Entrevista com Marcos Bagno.

August 4, 2017 | Autor: Elis Liberatti | Categoria: Estudos da Tradução
Share Embed


Descrição do Produto

Entrevista com o Professor Marcos Bagno

Elisângela Liberatti (PGET/UFSC) [email protected] Michelle de Abreu Aio (PGET/UFSC) [email protected]

Marcos Bagno é escritor, tradutor, linguista e professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB). Iniciou sua carreira de escritor em 1988, publicando, em sua maioria, livros dedicados ao público infanto-juvenil. Desde 1997, Bagno dedicase à produção de obras voltadas à educação. No campo da linguística, dedica-se a questões referentes à crítica do ensino da língua portuguesa dentro dos moldes tradicionais. Atuou no Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas na UnB de 2002 até 2009, quando se transferiu para o Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da mesma universidade. Trabalha como tradutor do inglês, do francês, do espanhol e do italiano. Bagno possui reconhecida notoriedade na militância contra a exclusão social pela variedade linguística. É defensor convicto do reconhecimento das diversas variedades existentes no universo da língua portuguesa no Brasil. Algumas de suas obras: A invenção das horas (contos – 1988); O papel roxo da maçã (infantil – 1989); A língua de Eulália (1997); Preconceito linguístico: o que é, como se faz (1999); Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa (2001); A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira (2003); Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüística (2007); Gramática, pra que te quero? Os conhecimentos linguísticos nos livros didáticos de português (2011); entre outras.

In-traduções (IT): Professor Marcos Bagno, em comunicação pessoal feita pelo senhor sobre a variante linguística não-padrão nos quadrinhos do Chico Bento, o senhor classificou como “pseudodialeto caipira” essa variação presente na fala dos personagens da revistinha. Poderia nos dizer o porquê da escolha de tal termo e discorrer sobre isso?

209

Marcos Bagno (MB): É preciso sempre deixar bem claro que as historinhas do Chico Bento, assim como as músicas de Adoniram Barbosa, Luís Gonzaga, e os poemas de Patativa do Assaré não são uma representação fiel de nenhuma variedade linguística verdadeira. Em todas essas manifestações o que existe é uma “representação artística” de uma variedade linguística imaginada pelo autor. Por isso, optei pela denominação de “pseudodialeto”, porque não é um dialeto verdadeiro, é um dialeto “falso”, “fingido”, no sentido usado por Fernando Pessoa ao dizer que “o poeta é um fingidor”. É a recriação artística de uma representação imaginária que o autor tem do que seja a variedade linguística que ele tenta representar.

IT: O senhor tem conhecimento de outras obras literárias em que é utilizado um “pseudodialeto”? Em sua opinião, qual a relevância desse “pseudodialeto” na tradução literária?

MB: Toda a nossa tradição literária regionalista se valeu da estilização de variedades regionais do português brasileiro: Simões Lopes Neto, Valdomiro da Silveira, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Carmo Bernardes, Bernardo Élis, etc. Aqui, no entanto, já não cabe falar de “pseudodialeto” porque eles não procuraram registrar “literalmente” essas variedades, como faz o Chico Bento, mas somente “pincelam” o texto com vocabulário e construções típicas de suas regiões – ou, como no caso mais radical de Guimarães Rosa, empreendem toda uma estilização da variedade que serve de base para seu trabalho estético.

IT: A tradução dialetal é tida como um dos maiores obstáculos para o exercício tradutório. Segundo Hatim & Mason, “a representação em uma Língua Fonte de um dialeto específico cria um problema inevitável: qual dialeto da Língua Alvo usar?” (1990, p. 4).i O senhor diria que a tradução de pseudodialetos pode ter a mesma problemática que a tradução de dialetos, no quesito das “limitações” ligadas a este tipo de tradução? Como tradutor, o senhor já se deparou com esse tipo de dificuldade em tradução?

MB: Como traduzo principalmente textos ensaísticos e não propriamente literários, com exceção de literatura infantil, não tenho enfrentado com muita frequência essa dificuldade. No entanto, considero que a grande maioria das tentativas de “tradução de dialeto” tem redundado em fracasso. As variedades regionais ou sociais de uma língua estão profundamente enraizadas na ecologia, na cultura, na visão de um mundo de seus

210

falantes, de modo que utilizar uma variedade regional da língua-alvo acaba falseando demais o texto-fonte. Por isso, em geral, opto por traduzir variedades específicas da língua-fonte por uma variedade “popular” mais geral, sem traços regionais específicos. Colocar, por exemplo, um homem rural do sul dos Estados Unidos falando como um caipira do interior de Minas é, no mínimo, ridículo.

IT: Na classificação de dialetos, há, por vezes, controvérsias entre os autores. Câmara Jr, por exemplo, classifica-o como [...] um conceito extralinguístico de ordem psíquica, social ou política, isto é, a) a existência de um sentimento linguístico comum [...] b) a existência de uma língua culta, superposta aos dialetos, que assim ficam limitados ao uso cotidiano, sem maior expressão cultural e literária; c) a subordinação política das respectivas regiões como partes de um estado político nacional (1997, p. 95).

Assim sendo, a língua usada no Brasil não poderia ser tida como um dialeto dentro do corpo maior da língua portuguesa, como insistem em apregoar alguns linguistas. Por que chamar (ou não) o português brasileiro de dialeto?

MB: Mattoso Câmara Jr. é digno de toda admiração como o introdutor da linguística científica no Brasil. No entanto, por ter morrido no início dos anos 1970, não pôde acompanhar os desdobramentos espetaculares da sociolinguistica variacionista que começava a se desenvolver precisamente naquela década nos Estados Unidos. Desde os primeiros trabalhos de William Labov, o termo “dialeto” tem sido abandonado em favor do termo “variedade”. Isso porque, ao longo da história, “dialeto” acabou ganhando conotações pejorativas como “língua falada errado”, “língua de uma comunidade atrasada” etc. Quanto ao português brasileiro ele é, definitivamente, uma língua plena, com sintaxe própria, muito distinta da do português europeu. Na verdade, proponho que, 500 anos depois da chegada do português ao Brasil, passemos a considerar a existência de uma família de línguas (que eu chamo de portugalega), que inclui o galego, o português europeu, o português brasileiro, o português das demais ex-colônias e também as línguas nascidas do português (os chamados “crioulos”).

IT: Qual a sua opinião sobre a escrita não-padrão de Chico Bento em relação às influências dessa variação na formação de leitores, uma vez que histórias em quadrinhos do Chico Bento são lidas especialmente por crianças?

MB: São muitos os problemas nesse caso. As opções ortográficas do Chico Bento são, na verdade, simples transcrições do modo de falar de praticamente todos os brasileiros. Por exemplo, a preposição que escrevemos “de” aparece no Chico Bento escrita “di”. 211

Ora, com poucas exceções, é “di” ou “dji” que a imensa maioria dos brasileiros fala. Por que escrever “de” quando é a Turma da Mônica, que vive na cidade, e “di” quando é o Chico Bento e sua turma? Esse é só um pequeno exemplo das incoerências ortográficas presentes nas revistas do Chico Bento. Já fiz uma pesquisa e cheguei à conclusão de que mais de 80% das falas do Chico e de sua turma não têm nada de “regional”, mas são simplesmente grafias não oficiais que representam, de fato, o modo de falar da grande maioria dos brasileiros. Se eu pudesse aconselhar o Maurício de Sousa, diria a ele que só registrasse de modo especial o que realmente fosse regional.

IT: Em Portugal, as revistinhas do Chico Bento são publicadas sem quaisquer alterações na fala dos personagens. Tendo em vista que essas publicações têm como público-alvo as crianças brasileiras, quais as implicações dessa não adaptação para o entendimento do público infantil português? Isso não corrobora com a ideia de homogeneização linguística?

MB: Por que homogeneização linguística, se é exatamente a diversificação linguística que aparece no Chico Bento? As crianças portuguesas e brasileiras dispõem de conhecimentos de mundo bastante diversos, de modo que a recepção das histórias no Brasil e em Portugal é radicalmente distinta. Para uma criança brasileira, o Chico Bento representa um tipo do qual ela já ouviu falar ou que pode ser explicado a ela pelos pais ou outros parentes (embora esse “jeca” típico do interior paulista não exista mais hoje em dia), ou pode mesmo conhecer pessoas que falem parecido com aquela representação. Para uma criança portuguesa, o Chico Bento é uma novidade absoluta, porque traz para ela não só um linguajar muito diferente como também traços culturais, hábitos alimentares, crenças, etc., que são profundamente brasileiros.

Referências:

CAMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de lingüística de gramática. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

HATIM, B. & MANSON, I. Discourse and the Translator. London: Longman, 1990.

i

The representation in a ST of a particular dialect creates an inescapable problem: which TL dialect to use? – Tradução nossa.

212

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.