado o espontáneamente, para expresarse con motivo de la elección de sus alcaldes o por las acciones de estos u otras órdenes de gobernadores, audiencia o virrey, atraviesa poblaciones y siglos coloniales” (Garrido/Lux, Colômbia).

Este sentido do termo “povo” – e as práticas para que ele nos remete nos territórios da América espanhola, expressas na reunião dos “cabildos” e na possibilidade de proclamação de “cabildos abiertos” – estará profundamente implicado nos movimentos que, a partir do principio da crise da monarquia borbónica, se desencadeiam naqueles espaços. Será aqui, com efeito, que se sustentará a legitimidade dos movimentos que irão conduzir aos processos de emancipação desses vastos territorios – do México ao Rio de la Plata. Como refere Ezio Serrano, autor do texto sobre a Venezuela, “[...] la condición de unidad política con gobierno propio refuerza el papel político de las instancias corporativas como el Cabildo por ser éste un instrumento para la implantación del dominio, para la organización y estructuración de la vida política”.

O “cabildo” representaria, assim, uma concepção corporativa e orgânica da ordem social – “el pueblo estratificado y jerarquizado” – de que fala também este autor, que encontra, igualmente, em diversos documentos anteriores a 1808 alusões a um “interesse comum” em função do qual a Câmara (ayuntamiento) actuaria. Serão os “cabildos” a representar “los pueblos” face ao rei – de acordo com Eugenia Roldán Vera – entendendo-se neste plural, segundo a mesma autora:

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“[...] la expresión genérica que designa a províncias, ciudades, villas y pueblos, concebidos en la tradición iusnaturalista hispánica como estructuras políticas naturales, surgidas de la naturaleza política del hombre” (Roldán, México).

Convém esclarecer que os “pueblos” que aqui enfileiram com “ciudades” e “villas” correspondem, nesta acepção, a uma “[...] entidad territorial y política completa, intermedia entre una villa y una ciudad con territorio, instituciones, gobierno própio, civil y eclesiástico, con sus tierras, sus instituciones, y además poseedor de la facultad de administrar justicia”.5

Fortemente ligada às instituições que lhes garantiam uma relativa autonomia, ou seja os “cabildos”, “los pueblos”, na sua acepção mais genérica, configuram assim um conceito essencial no léxico político dos territórios da antiga América espanhola, onde o singular não parece poder ser dissociado do plural, pelo menos no período que aqui estamos a considerar, apesar de o grau de “contratualismo” que esta concepção supõe poder ser mais baixo numas regiões do que noutras, como, segundo Cristóbal Aljovín Losada, seria o caso do Peru comparado com o do México (Aljovín, Peru). Convém também ter presente que, em regiões como o México e o Peru, de forma que parece ser particularmente nítida, “los pueblos” também se podem distinguir pela sua dimensão étnica, sendo de destacar “los pueblos de índios”, que são, no México, dotados dos seus próprios governos, ainda que subordinados aos espanhóis. É digno de especial atenção o facto de – durante o período colonial, mas sobretudo no século XVIII – centenas de comunidades indígenas terem procurado obter junto da “Real Audiencia” o seu reconhecimento como “pueblos”, porque ele lhes permitia “establecer su identidad y ratificar sus derechos de propiedad con la facultad de tener ‘repúblicas’ (cabildos indígenas), iglesias, oficiales legalmente electos y núcleos de tierra inalienables” (Roldán, México). O lugar ocupado pelo plural “povos” na América espanhola não parece ter correspondência na própria Espanha, nem no período de que nos ocupamos, 1750–1808/10, nem mais tarde. Com efeito, considerando o conjunto da época em análise, Juan Francisco Fuentes afirma que François-Xavier Guerra, “Las mutaciones de la identidad en la América Hispánica”: Antonio Annino/François-Xavier Guerra (coords.), Inventando la nación. Iberoamérica, siglo XIX (México, D. F. 2003), pp. 185–220; citado por Roldán, México. 5

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“[...] tampoco está clara la diferencia entre ‘el pueblo’ y ‘los pueblos’, pues a lo largo de la época tratada se pueden usar indistintamente una y otra fórmula, incluso por parte de los mismos autores e incluso en los mismos textos y hasta párrafos” (Fuentes, Espanha).

No entanto, referindo-se a um período posterior, e tomando como exemplo a invocação feita a “los pueblos” pelo jornal republicano El Huracán depois da revolta cívico-militar que levou em 1840 os progressistas ao poder, o mesmo autor admite que ela possa sugerir “el carácter territorial – municipalista para ser exactos – de la revuelta progresista contra Maria Cristina” (Fuente, Espanha). É, pois, legítimo supor que a conotação municipalista evocada por Juan Francisco Fuentes tenha um passado e não tenha emergido de forma isolada neste contexto. Em língua portuguesa o plural “povos” não tem certamente o mesmo sentido forte com que nos deparamos na América espanhola. No entanto, em Portugal, de modo distinto do que Juan Francisco Fuentes aponta para Espanha, “povos” parece ter sido usado no sentido territorial e municipalista, em diversos momentos em que estiveram em causa “[...] movimentos revoltosos nas províncias, como [...] durante a revolta rural que, em 1846, se inicia no norte do país, relativamente à qual as autoridades informavam serem os ‘povos’ deste ou daquele município ou lugar que se tinham levantado contra o governo” (Sá, Portugal).

Dotada de maior ambiguidade é a utilização recorrente que muitos deputados fazem do termo nos debates parlamentares contemporâneos da primeira experiência liberal portuguesa (1820–1823), onde parece entrever-se um uso estratégico do plural “povos” associado às questões da soberania de forma a evitar a melindrosa expressão “soberania do povo” (Sá, Portugal). No Brasil, o plural “povos” parece não ter tido um uso tão significativo como na América espanhola, nem durante o período colonial nem no decurso dos debates públicos posteriores à independência, embora tenha marcado também alguma presença em revoltas contra a Coroa portuguesa, como as conjurações “Baiana” e “Praieira”. Luísa Rauter Pereira chama a atenção para o modo como a concepção corporativa da sociedade de origem medieval assente “numa rígida hierarquia” se confrontou com as transformações sociais registadas no período moderno em Portugal, sublinhando, no entanto, que “os terri-

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tórios coloniais portugueses constituíram o local em que este abalo do mundo tripartido e hierarquizado foi mais evidente”. Segundo a autora, a divisão em Ordens não era exportável para a colónia brasileira, onde se tornava “confusa e fluida” face à maciça presença de “escravos, libertos e homens livres pobres” que traziam “profundos temores e questionamentos específicos às elites coloniais”. Nesse sentido, até mesmo a composição da “plebe” era difícil de determinar. Segundo o frade carmelita Domingos do Loreto Couto, essa dificuldade resultava de que, no Brasil, “todo o branco pretende estar fora dela e os pardos querem ser como os brancos” (Rauter, Brasil).6 Apesar da sua precocidade, revoltas contra a Coroa portuguesa como a revolta de Minas Gerais de 1789 e a revolta da Bahia de 1798 não parecem ter-se apoiado na evocação de qualquer forma de legitimidade assente em antigas concepções contratualistas, ainda que o plural “povos” possa ter sido mencionado. Esses movimentos, e os que no século XIX lhe sucederam, terão sido sobretudo inspirados pelo “ideário iluminista e liberal acolhido pelas elites educadas na Europa”. Nas revoltas mais precoces e anteriores à chegada da Corte portuguesa ao Brasil, foi sobretudo a participação do “povo” que foi evocada, ainda que sob formas distintas. Assim, “no movimento mineiro, composto basicamente por intelectuais e membros da elite urbana, embora conclamassem genericamente o ‘povo’ para participar da luta contra a tirania, não viam o povo pobre como participante legítimo do processo conspiratório e da nova sociedade a ser criada” (Rauter, Brasil).

Na Bahia, pelo contrário, terá havido maior participação popular e, sobretudo, uma evocação do “povo” muito mais clara nesse movimento que ficou conhecido como “revolta dos alfaiates”. Aqui, nuns “avisos ao povo”, dizia-se: “Cada hú Soldado é Cidadão, mormente os homens e pardos que vivem abandonados, todos serão iguaes e não haverá diferenças: só haverá Liberdade Popular [...]” (Rauter, Brasil).7

6 D. Domingos do Loreto Couto, Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco (Rio de Janeiro 1904); citado por Rauter, Brasil. 7 Francisco Borges de Barros, Os confederados do Partido da Liberdade, subsídios para a história da conjuração baiana de 1798–1799 (Bahia 1922).

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O “povo” entra em cena Quando se trata de encontrar, no conjunto dos textos observados, um verdadeiro ponto de viragem no uso do conceito de “povo”, é forçoso situar o seu início no já referido período de 1808/10, que se estrutura a partir de acontecimentos tão marcantes como a crise da monarquia espanhola depois das abdicações de Bayonne, o embarque para o Brasil do rei e da Corte portugueses e o início das guerras de independência na península ibérica e das independências americanas. Nestes anos vertiginosos, num período que se estende até 1814 e que é marcado pela insurreição anti-francesa e pela primeira etapa da revolução liberal, é que, segundo Juan Francisco Fuentes, se produz no contexto espanhol “[...] el descubrimiento del pueblo como protagonista de la historia, con un hasta entonces insospechable acervo de virtudes – valor, abnegación, patriotismo –, por parte de las elites sociales y culturales que dirigen la resistencia nacional contra los franceses” (Fuentes, Espanha).

Em Portugal, 1808 marca também, com a insurreição anti-francesa, um novo protagonismo publico de “povo” abundantemente expresso por um magistrado do Estado absoluto que escreveu em 1811 uma História Geral das Invasões dos Franceses, apresentando as resistências portuguesas às invasões como uma verdadeira gesta da intervenção popular, para cujos perigos não deixava, porém, de alertar escrevendo: “[...] é preciso, eu o direi sempre, conhecer o povo; depois de amotinado raras vezes cede sem passarem os seus primeiros ímpetos; depois de acostumado a dar a lei não reconhece mais limites nas suas empresas” (Sá, Portugal).

Do outro lado do Atlântico, também a data de 1808 é considerada como um momento crucial de viragem. Eugenia Roldán Vera escreve sobre as abdicações de Bayonne e a crise do império: “[...] este acto, junto con los sucesos que se desarrollan a consecuencia del mismo en la siguiente década, generará las transformaciones más importantes en el uso del concepto de pueblo en el periodo estudiado” (Roldán, México).

As autoras do texto sobre Nueva Granada sublinham também a importância desses anos decisivos, chamando a atenção para o facto de a invasão napoleónica da Espanha ter criado, nas suas dependências coloniais, “[...] una coyuntura que no solo abría un amplio campo de posibilidades sino que exigía un lenguaje nuevo [...] ese lenguaje de soberanía, ejércitos, derechos, ciu-

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dadanías, opinión, partidos, elecciones y representación estará asociado de formas combinadas y a veces ambiguas a las nociones de pueblo” (Garrido/Lux, Colômbia).

Marcos Fernández nota, igualmente, a respeito do Chile, o enorme contributo da conjuntura da invasão francesa em Espanha para a estruturação de novos usos do termo “povo”, afirmando que ela motivou “[...] la apelación por parte primero de las autoridades coloniales y luego de la administración criolla de la figura del Pueblo como defensor de la legitimidad del Rey ante la amenaza de la usurpación extranjera” (Fernández, Chile).

Encontramos uma análise semelhante no texto de Ezio Serrano sobre a Venezuela, para quem “[...] con la invasión napoleónica a España y la consiguiente abdicación de los Borbones en Bayona, se produjeran cambios radicales en los significados del concepto subrayando los contenidos políticos del mismo” (Serrano, Venezuela).

Neste contexto geral, o caso do Brasil desenha-se como excepção. Na verdade, embora marcado a partir de 1808 pela decisiva transformação política que representou a transferência do rei e da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro que configurou a chamada “[...] interiorização da metrópole”, ele não foi teatro de um novo protagonismo público dos grupos populares o que, de certo modo, o privou de algumas das principais condicionantes dos novos usos do vocábulo para este período” (Rauter, Brasil).

Se a maioria dos textos em análise concordam em reconhecer à conjuntura das invasões francesas da Península o estatuto de momento chave na viragem no uso do vocábulo “povo” ao longo do espaço de tempo aqui em apreço, os seus autores não interpretam no entanto essa viragem num sentido único. Ezio Serrano torna muito claro para a Venezuela o modo plural com que, nessa encruzilhada, foi usado o termo dizendo: “no obstante, el período que cubre los años de 1808/1814 registra la vitalidad de las viejas acepciones en convivencia con las formas nuevas”. Aludindo à crise da monarquia espanhola como um momento em que se exprimiu com dramatismo a crise do próprio reino, na medida em que o rei era cabeça de um corpo político e factor essencial de unificação dos corpos que o compunham, o que tornou possível que a soberania pudesse vir a ser reclamada pelas corporações, Serrano conclui: “Hay pues una múltiple confluencia: su acepción como conjunto estructurado de corporaciones que han pactado con el rey para establecer un orden político, el

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pueblo como receptor y emisor único de la soberanía de la nación, y como conjunto de individuos portadores de derechos” (Serrano, Venezuela).

Em qualquer caso, a maioria dos textos provenientes da América hispano-falante atribuem um papel decisivo nos novos rumos seguidos pelos termos “povo” e “povos” ao papel desempenhado pelos “cabildos” das principais cidades da América espanhola durante a crise da monarquia em Espanha. Assim, por exemplo, face à chegada de emissários franceses reclamando o reconhecimento do seu governo, o “cabildo” de Caracas distanciou-se das autoridades da província e assumiu o papel de defensor do soberano ao lado do “povo” – uma atitude observada na época deste modo: “las autoridades de la provincia habían accedido a los propósitos de los franceses de no haber sido por la energía y oposición que en el acto manifestaron el Pueblo y el Cavildo a favor de su Soberano”.8 Um mesmo movimento pode ser percebido no México onde: “Roto el pacto entre el rey y sus pueblos se buscan soluciones en las antiguas instituciones representativas hispánicas. Los cabildos de las ciudades comienzan a jugar un papel político nuevo desde el momento en que deciden realizar ceremonias públicas para jurar lealtad al rey en defensa de la monarquía frente a la invasión napoleónica de la península ibérica” (Roldán, México).

Em Buenos Aires, o “Cabildo Abierto” de Maio de 1810 “[...] invocó el concepto de reasunción del poder por parte de los pueblos, noción que remite a la antigua doctrina del ‘pacto de sujeción’ por la cual, suspendida la autoridad del monarca, el poder vuelve a sus depositarios originales (de lo cual resultó la destitución del virrey)” (Goldman/Meglio, Argentina).

Relativamente ao Chile podemos surpreender uma dinâmica não muito distante no texto de Marcos Fernández, que afirma que “[...] la coyuntura histórica de la invasión francesa y de la guerra de España motivaron la apelación por parte primero de las autoridades coloniales y luego de la administración criolla a la figura del pueblo como defensor de la legitimidad del Rey ante la amenaza de la usurpación extranjera” (Fernández, Chile).

E, em Nueva Granada também, segundo o texto que nos serve de referência, “acudiendo a la tradición colonial de cabildo abierto, los criollos de muchas ciudades convocaran el pueblo y conformaran jun8 Lila Mago de Chópite/José Hernandez Palomo, El Cabildo de Caracas, 1750–1821 (Sevilla 2002); citado por Serrano, Venezuela.

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tas” como aconteceu, por exemplo, em Quito, Cartagena e Santa Fe (Garrido/Lux, Colômbia). Quase geral, a reassunção do poder pelo “povo” ou pelos “povos” por intermédio dos “cabildos” conheceu, no entanto, dinâmicas distintas onde, por vezes, estiveram envolvidas e se cruzaram diferentes concepções de “povo” desenhando roteiros políticos claramente diferenciados. A Junta Provisional criada em Buenos Aires em Maio de 1810, por exemplo, dirigiu uma circular ao “povo” manifestando o desejo de que “los pueblos mismos recobrasen los derechos originarios de representar el poder, autoridad y las facultades del Monarca”; no entanto, o seu secretário, Mariano Moreno, preferia claramente o conceito de “soberania popular”, que permitia fundamentar o direito à emancipação, ao de “pacto de sujeição” subjacente a esta formulação muito embora tivesse recorrido ao uso do termo “povos” e às doutrinas pactistas “para defender los recuperados derechos de los pueblos frente al Monarca” (Goldman/Meglio, Argentina). Apesar das diferenças que podem ser registadas entre as concepções envolvidas neste processo, ele não deixa de apontar num mesmo sentido no conjunto das antigas unidades coloniais espanholas aqui observadas: o protagonismo de que, a partir desta conjuntura, passa a gozar o termo “povo”, singular ou plural. Parafraseando as autoras do texto referente a Nueva Granada poderia dizer-se que “[...] de la configuración política colonial en que la participación de los pueblos estaba relativamente restringida, se pasó a una coyuntura en que la participación popular fue requerida casi con urgencia” (Garrido/Lux, Colômbia).

Subjacentes a este novo protagonismo semântico estão, no entanto, concepções tão distintas quanto as que podem separar o conceito de “povo” entendido de forma moderna como portador da “soberania popular” e o de “povos” originário das antigas doutrinas pactistas da origem do poder soberano dos reis. A dupla contradição: povo e plebe e povo/povos A imagem favorável de “povo” que nesta conjuntura americana se constitui encontra um claro paralelo na Espanha das Cortes de Cádiz, onde se afirma a soberania da nação em contexto moderno e a de povo quase como um seu sinónimo. As visões mais negativas tenderão,

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neste contexto, a ser eliminadas, levando, em muitos casos, à condenação de expressões pejorativas tais como “bajo pueblo”, “plebe” e “canalla” que passam a ser consideradas “impolíticas” (Fuentes, Espanha). A integração da diversidade social – e étnica no caso dos espaços americanos – do universo popular no conceito moderno de “povo” marcará, no entanto, o mundo ibero-americano no seu todo no período posterior às revoluções liberais da península ibérica e às independências americanas. O conflito, a este propósito, pode manifestar-se de forma mais ou menos precoce, mas não deixará de impregnar o horizonte das novas experiências politicas, quer elas sejam de monarquia constitucional como em Espanha, em Portugal e no Brasil, quer assumam a fórmula republicana que, a breve trecho, irá ser proclamada nos restantes espaços aqui considerados. No Rio de la Plata encontramos desde cedo configurações da tensão relativa à definição do termo “povo” em sentido político e em sentido social já presentes nas jornadas revolucionárias de Abril de 1811. Nesses dias, depois de uma parte das tropas da cidade, junto com “hombres de poncho y chiripá” vindos dos subúrbios, se terem juntado na praça principal de Buenos Aires para exigir mudanças no governo, foi redigida uma petição em nome do “povo” e entregue ao “cabildo” reconhecido como legitimo representante desse mesmo “povo”. No entanto, como Noemí Goldaman e Gabriel Di Meglio sublinham, o que estava em jogo era “quién integraba ese pueblo”. Uma testemunha hostil acusará, por exemplo, o “cabildo” de ter cedido às exigências feitas “suponiendo pueblo a la ínfima plebe del campo” (Goldman/ Meglio, Argentina).9 Em relação ao Chile, considera Marcos Fernández que “[...] a poco andar el proceso de emancipación, la división de la unidad pública, la inquietud popular y la ausencia de ilustración política del pueblo fueran representadas como las amenazas flagrantes al papel soberano de los pueblos en el nuevo tiempo que se abría ante sus ojos” (Fernández, Chile).

Quando, como no caso da Venezuela, existem, além do mais, nítidas divisões no início do processo emancipatório entre republicanos e fiéis

9 Juan Manuel Beruti, “Memorias Curiosas”: Biblioteca de Mayo, tomo IV (Buenos Aires 1960), p. 3786; citado por Goldman/Meglio, Argentina.

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à monarquia, tais divisões vêem a incluir as concepções relativas ao “povo”, podendo levar a situações assim descritas: “[...] la polarización política, dada la existencia de la dicotomía monarquía-república, reactiva una visión del pueblo, nada nuevo en aquel momento, que le asocia con su baja condición moral, con la inexistencia de virtudes que lo hacen presa fácil de la demagogia igualitaria” (Serrano, Venezuela).

Esta dupla dicotomia, política e social, pode, inclusivamente, chegar a exprimir-se pela introdução de uma linha divisória no conceito de “povo” que supõe a existência de “pueblos sanos” que se contrapõem a “pueblos insanos”, ou seja aqueles que “se orientan y permiten ser orientados por demagogos carentes de toda virtud” (Serrano, Venezuela). No Rio de la Plata é também detectado um fenómeno paralelo que se cruza com o uso mutante de “povo” e “plebe” nos seus sentidos político e social. A antinomia passa pela contraposição, identificada também por Fuentes para Espanha, entre “verdadero pueblo” considerado como “los vecinos, la gente decente”, e a “plebe” que não devia confundir-se com ele. No entanto, a fronteira entre um e outro está longe de ser fixa e, à semelhança do que ocorre na península ibérica durante as guerras da independência, a sua linha oscila em função do protagonismo público das classes populares e do seu apoio a diferentes movimentos políticos (Goldman/Meglio, Argentina; Fuentes, Espanha). Em Espanha, tal como em Portugal, durante o sinuoso processo de implantação do liberalismo, entrecortado pelos confrontos com os partidários do absolutismo, carlistas em Espanha e miguelistas em Portugal, o termo mover-se-á entre o “povo” fiel e primeiro defensor do trono e do altar dos absolutistas, geralmente camponês, e o “povo” dos liberais cujo arquétipo estava mais próximo das classes popular urbanas (Fuentes, Espanha; Sá, Portugal). Em Portugal, os partidários do absolutismo oriundos das camadas populares que se manifestavam em favor de D. Miguel eram apelidados de “rotos” e “canalha” pela imprensa liberal que evitava assim usar o termo “povo” a seu respeito (Sá, Portugal). Do lado dos liberais estas questões implicavam o problema da educação e ilustração do “povo” vistas também como condições indispensáveis ao funcionamento do regime representativo. Não é certamente por acaso que os primeiros anos de regime liberal na península

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ibérica e de independência em muitos dos novos países nascidos do desmembramento da antiga América espanhola, se publicaram numerosos catecismos políticos e muitos periódicos destinados a ilustrar o “povo” e a formá-lo civicamente. A concepção de “povo” que tinha alimentado os movimentos que conduziram à instalação de sistemas representativos dos dois lados do Atlântico e legitimado a ruptura com os antigos regimes irá confrontar-se, a partir da estabilização política posterior às independências americanas e ao triunfo dos regimes liberais na península ibérica nos anos 1820, com o problema da diversidade social do “povo” num outro terreno decisivo: o da capacidade eleitoral. A questão do alargamento ou da restrição do direito de sufrágio e dos argumentos que a acompanham é um excelente ponto de observação das relações entre o sentido moderno do termo “povo” e a diversidade social que ele pode albergar, que remete, também, no espaço americano para o importante problema das populações não livres ou dos grupos étnicos subordinados como os indivíduos de origem africana e/ou índia. No Rio de la Plata a lei eleitoral não deixou de reflectir flutuações que exprimiam, pelo menos em parte, a contradição entre o conceito político moderno de “povo” e a diversidade social que o termo incluía. Os resultados flutuaram entre a lei de sufrágio de 1821 que concedia o direito de voto a “todo hombre libre mayor de 20 años”, e a restritiva redefinição que, em 1824, impôs a exclusão de “criados, peones, jornaleros, soldados de línea y vagos”. Neste contexto, é esclarecedor o argumento avançado segundo o qual “[...] por democrático que sea el gobierno republicano, nunca puede comprender a todos. Es indispensable excluir a todos aquellos que no tienen todavía una voluntad bastante ilustrada por la razón, o que tienen una voluntad sometida a la voluntad de otros” (Goldman/Meglio, Argentina).10

Relativamente ao Chile, Marcos Fernández considerará mesmo que, logo a seguir à instalação de um governo centralista e conservador na década de 1830, uma vez sufocados os movimentos federalistas que a ele se opunham, “el concepto de pueblo será tomado desde una perspectiva muy similar a la tardo colonial” que misturava a ênfase na ordem e tradição de obediência com os deveres do governo relativos 10 Emilio Ravignani (comp.), Asambleas Constituyentes Argentinas, tomo II (Buenos Aires 1937), p. 984; citado por Goldman/Meglio, Argentina.

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à educação, à repressão da criminalidade e à prevenção de epidemias, fazendo renascer o antigo binómio da “policía/caridad” e permitindo que esse mesmo governo se conceptualizasse como “verdadero padre del pueblo” (Fernández, Chile). Um liberal chileno, tradutor de Lamennais, Francisco Bilbao, diria, no contexto do debate sobre a relação entre “povo” e soberania das nações, que “el hombre del pueblo no conoce su deber social y su derecho, vende su voto y no tiene ni toma interés en los negócios públicos”. Era pois necessário “reabilitá-lo” para que pudesse exercer a sua soberania efectiva (Fernández, Chile). Visões contrastadas sobre o “povo” situadas nesta linha vão informar a divisão entre moderados e exaltados na península ibérica que inclui no seu seio o debate sobre o papel do “povo” no regime liberal, a propósito não só do regime de sufrágio mas também da existência de “sociedades patrióticas” ou de uma milícia cívica, assim como, de forma mais genérica, da mobilização de rua contra os inimigos do regime. Mais tarde a alternância entre moderados e exaltados levará a formas retóricas de apelo ao “povo” e à utilização frequente de uma linguagem marcada pela duplicidade. Juan Francisco Fuentes chama a atenção para a existência de jornais afectos ao liberalismo moderado defendendo insurreições populares contra os progressistas e de jornais progressistas que invocam “ritualisticamente” o “povo” apenas para chegarem ao poder (Fuentes, Espanha). Alexandre Herculano, um dos mais marcantes intelectuais portugueses de oitocentos, publicista e historiador além de combatente da causa liberal na guerra civil que opôs liberais e miguelistas em 1832–1834, exprimiu-as melhor que ninguém num célebre texto, publicado em francês, intitulado “Mouzinho da Silveira ou la revolution portugaise”, em que analisou a obra do estadista que tinha produzido a legislação que mais radicalmente visava a abolição do antigo regime no plano económico: “Quand je dis le peuple je n’entends pas parler de la populace qui ne réfléchissait point qui n’avait presque pas d’intérêts matériels aux moraux attachés aux mesures du cabinet Mouzinho qui journellement était prêchée, excitée, fanatisée par des moines. Cette partie de la nation était alors ce qu’elle est aujourd’hui, ce qu’elle sera demain. [...] Non, ce n’est pas de ces gens-là que je vous parle: j’en laisse le soin

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aux démocrates. Pour moi le peuple c’est quelque chose de grave, d’intelligent, de laborieux [...]” (Sá, Portugal).11

Também aqui nos deparamos com a preocupação de distinguir “quem é quem” dentro da massa do “povo”, primeiro passo para o estabelecimento de uma linha divisória entre “povo verdadeiro” e “falso povo”, que encontramos noutras latitudes. A condição de proprietário e residente como condição para integrar o “povo” capaz de ter acesso à soberania é sublinhada, na Venezuela, num escrito de Miguel José Sanz: “[...] pero este pueblo no es multitud, el se forma de los propietarios [...] solo el que posee y reside es parte del Pueblo, y en esa calidad tiene voz activa y pasiva, o tiene intervención en la formación de leyes y su ejecución” (Serrano, Venezuela).12

Bolivar, por seu lado, considerando a ameaça que “las holas populares” podiam representar para a República, já que o povo americano vivia “uncido [...] al triple yugo de la ignorancia de la tiranía y del vicio”, admitia a criação de um Senado hereditário que “se opondría siempre a las invasiones que el pueblo intenta contra la jurisdicción y la autoridad de sus magistrados” (Serrano, Venezuela).13 Mas outras linhas de demarcação são possíveis. Em 1821, no México, num jornal significativamente intitulado El Tribuno de la Plebe dizia-se: “según las luces y princípios del siglo no debe haber distinción, porque todos los indivíduos de una sociedad, sea qual fuera su clase, estan comprendidos en la palabra Pueblo y ya no debimos admitir distinción alguna”, distinguindo-se, no entanto, duas categorias de “povo”: “la plebe” – “los hombres útiles como labradores, artesanos, mineros, arrieros y todos los que trabajan para mantener a otros” e “el populacho” – “los haraganes, pordioseros, petardistas, y gentes sin oficio que vegetan por esos mundos como zánganos de una colmena”.14 O percurso que leva a que, do apelo urgente ao “povo” enquanto fonte de legitimidade política do período das independências da América espanhola, se passe à desconfiança e ao debate sobre 11 Alexandre Herculano, “Mouzinho da Silveira ou la révolution portugaise”: Opúsculos V, I (Lisboa 1983, 1a ed. 1856), pp. 302–303; citado por Sá, Portugal. 12 Miguel José Sanz, Teoría política y ética de la independencia (Caracas 1978, 1a ed. 1810–1811), p. 551; citado por Serrano, Venezuela. 13 Memorias del General O’Leary, vol. XVI (Caracas 1981), p. 225; citado por Serrano, Venezuela. 14 El Tribuno de la Plebe, 1821; citado por Roldán, México.

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quem pode incluir-se nessa categoria-base do sistema representativo que encontramos nos anos 1820 e 1830 tem um claro paralelo em certos contextos específicos na conceptualização do plural “povos”. No México, o período que medeia entre a independência (1821) e a queda de Iturbide (1824) dá conta não só das deslocações de sentido do termo “povos” mas também da complexidade da relação entre o plural e o singular. A coroação de Iturbide como imperador assenta na ideia de que o “povo” é superior ao congresso enquanto instância dotada de soberania. No entanto, apesar de se ter coroado a si mesmo com este tipo de legitimidade, Iturbide será derrubado pelos “povos”, no sentido pactista do termo, pelas províncias, cidades, vilas e “pueblos”, cujo grau de participação política se tinha fortalecido desde 1808. Entre os argumentos evocados nesta ocasião estava o de que “la voluntad de un individuo, ó de muchos sin estar espreza y legítimamente autorizados al efecto por los pueblos, jamás podrá llamarse la voz de la nación” (Roldán, México).15 O conflito entre soberania dos “povos” e soberania do “povo” irá marcar o período subsequente à queda de Iturbide e o federalismo virá a ser defendido como o sistema em que “cada estado es libre y soberano” pelo que “es el más conforme a los derechos de los pueblos”. O plural será usado também na retórica dos pronunciamentos militares que se irão suceder legitimando-se através da reacção dos “pueblos oprimidos” de quem o exército seria o sustentáculo. Outras regiões da América Hispânica foram igualmente afectadas, durante o período das independências, pela contradição resultante da aspiração a criar um estado com base na unidade da nação e no principio de que nela residia a soberania enquanto unidade indissolúvel, e o desejo de autonomia de cidades ou províncias que remetia para o uso do plural “povos”. Projectos e práticas federativos e confederativos procuraram regular esta tensão. No Rio de la Plata, ela irá conduzir em 1820 à dissolução do poder central e à organização das províncias em estados autónomos que se dotaram de constituições provinciais nas quais se sustentou, Antonio López de Santa Anna/Guadalupe Victoria, Plan ó indicaciones para reintegrar á la Nacion en sus naturales, é imprescriptibles derechos y verdadera libertad, de todo lo que se halla con escándalo de los pueblos cultos violentamente despojada por D. Agustin de Iturbide, siendo esta medida de tan estrema necesidad, que sin ella es imposible el que la América del Septentrion pueda disfrutar en lo venidero una paz sólida y permanente (Veracruz 1822); citado por Roldán, México. 15

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no entanto, o principio da soberania do povo e do governo popularrepresentativo. Expressão do cruzamento entre velhos e novos usos e sentidos, a concepção de “povo” como corpo político natural e hierarquizado não deixou, apesar de tudo, de persistir nalgumas das assembleias assim criadas. A ideia de um “povo” único para o conjunto do território da Republica Argentina vai fortalecer-se durante a vigência do Pacto Federal, instaurado depois de 1831, mas só a Constituição de 1853 consagrará o singular “povo” e mais do que isso, a ideia da coincidência entre “povo” e “nação” (Goldman/Meglio, Argentina). No território da Venezuela, os termos “povo” e “povos” confrontam-se de forma complexa, em articulação com a oposição entre monárquicos e republicanos. Segundo Ezio Serrano “el sentido plural se actualiza por la necesidad de recuperar o restaurar un orden político que tradicionalmente concebía la monarquía como una pluralidad de pueblos vinculados por un pacto establecido con el rey” (Serrano, Venezuela). Ao mesmo tempo o plural era também usado pelos realistas quando se referiam à ligação com a Espanha como a “los sagrados vínculos de unos pueblos que habian sabido darse las manos a través de todo el oceano”. O plural continuará a ser utilizado nos territórios sob controlo realista; no entanto, os “patriotas” também defenderão a união com Nueva Granada como “un voto uniforme de los pueblos y gobiernos de estas republicas”.16 Depois do fracasso do projecto de unificação, o apelo a eleições para o congresso de 1830 será dirigido “a los pueblos de Venezuela”, mas o singular vai-se afirmando com o propósito de apresentar a “Venezuela unida”. Mais tarde o singular irá impor-se-á seguido do adjectivo “venezuelano”. No Peru, o uso do plural “povos” mantém-se de uma forma menos conflitual do que nos casos anteriormente citados. O General San Martin dirige-se aos “povos do Peru” e justifica o protectorado em termos fortemente providencialistas e paternalistas interpretando as manifestações de apoio de que é alvo como expressão da “vontade dos povos”, produzindo imagens em que se mistura a de “povo soberano” com a de líder fundador de um novo regime político (Aljovín, Perú). No entanto, o plural “povos” foi brandido pelos partidários da Confederação Peru-boliviana, como aconteceu com um periódico 16 Memorias del General O’Leary (nota 13), vol. XVI, p. 225; citado por Serrano, Venezuela.

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cuzqueño que argumentava em favor da confederação afirmando que “los pueblos asumen su soberanía y su primitiva libertad”, uma concepção assente nas doutrinas do direito natural segundo as quais o “povo” pode regressar ao seu estado natural e voltar a organizar-se (Aljovín, Perú). No Brasil, após a independência proclamada em 1822 sob a égide de D. Pedro, o herdeiro do trono português, também o federalismo estará na ordem do dia exprimindo-se a hostilidade ao centralismo por importantes revoltas provinciais. Em Pernambuco, em 1824, tem lugar um movimento claramente republicano – “marcado pelo ideal federativo” – que contou com uma participação mais forte de extractos populares, negros libertos e mulatos do que tinha acontecido na revolta de 1817. No entanto, o plural “povos” não parece ter sido conceptualizado, neste contexto, em termos próximos do que ocorreu na América espanhola em apoio das propostas federalistas. Mais tarde, já depois do derrube de D. Pedro, acusado de autoritarismo e de ligações preferenciais com as elites portuguesas, registam-se outros movimentos revolucionários separatistas, como aconteceu no Rio Grande em 1836 e na Baía em 1837 com o movimento conhecido pela “Sabinada”, do nome de um dos seus lideres Francisco Sabino da Rocha Vieira. No movimento do Rio Grande, que levou à proclamação de uma Republica autónoma, o conceito de “povo” apareceu associado à luta universal pela liberdade, às identidades regionais e ao projecto federalista. Na “Sabinada” “defendia-se a soberania e a liberdade do “povo” mas não se incluíam os escravos; os seus líderes dividiram-se pelo temor de que a onda revolucionária alastrasse à numerosa população não-livre que tinha desencadeado, dois anos antes, uma grande revolta: a revolta do Malês. Em 1839, um outro movimento, a “Balaiada”, tem lugar na província do Maranhão. Tratou-se de uma revolta popular de grandes dimensões contra as autoridades provinciais que foi aproveitada pelos liberais para combaterem os conservadores que detinham o poder. Porém, a intervenção da “plebe” em favor dos liberais terá determinado a união destes últimos aos conservadores que se encarregaram de reprimir os revoltosos. Um político conservador da província, que escreveu uma Memória Histórica da revolta, lastimou a acção sanguinária de uma “raça cruzada de índios, brancos e negros a que chamam cafusos [...]”, ilustrando, mais uma vez, o quanto a diferenciação

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étnica concorria com a diferenciação social como obstáculo a uma visão unificada de “povo” no Brasil. As guerras da independência fizeram com que nos novos países da América Hispânica o exército, seu protagonista, fosse elevado frequentemente à categoria de depositário da vontade do “povo” ou dos “povos” ou como seu fiel representante. Em Nueva Granada, por exemplo, a tensão entre “povo” e “povos”, que fora central na guerra civil conhecida como “la Patria Boba” (1812– 1814), parece ter-se diluído precisamente através da afirmação da força armada, do exército considerado como “espada do povo”, na sequência do papel desempenhado na guerra motivada pela tentativa de reconquista espanhola (1814–1816). Segundo Margarita Garrido e Marta Lux, “en cierta forma el ejército reemplaza al pueblo, los estados mayores a los congresos y en estos no se representan regiones particulares”. Também no México os pronunciamentos militares se farão em nome dos “povos” e se auto-justificarão retoricamente pelo facto de governo central fazer mau uso da soberania que os estados ou cidades nele tinham delegado. Assim, quando se constata que os representantes dos estados reunidos em congresso “han contrariado los deseos de los pueblos”, o exército, “que siempre ha sido el sostén de los derechos de los pueblos”, levanta-se contra o governo em nome da “voz popular”.17 No Peru os caudillos afirmavam, usualmente, possuir uma dupla representação, aparecendo diante da opinião pública não apenas como representantes da vontade do “povo”, dos “povos” ou da “nação” peruana, mas também do exército, sendo o binómio exército–povo unido contra os inimigos da pátria uma imagem forte dos tempos revolucionários como também o foi a do “povo em armas” que recobra a sua soberania. Novos rumos em meados do século Nos anos 1840 percebemos, com maior ou menor intensidade conforme os contextos de cada um dos países considerados, caminhos de mudança que se prendem com um amplo leque de circunstâncias 17 López de Santa Anna, Pronunciamiento de Perote, 1828; citado por Roldán, México.

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das quais caberia destacar a afirmação de tendências democráticas ou democratizantes entre as elites políticas, uma maior socialização das camadas populares e uma melhor integração de alguns desses sectores no universo político e semântico da modernidade. O advento de novas configurações sociais do “povo”, designadas com novos termos como “classes trabalhadoras”, “operárias” ou “proletárias” acompanha esse movimento com o qual por vezes se cruza. Em Espanha, embora a década moderada (1844–1854) tenha procurado reservar o regime parlamentar aos proprietários com exclusão das classes populares, não foi possível evitar o eco das revoluções europeias de 1848. Elas favoreceram, por exemplo, a criação em 1849 do Partido Democrático que estará na origem de uma viragem progressista em 1854 na qual o termo “povo” se verá revitalizado e de onde emergem “nuevos discursos sociales y nuevas formas de conflictividad propias de una sociedad en plena transformación” (Fuentes, Espanha). Em Portugal, o termo “povo” irá inscrever-se no discurso público com uma nova vitalidade e uma nova amplitude semântica nesses anos a partir da eclosão em 1846, no norte do país, de uma revolta rural que iria fazer cair o governo conservador que tinha subido ao poder quatro anos antes restaurando a Carta Constitucional. Esta revolta, com início na província do Minho, foi baptizada com o nome de “Maria da Fonte”, nome de uma hipotética líder das mulheres que protagonizaram os primeiros tumultos onde se contestavam as leis sanitárias que proibiam o enterro dos mortos nas igrejas. A revolta viria a politizarse graças ao enquadramento da oposição setembrista”, inspirada pelo radicalismo, conduzindo a uma nova guerra civil, conhecida como “a Patuleia”, uma designação cuja origem é controversa mas que foi desde cedo associada ao termo “pata-ao-léu” equivalente a “pé-descalço”. O “povo em tumulto”, “motim do povo”, “motim popular”, “revolução popular” e, durante a guerra civil, “forças populares” são expressões de uso generalizado neste período, que atestam a revitalização do uso do termo e que, nalguns casos, se consagraram no discurso político, como aconteceu com “revolução popular” a que a oposição “setembrista” particularmente recorreu (Sá, Portugal).18 18 Para um debate muito esclarecedor sobre os sentidos das categorias semânticas da “desordem” ver Pablo Sanchéz León, “Moral Origins of the Social. On the Emergence of Disorder as a Conceptual Field in Spanish Modernity”, online: http://www.itb.itu. edu.tr/anchorage/conference_papers.html .

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A guerra civil da Patuleia será, pois, um momento forte de convivência entre vários sentidos de “povo” e “povos” e constituirá, também, o caldo de cultura do qual emergirão novos sentidos e direcções do termo que se irão afirmar pouco depois, no rescaldo da derrota das forças da oposição. Os novos discursos sociais sobre o “povo” podem ser ilustrados em Portugal com a publicação, em 1850, do jornal O Eco dos Operários e com a criação dois anos mais tarde, do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas e, em Espanha, durante o biénio progressista, com a publicação do periódico evocado por Juan Francisco Fuentes com o nome de El Eco de la clase obrera. No Brasil, o termo “patuleia” existe também e será usado como sinónimo de “plebe” num contexto político profundamente marcado pelo confronto entre exaltados e moderados para os quais a exclusão da “plebe” do sistema político era inquestionável. A visão dos liberais não era porém radicalmente diferente. Um politico do Maranhão que participara em movimentos revoltosos na década de 1830, inclusive apoiando a “Balaiada”, caricaturava a participação popular em eleições dizendo que nesses dias se assistia na cidade à “[...] aparição de figuras desconhecidas e estranhas, que invadem e passeiam de continuo as praças, ruas, becos e travessas, todos ou a maior parte pertencentes à classe conhecida pela designação geral de patuleia, que quer dizer povo na acepção de plebe ou gentalha” (Rauter, Brasil).

No entanto, no decurso da “revolução praieira”, que ocorreu em Pernambuco em 1848, publicou-se um Manifesto ao Mundo em que se reivindicava o “voto livre e universal do povo brasileiro” e o “direito universal ao trabalho”.19 Segundo Luísa Rauter Pereira, no movimento ecoavam também os ecos da revolução francesa de 1848 e do ideário do socialismo utópico. Em Nueva Granada assiste-se, no fim dos anos de 1830 e inícios dos anos 40, à fundação de “sociedades de artesanos” ou de “artesanos i agricultores progressistas” que tinham como intuito fomentar a instrução do “povo” nos seus direitos e deveres e nos princípios do governo popular representativo. Em 1847 foi fundada uma “Sociedad

19 Amaro Quintas, O Sentido Social da Revolução Praieira (Rio de Janeiro 1967), p. 57; citado por Rauter, Brasil.

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Fátima Sá e Melo Ferreira

Democrática de Artesanos” que se empenhou em levar ao poder José Hilário López, que considerava um “verdadero hijo del pueblo”.20 A eleição de José Hilario López em 1849 representaria, assim, um ponto de viragem na experiência politica popular que a registou como um exercício de soberania. A sua eleição foi, segundo uma testemunha presencial, acompanhada de gritos de “Viva López”, “Viva el pueblo soberano”.21 No programa de uma outra sociedade, a Sociedad de artesanos de San Jil con el nombre de Obando, considerava-se que só havia duas classes: “la de los nobles [...] hombres fuertemente adheridos a su nobleza, títulos, prerrogativas, riqueza, vanidad, orgullo i descomunal soberbia” e a de “los demás hombres de distintos colores, cuya masa se ha llamado hasta oi el bajo pueblo [...]”.22 Voltava a exprimirse deste modo uma visão binária da sociedade que o avanço de uma conceptualização de “povo” integrando uma classe intermédia entre classes “nobres” e “plebe” já tinha questionado. A ordem conservadora anteriormente instalada também desencadeou no Chile levantamentos locais como manifestação de descontentamento. Em 1851 Santiago Arcos, um membro da Sociedad de la Igualdad e protagonista de um levantamento derrotado pelo governo, denunciava uma situação politica em que soldados, milicianos, mineiros lavradores e camponeses tinham “gozado de la gloriosa independencia tanto como los caballos que en Chacabuco y Maipú cargaron a las tropas del rey”. A enumeração das formas de trabalho exercido pelos homens do povo patenteia uma evolução semântica do termo que o conduz a uma identificação clara com a esfera dos pobres e dos trabalhadores, como nota Marcos Fernández. Do “povo” assim entendido, reabilitado pela instrução, se esperava a regeneração da ordem política vigente. Um outro rumo a considerar nos caminhos trilhados nestes anos seria o da aproximação entre “povo” e “nação”, um termo que se contava já nos finais do século XVIII entre os significados de “povo” 20 Carmen Escobar Rodriguez, La revolución liberal y la protesta del artesanado (Bogotá 1990), anexo 5; citado por Garrido/Lux, Colômbia. 21 José María Cordobez Moure, “La ruidosa elección de José Hilario López”: Reportaje de la Historia de Colombia, 2 tomos (Bogotá 1989), tomo 1, pp. 423–429; citado por Garrido/Lux, Colômbia. 22 Francisco Gutiérrez Sanin, Curso y discurso del movimiento plebeyo 1849/1854 (Bogotá 1995); citado por Garrido/Lux, Colômbia.

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“Povo” e “povos” no mundo ibero-americano

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registados nos dicionários e que passava, também ele, por um intenso processo de ressemantização. A associação entre os dois termos parece configurar-se ainda de forma relativamente restrita mas em progresso, concomitantemente com a afirmação do singular “povo” em sentido territorial como substituto do plural “povos”. Deve sublinhar-se, mesmo assim, a utilização de sintagmas como “povo brasileiro” ou “povo venezuelano”, entre outros, para além do caso, da fórmula “nos los representantes del pueblo de la Nación Argentina”, incluída na Constituição de 1860. Trata-se de um outro rumo a ter em consideração que, muito embora não pareça ainda estabilizado, merece ser assinalado pelo que anuncia no processo de construção de uma nova identidade entre os termos “povo” e “nação”, ambos objecto de intensa ressemantização no período em análise.

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