Entrevista com Lais Myrrha

July 5, 2017 | Autor: Leandro Muniz | Categoria: Art History, Architecture, Contemporary Art, Modernism (Art History), Modernism, Visual Arts
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Entrevista com Lais Myrrha Leandro Muniz Acho que seria legal começar falando da sua formação e das pessoas que você tinha contato e que continuaram trabalhando, se você ainda vê alguma interlocução entre os trabalhos... Essa coisa de formação já é uma questão. O que é o período de formação de um artista? A faculdade? O período que ele foi assistente de uma pessoa ou de outra? Enfim. Mas, claro, que dentro desse período bem inicial quando eu comecei a me envolver com arte, comecei a estudar arte em 1998, eu tinha mais ou menos 23 anos, e eu já tinha feito algumas coisas: comecei um curso de psicologia e abandonei, depois comecei um curso de comunicação social e parei também e depois eu fui fazer artes plásticas e fiquei. Mas eu comecei meio sem ter certeza se eu ia continuar de qualquer forma. Do ponto de vista dos trabalhos, só dois ou três trabalhos que eu considero dentro da minha produção, ainda um pouco ligados ao período em que eu estava na universidade, mas eram mais do final. Tem que pensar uma coisa que é engraçada, mas que faz muita diferença, mas na época em que eu comecei a estudar artes plásticas não tinha nem e-mail direito. Tinha e-mail, mas era precário, todo mundo tinha Hotmail, internet discada, tinha aquele barulhinho... Então as informações eram bem mais lentas, por incrível que pareça, porque não tem tanto tempo assim, tem menos de 20 anos. E realmente acho que é uma diferença muito grande... Belo Horizonte não é uma cidade que tem museus, tem museus, mas assim: museu de arte sacra, museu de artes e ofícios, tem o museu mineiro... Mas não tem um museu de arte. Tem o museu da Pampulha, mas ele não tem um acervo permanente em exposição, a coleção dele foi formada de um jeito muito aleatório, foi por meio de doações a maioria, não tinha um projeto curatorial que desse um conceito, um formato, um contorno pra coleção, o que é importante, no caso dos museus. Por outro lado o Museu da Pampulha teve um papel muito importante na minha formação em função da Bolsa Pampulha.

Foi a primeira edição, a que você participou. Foi a primeira edição. E naquele momento, foi muito interessante no museu, já fazia uns anos, começou a ter uma destinação do museu da Pampulha pra trabalhos que pudessem lidar com a fisicalidade do museu. Não é que todos os trabalhos que foram mostrados lá eram site-specifc. Não. Teve exposição da Beatriz Milhazes, mesmo a da Rosângela Rennó não era tanto sobre a questão do museu em si. Mas sempre montar uma exposição lá considerava isso. O Adriano Pedrosa foi curador lá por um tempo e foi na época em que foi criada a bolsa Pampulha. O Rodrigo Moura na época era assistente dele, e foi um projeto que na época ele se envolveu, talvez tenha sido um pouco ideia dele a coisa da bolsa... Mas era um projeto que era muito caro ao Rodrigo, que acabou ficando no lugar do Adriano quando ele saiu. Belo Horizonte não é uma cidade fácil... Aquele momento foi muito produtivo porque realmente nosso grupo da bolsa Pampulha teve uma conexão muito forte. Os artistas que participaram tiveram uma troca muito efetiva entre eles. Claro que ali dentro um ou outro se identificava mais, alguns com outros... Mas a gente fazia coisas juntos, desde festa até outras coisas. Eu fiquei muito amiga do Pedro Motta, por exemplo, a Sara [Ramo] ficou muito próxima da Laura Belém... Tinham essas afinidades isoladas, mas no que me concerne, eu, a Marilá [Dardot], a Sara, o Rodrigo Matheus, a gente se configurou como um grupo de amigos e de interlocutores e a gente segue isso até hoje, essa troca de experiência. A gente vai fazer uma exposição esse ano sobre isso, lá no Pivô. E a gente foi oferecer essa exposição pra elas e elas falaram “gente, que coisa louca, a gente vai abrir uma exposição da Casa7”. E elas ficaram super animadas porque tinha tudo a ver com o programa e foi completamente coincidência. Pensando nesse acidental diálogo entre essa exposição que vocês vão fazer e a exposição agora do Casa7, eu fiquei me perguntando, quando estava vendo alguns trabalhos seus e estava pensando neles, se você

chegou a ter algum tipo de interlocução com a Rosângela [Rennó] e com a Rivane [Neuenschwander]. As duas são de Belo Horizonte. Com a Rosângela é mais evidente, talvez... Você acha que é mais evidente? Não sou a entrevistadora, mas: por quê? Achei curioso. Acho que tem um tipo de postura do que é ser artista que é parecida. É o extremo oposto do que foi a Casa7, por exemplo, do artista expressivo. Acho que tem uma vontade de mudança, uma vontade de inserção, que, de um jeito cifrado, aparece. Talvez sim. Eu sou amiga da Rivane. Ela é uma artista que vem de uma geração imediatamente anterior a minha, e é uma pessoa que era próxima. E claro que era um tipo de trabalho que me interessava, a gente se encontrava e conversa e tal. Mas a Rosângela, mais especificamente, eu tive uma pesquisa mais intensa, já trabalhei em montagem de exposição dela. Eu conheço ela porque uma pessoa que foi muito importante pra mim, até hoje, foi a Piti, a Maria Angélica Melendi, foi minha professora na Guignard. Ela trabalha com teoria da arte, mas ela também é artista, hoje em dia ela não produz mais. Ela ficou bem envolvida com a parte de teoria. Todos nós passamos de alguma forma pela Piti. O Matheus [Rocha Pitta] foi assistente da Rosângela, a Marilá [Dardot] foi assistente da Rosângela. Eu não cheguei a ser porque ela morava no Rio. E ela é muito amiga da Piti, a Piti escreveu vários textos sobre o trabalho dela, inclusive tem um texto sobre a Bibliotheca e outros. Ela [Rosângela] é uma pessoa com quem eu tive um contato bem estreito. E ela é uma pessoa muito generosa, a Rivane também é. Quando o Adriano saiu, ela [Rosângela] que fez a última visita com os artistas, porque tinham visitas mensais, a ideia era que tivesse duas visitas com cada pessoa do júri no ano. Na segunda entrevista do Adriano ele não estava mais no museu e quem fez foi a Rosângela. E a Rosângela é uma pessoa muito perspicaz, muito

inteligente. E esse lado reflexivo que ela tem como artista. O trabalho dela é muito sobre a fotografia, ela foi levando isso a um patamar. O trabalho tem uma reflexão muito potente sobre a natureza da fotografia, da imagem, como é isso no contexto contemporâneo. Ela é uma artista que fez doutorado, na USP. Então ela é uma artista que tem um interesse pela teoria que me concerne, eu estou fazendo doutorado agora. O que é interessante é pensar que a gente ainda é um ser em formação. Eu não tenho o mínimo interesse que o meu trabalho se consolide. “Esse trabalho é isso!”. Isso foi uma coisa muito deliberada pra mim: eu nunca quis que meu trabalho fosse identificado com uma forma específica. Se você olhar meus trabalhos e começar a perceber eles por outro tipo de aproximação que não é só no reconhecimento imediato da forma... Claro que você vê e “esse trabalho podia ser da Lais” e tal. Mas não é o aspecto formal que cria o reconhecimento, não tem muito jeito de reconhecer o trabalho prontamente. Mas tem questões recorrentes. Eu separei algumas que me interessam particularmente. A primeira é sobre como o trabalho aborda questões relativas à modernidade e ao modernismo. Talvez, pelo menos desde os anos 80 pra cá, muita gente tem se interessado por isso, rediscutir, rever falhas, mas talvez hoje, eu sinto que as vezes esses termos são usados de um jeito um pouco indiferenciado. E a gente sabe que são diferentes, como foi no século XIX, no século XX, no Brasil, nos Estados Unidos... Tinha uma menina italiana que fazia mestrado na Federal que era de uma cidade, não era uma cidade grande, era menor e onde ela estudava, eles consideram arte moderna a partir do Renascimento, um pouco posterior, talvez. Eles consideram que quando a pintura passa a ser feita em tela, já é arte moderna. Porque ela já tem a ideia de circulação do objeto de arte. Ali já está toda a origem do que vai acontecer depois. Bom, é um ponto de vista. E mesmo os historiadores, o que é o mundo moderno? Onde ele começa? Porque é um conjunto de fenômenos, é igual o quadro psiquiátrico. Não tem um exame que fala “fulano é isso, aquilo”, é um conjunto de coisas que acontecem ao mesmo tempo. Acho que é isso que acontece com a ideia de moderno.

O modernismo acho que é um pouco diferente porque ele é mais enquadrado, especificamente. Tinham os manifestos, muitas vezes os próprios artistas se autodeclaravam... Acho que o mais ambíguo é essa coisa do moderno. Eu costumo pensar o moderno um pouco da Revolução Francesa pra frente, eu vou um pouco pela linha do Argan. Como história, eu parto dessa consideração, com o surgimento dos museus, que é um pouco antes, na verdade. Mas você falou de sintoma, acho bom você usar esse termo. Sem dúvida boa parte dos seus trabalhos tem discutido esse período, e as ressonâncias disso na vida de hoje. Alguns trabalhos trazem a tona questões que estavam latentes, mas que a história oficial não tenha discutido tanto. Como o que? O trabalho sobre a Gameleira, por exemplo. Claro que tem uma série de pessoas que estão pensando fissuras, que as construções do Niemeyer tiveram, por exemplo, e são questões que ajudam a gente a tornar a compreensão desse período mais complexa. E de como isso ainda repercute na gente hoje. Acho que tem duas coisas aí. Tem o trabalho da Gameleira, Projeto Gameleira 1971, que é uma coisa muito específica e muito precisa na minha produção. Se você pensar no corpo dos meus trabalhos como um todo, pensando outros trabalhos, por exemplo Mitos de origem, vários outros. São mais genéricos, eles são menos ligados a fatos específicos históricos, como o Projeto da Gameleira. Eu acho que os outros trabalhos estão ligados a um tipo de pensamento, racionalidade, ou ethos, que são próprios desse mundo, talvez moderno ocidental. Não sei se ocidental é uma palavra boa. Estão dentro dessa chave dessa racionalidade. O meu trabalho é muito sobre a cultura, eu acho. As formas de construir e também de aprisionar o pensamento. É muito sobre colocar uma lupa sobre as convenções, de algumas convenções que a gente naturaliza, mas que não são

coisas naturais. Tem uma série de trabalhos com mapas, representações geográficas, globo, coordenadas... Tem um trabalho em que eu uso o Almanaque Abril, que é um jeito de criar um... Uma classificação do mundo? Não uma classificação, um resumo de tudo que aconteceu no mundo desde a pré história até hoje. O Almanaque Abril é muito louco, é a história do mundo em cinco segundos. E eu trabalho com essas formas de representação, de como o mundo é representado e com os mecanismos que a gente usa pra medir o tempo, pra esquadrinhar o espaço. Então dentro dessa ideia, e claro que isso implica de certa forma a construção de uma forma ou de um conjunto de coisas que participam desse pensamento moderno do mundo. Eu trabalho com a ampulheta, a ampulheta é uma forma antiga, mas eu crio uma transformação que o tempo está sempre no devir, não é que está estrangulada, a ampulheta, é que tem um ímã. Quer dizer, é o tempo do futuro, uma antigravidade. É uma imagem metafórica também. Chama O tempo corre pro norte, então o título do trabalho aponta também pra essa hegemonia... Do norte. Claro. Porque eu estou falando do norte magnético, mas também do norte. É uma coisa ambígua esse título. Que pode ser tanto essa ideia do correr do tempo, esse tempo que vai e não volta mais, o tempo linear. Tem uma coisa complexa. As noções de construções do tempo, é uma questão recorrente no meu trabalho. Mas quando eu faço um trabalho feito o Gameleira, que eu fiz vários trabalhos nesses últimos tempos que estão em torno dessa ideia da ruína, que não é só a ruína do moderno, porque começou com o livro Desmanches, que tem a ver com a minha reflexão sobre o tempo e aí aos poucos foi entrando algum interesse ligado a dimensão da arquitetura. Me interessam também as convenções e os símbolos. Então, pra mim, a questão Niemeyer, ele é uma

espécie de generalidade no trabalho. Ele mesmo é um tipo de representação de um gênero de coisa, que é a ideia de um arquiteto oficial, um arquiteto demiurgo, sabe, aquela ideia do grande arquiteto. Então quando eu fiz esse trabalho tinham algumas razões: uma que desde a época da bolsa Pampulha que eu queria fazer um trabalho sobre esse acidente. Minha questão era muito mais relacionada ao apagamento dessa história no tempo do que precisamente o modernismo em si. Mas claro, que a questão do moderno, como tem a ver com o prédio do Niemeyer, como tem aquela coisa do concreto armado, das vigas, claro que eu evoco isso como uma camada. Mas o ponto de partida desse trabalho é muito mais como criar um lugar de memória pra esse evento no espectador. Porque como era uma exposição efêmera, eu queria criar uma exposição

que

tivesse

essa

potência

de

inscrever

essa

memória

corporalmente. Então por isso que ela começa muito física e ela vai ficando discursiva. Mas também não é uma discursividade maçante. Porque aí tem essa questão na arquitetura e na arte, o moderno e o modernismo... São concepções diferentes. E não dá pra equivaler. Eu estou lendo agora aquele novo do Hal Foster, O complexo arte arquitetura, é interessante. Então assim, o Niemeyer é um tipo de artista que eles dão até um nome pra isso, eu fiquei muito triste com esse nome porque é muito perigoso que é o de herói cultural. É uma barbaridade esse nome, mas ele existe. Mas claro que essa crítica tem. A figura do Niemeyer, como essa figura do século XX... Ele é arquiteto desde a época da regulamentação da profissão de arquiteto no Brasil, porque quem regulamentou a profissão de arquiteto foi Getúlio Vargas. E ele trabalhou na construção do prédio do Gustavo Capanema, que é onde é a Funarte hoje. Até agora, que ele morreu outro dia, ele viveu todo esse período. É um legado absurdo. E a arquitetura tem uma diferença em relação às artes plásticas, visuais, enfim. Muitos dos projetos do Niemeyer ou são museus, ou é um prédio ligado ao governo de alguma maneira. Então ele tem essa força do estado.

É uma arquitetura ligada ao poder estatal principalmente. E óbvio que essa questão, que é uma questão moderna, me interessa. Porque essa questão do Estado-nação, que traz implicadas figuras desse tipo, como é o caso do Niemeyer, claro que isso entra no trabalho. Mas ele também entra como uma espécie de generalidade. O difícil é falar dessa generalidade sendo que ele é uma figura tão autoral. Algumas pessoas pensaram como uma espécie de ataque pessoal, mas não era isso. Primeiro que ele parte de uma ideia de um apagamento da história, que era sempre o que me causava espanto. E eu perguntei pra muita gente, e muita gente que nunca tinha ouvido falar disso. E eu não conseguia entender que tipo de mecanismo cria essa invisibilidade. Como que um acidente que foi ligado ao nome de uma pessoa que era tão importante na constituição simbólica do país, nos últimos anos talvez um pouco menos, mas não tem como... A sede do poder no Brasil é uma cidade construída por ele e pelo Lucio Costa, começada, porque depois a cidade vai se modificando. Mas como isso era um evento tão absurdamente esquecido. Isso, por exemplo, eu acho que tem uma conexão muito forte com o tipo de pergunta que a Rosângela se faz. Talvez esse trabalho é onde tem um ponto de contato mais evidente com ela, mas com outros também. Tem uma dimensão do arquivo, mas a exposição não é uma exposição arquivista. Isso é um dado. Os trabalhos não são de colecionismo. Mas isso pra mim era já um ponto de partida. Eu não queria isso. Não só nessa exposição, mas em vários outros trabalhos que poderiam se resolver como arquivo, como mostra de documento, de coleção, mas não é uma prática. No fim, eu acho que eu sou uma artista mais pra síntese. A Rosângela, por exemplo, ela tem uma eleição muito precisa quando ela trabalha com arquivo. O jeito como ela trabalha com arquivo é sintético. Agora, mostrar um monte de documento, com um monte de gente falando, não sei o que, você olha pra mesa e vira um monte de desenho. Então não tem a eficácia. Eu ainda acredito que existem algumas coisas que são importantes dentro de toda essa coisa da

diversidade de trabalhos e de poéticas, de discursos, de concepções, mas pra mim, pra minha forma de produção, a minha ideia é criar um tipo de síntese que não seria possível de outro jeito. Por exemplo, a escrita te permite vizinhanças e relações e saltos que é muito difícil reproduzir como um trabalho de artes visuais. Você pode trabalhar isso e criar isso de outra forma. Mas é diferente, você não tem o peso da matéria. E nas artes visuais, por mais que você possa ter a desmaterialização da obra de arte, por mais que possa ter virado um conceito, ou tudo isso, ou nada disso, eu acho que o interessante é poder construir alguma coisa que tenha um aspecto que cria uma espécie de atração. E que permita que aquilo vá se desdobrando em pensamentos, em ação. É uma espécie de esforço de condensação. Condensar o máximo de significados possíveis no mínimo de elementos possíveis. Não é minimalismo, não é “menos é mais”. O máximo com o mínimo de elementos mesmo. Por exemplo, o Pódio pra ninguém, que acho que é importante falar dele já que a gente está falando dessa ideia do modernismo. No caso da Gameleira é muito evidente, mas eu fico pensando dentro dessa ideia de generalidade. Quando eu mostrei o Pódio, em Brasília, na exposição da Caixa Cultural, a Júlia [Rebouças] que era curadora levou uma pessoa que participou de uma banca, eu esqueci o nome, sei que ele é engenheiro, mais velho, chegou até a trabalhar na época da construção de Brasília, e ela falou que quando ele viu o Pódio ele falou “esse trabalho é sobre Brasília”. Tem um procedimento no Pódio e que é recorrente, nisso dos trabalhos serem diferentes, mas naquilo que eles têm em comum, que é uma espécie de desfazimento. Muitos trabalhos acontecem não por uma adição, mas quando a forma se desfaz, o Moderno Atlas Geográfico é o mapa apagado ou mesmo a Coluna infinita. Vários. O Compensação dos erros, Teoria das bordas, Memorial do esquecimento. O apagamento está no meu trabalho quase inteiro. A dissolução. Às vezes aparece claramente como apagamento não só simbólico, mas físico, mas no caso do Teoria das bordas talvez dissolução seja uma palavra mais adequada.

É que ele não dissolve, ele mistura mesmo. E como é grão, um material granular, é uma mistura que é ótica também. Os pontos pretos continuam pretos e os pontos brancos continuam brancos. Mas eles adquirem uma convivência de campo que cria o cinza. E eles nem são absolutamente pretos e absolutamente brancos. Não são. É um branco de pedra, um preto de pedra, uma areia de pedra. O que resta da trituração da pedra. Então ela não tem esse branco branco. Talvez na neve ou o branco sintético, feito, porque um branco puro, nem o Quadrado branco sobre fundo branco do Malevich é mais. Ele é meio amarelinho já, o que é lindo. É aquela coisa que a pureza é um mito, esse absoluto é um mito. Eu acho que dentro dessa ideia genérica de modernismo, é um pouco um jeito de criar uma espécie de corrosão da ideia de absoluto. Ou de íntegro. Tem um trabalho que está no MAC agora, que é o Dicionário do impossível, ele fala muito de todas essas coisas. É muito difícil de ler também. E como aquela edição é de um colecionador, ela está começando a se desfazer também, o próprio texto está começando a ser corroído pelo tempo. Esse dado da impossibilidade também é um dado importante. No Compensação de erros é bem claro, esse corpo que quer acompanhar a máquina e nunca consegue, mas tem uma impossibilidade que aparece em alguns dos trabalhos em que você usa os nomes das pessoas que me deixou intrigado. Porque ali tem uma tensão grande entre querer lembrar, querer guardar ou evidenciar o nome da pessoa comum, o passante, ou, no caso do Em memória ao silêncio do arquiteto, tinha uma vontade de mostrar pessoas que estavam simbólica e fisicamente soterradas na arquitetura. Mas os trabalhos com nomes também sempre anunciam uma impossibilidade. É tensionado. Querer guardar todo mundo e acabar esquecendo todo mundo, escrever os nomes de todas as pessoas em pedras e acabar que eles se perdem. Tem uma coisa de serem sujeitos anônimos. Os memoriais, os monumentos eles têm nomes de pessoas que estão associadas a um evento, pessoas que morreram num desastre, ou que foram pra guerra e não voltaram, não são

nomes de heróis propriamente ditos ou de figuras que a gente distingue e reconhece e por isso você pode lembrar. Eu acho até que o Em memória ao silêncio do arquiteto ele funciona mais como um memorial bem tradicional. Tem lá todos os nomes escritos em ordem alfabética, mas a impossibilidade de você se lembrar de um ou de outro nome, é a mesma do Memorial do esquecimento. Não é só porque ficou branco que você não vai lembrar, você não vai lembrar porque aquele nome vai ter que te dizer alguma coisa, porque ele no fim acaba entrando como uma espécie de somatória. Cada nome ali compõe um corpo, você vai lembrar desse corpo e não de cada individualidade que está ali representada, acumulada, no caso do Memorial do esquecimento. Mas que aquela individualidade pessoal, faz menos diferença do que o montante. É um pouco a ideia das pinturas de datas do On Kawara. É esse acúmulo dos dias. Não é um quadrinho da data, é sobre um corpo. É sobre dar corpo e dar uma espécie de volume, paradoxalmente, porque o nome é uma coisa muito plana, se você não tem nada que te associe aquele nome. José da Silva, Maria da Conceição... Mas por que que eu lembro desses nomes? Porque eles também dizem de uma generalidade. Agora não tem mais, mas quando eu era nova tinha lista de telefone e tinham páginas e páginas com Maria, com José, com da Silva. E eles dizem dessa figura. O anônimo é uma figura. E essa ideia de anônimo é uma ideia moderna. Porque ela só é possível com a ideia de multidão e porque tem a ideia de cidade moderna. Onde você tem um grupo de pessoas que estão na rua, você transita por lugares nos quais você já não tem familiaridade com aquelas pessoas, tem um texto do Benjamin que fala disso, está naquele Charles Baudelaire – Um lírico no auge do capitalismo. Ele fala que quando teve a haussmanização de Paris e depois teve uma mudança ligada aos correios, ou coisa parecida, que as casas passaram a ser identificadas por números e que isso causou uma comoção, as pessoas ficaram completamente indignadas. Como assim que elas iam ser distinguidas por um número? Pra elas era o cúmulo da despersonalização. Aí tem aquela coisa do Edgar Allan Poe, de um homem na multidão, todo rosto pode ser o rosto de um criminoso... Então eu acho que o mundo moderno ele é esse mundo anônimo, da multidão também. Do Estado por um lado, desse poder que também é um poder

despersonalizado, num certo sentido. Apesar de você ter tido figuras de ditadores, presidentes, mas em tese o cargo vem antes do nome, existe um cargo: presidente. Ele é um lugar pelo qual passam pessoas. É muito diferente do que é a ideia de um rei, por exemplo, que tem uma continuação, tem um ideia de sucessão óbvia. Então essa ideia do anônimo é uma ideia muito ligada a ideia da modernidade. Meu trabalho está muito ligado a essas questões, da construção do pensamento, coisas que são muito mais genéricas e muito mais abstratas em relações ao moderno. Claro que o Niemeyer é uma relação muito direta com um modernismo específico e muito localizado, recortado no tempo e no espaço. Muito icônico. É mais particular. Essa dimensão do pensamento do mundo moderno, isso está espalhado no meu trabalho inteiro. E não é só uma relação com o modernismo no século XX, que tem sido uma crítica recorrente ultimamente. Tem uma questão que vários trabalhos desde o começo têm colocado de algum jeito que é uma dúvida ou questionamento sobre a estetização da ruína, do desastre e em última instância, talvez, da precariedade. Mas não só em trabalhos recentes, como essa série de fotos que chama Estado transitório, mas, por exemplo, naquele trabalho O auditório. Na Biblioteca [para Dibutade]... O Desmanches e, evidentemente, o Ensaio de orquestra, que você fez o ano passado. Mas você acha que eles são o que? Acho que é um problema que os trabalhos têm articulado. Uma crítica à ruína? À destruição? No Desmanches uma crítica direta disso, em alguns momentos eu tenho a impressão de que, no Auditório, por exemplo, o trabalho antes de tudo se questiona de estar fotografando aquele espaço em ruína, nessa inversão

dos títulos. [O auditório é um díptico em que a fotografia do lugar palestrante se chama O público e a fotografia do lugar público se chama O palestrante] Tem três trabalhos que acho que são complementares: O auditório, A biblioteca [para Dibutade] e o número 3 dessa série [Estado transitório], que é um quadro negro. Eles foram todos feitos no mesmo espaço. Então eles dizem todos de um lugar que alinhava o poder e o saber, a biblioteca, o auditório, a sala de aula. Eu usei ela em dois trabalhos, ela participa dessa série, mas ela também é o primeiro trabalho que participa do Estados transitivos, que é aquele que estava no final da exposição da Gameleira, do lado da foto usada como referência pra instalação. Aquela série tem três trabalhos e são todos em torno de coisas que se relacionaram à Gameleira ou de coisas que se relacionaram à ela, e às pessoas. Tem a primeira, que é a única que é colorida, que é a do quadro negro, tem aquela que estava lá e essa aí, do cartaz. Essa questão da ruína, da destruição, que está ligada a construção e a desconstrução, é uma coisa muito difícil de você se decidir. Meu trabalho não é propriamente uma apologia da ruína. Nem um elogio, nem nada disso. Ele é mais uma constatação. Na minha exposição na [Galeria] Jaqueline [Martins], acho que vou entrar muito nesse universo, da coisa da destruição. Como conceber essa ideia de destruição? Você tem textos como O caráter destrutivo, do Benjamin, A casa do homem ruiu, da Lina, que eles veem nessa condição de ruína e da destruição talvez uma possibilidade, uma potência, onde podem surgir outras coisas, abrir caminho de outro tipo de vida. No caso eles estão falando de um tipo de vida burguesa que estava sedimentado na Europa até aquele momento da guerra, o interior burguês que o Benjamin fala. O texto do Benjamin é talvez anterior ao fim da Guerra e o da Lina é de 1947, depois da guerra. Mas hoje, vamos pensar no nosso contexto: a gente não está na Europa, a gente não passou por essas guerras no nosso território, a gente não constituiu uma história – claro que sim, mas também não. Se a gente pensar na nossa história da arte, por exemplo, tirando Walter Zanini, ninguém se dedicou a fazer um estudo sobre a história da arte brasileira, aquele “estudão”. Será por que?

Será que tem que fazer mesmo? Não sei. Será que talvez isso não seja parte de uma característica nossa? Será que isso é um sintoma de uma forma de lidar com o tempo e com os acontecimentos própria nossa? Será que a gente é um ser só pro acontecimento? Mesmo o projeto da Gameleira, como ele tem uma dimensão que está ligada a uma questão política e social muito clara, acho que sim, era necessário escrever a história nesse sentido. Aí as pessoas ficam bravas que eles chamam a gente de não ocidentais. Talvez isso não seja ruim. (risos) Eu acho que essa ideia da ruína pra mim, eu tento trazer uma ambiguidade que essa noção tem. Eu não consigo dizer, como a Lina, que talvez toda essa destruição tenha sido uma chance de começar um novo tipo de homem, de humanidade, talvez um pouco mais despretensiosa, menos autoritária, menos carregada. Eu não consigo ver isso, do meu ponto de vista. Quando eu penso no texto O caráter destrutivo do Benjamin, eu acho que se a gente pegar no nosso contexto, esse sentido da destruição, porque ruína quase não há, aqui ela se dá de outro jeito, então é uma construção que sempre está em estado intermediário. Aquela frase de que aqui “tudo parece construção no entanto já é ruína”. Essa [a foto da série Estados transitório] é uma construção, no entanto, a gente nunca sabe se elas continuam ou não. E elas demoram muito tempo. Elas às vezes demoram muito, elas ficam inacabadas. E tem outras coisas. A gente não tem muitas construções antigas no Brasil, tem algumas, uma igreja ou outra, uma cidade... Essa rua aqui do lado, eles vão demolir quase todas as casas. Vai virar um monte de prédio. Então o que isso representa? Essa destruição do espaço urbano, que eu tenho observado. Eu cheguei a ver um tempo em que lugares que ficaram muito tempo sem ter nada, de repente foram completamente ocupados e agora eu estou vendo espaços que existem há muito tempo, serem demolidos para dar lugar a outras coisas. Eu não

consigo imaginar um destino muito feliz e muito esperançoso. Esse tipo de ruína que esse ideia de demolir e construir tem, não é uma abertura de uma possibilidade. Na guerra a destruição é sempre causada pelo oponente, que vai escolher, claro, coisas emblemáticas pra bombardear. Você não pode saber o que vai acontecer, não existia um plano, ninguém queria que aquilo fosse destruído. Agora, aqui, como a destruição é uma coisa meio programada, sabese o que vai destruir e pra que. Então não há esse caminho. Esse caráter destrutivo, aqui, ele é destrutivo do ponto de vista social, econômico, do ponto de vista de bem estar da cidade. Eles vão construir nessa rua inteira, você acha mesmo que todas essas pessoas vão usar só o metrô? Vai ser um inferno de carro, não tem espaço pra isso. São ruas estreitas. Parece que vai ter prédio que vai ter duzentos apartamentos. Esses prédios não têm preços populares. Vamos supor que fosse barato, porque hoje é tudo um milhão, vamos supor que fosse 500, 600 mil reais um apartamento, também não é um preço popular. Quem pode pagar isso? Quem tem isso guardado? Você vai financiar, vai ficar pagando até você ter noventa anos... Então eu não consigo ser tão otimista. Eu estou pensando na potência desses tempos e desses espaços dentro de um tempo e de um espaço específicos que é o meu, o nosso. Tem uma entrevista naquele livro da Bolsa Pampulha, são todos os artistas que participaram e todos os curadores, críticos que organizaram. E você lança uma dúvida... Nem lembro! (risos) Mas você faz essa pergunta e ninguém te respondeu muito. E eu queria te devolver essa dúvida, algum tempo depois. Muito tempo depois. Dez anos. Você tinha perguntado o que era o papel social do artista. Era uma conversa sobre a experiência da bolsa e você comentou que acreditava

que aquele grupo de artistas reunidos tinha possibilidade de causar pequenas transformações. Eu perguntei isso? Não acredito. Eu não sei. Eu não sei se acredito nisso mais. Desse jeito. Eu de fato ainda tenho alguma crença, hoje eu estava falando nisso com um amigo do Texas que estava aqui, sobre essa situação. Eu participei de uma mesa no Videobrasil com o Moacyr [dos Anjos] e mais dois outros artistas, um deles era chinês e o outro não lembro. E a Gabriela Salgado comentou sobre essa coisa de grandes artistas, artistas importantes estarem indo montar seus ateliês na China para poder aproveitar essa situação de mãode-obra barata, reproduzindo, portanto, um tipo de comportamento das grandes corporações, das multinacionais e o que seja. Eu acho realmente essa uma coisa muito complicada, porque eu acho que a arte, pelo menos o tipo de arte que me interessa mais, e que é um marco longo dentro da história, tem uma espécie de injunção com as formas de produção simbólica, tem uma peculiaridade. Me dá um pouco de espanto o artista fazer uma coisa dessas. Não que eu ache que o artista seja um cara bonzinho, politicamente correto, não é isso não. Mas é uma via que dá pra ser um pouco diferente disso. Tudo tem uma escala, um lugar. Mas eu queria te ler um trecho que acho que é bom. Eu estava escrevendo um texto sobre as lajes do Matheus [Rocha Pitta], porque eu acho que elas são muito mal compreendidas. É uma citação de um texto do Hal Foster que chama Este funeral é para o cadáver equivocado. Basicamente a ideia dele que a arte contemporânea que vai mais interessar a ele, é um tipo de arte que considera, bom, ele vai falar de um tipo de trabalho que é construído a partir de uma ideia que ele vai chamar de seguir vivendo, living on. Traduziria por seguir vivendo? Tem uma ideia de manutenção da vida, continuação. Tem um coisa meio de empurrar com a barriga? Um pouco, tem o sentido de fluxo, de não interromper um processo. Ele vai falando da produção que é feita a partir do trauma, no caso da arte contemporânea o trauma emblemático é a Segunda Guerra. Tem toda aquela história de como narrar, como representar, como pensar o estatuto da arte

quando o choque com a realidade é tremendo a ponto que você não... É uma situação traumática. A experiência do trauma só pode ser remontada depois, o trauma ele mesmo não consegue ser vivido. É uma experiência tão intensa... Que pra ser elaborado ele precisa de uma espécie de retorno. E ele vai falando desse tipo de arte e ele vai definir a partir da ideia de living on, que ele divide em quatro categorias: o traumático, o espectral, o incongruente e o não sincrônico. Ele fala assim “Como estas categorias tendem a cruzar-se, a taxonomia é artificial, diversos exemplos que incluem filmes e literatura ficcional não pretendem ser exaustivos. Não obstante, talvez começam a evocar esta condição de vir depois” – um trabalho feito que vem depois do trauma, no caso. “ainda quando as experiências que tenho em mente tratam frequentemente os gêneros e os meios dados como coisa acabada e não fazem com eles pastiche histórico.” Ele odeia pastiche histórico. “Ao contrário, os destinam a transformações formais sempre quando as transformações também digam algo a preocupações extrínsecas”. Eu acho que essa é uma saída interessante. “Assim essas práticas indicam uma semi autonomia de gênero e meio, mas de um modo reflexivo que se abre a questões sociais, um mundo fechado aberto ao mundo[...] é assim que com frequência desmentem as oposições entre intrínseco e extrínseco, dentro e fora, através de transformações formais que encaram também o compromisso social. Esse tipo de trabalho reestabelece uma dimensão mnemônica na arte contemporânea e resiste a onipresença do design na cultura de hoje”. Eu acho que hoje eu acredito mais nisso. Seu trabalho não vai mudar o mundo, ninguém acha isso. A realidade tem uma dimensão que naquele momento a gente discutia muito, a efetividade, o que poderia ser efetivo num trabalho de arte. Isso é uma questão que eu nem me pergunto mais, às vezes acontece. Por exemplo, o Projeto da Gameleira, o trabalho teve uma efetividade no mundo que não é o mundo da arte, mas que me surpreendeu, pra falar a verdade eu não esperava. Eu recebia e-mail de filho de sobrevivente, de pessoas que trabalharam com essas famílias, um professor que fez uma tese de doutorado sobre isso, na tese dele ele está pleiteando um lugar de memória pra esse evento, que não existe. Ele veio de Belo Horizonte até aqui ver a exposição. Ele tomou um susto porque eu citava

a tese dele no folder, faço um agradecimento à tese dele, a gente se correspondeu um pouco. Me escreveu uma pessoa que fez a cobertura da TV, chamava TV Vila Rica, na época. Mais de um filho de vítima me procurou e ainda me procura até hoje. Médico de segurança do trabalho. Não acho que mudou exatamente nada, mas acho que o fato de ter havido um trabalho que lidou com essa memória, que criou um momento de memória pra esse evento, mesmo que não tenha sido um memorial, não é uma coisa permanente. Mas muitas dessas pessoas se sentiram efetivamente lembradas. Eu não esperava isso, não esperava nem que elas fossem saber. Mas a exposição ganhou uma repercussão que eu não esperava também que chegasse a tanto. E aí eu acho que se eu tenho algum trabalho que criou algum tipo de contundência efetiva no mundo social foi esse. Mas não foi porque eu achei que isso ia acontecer. Aconteceu. Mas foi um acaso.

Junho de 2015

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