Entrevista a Fátima Pinto. Traçar a linha, iluminar a cor

June 13, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Pintura
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Entrevista a Fátima Pinto. Traçar a linha, iluminar a cor.1 Emília Ferreira O que é fundador no teu trabalho? O desenho ou a cor? No meu trabalho tanto o desenho como a cor são fundamentais e complementares, um leva sempre ao outro.

Como começas um projecto? Tens um modus operandi ou varia de caso para caso? Um projecto é sempre um processo, uma viagem que, como um jogo, me questiona e me põe em causa. O ponto de partida são muitas vezes imagens ou ambientes que me tocam particularmente e me sugestionam; isto não significa que no trabalho acabado lá permaneçam, trata-se apenas de um ponto de partida. A noção de modus operandi no meu trabalho aplica-se exclusivamente a questões de ordem técnica. O processo de construção varia de caso para caso e de etapa para etapa, é multifacetado e nele há períodos em que experimentalmente vou construindo, desconstruindo, depurando e que alternam com períodos de contemplação.

Quais são as tuas referências? Grande parte das minhas referências foram surgindo ao longo do meu percurso, mas cada trabalho também gera as suas; o acaso tem aqui um papel determinante sendo que cada quadro tem a sua especificidade. Há no entanto referências que têm sido persistentes ao longo de várias fases, por exemplo, a arquitectura tem vindo a manifestar uma forte presença. Genericamente referência é tudo o que me atrai e motiva. Há referências que são objectos de particular interesse e contemplação como, justamente, a arquitectura, mas, também, paisagens urbanas e naturais, pessoas, animais e objectos; mas há ainda

FERREIRA, Emília. (2009). “Entrevista a Fátima Pinto. Traçar a linha, iluminar a cor”. Fátima Pinto. Margens. Catálogo da exposição na Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea, Almada, 30 Maio – 30 Agosto 2009. Curadoria de Emília Ferreira. Exposição realizada em colaboração com o Instituto Camões. ISBN: 978-972-8794-651. Pp11-15. 1

referências que são subjectivas, as que fazem parte da minha cultura: vivências, memória, sonhos e afectos, que tenho a necessidade de "abrir" e tornar palpáveis para depois as contemplar. Há como uma necessidade quase compulsiva de me apropriar e jogar com elas. Lembro-me que, já em criança, quando não podia ter um objecto que desejava, o desenhava tornando-o assim meu.

A tua pintura tem um claro carácter cenográfico, também algo narrativo, no sentido em que insinua a ocorrência de estórias que se desenvolvem à nossa frente. Podemos falar de uma matriz cinematográfica no teu trabalho? Existem porventura na minha pintura referências cinematográficas e pode sugerir a quem a contempla uma espécie de narrativa. A resposta a esta pergunta está em grande parte contida na questão das referências atrás mencionadas, que fique no entanto claro que a pintura é para mim um fim em si própria e nela preocupo-me sobretudo com a construção em termos abstractos e não com qualquer narrativa. Abro janelas mas não pretendo contar uma história.

Apesar dessa encenação (como agora se esclarece), a tua pintura não é propriamente realista, porque a escala e a composição lhe impõe jogos que, perspecticamente, criam uma aparência de irrealidade na escala. Como escolhes a “hierarquização” das imagens? Que ordem dita o seu tamanho, a sua relevância na composição? Mais uma vez abordamos aqui o assunto da concepção/construção do quadro. Como se trata de um processo estético, abstracto, lúdico e intuitivo não existe uma hierarquia que se ordena particularmente pelo tamanho, existe sim uma função pictórica de cada parte na construção do todo. Relevância não é função do tamanho. Há no meu trabalho quadros não realistas em termos de escalas e perspectivas mas, justamente por gostar de brincar com escalas, há também quadros que desse ponto de vistas são realistas.

As tuas pinturas variam muito na escala. Por vezes são bastante grandes, outras vezes são muito pequenas, como se se tratasse de um pormenor de um quadro maior – sem que, contudo, se perca a coerência compositiva. Como determinas a escala de uma pintura?

O processo de concepção/construção de um quadro é em grande parte intuitivo. A coerência existe porque, entre outras coisas, por exemplo, não parte de um desenho que depois é ampliado, abordo cada quadro como um mundo com o seu próprio tamanho e tenho necessidade de variar as dimensões das telas. É de notar que normalmente há vários quadros em curso e que, conforme a minha disposição na altura, gosto, por exemplo, de, trabalhar num maior ou num mais pequeno.

Novamente a questão da escala: por vezes, na tua pintura, a composição funciona como um complexo sistema de caixas chinesas, com planos sobre planos, ou dentro de planos, como janelas abertas na composição, deixando ver – dentro de um tema central – uma série de outras possíveis narrativas simultâneas. Como pensas esses diversos planos? Os mecanismos são complexos, variam de caso para caso (de quadro para quadro) e ao longo da execução. Muitas vezes esses planos surgem como um jogo ou pela necessidade de um contraponto ou de equilíbrio em relação ao que já lá estava. Há ainda um aspecto que quero mencionar no que diz respeito à questão da escala no meu trabalho. O jogo de escalas que pode ser visto na minha pintura tem algo de lúdico que faz parte de mim desde a minha infância, trata-se de um deslumbre que persiste até hoje, me envolve e desejo explorar. Todas as crianças, por serem pequenas num universo nem sempre à sua escala, gostam de brincar e imaginar mundos de escalas diferentes. Desde que me lembro sempre achei a escala um fenómeno misterioso e fascinante e sinto até hoje uma grande atracção por miniaturas de pessoas, animais e objectos ou ainda de grandes ampliações, pelas mesmas razões também me fascinam diferentes pontos de vista: olhar de dentro para fora ou o inverso, olhar de alto, de longe, etc.. Sempre imaginei e desenhei mundos desses, por exemplo, em miúda fascinavam-me os formigueiros (cidades de formigas), passei horas a brincar no mundo das formigas.

O processo criativo é para ti mais mental ou mais intuitivo? O processo não é linear, ambas as componentes intervêm, estão interligadas e nenhuma prevalece sobre a outra.

Podes falar concretamente do teu trabalho de desenho? O que é que o desenho te dá de diverso da pintura? O desenho propriamente dito, enquanto desenho, é uma actividade diversa da pintura pois nele não existe a componente de experimentação e reciclagem que esta tem. Trata-se de um processo espontâneo e intuitivo próximo da escrita e da fotografia, é imediato e descomprometido. Geralmente não tenho no desenho a intenção de finalizar como é o caso na pintura, funciona frequentemente como um apontamento. É uma actividade relaxante e estimulante mas uma vez o desenho terminado olho-o como olho uma pintura.

No desenho, quando é que sentes a necessidade de usar cor? A cor é algo de muito sensual e surge quase por instinto quando o desenho ma "pede". Explicar por palavras exactamente o que é este "o desenho ma pede" não sei fazer, diria que é um "feeling".

O desenho, como exercício preparatório da pintura, é seguido à risca, ou a pintura alteralhe substancialmente os planos? Pode ser alterado substancialmente visto que, como ferramenta ou rascunho para a minha pintura, me ajuda a pensar o quadro mas, no final, a pintura segue a sua própria coerência. No entanto acontece com alguma frequência desenhar no próprio quadro e experimentar, podendo esse desenho permanecer de forma elaborada (digo elaborada sobretudo porque a luz na pintura tem uma presença muito diferente da do desenho) ou não. No entanto é importante distinguir esses desenhos dos que são concebidos para serem mesmo desenhos.

Qual é a diferença entre eles? Quais são os desenhos que são para ficar como tal, e quais são os que se destinam a pré-organizar a pintura? Há desenhos que, tal como uma pintura, são um fim em si próprios, há até casos em que se distinguem da pintura apenas pelo suporte em que são executados. Outros são

esquissos, apontamentos, ideias que podem, ou não, vir a ser utilizadas na pintura. Entre estes dois pólos há todo um território nem sempre fácil de definir.

Quando é que um trabalho está terminado? Um trabalho está terminado quando coexisto em paz com ele. Geralmente há um período de "pousio" em que o mudo de ambiente e sai do ateliê, por exemplo, para a minha sala. Quando mais nada me perturba e o meu olhar pousa sobre ele com serenidade considero o trabalho acabado.

Deitas muito fora? Desagrada-me a expressão "deitar fora". Se se entender deitar fora como o deitar para o lixo quadros com que não estou satisfeita, a resposta é não. Considero até estimulante a utilização, experimentação e "reciclagem" que ocorre quando algo me desagrada e isso faz parte integrante da minha forma de trabalhar.

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