Entrevista com Eduardo Souto de Moura

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entrevista

Eduardo Souto de Moura Duarte Miranda, Henrique Pimentel e Pedro Treno Alunos do 4.ºano, 3.ºano e 5.ºano do dARQ

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Eduardo Souto de Moura caracteriza-se a si próprio como pragmático na forma de pensar um projecto. A intenção desta entrevista é perceber, em três tempos: processo, construção e amadurecimento, a fronteira entre a precisão e o excesso em arquitectura. Pela análise e discussão da sua obra recente, pretendemos entender os novos caminhos que lhe estão associados. Pedro Bandeira descreve o seu processo como inconsciente onde ´existe uma intuição, por vezes irresponsável, que nos leva permanentemente a ignorar ou seleccionar imagens de modo subconsciente`1. Gostaríamos de perceber como é que neste processo se transformam estas inúmeras referências num produto sólido e coerente? Eu acho que todo o processo criativo começa pela intuição. Agora, é preciso definir o que é intuição: uma capacidade caótica de envolver soluções e apostar em formas. É um processo resultante de outra lógica, porque há muitas lógicas: há a lógica racional, a lógica afectiva e a relativa aos processos que têm a ver com a memória. Eu gostava de dizer que nunca pensei muito nisso, é por isso que existe a psicanálise, para decifrar o comportamento das pessoas e talvez para se perceber os processos construtivos das actividades artísticas através da intuição. A intuição é uma metodologia que tem que ser estudada porque não se revela à primeira vista mas tem a sua solidez e coerência. Daí haver processos analíticos para lá chegar, porque a intuição é um princípio base de todo o processo criativo. Os processos conscientes levam-nos sempre a grandes dissabores, ninguém gosta de imaginar o Pessoa a sentar-se no Martinho da Arcada e a dizer “eu vou fazer aqui uma poesia”. E o Siza, quando pega também num guardanapo de um snack-bar e faz uma casa, não diz: “agora vou fazer uma coisa para ganhar a Bienal”. Portanto, a intuição é o suporte e a base destas questões.

Acredita que neste processo inconsciente tem de existir um fio condutor? Ou seja, uma consciência sólida dos “elementos inevitáveis da arquitectura”2, da particularidade do detalhe como resposta a um problema concreto? É evidente que tem de haver um fio condutor. Agora, há vezes em que este é desenvolvido de forma inconsciente e outras em que não é. No plano da linguagem, com um carácter mais subjectivo, a arquitectura tem uma componente mais estética ou artística. Esse processo é mais subjectivo, está mais ligado à intuição e tem o tal fio condutor que é mais difícil de decifrar. Ao nível da ciência social, que a arquitectura também o é, a sociologia, antropologia, política e economia, isso são processos mais lógicos, com códigos muito mais legíveis, e aí existe outro fio condutor que também é necessário para levar o resultado final a bom porto. Portanto, tem sempre dois fios condutores: um interior, mais subjectivo, e outro mais possível, mais objectivo. Porque temos essa responsabilidade social em que aquilo que fazemos não pode ser feito só em função do que nós queremos e gostamos mas também daquilo que devemos (existe uma forte componente ética). E é aqui que a arquitectura se distingue das outras disciplinas porque os outros criadores não têm que dar satisfações a ninguém. O Malevich fez um quadrado preto em fundo branco e o Duchamp fez um urinol, chamou-lhe fonte e não deu satisfações a ninguém. Mas quando faço um projecto ou recupero aquele mosteiro que está ali há 700 ou 800 anos, tudo isto tem vários intervenientes e acaba por pertencer a um colectivo. Até a Torre dos Clérigos ou a Universidade de Coimbra não estão ao dispor daquilo que apetece a qualquer tipo de interveniente. Daí a tal responsabilidade ideológica de que a arquitectura não é só a produção, é também uma actividade subjectiva que envolve um colectivo.

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Philip Ursprung, Diogo Seixas Lopes, Pedro Bandeira.

Eduardo Souto de Moura, Atlas de Parede. Imagens de Método, Porto: Dafne, 2011, p.14 2

´(…) on the inevitable elements of all architecture used by any

architect, anywhere, anytime (the door, the floor, the ceiling, etc)`. Rem Koolhaas na 14ª Exposição Internacional de Arquitectura na Bienal de Veneza

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Quero isto dizer que, há um momento em que a obra deixa de ser do arquitecto, não é? Quando o Nasoni acaba a Torre dos Clérigos, esta deixa de ser sua e já só é do Porto tornando-se um símbolo para o Porto assim como a Torre Eiffel se tornou para Paris. Uma pessoa mostra a Torre dos Clérigos e é o Porto, depois mostra-se a Torre da Universidade de Coimbra e é Coimbra. E portanto são ícones em que o arquitecto foi esquecido e a obra deixa de estar nas mãos dele sendo depois apoderada: o colectivo apodera-se e toma-a como elemento afectivo. Se aquilo resistir durante muito tempo, toda essa adesão em massa chama-se património. Mas voltando à pergunta, cada vez acredito menos na imaginação e mais na naturalidade, nas coisas simples. Para se definir uma cadeira, diz-se que tem quatro pés, um assento e umas costas, para se definir uma casa é um muro com buracos, portas, janelas, tectos e chão, como referiu. Depois estes podem ser trabalhados e ter variedades. Por exemplo, a Zaha Hadid inventa outra gramática, outro mundo, outra linguagem, eliminando isto. Como não tenho razão de queixa destes elementos durante os cinco mil anos de história da arquitectura desde o Egipto até hoje, não preciso de eliminá-los. Pelo contrário, preciso é de adaptá-los às situações actuais, aos materiais e à maneira de vida actual. Por exemplo, as casas, já uma vez disse isto mas as casas mudam relativamente pouco em termos de organização. A casa é a resposta à vida de um grupo, de uma quantidade de pessoas, e depois 24

em todas as culturas e em todas as épocas tem: uma zona de dia, uma zona de noite, uma zona pública e uma zona privada, uma zona de convívio e uma zona de animais, que agora foram substituídos pelos automóveis. Portanto, interessa-me cada vez mais esses elementos inevitáveis, porque a arquitectura precisa de uma certa continuidade. As rupturas existem nos movimentos de vanguarda, mas têm momentos muito próprios, ligados às revoluções, às guerras e às revoluções sociais. Não é por acaso que quase toda a arte do início do século XX é produzida em Viena, justamente devido à decadência do império Austro-Húngaro, símbolo da cultura e poder ocidental. Sai tudo dali: a música, a pintura, a arquitectura. Foram precisos esses grandes momentos de contenção e repressão que o império provocava para criar essas sístoles e diástoles, que depois promovem coisas totalmente diferentes. Podemos olhar a teoria de arquitectura como um mecanismo de inteligência que actua como antevisão e organização dos ingredientes do projecto, uma investigação do mundo a priori que constitui uma base para os projectos futuros. Esta reflexão pressupõe uma dedução pensada e escrita: qual a importância que lhe atribui? Eu não acredito nesta linearidade de teoria-prática e reflexão-produção. Eu funciono ao contrário, primeiro para mim existe a galinha e só depois existe o ovo. Primeiro há a produção com base na

intuição e depois há a avaliação dessa produção intuitiva. A partir da teoria é que se vai julgar e analisar aquilo que se produziu. Há um texto brilhante sobre este tema do Rafael Moneo chamado “Sobre a arbitrariedade na arquitectura”, é um discurso que ele fez quando entrou para a Academia de Belas Artes de San Fernando, fala sobre a arbitrariedade e diz que toda a arquitectura é arbitrária e provém da decisão, porque é que é assim. Começa a propósito da explicação da coluna coríntia, isto porque a coluna dórica tem uma explicação do ponto de vista estrutural e a coríntia não tem, ninguém percebe porque é que precisa daquelas folhas e flores e no fundo, houve um tipo que lhe apeteceu fazer assim, mais nada. E depois, ele diz: toda a arquitectura é o resultado de um processo que tem um início arbitrário. E depois, o que é o projecto? O projecto é exactamente a procura dos suportes lógicos que vão dar razão a essa arbitrariedade, portanto acho que esta dedução pensada é sempre para confirmar, e não quer dizer isto: “eu vou reflectir abstractamente para depois poder produzir”. Porque aquilo que é feito com consciência é um desastre. Como dizia o (Jorge Luis) Borges, não se pode notar nos textos o esforço do escritor, senão um tipo começa a ficar muito cansado e já não acaba o livro, tem de parecer que aquilo foi fácil e que lhe saiu com

uma certa frescura. Portanto, a teoria nunca pode estar presente, penso que era o Marcel Proust que dizia que “uma obra com a teoria presente, é como oferecer um presente com o preço”. Há dez anos falava-nos de um vazio ideológico e de programa, por sua vez, limitado por fortes imposições, que ditam o projecto à partida3. Como é que se mantém essa linha de pensamento quando limitada pelas condições económicas, regulamentares ou burocráticas? Acho que isso não são impedimentos, quer dizer, não há arquitectura sem regras e sem limites. Um doente não pode morrer da cura e são necessárias essas limitações, porque isso faz com que se saiba se a obra resiste ou não. Isto é como a sustentabilidade, a boa arquitectura é sempre sustentável, portanto uma boa obra tem implícito que pode resistir a regulamentos de incêndio, de estacionamento para pessoas com deficiência, etc. sem ficar prejudicada. Isso não me preocupa, preocupa-me é quando isso tenta substituir as outras regras, como está acontecer hoje em dia em que tudo é energia (como por exemplo em França, onde não se podem abrir janelas porque isso gasta muita luz e energia, portanto é uma imposição). E quando se tenta não informar ou aumentar a qualidade do produto mas substituir,

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eliminando uma para ficar outra, isso realmente é a consequência da mediocridade das pessoas e das épocas. É que todas as arquitecturas com títulos são arquitecturas que são impotentes: na arquitectura inteligente é porque eles sabem que são burros, na arquitectura insustentável é porque se tem de sustentar (logo as pessoas são insustentáveis) portanto essa adjectivação da arquitectura é uma má consciência que as pessoas, em vez de fazer boa arquitectura, tentam suprimir com adjectivos. É um bocado duro, mas é verdade.

Em Novembro do ano passado, quando apresentou na universidade de Columbia as torres de Zhengzhou, o seu mais recente projecto no Oriente. Mark Wigley introduziu o seu trabalho recente como ´(…) maior, não só numa questão de escala mas também em imaginação`4. Olhando para a sua obra desde os anos 80, na sua relação com todos os projectos, até que ponto esta mudança altera a maneira de actuar e de pensar?

E quando se constrói noutros territórios, nomeadamente a Oriente, quais são os novos desafios ao processo teórico e à investigação processual? Os projectos do Oriente não são melhores nem piores, são diferentes porque existe uma cultura diferente. Eu lembro-me que nos manuais de psicologia, dizia-se que inteligência é a capacidade de adaptação a novas situações. Havia um livro em particular do meu tempo de liceu que dizia que realmente temos de descobrir a nossa inteligência para poder actuar nessas novas culturas. Nem podemos esquecer a nossa cultura nem a podemos transformar ou aderir completamente à outra. Portanto temos que utilizar os nossos meios para elementos e realidades diferentes. Daí, é preciso fazer uma investigação, fazer aquilo que eu fiz nas torres de Zhengzhou, que foi tentar perceber uma arquitectura vertical, em altura, que fosse possível na China. Tentar perceber aquela identidade, o porquê da ligação forma e função, e reutilizá-la ou passá-la para o século XXI com os meios, materiais e técnicas que hoje estão ao nosso dispor. Somos obrigados a usá-las, não as podemos renegar porque senão ficamos caricatos, não podemos fazer “neos-qualquer coisa” dos chineses, é nisso que a arquitectura é a expressão, a arquitectura é a vontade de uma época traduzida num espaço. Assim, temos que usar aquilo que a época nos dá para depois podermos ser julgados por isso. Imagine o que era eu ter à minha disposição um Caterpillar para fazer a Muralha da China, não o usar e em vez disso, ter os operários chineses a pôr pedra sobre pedra… No fundo é para facilitar, para a construção ser mais inteligente.

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Souto Moura | A transparência dos gestos. Revista Nu, nº 1,

Coimbra, 2003, p.10-17 4

“Avalanche of very large significant works, not large in terms of

the size, although they are getting bigger, but larger in their claim for imagination” Mark Wigley, Kenneth Frampton Endowed Lecture: Eduardo Souto de Moura, Columbia GSAPP (video disponível em http://events.gsapp.org)

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Há tanta gente que diz que eu mudei, é como a Escola do Porto, ninguém sabe o que é mas toda gente fala dela. Mas aqui também, toda gente me diz: “Porque é que agora fazes assim? Porque é que mudaste? Porque é que deixaste de ser minimalista?”. E realmente, depois começo a pensar e se calhar é verdade, não sei se deixei de ser minimalista até porque a palavra “minimalista” me irrita solenemente. Por exemplo a minha adesão aos princípios não conscientes de fazer uma arquitectura depurada ou simples em relação a uma época excessiva, o pós-modernismo, dos frontões e colunas que se faziam, é uma espécie de reacção. Depois percebi que aquilo se transformou numa espécie de academismo e minimalismo era sinónimo de pouca energia e de falta de trabalho. Há clichés, bastava fazer meia dúzia de coisas para se ser minimal e acho que as coisas também não têm essa simplicidade falsa, porque acho que a arquitectura deve ser simples para poder ficar complexa - porque a arquitectura tem que ficar complexa. É como as casas e as roupas, não é só para não apanhar frio, tem que ser eficaz, tem elementos. Mas por exemplo, não sou contra a decoração, porque a decoração também tem um suporte funcional que depois é exacerbado, tem uma razão de ser. Portanto mudei porque me fui apercebendo que nem sempre a arquitectura complexa tem um processo simples que recebe e rejeita, só ficando com o essencial, mas que o tempo se encarrega de eliminar. Sobre a mudança, vou abandonando uma certa radicalidade, um espiríto de vontade de elegância esteticista e acaba-se por descobrir que há coisas mais importantes. As coisas têm de ser mais naturais, mais verdadeiras. Na entrevista da revista El Croquis N.146 fala-nos da sua admiração pela flexibilidade dos espaços industriais e chega a dizer que os melhores museus que já visitou foram velhas fábricas reconvertidas5. De que forma podem os edifícios ser reutilizados? Gosto da arquitectura industrial porque não tem nenhuma narrativa, é uma arquitectura que vive só por ela, única e simplesmente para responder a uma função. Um armazém serve para guardar coisas, por isso é necessário arranjar um tecto e umas paredes para os objectos não se deteriorarem. É a consequência directa do conceito de abrigo e

não tem nenhuma narrativa sob o ponto de vista de decoração e da tentativa de criar uma simbologia e uma comunicação. Como tal, é muito aberta a poder receber coisas, e recebe bem as obras de arte que, por sua vez, são o contrário: têm uma intencionalidade muito grande, as pessoas fazem coisa para comunicarem e sublimarem estados. Isto para dizer que gosto desta arquitectura despojada. Se lembrarmos as fábricas da AEG feitas por Peter Behrens, eram projectos que tinham esta vertente funcionalista mas tinham um sistema compositivo bastante equilibrado, a questão do betão amarelo com as estrias horizontais, dos perfis metálicos bem trabalhados assim como o trabalho dos encaixes verticais. Bem mas isso foi feito, penso eu, num período de iniciação. É evidente que o Peter Behrens era um arquitecto neoclássico mas defendeu a continuidade da arquitectura. Quando percebeu que existiam novos materiais e novas tecnologias como o ferro, pega nos templos gregos que eram feitos de pedra e mármore (ele tinha uma formação clássica e chegou a fazer um edifício neoclássico em pedra fiscalizado pelo Mies Van Der Rohe) e fá-los em ferro. É evidente que quando os faz em ferro, ele percebe que, por exemplo, as características do edifício podem diminuir a base de sustentação: as colunas têm uma base mais sólida para suportar o peso e o ferro não precisa disso porque pode usar a própria rótula. E isso é um período de adaptação, de passagem de uma situação para outra. Os primeiros carros são carros de cavalos a motor. Aliás, antes de aparecer a forma que conhecemos, os primeiros carros têm dois cavalos, põem um pequeno motor a vapor e o cocheiro vai à frente. Existe essa transposição em que a primeira situação é tentar passar a antiga imagem e tipologia com os novos recursos sendo depois capaz de se transformar numa forma diferente. Penso que tem muito a ver com o templo grego porque é uma espécie de iniciação que se vai desenvolvendo e depois o próprio uso e as descobertas de materiais e sistemas construtivos levam a outras coisas diferentes. Um caso muito

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El Croquis Nº 146, Souto de Moura, 2005-2009, p.21

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claro e aberto disso é o Mies, por exemplo. Começa com as experiências com pedra, depois com o betão, mais tarde com o ferro, a seguir aparecem as estruturas tridimensionais e há uma progressão à medida que vai descobrindo, recebendo ou intuindo. Outro exemplo com graça é o Le Corbusier sob o ponto de vista da iluminação, quando se vão descobrindo as novas lâmpadas, vai usando sempre em todos os edifícios: as fluorescentes, as incandescentes, as normais, etc. Portanto, vai incluindo na sua arquitectura a evolução do próprio conceito de iluminação, desde a própria lâmpada, até que acaba e se torna um percursor da luz indirecta. Utiliza então essa fonte de energia quando faz os candeeiros em forma de caracol na Unité d’Habitation em Marselha, que reflecte a luz e não fere os olhos. Tendo em conta casos como o da Casa das Artes, cuja função original se encontra actualmente suspensa, como encara a sua reapropriação para um novo uso e, caso lhe propusessem um novo programa para esta, de que forma colaboraria? Tomara eu que se arranjasse outra função até porque aquilo está fechado e a deteriorar-se, estando agora de novo a ser restaurada. Eu tinha uma obra, o Mercado de Braga, que deixou de ser um mercado e eu próprio o deitei a baixo. Aquele processo não era operante, um mercado com coelhos e galinhas já não se justificava porque se criaram supermercados, e não tinha sentido existir - percebi isso. E então propuseram-me alterar o programa, deram-me um conjunto de funções e eu optei por fazer uma escola de dança e de ballet e uma escola de música. Resultou muito bem e hoje acho que até ficou melhor, deitei-o abaixo, ficou uma parte em ruínas como memória do antigo mercado e portanto, entre um armazém de peixes e uma escola de ballet, as coisas mudaram, quanto a mim, para melhor. Quando lá vou fico contente, vejo os alunos a dançarem e sinto-me útil, porque quando estava em ruínas, havia uma espécie de frustração como hoje acontece na Casa das Artes, que está há não sei quantos anos com buracos no tecto, chove em cima das cadeiras, o soalho sempre a estragar-se, roubaram as máquinas de filmar… Sendo assim, fico satisfeito que haja uma actividade em princípio 28

compatível com o edifício existente e não é por acaso que já fiz um projecto com meia dúzia de alterações para que fosse a Cinemateca do Porto. Venham elas as funções: já foi também teatro, o Teatro Experimental do Porto, na altura em que ainda não tinha instalações, já foi auditório da Faculdade de Arquitectura, o Távora dava lá aulas de teoria do 1º ano porque tinham muitos alunos, e nada daquilo foi construído com esta intenção. O Homem é um Ser que sabe muito bem resolver os problemas, não é muito esquisito sob o ponto de vista da adaptação porque cria a sua própria inteligência. Há uma história que eu acho muito bonita: quando o Homem andava a quatro, comia o que encontrava, era praticamente herbívoro e alimentava-se certamente com essa sua posição. Quando mais tarde se levantou e ficou bípede, seria de esperar que morresse de fome mas quando se levantou, aparece então a linguagem, começa a falar e a comunicar e assim suprimiu uma deficiência que

era a necessidade de comer, depois pela linguagem operativa em que o colectivo se junta para caçar, etc… Por isso, tem havido quase sempre uma resposta a um problema e na arquitectura é exactamente a mesma coisa, já para não falar naqueles exemplos mais que batidos dos mosteiros que dão quartéis, o Pártenon que passou a depósito de pólvora para os turcos, as igrejas que são abrigos durante as guerra. Os edifícios vão resistindo sempre quando são bons. Quando são maus, são como os automóveis: não andam, enquanto um bom carro só precisa de uma pequena afinação. Quando a função é muito precisa, em que o edifício está muito bem pensado e responde muito bem a essa função, responde geralmente às outras que surgem entretanto. É quando um tipo está doente e o médico acerta no remédio certo para aquela doença: ele fica bom e portanto resiste a outras vicissitudes. E nos edifícios é um bocado isso: a basílica de Sófia em Istambul, neste momento uma igreja muçulmana, foi durante anos uma igreja cristã, mudam-se umas coisas de um sítio para outro e aquilo vai dando sempre.

das pessoas. Mas é uma palavra que hoje está pouco presente, “adequação” está assim um bocadinho fora de moda, acho que está em falta dentro na produção de arquitectura na actualidade. Isto quando as pessoas recebem a arquitectura sem ser encomendada, no sentido de não serem os tais ícones e a tal actividade política e toda a crítica que se faz ao star system. Não tenho nada contra, aliás a história da arquitectura é a história do star system, o Bernini, o Borromini, toda essa gente faz parte. Agora, o que tinham era uma preocupação com esta questão da adequação que hoje se perde um bocado. Por exemplo, parece-me que o museu de Roma da Zaha Hadid (MAXXI) não é muito adequado, as pessoas querem pôr quadros e as paredes são redondas...

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´There are no universal languages, just as there are no universal

places; there is just “adaptation”. That is one of my favourite words, because architecture is a problem of adaptation.´. El Croquis Nº 146, Souto de Moura. 2005-2009, p.19

Esta é uma questão que se prende com a adaptação? Recordando as suas palavras: ´Não há linguagens universais, tal como não há lugares universais; há apenas “adaptação”. Esta é uma das minhas palavras preferidas, porque arquitectura é um problema de adaptação.`6 Hoje, faz mais sentido que seja “adequação”. “Adaptação” é quase igual mas não é bem igual porque tem uma ideia de transformação enquanto que adequação é transformar e construir algo com essa transformação, acho que é mais do que a adaptação só. Em relação, por exemplo, a uma igreja ou um mosteiro, adaptar é mudar o edifício. Adequá-lo, até depois da adaptação, é o trabalho de melhorar essa funcionalidade. Gosto mais da palavra “adequar”, conjuga melhor, aliás é o (Giorgio) Grassi que, baseando-se num texto do György Lukács, fala desta palavra “adequação”, em que o Lukács define a arquitectura como o processo de adequar as formas à medida 29

Transpondo então a citação para o termo “adequação”, acha que hoje em dia há um problema na adequação? E se existe, quais as consequências que podem surgir? Há porque existe uma cultura actual muito pouco ligada a princípios e valores autênticos, verdadeiros, todos os tempos foram assim mas neste momento existe uma construção hipócrita, falsa, em que nada existe por si e o que é preciso é simular a existência dessas coisas, basta haver algo que simule e as pessoas acreditem que existe, desde os 3Ds às imagens virtuais, e a arquitectura também é um bocado influenciada por isso. As pessoas não fazem fogões de sala para se aquecerem, fazem salas de bilhar não sei para quê, fazem salas de cinema, fazem umas cozinhas-laboratório e não sabem cozinhar. Portanto, tudo tem que ver com o status, com o significado, o parecer, o mostrar e, no fundo, aquilo que os arquitectos produzem não é adequado à realidade dessa vida das pessoas e do colectivo. Por exemplo, vi recentemente uma entrevista na televisão com um presidente da câmara que conheço, fiz um concurso nessa terra, um auditório para música que tinha um estúdio de gravação, e na altura quando fiz o concurso, trabalhei com o engenheiro acústico do Rem Koolhaas que estava aqui a fazer a Casa da Música. Deu-me apoio e quando chegou à parte do estúdio de gravação, disse-me que não me podia ajudar porque aquilo era de tal maneira complicado que não havia nenhum estúdio na Europa com estas características, que tinha de pedir ajuda a um engenheiro americano. E eu penso “uma cidade de província que pede um estúdio de gravação que não há na Europa: isto é completamente desajustado”. E esse presidente da Câmara estava então na televisão a defender as políticas deste governo de poupança e disciplina orçamental e confessava que tinha feito três piscinas, podia só ter feito uma mas deram-lhe dinheiro e fez as três. Isto são também mecanismos que não passam pela adequação e necessidade mas sim pela tal simulação, e quando se simula, conclui-se que não era bem aquilo que se pretendia...

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Falando dessa simulação e dos projectos que são muito dados a mecanismos ligados à imagem mas não à depuração e ao programa que tem de ser cumprido ou adaptado, o que acha desta cultura de imagética que parece que sobrevive por si mesma e que deixa de parte aspectos importantes, desvirtuando a discussão em torno do próprio projecto? Acho que os programas são sempre os mesmos. É como a história da filosofia, os problemas que se discutem hoje são os mesmos que se discutiam na Grécia Antiga. A história da aceleração da partícula é um tema dos anatomistas gregos, assim como a história da filosofia e da metafísica. Na arquitectura também é igual, faz-se agora tal como se fazia na Grécia. Eu não sou contra as simulações tal como não sou reaccionário. É chamada a evolução da arquitectura na modernidade: a descoberta de novos meios e produtos para resolver problemas. Agora, o verdadeiro problema é a questão do bom senso, é ter bom senso para utilizar isso para facilitar as coisas e não para as complicar. É exactamente como a medicina, o estudo da medicina é a clonagem, portanto é a substituição dos órgãos da própria pessoa sem rejeição. Uma pessoa com 60 ou 70 anos vai à revisão e ao substituir os órgãos, fazem-no com as próprias células da pessoa. Neste momento, é difícil porque na clonagem, os órgãos e os animais nascem com a mesma idade das células, ou seja nascem velhos mas isto está a tentar ser superado. É evidente que a clonagem tem esse efeito maravilhoso em que um tipo pode salvar milhões de pessoas mas também pode, por outro lado, em vez de fazer a ovelha Dolly, pode começar a fazer monstruosidades em que todas as pessoas ficam iguais. E portanto, vem tudo da utilização, do bom senso. Quando apareceu a anestesia, a igreja católica proibiu-a porque diminuía as censuras e podia controlar as sensações. A energia atómica, por exemplo, tem muitas coisas boas mas não é para fazer bombas e matar toda a gente, claro. Todas as descobertas científicas ajudam e depois é preciso que haja controlo, principalmente hoje em que temos uma infinidade de temas novos.

Se é perigoso? É, como tudo, mas a tendência é sempre para melhorar e depois há sempre o bom senso depois de alguns desastres. Na utilização das bombas atómicas na guerra fria, só depois do resultado é que se viu o perigo que aquilo representava. E já nessa altura, era o chamado mal que vem por bem. Agora, não se pode ser contra o progresso no sentido de melhorar as condições das pessoas. E a arquitectura não é contra. De tal modo que aparecem as estruturas de fibra de carbono, os edifícios são mais leves, usam poucos materiais numa questão de consideração… É uma simples evolução que vem desde há milhares de anos.

Pág. 22 Fotografia por Leonel de Castro Pág. 24 Kazimir Malevich, Quadrado Negro sobre fundo Branco; Marcel Duchamp, A fonte Pág. 25 Torre dos Clérigos, Porto; Torre da Universidade de Coimbra; Torre Eiffel, Paris Pág. 26 Torre octogonal de escritórios (Zhengzhou, China), 2012 - render de projecto Pág. 28 Casa das Artes do Porto Pág. 29 Reconversão do Mercado de Braga em Escola de Música Pág. 31 Novo centro cultural em Veneza-Mestre “M9” (Veneza, Itália), 2010 - render de projecto

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