entrevista caros amigos - \"novas esquerdas\"

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Q S U E E S R A D

PARTIDOS

CONSENSO E HORIZONTALIDADE 001_capa_NovaEsquerda_80.indd 1

entrevista

AS

NO

ESPECIAL

ano XIX nº 80 / 2016 R$ 13,50

Jean Tible

“a esquerda vai se reorganizar”

COLETIVOS ATIVISMO VIRTUAL E solidariedade

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ESPECIAL CAROS AMIGOS $12;,;î1|îMAIO 2016

ESPECIAL

ano XIX nº 80 / 2016 R$ 13,50

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EDITORA CAROS AMIGOS

EDITOR E DIRETOR: WAGNER NABUCO

sumário REPORTAGENS mídia

PARTIDOS

CONSENSO E HORIZONTALIDADE

entrevista

Jean Tible

“a esquerda vai se reorganizar”

COLETIVOS

04

Mídia partidária fortalece ativismo virtual – por José Eduardo Bernardes

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“É nóis” na rede – por Lilian Primi

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Opções solidárias – por Lais Modelli

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Embate nas profundezas da web – por Guilherme Novelli

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Transbordar o descontrole – por João Peres

ATIVISMO VIRTUAL E solidariedade

ligações

Capa: Simone Riqueira 001_capa_NovaEsquerda_80.indd 1

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militância high tech A humanidade ganhou uma poderosa ferramenta de comunicação, a internet, oferecendo a possibilidade de cada um escrever, fotografar, filmar, publicar, sem intermediários, para outras centenas ou milhares de internautas. Ou reunir por afinidades grupos de pessoas com apenas um post. Junto a transformações profundas nas sociedades, sobretudo os processos de globalização neoconservadora e suas reações, estava dado o fermento para o surgimento de novas relações, novos agrupamentos, que redundou ainda no que se convencionou chamar de “crise de representatividade”, uma rebelião contra as velhas estruturas e hierarquias, que atinge mídia, governo, escolas e, claro, partidos políticos. Este especial de Caros Amigos, Novas Esquerdas, estica o olhar para essa movimentação que, se utiliza de terreno minado e vigiado, o virtual, também produz iniciativas reais que estão mudando as relações e a vida das pessoas. Uma palavra que surge dominadora e emblemática desta geografia social em ebulição é “coletivo”. De todo tipo. Empreendedorismo, artistas, jornalistas, militância… A edição analisa uma boa parte dessa movimentação, incluindo os partidos-movimentos, que buscam relações horizontais como resposta à crise de representatividade. Dessas novas agremiações políticas, Syriza, na Grécia, e o Podemos, na Espanha, tornaram-se as pontas de lança, embora neste momento se debatam

erraticamente sobre si mesmos ao trombar nas velhas estruturas, sobretudo depois de chegarem ao poder, como mostra reportagem em Madri e Barcelona, onde o Podemos governa há quase 1 ano. No Brasil, coletivos e mobilizações via internet levaram milhares às ruas em junho de 2013, a Raiz Cidadanista assume para si a briga com as estruturas clássicas e o centralismo democrático, propondo o consenso e a diversidade; e também iniciativas como #PoliticA, de mulheres que se rebelam contra o machismo e apoiam candidaturas femininas. Traz ainda o exemplo de curdos e zapatistas, que renovam a rebelião com interpretações próprias do marxismo ou do que chamamos revolução. Outras iniciativas, também analisadas nesta edição, são os coletivos de mídia, uma alternativa para a narrativa hegemônica das velhas oligarquias; as novas comunidades baseadas em escambo e as redes de economia solidária, além de entrevista com o doutor em sociologia Jean Tible, que analisa essas mudanças, seus laços com o passado e perfil. Novas Esquerdas tem ainda artigo de Gustavo Gindre, que aborda aspectos da crise de representatividade e ressignificação da política; e da física e doutora em psicologia social, Eda Tassara, sobre a dominação oculta que a internet, um fundamento desses novos tempos, também proporciona. Boa leitura!

Novos padrões Era Digital partidos-movimento experiências

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Balanço espanhol – por Esther Yáñes Illescas

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Sem Estado – Fania Rodrigues

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A revolução silenciosa – Fania Rodrigues

curdos Zapatismo

ENTREVISTA 26 Jean Tible: Novos mundos – Por Aray Nabuco, Lilian Primi e Nina Fideles ARTIGOS 12 Gustavo Gindre: Depois da tempestade 30 Eda Terezinha de Oliveira Tassara: Massa e poder no oculto das tecnologias

EDITOR EXECUTIVO: Aray Nabuco EDITORA ASSISTENTE: Nina Fideles REPÓRTERES: Aray Nabuco, Eda Terezinha de Oliveira Tassara, Esther Yáñes Illescas, Guilherme Novelli, Gustavo Gindre, João Peres, José Eduardo Bernardes, Lais Modelli, Lilian Primi, Nina Fideles REVISÃO: Luciano Gaubatz PROJETO GRÁFICO: Chico Max ARTE: Simone Riqueira CONSULTOR EDITORIAL: José Arbex Jr. MARKETING: André Herrmann (Diretor), Pedro Nabuco de Araújo (Gerente) RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Lúcia Benito Ricco CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves e Douglas Jerônimo LIVROS E PROJETOS ESPECIAIS: Clarice Alvon APOIO: Neidivaldo dos Anjos, Victor Gimenes e Zélia Coelho ATENDIMENTO AO LEITOR: Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Susana Paim Figueiredo, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez; Pillon e Pillon Advogados REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9115-3659.

CAROS AMIGOS, ano XIX, Edição Especial nº 80, é uma publicação da Editora Caros Amigos Ltda. Registro nº 1176000, no 9º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. Impressão: Gráfica Log & Print Redação e administração: Rua Diana, 377, CEP 05019-000, São Paulo, SP Telefone (11) 3123-6600; 0800.777.6601 (Assinatura) E-MAILS: [email protected] (Jornalismo); [email protected] (Publicidade); [email protected] (Assinantes)

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www.carosamigos.com.br Telefone: (11) 3123-6600

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por Aray Nabuco, Lilian Primi e Nina Fideles

Novos mundos “Todo esse caldo da chamada Primavera Feminista, esse novo ativismo negro, da questão das escolas, vai representar uma reorganização da esquerda, ela sempre se organiza”

definição do que seriam as novas esquerdas perpassa conceitos de geração, tecnologia, pautas e principalmente teorias organizativas. Para entender um pouco mais sobre a atuação de novos atores neste momento político, no Brasil e no mundo, a Caros Amigos conversou com o doutor em Sociologia pela Unicamp e professor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo (USP), Jean Tible. Tible lançou, em 2013, o livro Marx Selvagem e organizou o material de análise sobre as manifestações de junho de 2013 no Brasil, publicado em 2014, intitulado “Junho: potência das ruas e das redes”. A partir das experiências de junho de 2013, que segundo ele, foi um grito capturado pela direita, novos movimentos e ações levam a pensar em pragmatismo, autonomia, representações. O Occupy Wall Street, as ocupações das escolas em São Paulo e Goiânia, a atuação do MPL no debate sobre o transporte público, o levante feminista, o movimento negro, são manifestações que indicam o novo fazer político. Leia a entrevista:

Aray Nabuco — Junho é ainda uma incógnita, mas ele surge como expressão de uma “nova esquerda” e uma “nova direita”. E já se insere dentro dessa crise de representatividade. Você diria que junho é o emblema dessa nova configuração que estamos vendo? Jean Tible — Acho que junho é um pouco como uma eclosão, não que não existisse antes, mas ficou tudo mais visível. Ao ficar mais visível, potencializa e transforma. O que é interessante em junho é

entrevista

Jean Tible

que aproxima a gente dos vizinhos, põe a política na rua, porque a política não estava na rua no Brasil. Isso vale tanto para a esquerda quanto para a direta. Talvez a direita num primeiro momento, soube até aproveitar melhor do que a esquerda. Teve uma socialização da política que ocorre agora, mesmo que por vias tortas. Mesmo tendo essa maluquice (da direita), é um aprendizado coletivo.

Aray Nabuco — Mas o que se vê nesses processos é que ocorreram à parte dos partidos, é uma novidade, uma coisa que não tem raiz nos movimentos sociais tradicionais, nem nos partidos. Tem a ver com uma nova geração, que é inclusive global. Essas questões voltam, aparecem antes em outros lugares. Aqui, quando teve os Occupies, o Ocupa Sampa; o Occupy Wall Street começa com meia dúzia, e depois Bernie Sanders surge — por mais que ele não ganhe a primária, já deslocou um pouco a Hillary (Clinton), que já mudou um pouco o discurso do que foi a trajetória dela e do Bill. Então, tem uma nova geração aí. Talvez vocês até tenham vivenciado uma nova quebra anterior, que eu conheço mais de relatos, que foi a criação do PT, o Lula, o MST, a CUT, o Movimento Negro, o Movimento Feminista. Mas é interessante como todos eles são interpelados pela nova geração.

Aray Nabuco — Como você define essa nova geração? Eu estou tentando compreender também, mas acho que tem a questão do pragmatismo, que é interessante e que, em geral, é uma palavra maldita para a esquerda. Mas tô falando no sentido mais positivo, que a esquerda tem uma coisa, que o stalinismo talvez tenha representado o ápice disso, de um discurso muito distante da prática e também dessa questão de dirigentes, dirigidos ou base dirigente ou direção base. E minha sensação é que tem essa questão pragmática tanto na organização quanto também no conteúdo.

Nina Fideles — Poderíamos dizer que a esquerda tradicional no Brasil e na América Latina bebeu

muito da fonte das experiências russas. Este momento de crise de representatividade seria uma negação a isso, a esse fazer político? O que é curioso, no caso do Brasil, é que o PT já era crítico a isso. Quando o PT fala na formulação do Marco Aurélio Garcia, que não era nem social-democrata, nem partido comunista, é uma dupla negação, mas tinha uma criação nisso que era o socialismo petista, que nunca foi bem definido — mas também às vezes é até melhor não definir do que ter uma definição que não seja rica, produtiva. Tinha uma abertura que era interessante. O (Eric) Hobsbawm vai falar que na segunda metade do século passado, o único partido de massa que foi criado pela esquerda no mundo foi o PT. Por que deu certo o PT? Ele assimilou essa experiência um pouco e tirou uma cara que não era nossa, se é trotskista ou stalinista, por mais que fosse um debate muito importante num momento histórico dado, não é uma questão central, entende? O PT

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deu uma limpada nessa questão da América Latina, o internacionalismo… Mesmo o MST, ele é muito promíscuo, no bom sentido do ponto de vista teórico.

como ele e outros vão falar que a própria representação é a corrupção, porque você vai indicar o representante e essa relação já é tensa de imediato.

Aray Nabuco — Essa crise de representatividade é o que a gente vê no mundo todo, não só aqui.

Aray Nabuco — Embora discutissem, os partidos tradicionais não conseguiram criar algo novo. A partir dessa nova geração surgiram experiências como o Podemos, o Syriza, o Raiz...

Sim. Aqui, a eleição do operário ao governo federal, de um partido criado de baixo para cima, um partido forte, com um programa claro, eleição das direções e tudo mais, isso deu muito gás à democracia brasileira, ou seja, a democracia representativa brasileira foi reforçada pelo PT. Imagina o Lula ser presidente, um operário, com uma ascensão social brutal, porque ele veio da miséria e tudo mais. Aquela coisa no filme do João Moreira Salles, o Entreatos, que Lula queria ser entrevistado pelo IBGE porque tinha casa, tinha carro, tinha tudo, então isso já era uma coisa incrível. Os políticos em geral, nas democracias representativas, são pessoas ricas. Por isso que a gente sente mais essa chamada crise da representação quando o partido naufraga, ou o governo desse partido naufraga. E o que é interessante é que ele naufraga quando a política vai pra rua. Por isso que eu acho que essa coisa de junho é muito interessante, e por isso que parte dos petistas vai ter uma avaliação muito negativa de junho porque foi ali que foi a virada do País.

Aray Nabuco — Foi um movimento assaltado pela direita... Eles capturaram um grito que não era deles. Acho que às vezes a gente fica muito conspiratório e dá muito poder ao inimigo, aos adversários. O próprio impeachment é isso. O Mais Médicos, quando o PT e outras instâncias vão para o debate público, o resultado não estava dado. Era pau a pau no comecinho e depois ganhou totalmente favorável à vinda deles. Por isso que eu gosto muito de junho, não tenho problema em admitir, eu acho que a gente, como esquerda em geral, da mais moderada à mais radical, falhou em aproveitar esse momento. Claro que quem está com a caneta no governo tem mais responsabilidade desse encontro.

Nina Fideles — Talvez seria, como você diz, o momento para a esquerda tentar realizar uma autocrítica do fazer político? Eu acho que sim. A CUT era uma coisa de organizar sindicato pela base, fui formado por essa turma, os metalúrgicos aqui de São Paulo, eles tinham ideia de uma democracia operária. Isso não existe mais. Mas mesmo antes, eles foram derrotados, mas essas linhas eram fortes e moldaram esse ator múltiplo aí que é o PT. O que é interessante é que nesse junho poderia ter uma oportunidade de renovação. E é claro que é fácil falar de fora, as instituições tendem a ser conservadoras e tudo mais, mas tinha aí um gás, entende? Tanto que o estudo do PSDB, que eu não conheço, mas ouvi falar, analisou os cartazes das manifestações no Brasil todo, e tem um problema: 90% são demandas de esquerda. O cartaz falando que o professor valia mais que o Neymar, isso é surpreendente. Tem a própria Globo, quem golpeou a Globo? Foi essa molecada. Não foi o PT, não foi o MST, não foi a CUT, foi o povo. Mas tem debates na esquerda que são super antigos, desde o século 19, de como que você se organiza. Tem um livro que é muito bonito que foi traduzido agora, do David Graeber, que é um antropólogo anarquista americano, que fala sobre a experiência dele no Ocuppy e a democracia nos Estados Unidos, e é interessante

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Eu acho que tem o desejo de participação nessa geração, que não é uma total novidade, mas acho que eles se expressam de forma forte, e a participação vai contra a representação nesse sentido. Claro que hierarquias se formam dentro de um grupo, é inevitável, mas todos parecem ser iguais. Tanto que muda o porta-voz, quem aparece mais uma hora ou outra, e decidem tudo coletivamente, mas demora pra caramba — isso é um problema. Todo mundo que vai participar tem que se dedicar. Talvez seja um dos principais defeitos da democracia. A democracia toma tempo. Se você delega para uma pessoa é mais fácil, ou para um grupo pequeno. Claro que tem que ter alguma divisão de trabalho, mas tem um problema também que esbarra nas desigualdades. Quem tem tempo para se dedicar dessa forma? Por isso que a questão do transporte é importante, e várias outras, como a gente vai ter uma democracia de alta intensidade se os trabalhadores passam quatro horas nas grandes cidades no transporte? Por mais que agora possam mexer, eventualmente, com telefone e tudo mais, mas tem um problema aí democrático que é importante.

Aray Nabuco — Daria pra dizer que sem a tecnologia também não chegaríamos nesse lugar novo? Acho que ela vem depois. Em 1804 teve a revolução no Haiti, aí a palavra Haiti no Rio de Janeiro foi proibida pela elite imperial. Então, passou a revolta, ela se espraia. A obediência ou a desobediência são contagiosas. O processo das escolas, por exemplo, começa em Diadema, depois Fernão, a Salvador Allende, e aí duzentas escolas num estado. A desobediência é contagiosa.

Lilian Primi — Você acha que o MPL tem realmente essa característica de horizontalidade, de apartalidade, que eles são absolutamente independentes? Eu acho que a esquerda está buscando, desde sempre e vai variando os momentos, as suas respostas organizativas, o MPL é uma delas. Eu acho que ele deu uma contribuição espetacular no debate brasileiro. O resultado de incluir o direito social na Constituição, de ter incendiado o País, de ter sido a faísca, junto com a ação da polícia talvez. Eu acho que contribuiu muito em todas as questões de transporte aqui em São Paulo. É uma resposta e outras estão sendo criadas e constituídas nesse momento também. Falando do MPL eu acho que eles repercutiram muito indo contra uma cerca que a gente vive, mas não conseguiram contribuir para questionar as outras cercas. Talvez com esse exemplo possam ter inspirados outros. O que o MPL está falando sobre o momento político atual? É interessante perguntar para eles, eu não sei.

Aray Nabuco — O processo na Espanha redundou num partido que disputou eleição e está governando duas cidades importantes: Madri e Barcelona. Depois surge o 15M, toda essa Primavera, mas termina num processo partidário horizontalizado.

É interessante até pensar o que aconteceu antes, quando redemocratizou as greves operárias, uma mobilização nos bairros e tudo mais e que deu nessas instituições. Essas prefeituras são Podemos também, porque o Podemos não quer representar o que foi aquele 15M, mas ao mesmo tempo ele expressa isso. Mas você vai ter mudança no Partido Trabalhista inglês, o próprio Bernie Sanders. A Islândia já tem todo um ciclo, porque o governo foi derrubado por uma revolta popular, fizeram um referendo, elegeram um governo mais decente, um punk foi prefeito de Reiquiavique por um mandato, um cara incrível. Depois a direita ganhou, e agora, no Panama Papers, aparece que o primeiro ministro da Islândia e a mulher seriam donos de offshores. Curioso como se dá esse processo todo. Eu acho que tem que se pensar nos desdobramentos institucionais dessas disrupções políticas. Mas eu acho que elas modificam no sentido mais profundo talvez. O próprio feminismo mudou o mundo, não é? Não foi pela política institucional.

Aray Nabuco — Hoje é completamente diferente dos anos 1970. Eu fico com a impressão que você está dizendo que não há diferença entre uma geração de militantes de 1960 e a geração dos militantes atuais. Nos Estados Unidos, por exemplo, as pessoas se conformavam em entrar num partido e seguir aquilo lá. Hoje não é mais isso. Eu acho que tem diferenças sim. Porque as coisas vão e voltam, têm debates que já estavam ocorrendo também, mas eu acho que há uma nova geração sim. Por exemplo, a questão indígena vem com força nessa nova geração. Os estudantes da (escola) Fernão Dias taparam a estátua do bandeirante Fernão Dias, tinha a faixa dos guaranis, tem uma presença de certos signos de luta aqui na cidade de São Paulo, do Jaraguá, de Parelheiros... A questão de classe parece estar menos evidente, mas ela se expressa nos próprios atores. Mesmo quando a escola é em Pinheiros, quem frequenta é o andar de baixo. Eu acho que tem uma virada, por exemplo, o Jean Wyllys, ele consegue, em partes, se comunicar com essa turma. Eu tenho a sensação que no Brasil a gente tem uma radicalização de ambos os lados. A direita se fortalece, consegue se organizar melhor, o Bolsonaro pode ser uma figura política desse momento, mas eu acho que na esquerda também ocorre isso. O problema da esquerda é que ela é muito mais dividida, porque parte dessa turma não confia, não conversa e não quer saber nem um pouco desse campo petista ou dessa esquerda mais institucional. E alguns quebram isso, ou não, em alguns momentos. A esquerda é dividida, mas tem um campo progressista, para eu usar uma palavra um pouco genérica e meio ruim, que se fortaleceu aqui no Brasil.

Nina Fideles — Quando a gente começou a pensar o Especial Nova Esquerda, encontramos inúmeras definições. Você disse que uma ala mais progressista da esquerda ganha força, digamos, em pautas que não eram tradicionais, por exemplo, o LGBT. Como definir nova esquerda? Tem alguma influência do anarquismo? São novas pautas, nova forma de organizar? Olha, eu acho que o anarquismo é importante nessa ideia que eu falei lá no (David) Graeber. É um pouco isso, pois tem a compreensão de que a democracia de verdade é uma democracia direta. Claro que com 7 bilhões de terráqueos tem que pensar em alguma

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medida de representação, e para 200 milhões também, e para 11 milhões aqui também. Mas eu acho que tem um ímpeto, e acho interessante que apareçam os anarquistas ou os mais autonomistas, os mais libertários, que é sempre um sinal muito saudável para as lutas. Quando o PT surge, ele é tão forte, que ele consegue atrair alguns punks, alguns anarquistas vão se filiar ou participar de núcleos etc. Tem essa dimensão libertária ou anti-institucional, questionando a institucionalidade. Ainda é bem minoritária, mas influencia todo um campo. Tanto que isso aparece também editorialmente, quando a Conrad começou a publicar aquela coleção Baderna, o Hakim Bey (Peter Lamborn Wilson), tem o Provos, de Amsterdã, que teria sido o primeiro grupo da contracultura nos anos 1960, antes de 68. Tem um pouco esses ciclos que vão e voltam em alguma medida. Mas eu acho que pensamento libertário é uma fonte importante.

Aray Nabuco — Mas como definir uma nova esquerda? Por isso que eu fico fazendo esse paralelo com o fim dos anos 1970 e começo dos anos 1980 na questão da autonomia que se coloca, pelo Eder Sader, da Marilena (Chauí), o Marco Aurélio e outros. Autonomia em relação ao Estado, aos partidos, às organizações tradicionais. Acho que as novas pautas estão fortes... Tem gente que vai falar que teve Parada Gay em São Bernardo no começo dos anos 1980; tinha o Gabeira que representava um pouco essa sensibilidade; tinha os ecologistas, tinha o Chico Mendes, que não era bem ecologista, mas que estava nessa pauta. A própria Marina e tudo mais, mas essas questões viram muito mais centrais, ou seja, acho que para essa geração, todas essas questões que eram consideradas questões menores, vêm pra frente da cena. O feminismo, a questão LGBT, a questão indígena que eu acho que é muito forte. Várias chamadas das manifestações de junho também tinham a ver com Belo Monte, que pode parecer uma questão minoritária às vezes, mas é charge de toda uma geração. A questão racial, o protagonismo dos negros se beneficia também de medidas públicas, né?! Isso que é interessante. De como nas nossas regras no censo do IBGE a autodeclaração que impera, tanto a população indígena quanto a população negra aumenta bastante pelo reconhecimento político. São vários.

Nina Fideles — Mas se fortalecem no campo institucional? A teoria anarquista implica num rompimento com o Estado. A pauta está ainda muito no campo institucional, ou não? Sempre tem um desdobramento institucional, por exemplo, o MPL comemorou ter colocado na Constituição o direito social, o direito ao transporte. Então isso torna o MPL institucional? Acho interessante a gente ver como a mudança institucional só se dá depois de uma mudança no debate social. Por exemplo, o Brasil decidiu combater as desigualdades e o canal institucional para isso foi o Lula ser eleito, não é? Quer dizer, o Brasil decidiu, num processo supercomplicado, caótico, sair da ditadura e partir para a democracia, redemocratizar, e o MDB/PMDB foi, em algum momento, um canal para isso, depois outros partidos. Acho que tem uma decisão interessante, e junho de 2013 marca isso, de buscar democratizar os meios de participação. Isso vale para a direita e para a esquerda. A direita quer participar também. Por isso

que eu acho que os anarquistas, os anti-institucionais, ajudam mais a compreender isso, de que a mudança ocorre antes, depois ela é cravada de uma forma institucional. Primeiro, tem uma mudança que se dá de forma um pouco caótica mesmo, e as redes expressam isso.

Aray Nabuco — Você vê os outros partidos, o próprio PT ou o PSDB, caminhando em direção a esses anseios dessa nova esquerda, desses novos militantes que não querem mais uma decisão de pacote de cima pra baixo? Você vê alguma mudança nas instituições atuais, partidárias, a partir de 2013? No campo da direita, eu acho que o PSDB tem dificuldade de se aproximar, porque ele, como um partido, talvez nem exista. Não tem uma militância mais ativa. Os partidos são pouco representativos no sentido de ter filiados que de alguma forma participem na vida interna, ajudem a formular o programa, que dê vida orgânica ao partido. O PMDB deve ter 2 milhões de filiados, só que deve ter muita gente ocupando postos no Estado. A própria reunião, que em 3 minutos decide sair do governo, representa isso. Tanto que tem essa relação com as manifestações que a gente poderia talvez qualificar de direita, conservadores, anti-Dilma, anti-PT, que o assunto é um pouco mais complicado, mas tem essa relação ambígua com o PSDB, de eles terem sido vaiados em alguns momentos, terem sido celebrados. Se eles vão conseguir se alimentar disso do ponto de vista eleitoral, talvez, mas organizativo como partido, parece que não. Acho que a tendência é que ou algum deles tome algum partido ou crie algum. Do ponto de vista da esquerda, eu acho que tem uma incapacidade, tanto do PT quanto do PSol, do PC do B, do PSTU, de todos, de se acertarem por esses novos processos. Acho que a esquerda vai se reorganizar, não tem jeito, e tem que ver o que ela vai conseguir criar nesse novo cenário.

Aray Nabuco — O movimento secundarista é um exemplo que me pareceu bastante autônomo. Depois o pessoal do PSTU que tem um DCE aqui, outro ali, entrou, mas não entrou com tudo não. A galera continuou meio autônoma. Eu acho que eles ainda estão assimilando todo esse processo muito bonito que ocorreu. A volta às aulas se dá com outra correlação de forças, a diretoria não pode mais ignorá-los, tem uma mudança. Todo esse caldo da chamada Primavera Feminista, esse novo ativismo negro, da questão das escolas, vai representar uma reorganização da esquerda, ela sempre se organiza. Não precisa ser um partido, a questão da reforma política também pode ser conquistada desde fora. Pode inclusive ter setores do PT, do PSol, que podem se incorporar nisso, um ator importante agora que é o MTST, que também teria uma preocupação mais tradicional, entre aspas, com a política institucional representativa, e também que dialoga, porque eles estão morrendo por moradias, como fala o Boulos. O acirramento vai continuar se dando com a Dilma sofrendo ou não impeachment. Tem essa divisão da sociedade, que não é bem contra Dilma, PT e Lula, também tem o outro polo que é muito plural, que está mais à esquerda. Por exemplo, no segundo turno das eleições a Dilma nunca teria ganhado sem o voto feminista — tanto que o Lula foi sagaz e bateu nas atitudes machistas do Aécio —, sem as figuras como Jean Wyllys e Freixo na campanha, sem a mobilização que teve na segunda-feira an-

tes do segundo turno. Tem uma cidadania que é autônoma, que quando percebe que a coisa está ficando muito perigosa, consegue ter uma leitura sutil e apoiar o PT nesse sentido. É um apoio pragmático e o PT não pode pensar que isso é um apoio ao PT, porque não é. Eu acho que se a esquerda quiser ter força suficiente para promover mudanças no Brasil, tem que ver como que esses lados vão conseguir conversar e encontrar fórmulas. E é interessante como esse debate se dá, de como a sociedade está viva, de como as posições vão se formando, e vão se colocando. Para simplificar, têm esses dois blocos, um que é mais da esquerda institucional tradicional e têm essa outra turma. Inclusive têm amigos anarquistas que estavam em alguns atos desses. Interessante como que são esses dois grupos, e a gente poderia achar um terceiro de pessoas que estão observando ali. Eu respeito muito o processo deles, de uma forma mais orgânica, respeitando o tempo de cada um, mas o rechaço deles à direita é maior do que o rechaço à esquerda, mas não é uma questão que os mobilize.

Nina Fideles — Em países da América Latina, a liga, digamos assim, para haver avanços em governos progressistas foi a questão indígena. A liga aqui qual seria? A questão indígena mobilizou muito na Bolívia, no Equador, Chiapas, no México, na Guatemala, um pouco na Nicarágua... Acho que comparação é muito complicada, mas um paralelo seria com a questão negra aqui, porque é realmente um problema que a esquerda começou a absorver com mais força. A própria questão do estado policial, da população carcerária, é um dos pontos mais trágicos dos governos do PT em nível federal, não só deles, depende muito mais dos estados do que da federação, mas a questão do aumento da população carcerária, em nenhum momento se colocou contundência no enfrentamento disso. O caso da Ângela Davis, que é uma militante mítica pela defesa do abolicionismo penal nos EUA tem muito eco nessa nova geração. Mesmo uma nova política de drogas. Por que o Mujica se torna pop nesse sentido? Por que ele mobilizou tantos jovens na UERJ no ano passado? É porque ele conseguiu dialogar de alguma forma com a nova geração. É interessante que o Mujica e o Papa Francisco, de alguma forma encarnam uma humildade transformadora que tem a ver com uma representação, de o representante ser uma pessoa mais normal, não um ser inatingível. Essas figuras são populares e cativam os jovens. Na questão racial, andando pelas ruas no centro da periferia aqui de São Paulo ou em outras cidades, percebemos a estética negra e como isso tem sentido político claro, e eu acho que tem uma impaciência com a política institucional que não absorve isso. Por isso que o Jean Wyllys vira uma figura muito forte. Pode-se criticar um aspecto ou outro da política dele, mas o que é interessante é que ele se posiciona o tempo todo, e por não ser alinhado com o governo, consegue, portanto, defender melhor o governo, a seletividade do Judiciário, o golpismo que tem em vários setores, melhor do que os setores mais alinhados. Tem um pouco essa política das diferenças que estava nesse circuito 68 que voltam com força. Tem uma nova geração universitária, do ProUni, das cotas, mais forte que vai dar resultado.

Aray Nabuco — Tem uma coisa, que a gente poderia chamar de nova esquerda, que é o debate ambiental,

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que a esquerda tradicional nunca fez e não faz até hoje, porque ainda é complicado para a esquerda em geral no Brasil que é desenvolvimentista. Mas o PSol, o próprio Raízes da Cidadania, vem trazendo o debate do ecossocialismo, por exemplo. Essa é outra temática da esquerda? Eu acho que sim. É fundamental e se relaciona com a questão dos povos indígenas. A questão é em que medida ela vai conseguir ampliar os ecos desse debate. Eu acho que Belo Monte é interessante. Se a gente consultasse a população, daria pró Belo Monte, mas tem uma minoria ativa contra, e que é muito interessante ouvir e seria bom para o País que ela conseguisse convencer a população. A Bolívia com o Evo Morales está com esse dilema também: a gente faz concessões que algumas pessoas chamam de extrativismo, mas é pra tirar a população da pobreza. Seria bom que essa corrente se fortalecesse. Interessante que o próprio debate da Bolívia tem semelhanças com o do Equador e com o próprio debate brasileiro. E lá é até mais complexo porque muitas vezes os governos da Bolívia e Equador adotam um discurso ambientalista e são questionados pelos ambientalistas, e mesmo assim boa parte com razão.

Nina Fideles — O Zapatismo também foi considerado uma experiência nova na época. Ele foi o precursor disso tudo? Sim. Eu acho o zapatismo muito interessante, porque ele anunciou o fluxo do novo tempo.

Aray Nabuco — E os curdos também hoje seguem um pouco isso. Sim, também a questão das mulheres. Mas, talvez o nascimento disso, pelo menos na minha leitura, é o zapatismo, porque ele vai lembrando um pouco o (Frantz) Fanon, um pouco do partido dos condenados da terra. O que é o Marcos? Pra mim, ele é um cara da esquerda tradicional, ele era marxista-leninista, talvez maoísta, mas ele não é do sudeste mexicano, de Chiapas, e não dá certo. Em algum momento ele consegue virar a chave, se transformar, e anuncia esses novos tempos. Ao mesmo tempo, essa figura de liderança, que não é comandante, porque os comandantes seriam o povo. Você tem a questão da representação, tem a articulação entre vários povos indígenas, não é um povo se organizando, mas são vários povos. Ele vai negociar com o Congresso a lei dos direitos indígenas, se sente traído, então se volta para dentro e começa a organizar as comunidades, os caracoles, as juntas de co-governo, e tem uma autogestão funcionando. Eu acho que o zapatismo, o mandar obedecendo, o mundo onde cabem muitos mundos; o próprio uso da rede, que era pioneira naquela época, apelar para a solidariedade, um encontro intergaláctico pela vida e contra o neoliberalismo, pela humanidade. Então, eu acho que o zapatismo é, não sei se fundador, mas é muito inspirador desse momento. O Fórum Social Mundial (FSM) também, já num contexto latino-americano. Podemos é uma releitura dos processos sul-americanos, menos o brasileiro e mais o boliviano, o venezuelano, o equatoriano. As lutas sempre foram internacionais, mas ganham um caráter distinto, com uma comunicação mais instantânea.

Aray Nabuco — Lá no passado, num processo revolucionário de questionamento social como o que a gente vive hoje, por exemplo, poderia desembocar em duas alternativas: ou um socialismo, www.carosamigos.com.br

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comunismo, por exemplo, ou uma direita com uma ditadura ou para um governo de direita. Hoje não, essa nova esquerda também traz novas alternativas que poderiam desembocar em coisas diferentes das que tivemos no passado. Concorda? Mas de alguma forma, não sei se parte de 68, mas teve várias revoluções, não sei se vocês vão considerar 68 uma revolução ou não, que elas são diferentes, mesmo a queda do bloco chamado socialista, tem outro sentido, o famoso assalto ao Palácio de Inverno e tem a própria questão das empresas que os papéis do Panamá colocam isso muito forte. Muitas vezes, o poder político está todo sequestrado pelo poder do dinheiro, então como que você golpeia? Por isso que o Ocuppy Wall Street teve muito eco, porque estava ali no coração, estava colocando o dedo no centro. Onde está o poder? Não é tão fácil responder essa pergunta. O que é interessante de junho é que os poderes constituídos ficaram assustados. Os banqueiros, empresários, políticos. Em geral, são os cidadãos comuns que têm medo. Medo de perder o emprego, de ficar sem dinheiro, de não poder ter um tratamento de saúde, os filhos não terem uma educação de qualidade, a gente é muito frágil. E nesse momento, o medo passa a ser mais compartilhado. Esse poder da democracia assusta. A tendência é que se constituam alternativas para inclusive disputar eleições. Mas tem também uma saudável desconfiança dessas instituições. Tanto que falar do Brasil, nosso País, o que é o Estado? É um Estado que é terrorista, que mata essa população o tempo todo, que vigia, tem todo um aparato. Então tem uma desconfiança muito saudável, por isso que o pensamento e as práticas libertárias são muito importantes.

Aray Nabuco — Na nova esquerda você cita o pragmatismo. Você enxerga outra característica além do pragmatismo? Tem o pragmatismo, tem a questão da autonomia, essa desconfiança do Estado, dos poderes constituídos, tem um questionamento meio geral das instituições, as instituições são também empresas. Você tem, por exemplo, a própria questão da comida, tem um debate mais pelo mercado da gourmetização, mas tem também um questionamento dos circuitos de produção, de distribuição. Tem a questão da participação — que a desconfiança se manifesta no questionamento da representação —, tem essa questão das lutas pela diferença. Acho que não tem uma ideia de classe, mas ela aparece de outra forma. Por exemplo, o 99% que é um slogan genial, que é o nosso problema aqui, o problema é que parte da classe média acha que é o 1%. E 99% é uma questão de classe, assim como o MPL colocou, falar em transporte e mobilidade urbana é uma questão de classe. O que é uma rua? A rua é um local público. O Provos, lá da Holanda, por exemplo, inventou uma das coisas mais famosas que é a bicicleta branca. A bicicleta do Itaú é o degenerado que o Provos inventou. A bicicleta branca era para todo mundo usar, aí usava, deixava, outro usava, e tinha uma coisa com o poder público, que era responsável pela manutenção delas. Por isso que o pragmático é interessante, porque se você pensar num anarquismo muito sectário você rejeita qualquer coisa, e perde potência. A rua é ocupada pelos carros individuais, sobretudo; a rua é um espaço público, quando a gente fala de espaço público não são só as praças. A questão de classe vai sendo colocada de uma forma mais interessante, porque o pensamento crítico e as ações

críticas não estão necessariamente onde pensamos melhor. Quem fala melhor do imperialismo hoje? É o Julian Assange, que vai falar de várias formas e não é um marxista, entende? E a questão de classe eu acho que ela aparece muito melhor em 99% do que falar de operário. Até porque o Antonio Negri falava que o trabalho fugiu da fábrica, foi para a sociedade como um todo, para a sociedade e para a cidade. Então, as contradições estão colocadas de outra forma.

Aray Nabuco — Qual o exercício e experiências que podemos citar para vislumbrar essa nova esquerda? Pensar essa coisa das ocupações, das assembleias, ou seja, como é essa nova política da nova esquerda. Todos os congressos são horrorosos. O Peter Pál Pelbart é um filósofo menos da política direta, mas escreveu várias coisas bonitas, inclusive um dos melhores textos sobre junho que é o Anota Aí: Eu sou Ninguém. Teve também um debate na esquerda americana chamado Pré Figurativo, de como que você, ou às vezes, circuitos amplos, usam a frase do Gandhi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo”, mas a forma é diferente. Então, a assembleia tenta ser a democracia que a gente quer e tenta exercer. A ocupação também. Como aquela coisa do MST, a primeira barraca era a escola. Agora, na Praça da República em Paris está tendo um Ocuppy, onde se organiza a comida comunitária, segurança comunitária, assembleia comunitária, então, ali você está num esboço do mundo diferente. Isto tem a ver com a história da esquerda, mas essa nova geração está colocando isso. E também existem as novas alianças, tem os migrantes, tem o cara que não quer trocar a fechadura dos que iam ser despejados porque não conseguiam mais pagar o empréstimo. Você tem mecanismos de redes sociais, de aplicativos, para impedir o despejo. Você vê a classe, pensando lá no Thompson, que ela não luta porque existe, não é aquela ideia da esquerda, temos tantos camponeses, tantos operários fabris, tantos operários em outro setor, uma tabela do Dieese, mas ela existe porque ela muda, ela se pôe em movimento, tem os 99%. Então, nessas instituições criadas tem um pouco deste novo mundo que está sendo construído. Por isso que é pragmático, é também uma prática, é uma práxis, que de alguma forma pode ser uma inspiração para conexões mais fortes e que podem reimaginar o que pode ser uma política que articule representação e democracia direta. Aí tem um pouco a coisa de mover pessoas comuns também. O Podemos faz esse esforço e não se diz de esquerda, embora seja. Estão tentando utilizar outra linguagem, outro imaginário, e isso que é interessante: de como essas práticas são potentes e elas anunciam mundos. A democracia tem a ver também com a democracia das comunidades aqui, também na Bolívia, no Equador. Qual é a democracia que existe ou não antes do Brasil ser Brasil? Dos povos indígenas. Você tem uma série de práticas que são interessantes, essas ocupações em que se divide as funções, mas delibera coletivamente. Aí está a riqueza desse movimento, inclusive que se manifesta de forma armada com os curdos. Os próprios zapatistas entraram com armas para abrir um espaço político, já não queriam mais tomar o poder nacionalmente, E toda luta local é global imediatamente, os zapatistas lá naquele cantinho perdido, ao mesmo tempo estão em todo o mundo. ARAY NABUCO, LILIAN PRIMI E NINA FIDELES SÃO JORNALISTAS.

Nova Esquerda - maio 2016 – 29

8/18/16 3:14 PM

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