Entrevista com Benito Bisso Schmidt

May 26, 2017 | Autor: Rodrigo Araújo | Categoria: Biography, Historia Social, Entrevista
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Dossiê

ENTREVISTA* COM BENITO BISSO SCHMIDT**

1 – Inicialmente, gostaríamos de saber como surgiu a Linha de Pesquisa “Relações sociais de dominação e resistência” no âmbito do PPGH da UFRGS, e qual o perfil de trabalhos que vêm sendo feitos pelos discentes pertencentes a essa Linha nos últimos anos. A linha de pesquisa surgiu em 1995 quando eu ainda não era professor do PPGH. A ideia era articular linhas com base em problemáticas de pesquisa e não a partir de recortes temáticos, cronológicos ou espaciais. Como nosso corpo docente é muito diversificado, englobando professores/as que estudam desde arqueologia pré-histórica até a história do tempo presente, me pareceu uma escolha muito acertada, pois permite efetivamente articular projetos em torno de questões, digamos, “trans­-históricas” (embora eu use essa expressão com receio). No caso que nos interessa aqui, a problemática das relações de dominação e resistência tem essa característica, pois permite o trânsito por períodos, espaços e temas variados. Além disso, é possível pensá-la desde diversos pontos de vista teóricos, por exemplo, a partir do marxismo (em suas diversas vertentes), das ideias de Michel Foucault e das concepções de Max Weber, entre outras. Isso favorece a pluralidade de ideias sem abrir mão de certa unidade dada justamente por um problema de pesquisa comum:

* Recebido em: 14.09.2016. Aprovado em: 07.10.2016. ** O historiador Benito Bisso Schmidt é professor No Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atuando nas linhas de pesquisa “Relações sociais de dominação e resistência” e “Teoria da história e historiografia”. Ministra disciplinas na área de Teoria e Metodologia da História e pesquisa sobre temas como: gênero biográfico, história social da memória, história do trabalho, história das relações de gênero e ditaduras na América Latina. Atualmente é coordenador do PPG em História da UFRGS. Sua tese de doutorado, O Patriarca e o Tribuno: caminhos, encruzilhadas, viagens e pontes de dois líderes socialistas - Francisco Xavier da Costa (187?-1934) e Carlos Cavaco (1878-1961), defendida no Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP, deu origem ao livro Em busca da terra da promissão: a história de dois líderes socialistas de 2004. Além dessa obra, o autor publicou em 2000 o livro que resultou de sua dissertação, com o título Um socialista no Rio Grande do Sul: Antônio Guedes Coutinho (1868-1945); organizou O Biográfico: perspectivas interdisciplinares também no ano 2000 e Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica (com Alexandre de Sá Avelar), entre outras publicações. Nessa entrevista, abordaremos a sua trajetória como historiador profissional, algumas questões sobre o gênero biográfico, especialidade de Benito B. Schmidt, e sobre as perspectivas para a pesquisa em história social no Brasil. Revista Mosaico, v. 9, n. 1, p. 120-124, Jan./jun. 2016.

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como se deu, em diversos contextos e em relação a variados grupos sociais, o exercício da dominação e da resistência? Creio que o eixo mais forte da linha é a história social do trabalho, concebida aqui em sentido bem amplo, envolvendo trabalho escravizado e “livre” (incluindo as diversas gradações entre esses “tipos”), urbano e rural, formal e informal, doméstico e público, etc. Projetos com essa perspectiva envolvendo trabalhadores escravizados, indígenas e fabris foram desenvolvidos na linha. Também outros campos do exercício da dominação e da resistência foram pesquisados, como lutas pela terra, repressão e militância no período da ditadura civil-militar e disputas nacionais e fronteiriças. Lembro igualmente de excelentes trabalhos sobre relações de gênero, relações étnico-raciais, instituições manicomiais e práticas culturais populares. Enfim, a gama de possibilidades é bem ampla! 2 – Com base na experiência pessoal que o levou à história biográfica, como o Sr. vê o processo de especialização profissional em História? Olha, eu só fui me “especializar” no gênero biográfico no meu Mestrado. Além disso, não sei se a história biográfica é propriamente uma especialização, já que ela pode ser exercida a partir de diversas perspectivas teóricas e metodológicas, sobre personagens que viveram em épocas e lugares variados, e com vistas a responder problemáticas bastante diferenciadas. Além disso, envolve discussões próprias ao conhecimento história como um todo, por exemplo: relações entre sujeito e estrutura, micro e macro, público e privado, e narração e explicação. De forma mais ampla, quero dizer que sou contra especializações precoces. Creio que devemos ser antes de tudo historiadores/as e só depois partirmos para um recorte mais específico. Acho bom quando, apesar de todas as dificuldades concretas para que isso ocorra, sobretudo a enorme produção existente em todos os campos historiográficos, conseguimos estar relativamente “antenados” com o que ocorre na área como um todo. Gosto muito de ler sobre vários temas, sobretudo gosto de ler bons trabalhos de História, independentemente de seus recortes temáticos e de suas perspectivas analíticas, pois sempre inspiram novos olhares e abordagens. O risco da especialização excessiva é ficarmos dialogando apenas com um grupo restrito, que aciona os mesmos protocolos que nós. Mesmo em termos docentes, me faz bem oferecer cursos e disciplinas sobre temas variados. No semestre passado (2016/1), por exemplo, ofereci na graduação uma disciplina sobre “memórias do genocídio nazista”. Não sou um especialista no tema, mas me interesso por ele, por suas implicações epistemológicas e éticas. Aprendi muito, espero que os/as alunos/as também. Agora estou oferecendo um seminário sobre sexualidade, gênero, teoria queer e “dissidentes sexuais”, área na qual estou iniciando e que se relaciona com meu novo projeto de pesquisa apoiado pelo CNPq. Há, claro, o risco da superficialidade, mas prefiro corrê-lo a me tornar especialista circunscrito a um pontinho muito específico da história, sem conseguir pensá-la de maneira mais ampla. 3 – Normalmente, as suas pesquisas têm como objetos trajetórias de militantes. Diante dessas experiências, quais os maiores desafios, em termos de fontes, que a pesquisa com temas do chamado “Mundos do Trabalho” impõe ao historiador? Cada conjunto de fontes impõe riscos e desafios específicos ao/à historiador/a, mas também abre imensas possibilidades. Em minhas pesquisas biográficas tenho empregado materiais muito diversificados. Os arquivos pessoais, por exemplo, oferecem caminhos incríveis para pensar a imagem de si que o titular do acervo, ou seus familiares e admiradores, pretenderam, consciente ou inconscientemente, projetar publicamente. Estes conjuntos documentais seguidamente abrigam fontes que dificilmente encontraríamos em arquivo públicos, mais ligadas ao privado e à intimidade. Mas não podemos, como diz minha colega e amiga Angela de Castro Gomes, nos deixar levar pelo “feitiço” dessas fontes, pensando-as como “mais verdadeiras” que outras. Recuperando a ideia de Michel Foucault, sistematizada por Jacques Le Goff, é preciso concebê-las como “monumentos”, inquirindo suas condições de produção e perpetuação, perguntando pelas relações de poder e saber das quais elas derivam e que efeitos de verdade constituem. Revista Mosaico, v. 9, n. 1, p. 120-124, Jan./jun. 2016.

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Também a história oral, pensada como metodologia, tem sido um valioso instrumento para as minhas pesquisas, já que venho avançando cada vez mais em períodos contemporâneos, podendo assim contar com testemunhas vivas. Para investigar o mundo do trabalho, dependendo da pergunta feita pelo/a historiador/a, tal recurso pode se revelar muito estimulante, já que nos permite examinar relações, processos, eventos e personagens pouco visíveis na documentação escrita. Possibilita, por exemplo, saber como determinadas rotinas de trabalho eram efetivamente vividas, como os discursos das lideranças eram apropriados, como valores políticos e éticos se associavam ou não com as vivências do dia-a-dia. Confesso que me irrita um pouco quando alguns/mas colegas dizem não ser essa uma fonte “confiável” em função das confusões e esquecimentos que o/a entrevistado/a pode fazer. Ora bolas, qual fonte é confiável? Uma ata? Sabemos bem como as atas são feitas, o quanto determinados protocolos e acordos tácitos ou explícitos dirigem a sua produção. Uma estatística? Muitos estudos já mostraram o quanto as estatísticas, desde a definição de seus “campos” até a sua efetiva realização, são condicionadas por relações de poder e saber bem precisas. Como qualquer fonte, a história oral bem feita pressupõe uma crítica severa, não para detectar “erros” e “acertos”, mas para entender as condições de produção das narrativas, o lugar ocupado pelo/a narrador/a, a relação entrevistador/aentrevistado/a, as opções estéticas de quem fala, entre muitas outras variáveis. Por isso, quem se vale da história oral deve ter um bom conhecimento das discussões sobre memória e narrativa. Também os documentos da repressão são “minas” valiosas de documentos para conhecermos o mundo do trabalho. Infelizmente para os/as trabalhadores/as do passado e felizmente para nós, pesquisadores/as do presente (risos), muitos delatores, espiões e agentes policiais eram extremamente minuciosos ao registrarem ações que consideravam “subversivas”. Além disso, coletavam documentos como fotografias, panfletos e jornais, que raramente encontramos em outros acervos, para servirem como “provas” de suas acusações. Claro, mais uma vez temos que entender a lógica de formação desses arquivos, pautada pela suspeição generalizada e pela vontade de identificar supostos inimigos. Por fim, ressalto os processos trabalhistas que cada vez mais são utilizados pelos/as estudiosos do “mundo do trabalho” para analisar, por exemplo, estratégias e táticas de patrões/as e empregados/ as, percepções do que seria justo e legal nas relações de trabalho, processos produtivos e formas de luta de categorias variadas, desde as mais clássicas, como têxteis e metalúrgicos, até outras menos “óbvias”, como artistas e domésticas. Enfim, as possibilidades heurísticas para os/as pesquisadores/as dessa área são inúmeras, requerendo é claro criatividade, sensibilidade, forte embasamento teórico, metodológico e historiográfico, treino e uma boa dose de ousadia. 4 – A História Social, de uma maneira geral, passou a questionar a partir da década de 1960 o paradigma nos estudos históricos que relaciona estruturas à organização das relações sociais, alçando os sujeitos ao centro da perspectiva de análise. De certa forma, esse movimento implicou no recuo da história quantitativa e serial, enquanto a micro-história avançou. Por outro lado, os estudos biográficos e a prosopografia persistiram e marcam a História Social em toda a sua evolução. A seu ver, qual pode ser a contribuição da biografia histórica nesse debate? A biografia pode ser uma boa chave para pensar todas essas questões levantadas na pergunta. Alguns/mas colegas e alunos/nas me dizem coisas do tipo: “não vou fazer uma biografia, mas um estudo de trajetória, já que não quero me centrar apenas em um personagem, mas buscar relacioná-lo com o seu contexto social”. Ora, isso é o que fazem os melhores historiadores biógrafos da atualidade! Quero acreditar que, ao menos no campo acadêmico, ninguém mais se propõe a fazer hagiografias e panegíricos dos/as personagens que escolhem para biografar (embora impulsos laudatórios ou acusatórios possam aparecer nas narrativas biográficas, e não vejo isso como necessariamente ruim, desde que os passos da operação historiográfica sejam seguidos). Penso que, no caso específico dos estudos do trabalho, a biografia permite recuperar a tensão entre a liberdade individual, a possibilidade de ação do indivíduo, e o campo de possibilidades no qual ele/a está inserido, o qual lhe oferece, em função de seu gênero, raça, classe, rede de relações, etc., impulsos e limites. Esse, aliás, é o grande ensinamento da micro-história. Revista Mosaico, v. 9, n. 1, p. 120-124, Jan./jun. 2016.

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A biografia também nos ajuda a olhar mais de perto a vida cotidiana, os afetos, o privado. E qual a importância disso? Perceber, por exemplo, que muitas escolhas políticas não se fazem apenas (nem preponderantemente) a partir de seleções racionais em um cardápio de ofertas ideológicas, mas a partir de afinidades e rivalidades pessoais, de amores e raivas, de admirações e ojerizas. Penso que a biografia não é a solução para os dilemas historiográficos contemporâneos (como nenhum gênero o é), mas, se bem feita, ajuda a pensá-los com profundidade e complexidade. 5 – A História Social do Trabalho até a década de 1990 no Brasil se compunha majoritariamente de estudos sobre o que se considerava chave para a compreensão da resistência da classe trabalhadora: o movimento sindical, os partidos e a luta operária de uma maneira geral. De que forma a perspectiva de “Mundos do Trabalho”, inclusive com a criação de um GT com esse nome, alterou essa configuração? Sim, em um determinado momento houve nos estudos sobre a classe trabalhadora um deslocamento do ideológico, institucional e organizacional para o cotidiano, o informal e “espontâneo”. Hoje, me parece que cada vez mais se busca um equilíbrio entre essas perspectivas. Neste sentido, o GT teve papel fundamental desde a sua fundação, articulando iniciativas que se encontravam dispersas em diversas universidades, ou ligadas apenas por vínculos de amizade (que são muito estimulantes, aliás!). Seu título no plural indica a abertura para romper fronteiras (temáticas, cronológicas e espaciais) tradicionalmente estabelecidas, como aquelas entre trabalho escravo e “livre”, urbano e rural, formal e informal, pré e pós 1930, velho e novo sindicalismo, entre outras. Além de estar articulado em diversos estados e promover encontros regulares, tanto próprios quanto no âmbito dos simpósios da ANPUH, o GT permitiu o intercâmbio com outros grupos congêneres, não apenas nos “centros”, EUA e Europa, mas também no eixo “Sul-Sul”, com a África do Sul e a Índia, por exemplo. Hoje, e digo com orgulho, temos uma história mais “brasileira” do trabalho, menos focada em centros hegemônicos, e que dialoga em pé de igualdade com a produção internacional. 6 – Na última década, observamos uma expansão da formação universitária e, assim, de um número maior de historiadores no Brasil. A partir de sua experiência recente como presidente da ANPUH, o Sr. considera que essa tem sido uma expansão mais voltada para a formação e profissionalização de novos historiadores estrito senso, ou para o preenchimento do mercado de licenciatura? Olha, minha experiência já não é tão recente assim (risos). Uns bons anos já passaram. Foi uma experiência incrivelmente rica, pessoal e profissionalmente. Pude, acredito, ter uma visão efetivamente nacional do nosso campo e me deparar com muitos centros extremamente sofisticado e criativos de produção historiográfica que não “pagam pedágio” aos chamados “polos centrais”. Também foi muito estimulante conhecer as diversas formas de atuação do historiador, que vão além da sala de aula, e abarcam espaços variados da hoje denominada história pública. Quero muito que a nossa profissão seja regulamentada para garantir justamente nossa presença (e nossas competências) nestes espaços variados. No nosso tenebroso presente, porém, marcado pelo avanço até pouco tempo inimaginável de forças conservadoras que julgávamos superadas ou, ao menos, “abafadas”, que querem eliminar direitos conquistados com muita luta por trabalhadores, mulheres, negros, indígenas, LGBTIs, entre outras “minorias”, o mais importante é que a ANPUH esteja fortemente vinculada a outras forças progressistas para barrar medidas estúpidas e reacionárias como o movimento “Escola sem partido” e, em plano amplo, as tentativas de golpe contra a democracia. Respondendo diretamente a tua pergunta, tenho visto com muito gosto, apesar deste contexto conservador, iniciativas de aproximação do conhecimento histórico acadêmico com o conhecimento histórico escolar, como o PIBID e o Mestrado Profissional. Também acho que já é hora de superar o “xororô” e as divisões entre aqueles que se consideram especialistas em uma ou outra área. Claro que Revista Mosaico, v. 9, n. 1, p. 120-124, Jan./jun. 2016.

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tais atitudes expressam lutas pelo poder acadêmico, como tão bem mostrou Pierre Bourdieu. As discussões sobre a BNCC foram fortemente marcadas por essa disputa de campos. Espero que possamos nos encontrar com mais humildade e impulso colaborativo. 7 – Para finalizar, em artigo recente pela revista Anos 90 (ou ensaio, como o Sr. o denominou), o Sr. afirma o lugar da memória como meio para resistência e construção da democracia, ao mesmo tempo em que faz o alerta para os usos abusivos da memória, que tendem à sacralização do passado. De que forma os historiadores podem contribuir para balancear essa relação? Puxando a brasa para a nossa sardinha (risos), acho que somos fundamentais (o que não quer dizer que somos “oráculos”) para pensar essa relação. A História deve, acredito, ser “contaminada” pela memória, por suas demandas éticas, políticas e identitárias, mas também deve ter a coragem para mostrar os riscos das cristalizações sacralizadoras, dos potenciais chauvinismos identitários e evidenciar os esquecimentos e silenciamentos implicados em qualquer discurso memorial, não para invalidá-lo, mas sim para evidenciá-lo como uma construção social e histórica, portanto sujeito a múltiplos usos e abusos. A maior dificuldade, me parece, é termos a ousadia e a capacidade para nos colocarmos nestas discussões, não como autoridades maiores, mas em posição de debate (o que significa também recuar, se frustrar, fazer alianças...) com outros agentes da memória. Acredito que nossos cursos deveriam nos formar também para lidar com esse sempre tenso debate entre história e memória, tanto na sala de aula como no debate público mais amplo. Muito obrigado!

Revista Mosaico, v. 9, n. 1, p. 120-124, Jan./jun. 2016.

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