Entrevista a Rui Sanches. Algumas linhas sobre a obra

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: ESCULTURA, Desenho
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Entrevista a Rui Sanches. Algumas linhas sobre a obra1 Emília Ferreira

Pergunta mais óbvia. Que relação entre o desenho e a escultura? Claro, logo para começar... Mais óbvia e mais difícil. É muito variada essa relação. Há uns casos em que as coisas se relacionam directamente pelo tema ou pela iconografia; outras vezes a relação é mais abstracta e tem que ver com um certo tipo de representação de espaços, um certo tipo de relação entre formas mais orgânicas e outras mais geométricas, a relação entre partes que são mais espontâneas e mais processuais e outras que são mais calculadas e mais analisadas e feitas de uma forma mais predeterminada. Portanto, varia muito.

Quando começas o trabalho da escultura começas sempre pelo desenho, nunca pelo desenho ou às vezes pelo desenho? Às vezes pelo desenho. Às vezes pequenos desenhos muito vagos. Por vezes só relações entre as formas ou coisas desse tipo, que depois evoluem para estruturas mais complexas. Muitas vezes não tem que ver com a escultura global mas apenas com partes da escultura que depois são elaboradas e se tornam mais complexas.

Portanto a escultura não é necessariamente toda desenhada antes de ser feita?

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Entrevista do catálogo da exposição Rui Sanches. Relações Formais. Realizada na Casa da Cerca-Centro de Arte Contemporânea, de 2 de Junho — 2 de Setembro de 2007. ISBN: 978972-8794-40-8.

Não, não. Por vezes nem chega a ser desenhada. Às vezes é apenas feita uma maquete antes; depois a partir daí é feita a escultura definitiva. Outras vezes são feitos um ou mais do que um pequenos esboços que levam à construção da escultura.

E essas maquetas são em que material? Normalmente em barro. Às vezes também com a utilização de balsa ou balsa e acrílico mas o barro é a base, o material principal.

E são sempre muitos pequeninas, imagino, ou médias em relação ao tamanho final da escultura? Não, são sempre pequenas. Normalmente têm todas uma escala próxima, todas à volta de vinte centímetros, vinte e tal centímetros, e depois por vezes daí sai uma coisa com cinquenta centímetros outras vezes coisas com 2 metros.

Como é que decides depois a escala do objecto? Porque se as peças começam todas assim de um modo quase táctil, como é que elas depois evoluem para objectos maiores? É uma decisão bastante intuitiva, tem que ver com o tipo de relação que eu penso que a forma deve ter com o corpo do espectador, portanto aproximar-se mais ou menos da dimensão do corpo do espectador; por vezes ultrapassar um pouco ou estar um pouco abaixo. Tem a ver com uma decisão da relação a estabelecer com o corpo do espectador; mais próxima da dimensão do corpo, ou partes do corpo, às vezes é uma cabeça, fragmentos dum corpo que podem, ou não, ser feitos à escala real.

Na tua obra, e nomeadamente na escultura, tens sempre uma relação grande com o espaço, como por exemplo o espaço da arquitectura. Gostas de arquitectura e a tua escultura parece pensar uma série de problemas arquitectónicos. É um disparate, isto? Não. A escultura tem uma relação com a arquitectura a nível estrutural. São estruturas construídas nas quais aparecem as mesmas relações que na arquitectura. Há casos em que essas estruturas aparecem em escalas diferentes, escalas que vão da escala de maquete à escala real. Do real à ficção. A escultura é muitas vezes um mediador entre o espectador e o espaço (arquitectónico). Permite ao espectador “criar” o espaço.

Estávamos a falar do tempo de maturação da própria obra e do tempo que ela leva a dizer qual o caminho a seguir. Portanto, há um lado acidental neste processo, não é? Exactamente. Há um lado acidental e depois um tempo de... não é bem passividade, é um tempo de contemplação daquilo que se fez. Eu acho que tento ter sempre uma atitude menos de execução, não se trata tanto de realização duma acção sobre a realidade exterior mas de absorver, estar atento a sinais dessa realidade exterior, muitas vezes provocados por uma acção minha. Mas depois há uma distanciação em relação a essa acção, depois a contemplação desse resultado e de novo a acção que tem que ver com o resultado da primeira acção feita. Quando se olha para o trabalho do desenho, por exemplo, percebe-se que há ali um lado mais espontâneo mas também há um modo muito contido de pensar e de reorganizar a matéria que vai surgindo. E essa faceta mais contida aparece muito na fineza do traço, na geometria que sobressai no meio das formas mais orgânicas, e isso faz também pensar nos modos de trabalhar o desenho. Como é que fazes, manualmente, aqueles gestos? O que é que usas?

Uso uma grande diversidade de meios, desde canetas, lápis, grafites, fitas isolantes — há certas zonas que são isoladas com fitas ou com máscaras, depois a tinta é aplicada dentro desses espaços reservados. Então, há uma série de estratégias que têm que ver com a criação de perguntas que são orquestradas de maneira a produzir um efeito que não é completamente controlado e depois a partir desse efeito poder fazer uma outra coisa a seguir. Portanto, há uma série de regras criadas por mim que são predeterminadas: agora tapar determinadas zonas do papel e deixar só umas zonas rectangulares com estas dimensões abertas, trabalhar essas zonas e depois tirar as máscaras e a partir desse confronto entre zonas brancas e zonas que já estão trabalhadas; pensar o que é que vou fazer a seguir. E aí eu acho que há também uma relação importante entre a escultura e os desenhos, nessa maneira de trabalhar. Muitas vezes as esculturas não são completamente planeadas e predeterminadas. Há aspectos em que eu já sei mais ou menos o que quero fazer; são feitos, e depois a partir daí surgem outras coisas, outras relações com outros elementos que vão ter que ser idealizados, que não estavam previstos em termos de tempo de trabalho.

Há um lado serial no teu trabalho. São investigações seguidas, contínuas, e às vezes parece que passado algum tempo retomas uma linha duma série anterior para a fazer já de outra maneira. Mas retoma-la como se voltasses um pouco atrás e pegasses outra vez num fio que ficou solto. O que eu gostava de saber é: qual é o papel das séries? Ou seja: quando começas uma série sabes do que é que estás à procura ou vais em busca de alguma coisa que não sabes aonde vai dar? Normalmente não sei aonde é que vai dar. As séries muitas vezes começam.... Aí também depende. Às vezes há um primeiro desenho e esse desenho abre portas diversas e portanto os outros vão explorar essas diversas hipóteses. A pessoa depois tem que tomar decisões, quando está a fazer um desenho, chega a um determinado momento, “viro para a esquerda ou viro para a direita?”; vai para a direita. Logo faço depois um outro em que vou para a esquerda, para ver o que é que acontece. Portanto há esse lado de explorar

alternativas diferentes. Às vezes o trabalho é pensado como série, por ter que fazer várias experiências porque há tantas hipóteses a explorar e interessa-me ver o que varia. Às vezes começo com ideia de fazer uma série, outras vezes não. Não sei o que vai sair. Posso começar por fazer um desenho, depois abrese uma porta e depois faço outro, depois outro: são portas que se abrem por aí fora e as formas vão sendo exploradas. Por vezes começo logo até a trabalhar em vários desenhos ao mesmo tempo. Há uma primeira fase em várias folhas de papel, depois volto ao início, depois faço uma outra fase em todas essas folhas de papel, depois volto à primeira... As coisas vão sendo trabalhadas, uma série de papéis todos ao mesmo tempo. No desenho também há dimensões diferentes, como na escultura. E como é que defines uma dimensão, como é que a escolhes? Isso também varia. Também há razões diversas. Às vezes tem que ver com um desenho que começa por ser um tipo de desenho numa folha de papel com uma determinada dimensão e por alguma razão interessa-me ver como é que isso funcionaria numa dimensão maior. Outras vezes são os próprios meios que estão envolvidos que exigem uma determinada dimensão, por exemplo há desenhos em que são usadas partes de esculturas como réguas, gabaritos, para desenhar formas. Portanto, esses desenhos já têm à partida uma dimensão que exige uma folha de papel com uma certa escala. Portanto, varia muito. E aí também mais uma vez o desenho é ligado à escultura, como se fosse um outro modo de a reescrever, ou é só mais um exercício? Não, é uma coisa que eu faço recorrentemente. As esculturas são muitas vezes uma espécie de “empilhar” de desenhos, de recortes em folhas de contraplacado, quase como desenhos que depois são colados uns sobre os outros para fazer uma forma tridimensional. Por vezes esses mesmos desenhos podem ser espacializados de outra maneira sobre a superfície de um papel. Organizados de outra maneira. E sugerem depois outro tipo de espaços através da sua dispersão sobre a superfície do papel. Sugerem outras

associações, por vezes há mesmo um tipo de imagens, certas esculturas, que sugerem partes de corpos ou partes de estruturas orgânicas. E por vezes esses planos de madeira que formam a escultura são organizados de outra maneira na superfície do papel, sugerem também partes de corpos ou estruturas orgânicas, mas de outra maneira, um outro tipo de relação com a iconografia e com as formas tradicionais de representar o corpo, etc., etc. O teu trabalho passou por uma fase em que tinha um referente pictórico. Depois deixaste de o fazer. Por outro lado os teus trabalhos normalmente não têm título, ou seja não há pistas para a leitura que não sejam as próprias formas. O que é que significou esse abandono da relação com a pintura? Significou por um lado um certo cansaço desse modus operandi de partir sempre de uma imagem ou de um tipo de iconografia de qualquer género e por outro lado também uma vontade de tornar as coisas mais interessantes para mim próprio, para o espectador. E uma sensação de que estava a ser decididamente conotado com esse tipo de aproximação à escultura. As pessoas iam já à partida com esse tipo de expectativa e os críticos ou as pessoas que escreviam sobre as coisas falavam sempre desse ponto de vista. Por outro lado, acho que isso também correspondeu a um período em que essa era uma estratégia de distanciação em relação às decisões que eu tinha que tomar para construir formas tridimensionais, era uma maneira de não ter que tomar decisões de uma forma excessivamente subjectiva. As decisões eram ditadas por uma entidade exterior que era o quadro que já existia. Portanto eu limitava-me de alguma maneira a seguir os dados de composição, a maneira como a estrutura do quadro estava conseguida, concebida. A estrutura da escultura iria depender daí, portanto havia um afastamento em relação à minha subjectividade e ao meu gosto que era um gosto pessoal. Ou seja: dar uma certa universalidade àquelas estruturas formais. Por outro lado isso também correspondia se calhar a uma certa falta de autoconfiança da minha parte. Houve uma maturação no meu trabalho que me levou a estar mais à vontade para tomar determinadas decisões, fazer determinadas opções de uma forma mais livre e mais descomprometida do que encontrar uma caução, uma autoridade pré-existente em relação às coisas que eu fazia.

Falando agora da contenção. Há um lado quase austero no teu trabalho, tanto na escultura como no desenho. No desenho sente-se isso pela contenção da linha e na escultura sente-se pelos materiais usados, além do modo como o volume é trabalhado. Já uma vez disseste que a escolha dos materiais teve a ver com o período em que estavas nos Estados Unidos, mas depois continuaste a usá-los. Porquê? Sentias-te à vontade com eles? A escolha dos materiais tem a ver com o quê? A escolha dos materiais tem a ver com a familiaridade que se estabeleceu. Nos Estados Unidos encontrei essa presença muito enfática da construção em madeira, da arquitectura de madeira, e a utilização de sucedâneos da madeira processados industrialmente, que é uma coisa muito presente na sociedade americana; isso foi obviamente uma influência importante. Depois, um certo gosto e afinidade por esses materiais, que são materiais que eu me habituei a trabalhar, que são fáceis de trabalhar. Sinto uma certa familiaridade com esses materiais, gosto dessa presença que não cria distância, porque são pouco impositivos, não são excessivamente caros, não são excessivamente raros... há um lado de uma certa facilidade da bricolage que está ao alcance de todas as pessoas, de que eu também gosto, não são coisas em que é preciso uma grande capacidade técnica para as fazer. Tecnicamente, qualquer pessoa com um mínimo de conhecimentos de carpintaria básica consegue fazer aquelas coisas, portanto são materiais que eu me sinto à vontade a trabalhar sozinho, como não exigem meios técnicos complicados, são coisas que eu domino com facilidade. Eu normalmente gosto de trabalhar sozinho, por isso as coisas não são muito pesadas, são manuseáveis por uma pessoa, há toda uma série de características com que eu me identifico. Também são materiais quentes, há uma relação com a temperatura do corpo, com a temperatura dos corpos das pessoas. Por vezes eu gosto também do contraste, de introduzir um outro material completamente oposto – vidro ou ferro ou bronze, que são materiais duros, frios, cortantes, mais agressivos, com que é fácil estabelecer o contraste com a madeira, portanto há uma variedade de propostas que me interessa explorar. Interessa-me muito a possibilidade de não ficar muito cingido a um

certo tipo de linguagem, de poder abrir hipóteses da mesma maneira que um escritor pode escrever um poema, depois pode ser um conto ou um romance, pode escrever coisas com um carácter mais ficcional outras mais documentais, outras mais não-ficção, mais ensaísticas; enfim, os vários registos que uma pessoa pode usar no seu trabalho. Eu também gosto de variar, de ter essas várias hipóteses.

Estavas a falar na questão de gostares de trabalhar sozinho... e a dimensão, o facto de também normalmente não teres trabalhos com escalas monumentais também permite que possas montar as esculturas sozinho. Mas também há os elementos em bronze. Esses obviamente tens de os desenhar e mandar fazer. Esses elementos em bronze surgem no mesmo tempo maturado da escultura e obrigam-te também a esperar que ela depois se resolva quando eles chegam do fundidor para as continuares, ou não? Sim, sim. Muitas vezes são coisas que eu não sei exactamente como é que vão ficar. Às vezes entram também dentro dessa lógica de variação. Por vezes os bronzes são mais do que um e depois são inseridos em esculturas diferentes. Outras vezes a partir do mesmo bronze são feitas várias esculturas que depois acabam por ser pintadas de cores diferentes, ou tratadas de maneiras diferentes, mas topologicamente a mesma forma de bronze vai sendo usada de maneiras variadas. E também gosto desse intervalo de tempo que às vezes é preciso... Levo o modelo para o fundidor, o fundidor faz a fundição, depois aquilo vem já fundido em bronze, depois decido como é vou fazer o acabamento, se é patinado, se é pintado, se é mais ou menos acabado e depois a maneira como esse acabamento funciona com as formas à volta, madeira, etc., portanto há toda uma série de tempos diferentes que eu gosto que façam parte do processo.

O vidro também não és tu que o cortas; és tu que o mandas cortar dentro de uma determinada lógica.

Exactamente. Mando cortar o vidro. Também há esculturas em que eu não toco. Por exemplo, uma escultura para um espaço público, feita em aço, com uma dimensão maior que as minhas esculturas normais, é por vezes feita numa escala menor ou muito menor, ou numa escala próxima mas não na escala real em que a escultura fica e depois passada a outro material final. Portanto, nesse aspecto também há a intervenção de outras pessoas, não sou eu próprio a fazer as coisas.

Falemos então da obra pública. Normalmente associamos o teu trabalho escultórico à madeira e portanto pensamos sempre em esculturas de interior. Mas essa obra pública corresponde também a um trabalho de encomendas. Como é que te relacionas com a encomenda dum trabalho? Gosto imenso de encomendas. Gosto imenso de trabalhar para sítios específicos, sejam eles públicos, sejam privados, escultura de encomenda para jardins de particulares ou para uma praça, ou para um espaço público seja ele qual for, interior, exterior. Tenho trabalhado para vários tipos de espaços diferentes e gosto muito desses constrangimentos, de pensar uma coisa adaptada para um sítio ou porque é uma casa particular ou porque é um espaço público, como a Assembleia da República, com esse peso histórico, político, institucional ou um jardim ou uma praça. Para mim é muito estimulante esse tipo de encomendas que resulta naturalmente em coisas muito diferentes. Já tenho concebido coisas que são feitas depois em betão, pedra, em aço, em madeira, conforme os casos, conforme os sítios, conforme as encomendas, conforme o programa. Para mim é uma coisa muito excitante a situação de encomenda.

Além da relação da peça com a luz, qual é a relação da peça com a sombra? Por exemplo: no desenho não é muito evidente o trabalho da sombra. É evidente a relação dos diferentes volumes, as voltas que o traço dá no espaço, etc.. Há desenhos em que parece haver um traço com o seu duplo, mas é mais do que uma sombra. A mim não me parece muito evidente o trabalho de

sombra no desenho. Mas esta preocupação existe ou não? E na escultura como é que funciona? Na escultura existe muito essa preocupação. Apesar de a iluminação ser uma coisa que a pessoa pode controlar até certo ponto, não é?, nunca se sabe exactamente... se a escultura não tem um destino preciso não se pode controlar completamente depois a iluminação que vai ter, mas há até certo ponto uma iluminação que é trabalhada, um viver com a luz e com a sombra que é trabalhado. Interessa-me muito essa questão de haver zonas que vão ficar mais na sombra, de haver zonas que vão ficar mais na luz, em que esses contrastes de luz e sombra têm uma importância evidente. Há sempre zonas que vão ficar quase inacessíveis ao olhar do espectador, zonas quase todas resguardadas, em que a sombra cria quase uma espécie de buraco negro, portanto a maneira como a luz vai modelar e apresentar os volumes é fulcral. No caso dos desenhos isso por vezes aparece mas não de uma forma tão óbvia. O que existe como contraste claro-escuro são zonas negras e brancas, zonas cinzentas e brancas, zonas mais cinzentas, menos cinzentas. Às vezes há desenhos em que há um tratamento de chiaro-scuro mesmo, tratado como se fosse modelação na pintura renascentista, digamos. Isso não é muito comum mas acontece por vezes. Outras vezes são certas zonas escuras que poderão eventualmente ser lidas como sombras de outras zonas claras. Onde isso foi tratado de maneira mais evidente foi numa série chamada mesmo Dúvida de sombra, em que há umas formas brancas e umas formas negras em que uma é a sombra da outra, dum modo como uma forma se relaciona com a sua sombra, sem isso ser muito evidente, ou às vezes ser até contraditório, daí o jogo de palavras com o título, não é?, de Dúvida de Sombra.

Tu começaste como pintor, abandonaste a pintura, mas muitas vezes sente-se uma certa tentação pictórica também nos desenhos, nomeadamente nesses que têm formas mais orgânicas, quase voluptuosas. É uma tentação esporádica ou dirias que ela também se manifesta nas gradações dos cinzas, dos brancos dos outros desenhos?

Sim, eu acho que muitas vezes os meus desenhos se aproximam de pinturas em papel e são próximos de uma coisa muito pictórica, mesmo no tratamento das matérias. O meu interesse pela pintura é sempre muito forte e interessame muito essa zona entre a pintura e a escultura, a maneira como as coisas se aproximam da escultura, se aproximam da pintura... todos esses espaços entre as categorias interessam-me bastante. Não acho que faça muito sentido uma divisão muito rígida entre o pintor e o escultor, entre a pintura e o desenho, acho mais interessante essa possibilidade de passear entre essas gamas todas de proximidade e afastamento...Claro, eu não digo que um dia destes eu não pinte outra vez, mesmo, quadros com pintura-pintura, tudo pode ser. Porque não? Quando usas uma cor, um material, escolhes pela cor ou pela textura ou brilho? Como é que escolhes os pretos, os brancos? Em função de quê? É por todas essas características. Em função das qualidades sensíveis que esse material tem: pode ser a cor, pode ser o brilho, pode ser uma conjugação das duas coisas ou de mais outras características, mas tem que ver com as qualidades sensíveis do material sempre e eventualmente com alterações que essas qualidades sensíveis possam ter e que me interessem por alguma razão. Questão do brilho, de reflectir mais ou menos a luz, a questão da intensidade do negro... Há negros que são muito profundos, que criam um buraco na superfície do papel, por exemplo; uns negros muito aveludados, muito intensos, muito profundos. E às vezes interessa-se por exemplo contrastar isso com um negro absolutamente bidimensional que reflecte a luz, que cria uma superfície perfeitamente opaca que o olhar não penetra, portanto é esse tipo de questões. Mas a base é sempre a qualidade sensível do material, a maneira em que ele se comporta, sensivelmente, perante nós. Outra coisa: a cor mais variada e mais variável aparece por vezes nos apontamentos da escultura mas não se encontram nos desenhos. Tem sido uma coincidência ou tem alguma razão específica?

Quando eu fazia pintura a questão da cor era uma questão que eu tinha alguma dificuldade em trabalhar. Eu não tinha uma relação intuitiva com a cor. A cor aparecia muitas vezes na minha pintura de uma forma mais programática. Ou era a cor local, ou era a contradição da cor local, ou era uma relação qualquer conceptual para a cor. Não era uma coisa intuitiva, sensorial, imediata. O meu desenho sempre foi um desenho mais próximo do desenho analítico, mais de linha, em que a cor apareceria como um elemento do desenho ou da pintura mas com esse carácter um bocado conceptual. O facto de os materiais à partida terem cor e de não ser preciso eu acrescentar cor (a cor já lá está) é uma coisa que me facilita também a vida; portanto, escuso de pensar na questão da cor. A cor às vezes aparece quase por negação: pintar de branco uma coisa que tem cor; ou mais por adição. As esculturas com cor são muito raras e muito localizadas como no caso desses bronzes pintados ou uma escultura em que há zonas pintadas de castanho, que tem mais a ver com a própria cor da madeira. A cor é uma coisa que tem uma presença/ausência no meu trabalho, digamos. Há partes da escultura que são ready-made. Como é que te relacionas com o ready-made?Como é que decides incorporar um objecto pré-existente numa escultura que está em curso? Hoje em dia é menos vulgar isso acontecer no meu trabalho. Pode acontecer, não estou a pôr isso de lado, mas não é tão corrente como já foi há algum tempo atrás. Mas a ideia é sempre incorporar objectos ou partes de objectos que têm uma existência prévia, portanto trazem uma certa história, um certo passado, mesmo que sejam objectos novos. Às vezes há peças em que incluo aquários para meter água ou candeeiros, apliques de latão ou canos de água, coisas desse género... Normalmente não são objectos usados, não são coisas encontradas com a história já da sua utilização, mas são objectos comprados de novo, objectos que têm essa componente de serem feitos para um fim específico, portanto não foram feitos a pensar ser parte de uma escultura mas têm uma funcionalidade qualquer, portanto é a partir dessa funcionalidade anterior que eles são usados e funcionam no fundo como um efeito de colagem. A introdução de um elemento exterior à linguagem escultórica ou

pictórica que está a ser usada e que vai criar uma espécie de choque dentro da economia da peça, portanto vai criar uma tensão, vai abrir portas para outro tipo de associações e vai introduzir uma linguagem de produção de objectos. Portanto, a lógica da produção daquele objecto que é o candeeiro por exemplo é diferente da lógica da produção da escultura, portanto vai introduzir uma lógica de produção diferente e abrir caminhos para outras interpretações e para outras associações que me interessam. E isso não sublinha também aquela relação com a arquitectura? Ou não tem nada a ver? Eventualmente eu acho que pode sublinhar ou não. Depende do tipo de objecto que é. Por exemplo no caso dos canos de água, sim. Introduz também um efeito que interessa que é o de realidade, ou seja aqueles objectos são objectos reais, nós sabemos que têm uma função e portanto esse efeito de realidade, de factualidade perturba um bocadinho a leitura ficcional que a peça tem. É quase como introduzir um bocadinho de um documentário num filme de ficção, qualquer coisa desse género. Tem um efeito de realidade. Nós sabemos que lemos aquilo com códigos diferentes dos códigos das obras de arte. E obviamente que isso também já tem história, já não sou a primeira pessoa que estou a fazer essa relação com objectos pré-existentes, portanto isso também já vem inserido dentro de uma tradição moderna, que funciona também quase como uma citação de uma atitude. Portanto, é uma coisa um bocado complexa dentro da economia do trabalho. Em relação ao ready-made em si mesmo, a atitude pura, o ready-made puro, duchampiano, não me interessa, não vou usar esse tipo de gesto. Mas interessa-me a ideia da inclusão no sentido da colagem, a inclusão de objectos que têm origens diferentes. Em relação ao desenho como é que organizas, como é que pensas (se pensas) no processo? Como é que pensas o equilíbrio entre a geometria e a organicidade?

Eu tenho dificuldade em separar as duas coisas. Porque a geometria em si mesma não me interessa por aí além. Interessam-me as características de uma linguagem mais rigorosa que permite um certo tipo de clareza nas relações entre as coisas e tornar isso evidente. Portanto, essa clareza interessa-me. Interessa-me contrastar isso com outros tipos de fazer que não são tão claros. Interessa-me ter essa gama de hipóteses entre a clareza absoluta e a escuridão absoluta (ou a não clareza absoluta) e depois poder trabalhar dentro desses vários matizes. Não me interessa a geometria a não ser por oposição a outro tipo de coisas. Nunca fiz um desenho totalmente geométrico. Acho que não existe na arte essa coisa da geometria absoluta. O Mondrian não é geométrico. Aplica a tinta de maneira manual... Eventualmente haverá no hard edge americano esse tipo de coisas, mas mesmo isso não é propriamente geometria pura. Portanto a geometria em si não me interessa. Quando estou a fazer desenhos não estou a fazer cálculos para saber qual é a dimensão, se as proporções são exactamente aquelas. Não me interessa muito essa geometria no sentido da geometria simbólica e das proporções serem estas ou serem aquelas. Interessa-me a geometria que tem a ver com uma utilização de um certo tipo de clareza que permite estabelecer essas relações... claras. Quando é que uma peça está acabada?

Quando é que uma peça está acabada? A minha relação com a peça vai evoluindo até um ponto em que se torna um sujeito, deixa de ser um objecto. Ou seja, ganha uma autonomia, uma existência separada de mim e deixa de haver uma espécie de cordão umbilical, que exige a constante alteração e quando a peça tem essas características de autonomia e de me interpelar como uma coisa exterior, nessa altura é que eu vejo que está acabada.

E percebes isso no processo? Exacto. É ao longo desta relação que vai evoluindo com o tempo em que há uma altura qualquer em que eu sinto que a peça tem essa capacidade de ser

separada, de ser uma coisa autónoma e que é uma presença que deixa de ser meramente objectual e passa a ser um sujeito que tem essa capacidade de interpelação. Quando é que sentes que tens de rejeitar um trabalho? Acho que tem que ver com a resposta anterior. Quando sinto que esse trabalho não tem suficiente autonomia, quando não é suficientemente capaz de surgir por si próprio, das duas uma: ou é rejeitado ou é alterado. Não é muito vulgar eu rejeitar trabalhos. Se calhar com os desenhos é que pode acontecer isso com mais frequência. Desenhos que dificilmente podem ser alterados porque já têm uma série de decisões que foram penosas e que já não é possível, até pelas características dos materiais, alterar. A minha escultura tem um bocadinho essa característica de poder quase sempre ser alterada quase ad inicium, quer dizer pode-se sempre voltar atrás porque ela ainda não está colada, ainda não há decisões que vinculem aquilo completamente e portanto pode-se quase sempre voltar e refazer, portanto é raro rejeitar propriamente uma peça.

Quando desenhas, pensas o desenho (o desenho é um modo de pensar, para ti?) ou é uma coisa mais intuitiva? Pensas a desenhar, como Leonardo, ou quando desenhas não pensas, como dizia Sol LeWitt? Bem, ele não pensa quando está a desenhar porque já pensou tudo antes de começar a desenhar, não é? Portanto, para ele desenhar é apenas a execução de uma coisa que já estava completamente conceptualizada previamente. Mas para mim não, para mim o desenho é uma forma de pensar. Eu penso enquanto desenho e o desenho revela-me o pensamento plástico. Através da plasticidade do desenho o pensamento vai-se organizando. Até certo ponto eu penso antes de desenhar, quando começo a fazer um desenho tenho alguma ideia do que quero fazer, mas em grande parte é através do próprio fazer que o desenho se vai estruturando. Muitas vezes isso acontece em desenhos que

são pequenas notas ou coisas feitas num caderno de estudos ou qualquer coisa, que depois a partir daí se vão estruturando as imagens para os desenhos mais definitivos. Ou para as esculturas também. Mas o desenho é usado como uma forma que me faz pensar enquanto está a ser feito.

Para terminar. Quem são os teus heróis? Quais são as linguagens contemporâneas que mais te atraem? Alguns autores que me têm acompanhado de forma mais obsessiva ao longo do tempo. Desde o Picasso – que aparece e desaparece na minha vida recorrentemente; deixo de me interessar e depois lá volto a ficar outra vez... –, o Rodin, o Jasper Johns, o Donald Judd, o Marcel Duchamp; depois, mais para trás, o Miguel Ângelo, Piero della Francesca... Acho que já chega.

E porquê? Porque há sempre um pormenor ou outro. Isto tem variado muito ao longo da vida, por isso é que eu acho difícil dizer quais são os heróis. Por exemplo, o Rodin. O Rodin houve alturas que já me interessou por umas razões e agora interessa-me se calhar por outras. Há certas obras do Rodin a que eu sou sensível hoje e que não era há vinte anos. Portanto, as razões têm mudado. Algumas pessoas são constantemente surpreendentes. Eu olho para o trabalho delas e há sempre qualquer coisa que eu não tinha dado por isso antes. Sei lá, por exemplo, o caso do Jasper Johns: é um artista que muita gente vê como importante num dado momento. O Jasper Johns que é o das bandeiras e dos alvos dos anos 50 e 60 e depois a partir daí tornou-se um bocadinho repetitivo... e eu acho que não, acho que ele é um pintor em que eu encontro sempre, em cada um dos seus quadros, qualquer coisa que me surpreende e que me interpela e me estimula. O mesmo acontece por exemplo com o Richard Serra. Apesar de haver coisas dele que me interessam muito mais do que outras – há esculturas do Richard Serra que têm aspectos que não me interessam; não me interessa nada aquela grandiloquência, aquele peso,

aquela postura impositiva e agressiva – tem sempre outras coisas que me interessam imenso: a maneira como ele é capaz de trabalhar o espaço, de inventar coisas muito simples. Uma experiência absolutamente incontornável: a versatilidade que ele consegue ter a partir sempre do mesmo material, de usar o aço constantemente e conseguir fazer coisas completamente diferentes. Os artistas interessam-me por razões muito diversas; tem variado muito.

Esta entrevista resulta de duas conversas gravadas a 7 de Fevereiro e a 10 de Abril de 2007.

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