Entrevista com Luísa Nonato para a revista Rolimã

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Entrevista com Luisa Nonato Carlos Palombini L.N. — Quais são as manifestações de arte e cultura típicas da periferia: funk, hip hop, grafite? C.P. — Depende do que você entenda por arte e por cultura, e do que a chamada periferia entenda por esses termos. Seria ela quem deveria responder esta pergunta. Arte para mim é tudo aquilo que se entenda como tal. Vanguardas da primeira metade do século vinte acreditaram no poder diruptivo da arte. Nesses termos, pixo é arte, grafite é decoração. Funk proibidão e funk putaria são arte. É possível associar o proibidão a manifestações do futurismo italiano. Pense em “O bombardeio de Adrianópolis”, de Filippo Tommaso Marinetti. De modo análogo, a putaria pode ser vista em suas relações com o dadaísmo. É claro que, ao dizer isso, estou tomando a putaria e o proibidão por sucedâneos das vanguardas institucionalizadas, academicizadas, que perderam completamente o poder de épater les bourgeois e passaram a pedir a estes se coloquem à altura — uma atitude presunçosa, autoritária, deplorável, ridícula. Para os funkeiros, o funk é muito mais que isso: um modo de vida, e uma reação à segregação. A grande manifestação cultural do que você denomina periferia é a linguagem no sentido mais amplo possível: o favelês, o funk, a ética, as provocações, o vestuário, o comportamento, a arquitetura, a sociabilidade, a gambiarra, o humor, o jogo de cintura, a ginga. L.N. — Como opera a criminalização da cultura periférica? É só através da violência policial ou há terrenos mais sutis onde isso acontece? É algo declarado ou tácito e estrutural? C.P. — A polícia é para alguns o braço do Estado na favela. Numa concepção mais ampla de Estado, a polícia, a mídia, as facções, as ONGs e os pesquisadores são braços do Estado na favela. Não raro, polícia, mídia, ONGs e pesquisadores se unem para promover o terrorismo de Estado. É declaradamente estrutural quando se leva em conta que, ao arrepio da Constituição, sucessivos governos federais têm promovido, através de legislação infraconstitucional, a militarização da segurança pública. Desde a Chacina do Pan ou Massacre do Alemão, em 2007, ministros de justiça, secretários de segurança pública, presidentes de OABs, e chefes de executivos estaduais e federais têm incensado o genocídio da população preta, pobre e favelada: José Mariano Beltrame, Sérgio Cabral, Jacques Wagner, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff, Wadih Damous são apenas alguns nomes. Na contracorrente, há João Tancredo, Nilo Batista, Gerivaldo Neiva, Orlando Zaccone, Vera Malaguti Batista e vários outros. Na primeira década do milênio, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro entregou a gestão dos bailes funk às delegacias policiais, aos batalhões de polícia militar, aos corpos de bombeiros e aos juizados de menores. Uma comissão de constitucionalidade aprovou tudo isso. A criminalização da cultura funk é um ato de racismo institucional. Somos todos racistas. O racismo é para nós um habitus. Por isso ele se torna política de Estado.

L.N. — Qual a relação entre a criminalização da cultura da periferia hoje e os processos históricos de repressão à população afro-brasileira? C.P. — A criminalização da cultura de periferia hoje marca um agravamento desses processos, como se infere da leitura da dissertação de Vera Malaguti Batista (2003). O morador de periferia ou de favela tornou-se o inimigo público número um. L.N. — Do ponto de vista jurídico, há legislações que respaldem a criminalização dessas manifestações? Quais? A interdição musical foi definida no Art. 6º da Lei Ordinária 3.410/2000, de 29 de maio, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj):1 “Ficam proibidos (sic) a execução de músicas e procedimentos de apologia ao crime nos locais em que se realizam eventos sociais e esportivos de quaisquer (sic) natureza” (ASSEMBLEIA 2000). A sintaxe esdrúxula do enunciado constitui sua autocrítica. Ao invés de ficar “proibida a execução de músicas e procedimentos de apologia ao crime”, como o legislativo fluminense desejaria, “fica proibida a execução de músicas” (todas e quaisquer) e “ficam proibidos procedimentos de apologia ao crime”. O segundo lapso de concordância, “de quaisquer natureza”, trai falha análoga de modo mais explícito. Uma “natureza” que deseja passar-se por “qualquer” pluraliza-se e, ao fazê-lo, colide com o singular do substantivo, que o subtítulo da Lei define: “dispõe sobre a realização de bailes tipo funk no território do estado do Rio de Janeiro e dá outras providências”. Seja como for, a década que se abre com a Lei 3.410/2000 será a do apogeu do subgênero — mais uma ironia da hipérbole nominativa. Em contradição com o caput do Art. 5° da Constituição de 1988, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à [...] igualdade [...]”, a Alerj promulga e revoga, entre 2000 e 2009, leis específicas para os bailes Funk. Em 30 de dezembro a Lei 4.264/2003 determina que os bailes não se estendam após as 4:00 da manhã (ASSEMBLEIA 2003). Em 18 de junho a Lei 5.265/2008 revoga a 3.410/2000 e sujeita os bailes aos nihil obstat “da Delegacia Policial, do Batalhão da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros [...] e do Juizado de Menores” (ASSEMBLEIA 2008). Em 22 de setembro a Lei 5.544/2009 revoga a anterior (ASSEMBLEIA 2009A). Na mesma data, a Lei 5.543/2009 estabelece “que o funk é um movimento cultural e musical de caráter popular”, mas exclui da rubrica cultural “conteúdos que façam apologia ao crime” (ASSEMBLEIA 2009B). O delito de “apologia de crime ou criminoso” tipifica-se no Art. 287 do Código Penal de 1940, criado sob o Estado Novo (1937–1945) pelo decreto-lei 2.848/1940 de 7 de dezembro, promulgado em 1º de janeiro de 1942. “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime” acarreta pena de “detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses, ou                                                                                                                 1 A criação de uma lei que proíba eventos musicais não constitui inovação do legislativo fluminense: no Reino Unido, o Criminal Justice and Public Order Act 1994 introduziu restrições e reduções de direitos e ampliou penas para comportamentos “antissociais”, aplicáveis às raves, cuja “‘música’ inclui sons inteira ou predominantemente caracterizados pela emissão de uma sucessão de batidas repetitivas” (PARLIAMENT 1995).

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multa”. O 287 molda-se nos artigos 3032 e 4143 do Código Penal italiano, o Codice Rocco, do nome do ministro de Justiça, Alfredo Rocco, que o assina com o rei, Vittorio Emanuele III, e o primeiro ministro, Benito Mussolini. Ora, a Constituição de 1988 consagrou um conjunto de normas, as chamadas cláusulas pétreas (cf. DINIZ 2008), que têm incidência imediata, não admitem emenda, e vedam qualquer lei que as contrarie. Listadas sob o § 4° do Art. 60, elas incluem “os direitos e garantias individuais” (cf. SILVA 2009) do Inc. IV, definidos no Art. 5° do Capítulo I, “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, do Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Tais direitos são inalienáveis, imprescritíveis, irrenunciáveis e universais, limitados apenas pela hipótese de colisão mútua. E o Inc. IV do Art. 5° determina: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. A esse respeito, o jurista Nilo Batista se exprime: “o crime de apologia é claramente inconstitucional” (BATISTA e GRANJA 2011). E o procurador da República Alexandre Assunção e Silva explica: O delito de apologia ao crime é típico de regimes autoritários, não possui nenhuma eficácia comprovada em evitar a prática de infrações penais, e, por ser uma violação não fundamentada ao direito de liberdade de manifestação do pensamento, é completamente inconstitucional. (SILVA 2012: 87).

Para Assunção e Silva (2012: 90), “a tipificação como delito da defesa, elogio ou exaltação de um crime constitui uma forma de impedir uma ampla crítica às leis penais e sua reforma”. Por fim, o proibidão é música, e igualmente inalienável, imprescritível, irrenunciável e universal é o § IX do Art. 5°: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Para um estudo de caso, veja meu ensaio “Funk Proibido” (PALOMBINI 2013). L.N. — Se há um aparato legal construído para identificar essas manifestações culturais como problema de segurança pública, o que isso revela sobre a forma de a nossa sociedade lidar com a cultura periférica? C.P. — É uma questão de autoritarismo e, em última análise, de racismo e exploração do trabalho. Porque não é apenas a cultura periférica que é criminalizada, mas os próprios moradores de favelas e periferias. Eles se tornam inimigos de guerra, onde as Convenções de Genebra não vigem. Em outras palavras, podem ser torturados e eliminados de todas as formas. Vide o filme Tropa de Elite. L.N. — Como são as abordagens policiais em bairros pobres e em bairros periféricos quando estão acontecendo manifestações culturais como os bailes funk, duelos de MCs etc.? Algum jovem já relatou alguma história, ou você mesmo presenciou, que envolva uma batida policial e que você possa compartilhar conosco?

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Revogado pelo Art. 18 da Lei 205/1999, de 25 de junho.

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Modificado pelo decreto-lei 144/2005, de 1° de agosto, sancionado pela lei 155/2005, na mesma data.

 

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C.P. — Em entrevista concedida a 9 de dezembro de 2014, o fotógrafo francês Vincent Rosenblatt relatou duas experiências, a primeira, no baile da Chatuba da Penha, e a segunda, no do Chapadão, ambos na Zona Norte do Rio de Janeiro. V.R. — Foi. [...] Bem, vamos dizer assim. Naquele dia parece que o arrego não foi pago, e todos os novinhos ao redor do baile diziam: “hoje, não sei, vai vir caveirão”. Mas o baile encheu como sempre, e é isso que deixa perceber a força e a importância visceral do Funk para a juventude do Rio. Porque ao fim e ao cabo todo o mundo arrisca a vida por seu baile. A celebração, o ritual do baile, é tão importante que chega a ser religiosa. É um rito social de tamanha relevância que aceitamos arriscar a vida. E chegou o caveirão, chegou a polícia. O barulho dos tiros criou o pânico. Porque o movimento resistiu e o caveirão não conseguiu subir a ladeira. Imagine cinco mil pessoas correndo de uma direção a outra. Havia uma saída afunilada do outro lado. Todo o mundo pisoteado, a equipe derrubada. Caixas caem em cima de uma moça, que fica presa lá. E o baile, completamente lotado, torna-se um mar de sapatos femininos, manchas de sangue no chão, a mesa do DJ pisoteada, CDs esparramados respingados de sangue. Por milagre ninguém morreu, ninguém. A moça que ficou presa debaixo do equipamento teve apenas um ferimento no pé. Eu estava no palco, fotografava dançarinas, quando ele voou sob pressão desse mar humano. Virou e ficou apoiado nas caixas de som. Fiquei embaixo. As dançarinas estavam bem. Foi um milagre. Mas o pior provavelmente tenha sido no Chapadão. Uma semana depois, novamente por uma história de arrego, a polícia vem e destrói o baile do Chapadão, com caveirão que consegue chegar até a equipe de som, se joga contra ela, rouba a mesa do DJ. Ouvi claramente os bandidos dizerem, quando souberam que o caveirão estava na ladeira, que ninguém trocaria tiros com a polícia pois havia muitas crianças. E meteram o pé. Ficamos nós e as crianças. Lembro ter-me abrigado num bar, e optamos por não fechar a grade para mostrar que não havia nada. Mesmo assim, quem arriscava colocar a cabeça para fora, era rajada de tiros. Jogaram uma bomba de efeito moral, gás de pimenta lá dentro: gente vomitando, jovens chorando. Durou um bom tempo, com o barulho terrível do caveirão a se jogar contra a equipe de som. Uma cena de guerra. Eu vivi como turista o que os jovens de favela vivem a vida toda. Imagine construir sua identidade, sua personalidade em cima desse tipo de evento, que pode acontecer todo o dia, não só no baile funk, mas na favela. Isso é marcante. Demorei um bom tempo para voltar aos bailes. Repito: vivi duas vezes na pele o que os funkeiros e os moradores das favelas vivem toda uma vida desde a infância. Um gostinho da realidade. (ROSENBLATT e PALOMBINI 2014)

L.N. — Como é a relação da população da periferia com o sistema de segurança pública? C.P. — Tanto quanto eu saiba, a pior possível, agravada, no Rio de Janeiro, pelas UPPs, a ponto de muitos dizerem que eram mais respeitados pelas facções que o são pela polícia. L.N. — Por que quando pasteurizadas pela indústria cultural as mesmas manifestações culturais são mais aceitas? C.P. — De novo, por racismo. A indústria cultural importa, da produção afro-americana, o que já foi localmente pasteurizado. E repasteuriza. Quem primeiro gravou rock no Brasil foi Nora Ney. Quem gravou o primeiro rock brasileiro foi Cauby Peixoto.

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L.N. — Como combater esse olhar higienizante sobre a cultura periférica? C.P. —Através de guerras culturais. De terrorismo cultural. Ou de pesquisa. L.N. — As políticas de promoção cultural para manifestações típicas da periferia, como o funk, são eficazes? C.P. — A antropóloga e historiadora Adriana Facina (do programa de pós-graduação em antropologia social do Museu Nacional, UFRJ) e eu realizamos um estudo de caso sobre o baile de Chatuba, que será publicado em livro este ano (vide FACINA e PALOMBINI 2016). L.N. — Como você avalia o papel da internet para a ascensão dessa produção cultural? C.P. — Foram importantes a popularização local de formatos digitais de armazenamento e compressão de áudio (WAV, ATRAC, MP3), de mídias óticas (Minidisc, CD-R), de aplicativos de reprodução (Winamp), de plataformas P2P (Soulseek), de serviços de armazenamento (Rapidshare, Megaupload, 4-Shared), de blogs, fotologs (Flogão), rádios digitais, redes sociais (Orkut, Facebook), sites de compartilhamento de vídeos (Youtube), e plataformas globais de distribuição de áudio (Soundcloud, Mixcloud). Propelidas por esse aparato, algumas criações atingem cifras de visualizações de até oito dígitos no Youtube. L.N. — Há algo mais que você gostaria de acrescentar? C.P. — Obrigado pelas perguntas. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 2009A. Lei 5.544/2009 de 22 de setembro. Disponível em: http://goo.gl/HYSBts. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 2009B. Lei 5.543/2009 de 22 de setembro. Disponível em: http://goo.gl/lxO2aE. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 2008. Lei 5.265/2008 de 18 de junho. Disponível em: http://goo.gl/KoKfbO. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 2003. Lei 4.264/2003 de 30 de dezembro. Disponível em: http://goo.gl/gRPiZB. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 2000. Lei 3.410/2000 de 29 de maio. Disponível em: http://goo.gl/UJ0Bj1. BATISTA, Nilo; GRANJA, Patrick. 2011. Nilo Batista fala sobre as UPPs e a presença do exército no Complexo do Alemão. Rio de Janeiro: A Nova Democracia e Agência de Notícias das Favelas, 16 nov. Disponível em: youtu.be/xYjACv3LQXc. BATISTA, Vera Malaguti. 2003. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan. DINIZ, Maria Helena. 2008. “Cláusula Pétrea”. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 3ª ed., rev., vol. 1, 691.

 

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FACINA, Adriana; PALOMBINI, Carlos. 2016. In Hebe Mattos (org.), História oral e comunidade: comunidades negras e políticas de reparação. São Paulo: Letra e Voz (no prelo). Disponível em: nttp://www.academia.edu/21889284. PALOMBINI, Carlos. 2013. “Funk Proibido”. In Leonardo Avritzer, Newton Bignotto, Fernando Filgueiras, Juarez Guimarães e Heloísa Starling (org.), Dimensões políticas da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, 647–657. Disponível em: http://www.academia.edu/5268654. PARLIAMENT OF THE UNITED KINGDOM OF GREAT BRITAIN AND NORTHERN IRELAND. 1995. Criminal Justice and Public Order Act 1994. Londres: HMSO, jan. Disponível em: http://goo.gl/hVDW04. ROSENBLATT, Vincent; PALOMBINI, Carlos. 2014. “Vincent na Chatuba”. Proibidão.org., 27 dez. 2014. Disponível em: http://goo.gl/iQiAwN. SILVA, Alexandre Assunção e. 2012. Liberdade de expressão e crimes de opinião. São Paulo: Atlas, 87. SILVA, Oscar Joseph de Plácido e. 2009. “Direitos Fundamentais”. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 28ª ed., rev., 482.

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