Entrevista com Mauricio Santoro - DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS

May 24, 2017 | Autor: Gustavo Alonso | Categoria: Cultura política, Ditadura Militar
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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS, A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO]

Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846]

Entrevista com Maurício Santoro. Por Gustavo Alonso, Janaína Cordeiro e Lívia Magalhães

Maurício Santoro é doutor em Ciência Política pelo Iuperj, assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, colunista da edição brasileira do Huffington Post e professor da Universidade Candido Mendes. Foi repórter do jornal O Globo e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, onde trabalhou com cooperação social na América Latina e na África. Serviu no governo federal e no governo do estado do Rio de Janeiro e foi membro do Conselho Nacional de Juventude. Foi pesquisador-visitante na New School University (Nova York) e na Universidad Torcuato di Tella (Buenos Aires). Recebeu duas vezes o Prêmio América do Sul do Ministério das Relações Exteriores. É autor do livro "Ditaduras Contemporâneas" (Editora da FGV, 2013)

Pergunta: Primeiro a gente queria que você comentasse a sua trajetória profissional, quem você é...

Resposta: (...) Eu sou jornalista de formação, trabalhei alguns anos como repórter e em assessoria de imprensa. E aí chegou um momento da minha vida em que eu quis fazer um mestrado, até por uma insatisfação com que a universidade tinha me dado na graduação. E eu optei por fazer em Ciência Política. Eu achei que era a melhor maneira de eu ter uma... Primeiro direcionar melhor a minha carreira pros temas que realmente me interessavam, que eram os temas de política, e eu achava realmente que seria um modo também de poder fazer essa ponte, entre o que eu trabalhava como jornalista, mas 1

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ter também uma perspectiva acadêmica, de poder dar aula, escrever sobre aqueles temas que realmente me interessavam. E fiz mestrado e doutorado. E quando eu estava terminando o mestrado em Ciência Política, apareceu uma oportunidade pra fazer um trabalho temporário no IBASE, de três meses. O IBASE, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, é uma organização não governamental, e eu entrei lá pra ficar três meses e fiquei seis anos, ao longo dos quais eu trabalhei com diversos temas, mas principalmente com cooperação internacional na América Latina e um pouco na África também. Durante o período que eu estava no IBASE eu também estava fazendo meu doutorado, e resolvi me especializar em relações internacionais da América Latina, em política latino-americana. Fui para Argentina, fiz o meu sanduiche lá, morei lá um tempo. Então acabei indo muito pra essa área de América Latina, estudando Argentina, Chile, Uruguai... Pergunta: O Doutorado você fez onde? Resposta: IUPERJ. Mestrado e Doutorado no IUPERJ em Ciência Política, com esse estágio e Doutorado na Torcuato Di Tella. (...) Nesse período em que eu vivi na Argentina, eu escrevia muita coisa pra revista do IBASE, pra sites, eu mantinha um blog também, estava sempre escrevendo sobre aquilo. Terminando o doutorado, eu saí do IBASE, fiquei dois anos como funcionário público. Não foi uma experiência muito legal, não me agradou muito aquele ambiente da burocracia, as limitações que se tem nele... Acabei saindo de lá e vindo trabalhar aqui na Anistia Internacional porque foi exatamente o momento, também, em que se abriu o escritório brasileiro da Anistia. Ou melhor, se reabriu. A Anistia tinha tido um escritório aqui no passado, tinha sido fechado no finalzinho dos anos 1990, e esse escritório foi reaberto em 2011, muito em função desse momento que o Brasil vive atualmente. O Brasil potência emergente, o Brasil que está tendo um peso internacional crescente... Então se você é uma organização global de direitos humanos, faz sentido você querer estar num país como o Brasil. Pra se manter influente numa negociação na ONU, por exemplo, você tem que estar presente nos grandes emergentes, no Brasil, na Índia, na Turquia... Pergunta: Na América do Sul tem no Brasil, Chile Argentina... a Anistia? 2

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Resposta: Uruguai, Peru... (...) Paraguai tem também... Pergunta: Todos esses antes do Brasil? Resposta: Todos esses antes do Brasil. Em geral com seções criadas nos anos 1980, quando foi criada também a seção brasileira. A Anistia está razoavelmente presente na região, mas são seções relativamente pequenas, em termos de voluntários, de ativismo. Eu diria que é ainda uma história muito marcada pela experiência da Anistia com a América Latina durante a Ditadura Militar. Aquele foi um momento em que a Anistia teve uma presença maior aqui... Com algumas exceções. México tem uma seção muito grande da Anistia, mas com uma outra temática, uma outra cara, muito mais voltada pra temas de imigração, temas de segurança pública, pela própria peculiaridade da história mexicana, da história política deles. Pergunta: O escritório foi fechado aqui no final dos anos 1990... Por que? Resposta: Basicamente, por conflitos internos na equipe do escritório. Acabou tendo muitas divergências pessoais, políticas, de várias naturezas. No auge dessas divergências o escritório rachou em dois: um ficou em São Paulo e o outro em Porto Alegre, cada um deles se apresentando como o único e legítimo representante da Anistia no Brasil. A gente brinca que foi a época do cisma papal da Anistia: tinha um papa em Roma, um em Avignon, até que chegou o momento em que o secretariado internacional se cansou e falou “chega, não dá mais”, a aí fechou o escritório aqui, e ficou mais de uma década sem ter escritório no Brasil. (...) Nós temos essa rara e controversa distinção. Aliás, eu não conheço outra exceção, mundo afora, onde tenha acontecido algo semelhante. Talvez exista. A Anistia tem seções em mais de 80 países, pode ter acontecido, mas o único que eu conheço é esse. Pergunta: (...) Como você analisa, no caso, os debates sobre Direitos Humanos na América Latina, e como o Brasil se coloca no âmbito desses debates. Resposta: Bom, eu diria que na América Latina de maneira geral, não todos os países, mas na maioria, a gente tem uma visão de Direitos Humanos, de movimentos de Direitos Humanos, que ainda é muito a consequência do que foram as Ditaduras Militares na região. Inclusive é nesse momento que os Direitos Humanos viram parte do 3

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vocabulário político, quer dizer, antes não se usava tanto. No caso brasileiro se falava muito mais de Direitos Trabalhistas, por exemplo, ou de desenvolvimento, busca de desenvolvimento, do que propriamente de Direitos Humanos. Isso começa nos anos ’60, ’70. A Igreja tem um papel importante nessa mobilização. Agora, isso ficou uma marca... Pergunta: Nos anos ’60 e ’70 já tem essa expressão? Já é “Direitos Humanos” aqui na América Latina? Resposta: Com a Igreja, já entra nos anos ’60. Agora, acho que ela, realmente, só se populariza nos anos ’70. Eu até já ouvi muitas declarações de ex presos políticos, sobretudo das pessoas que estavam na luta armada, que não pensavam muito em termos dessa agenda “Direitos Humanos”, dentro dessa lógica mais internacional, Declaração dos Direitos Humanos, os acordos da ONU... Mas em grande medida também porque, quando houve o golpe no Brasil, essa era uma agenda que ainda estava em construção. Ela só vai se consolidar pra valer na década de ’70. Mas enfim, não era muito a linguagem da política brasileira. Embora, o que se discutia no Brasil naquela época, podia, em muitos casos, ser tema de Direitos Humanos, mas com uma outra linguagem. Com a linguagem do desenvolvimento, com a linguagem da justiça social, mas não se falava muito na expressão “Direitos Humanos”. Isso entra muito com a campanha contra a Ditadura, a campanha contra a tortura... Pergunta: Não sei se é uma impressão minha, mas às vezes eu acho que é um tema que emerge muito, talvez, principalmente, depois do golpe do Chile, mas a partir de fora. Quer dizer, os brasileiros e os outros, os chilenos, argentinos, enfim, passam a denunciar a Ditadura a partir de argumentos de denúncia dos Direitos Humanos a partir de fora, com o contato dos exilados denunciando a Ditadura de fora. Então certamente é um tema que aparece na Europa muito antes daqui, na América latina, não é? Resposta: Ah, sim. No caso europeu, o Direito, pelo menos desde a II Guerra Mundial, desde a reação à II Guerra Mundial. Quer dizer, com a Anistia de ’61, ela é uma das primeiras dessas mega organizações internacionais de Direitos Humanos. Depois, ao longo dos anos ’60 e ’70 a gente vai ter a criação dos Médicos Sem Fronteiras, da Human Rights Watch, quer dizer, toda uma conjuntura daquele momento. 4

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A gente vai chegar nesse ponto, porque inclusive um dos primeiros relatórios internacionais de impacto da Anistia sobre tortura é sobre o Brasil. O relatório de ’72. Que é um marco para a Anistia e eu acho que um marco para o Brasil também, dessa denuncia da Ditadura lá fora, dessa articulação com as redes de exilados, mas enfim. Então o que eu dizia é que quando há o golpe, a linguagem não era tanto a linguagem dos Direitos Humanos aqui no Brasil, isso é um pouco depois. Essas redes internacionais vão ter uma importância grande, o próprio trabalho da Anistia, o trabalho da Igreja Católica, isso vai se consolidando aos poucos. Mas isso tudo ficou, com a nossa cultura política, na medida em que a ideia de Direitos Humanos veio muito associada à ideia de proteção contra o arbítrio do Estado, contra o abuso da autoridade. Então, uma ótica mais da prisão política na época da ditadura, e com a redemocratização, uma ótica mais ligada à segurança pública, os grupos de extermínio, a questão dos moradores de rua, crianças, chacinas, tortura policial, etc. Só mais tarde, talvez com as conferências dos anos ’90, da ONU e tal, acho que começa a entrar realmente uma agenda de Direitos Humanos no Brasil mais ligada a uma agenda do Estado como um agente propositivo, uma agenda mais ligada também à área de Direitos Sociais e Econômicos, mas que, ainda hoje, não é uma percepção do senso comum no Brasil. Se você pegar um brasileiro médio na rua, e perguntar “o que você acha dos Direitos Humanos, e tal”, para o bem ou para o mal, o cara vai associar isso a um combate à violência do Estado. E com muita frequência, de uma perspectiva muito crítica, muito rancorosa. Sobretudo, eu acho, em certos grupos mais vulneráveis, uma pequena classe média, por exemplo, que se sente meio abandonada nesse debate, de dizer “não, eu escolhi o meu direito, e o que eu estou buscando”. Porque, pra ele, possivelmente o Estado não vai ser tanto uma ameaça, ao contrário de quem mora numa favela, de quem mora num bairro da periferia. Pra ele a ameaça vai ser muito mais aquela que vem do crime comum: ser assaltado, violentado, morto. Então isso é parte do nosso desafio no Brasil. Quer dizer, a gente tá lidando com vários níveis de violações de direitos, com conjunturas muito específicas, e numa conjuntura em que o Estado, muitas vezes, é parte do problema, mas sempre é parte da solução. Sempre vai ser parte da solução. Então isso também já é uma mudança, do que era a atuação na época da 5

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ditadura, onde o trabalho da Anistia era um trabalho, basicamente, de denúncia, de cobrança do Estado. Quer dizer, hoje em dia há situações em que a gente encontra interlocuções muito fortes no Estado brasileiro, de pessoas e lideranças que querem nos ajudar, que tem uma simpatia pelas nossas causas. Então é uma lógica diferente de trabalho. É claro que o Estado continua sendo muito complicado, é claro que o Estado continua a violar muitos Direitos Humanos, sobretudo da população mais pobre do Brasil, mas não é mais aquele Estado autoritário. E a gente tem situações, inclusive, de pessoas a quem a Anistia ajudou no passado e que viraram funcionários públicos de destaque, viraram líderes políticos de destaque, ministros, governadores, deputados, até do presidente mesmo... Então isso impacta muito na maneira como a Anistia trabalha. Isso que to dizendo vale não só para o Brasil, mas para a América Latina como um todo, com algumas exceções. O caso mexicano é um pouco diferente, mas não tão diferente assim. Quer dizer, é uma democracia, mas é uma democracia do PRI, aquela coisa meio poli. Então, vamos dizer, a diferença do que é o trabalho da Anistia aqui na América Latina, do que é, digamos, a mobilização da Anistia na Europa, e em menor grau, nos Estados Unidos, é que se você se voluntaria na Anistia Holanda, digamos, provavelmente você não espera fazer tantas coisas assim, relacionadas à própria Holanda. Até tem, questões ligadas à imigração, e tal, mas vão ser coisas muito mais voltadas pra fora, pra esse trabalho internacional. Então você, como uma holandesa que está preocupada com a América Latina ou com o Oriente Médio. E aqui no Brasil a gente tem também um trabalho internacional, que a gente tem procurado ressaltar e destacar, mas a própria expectativa dos nossos ativistas ou da opinião pública é muito mais encima do trabalho que a gente faz no Brasil, de entender que aqui a gente tem ainda uma situação muito frágil, muito vulnerável de Direitos Humanos, e que, naturalmente, as pessoas que se interessam por Direitos Humanos no Brasil estão mais preocupadas com essas urgências e emergências aqui do com aquilo que está acontecendo em outros países, na maioria dos casos. Embora a gente tenha procurado ressaltar, no nosso trabalho, que essa dimensão é importante, de solidariedade internacional, e de como essas coisas estão interligadas. Por exemplo, a gente está fazendo agora uma campanha sobre a homofobia na Rússia, mas tem sempre que 6

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ressaltar o quanto esse é um problema do Brasil, inclusive no esporte. Porque a gente está pegando a Rússia por causa dos Jogos Olímpicos de Inverno, mas como, por exemplo, o futebol brasileiro é homofóbico. Não tem um jogador de futebol, brasileiro, masculino que tenha se assumido homossexual. Tem boatos de que fulano, beltrano, por aí seriam... Mas será que essa não é uma boa ocasião pra gente fazer um debate? O Brasil vai sediar a Copa, será que na Copa não vão ter jogadores de futebol estrangeiros que se assumiram como homossexuais? Como é que eles vão ser tratados, por exemplo, pela plateia brasileira? Porque no vôlei a gente teve casos de atletas brasileiros que se assumiram e que foram vaiados pela torcida. Isso é uma questão que está se colocando agora pra Rússia: como é que os russos vão tratar os atletas gays que estão indo para as Olimpíadas de Inverno. Ou mesmo dignitários. Por que tem, por exemplo, ministros noruegueses que são casados, homossexuais casados, e vão levar os seus parceiros, e aí? Um exemplo... Mas sempre buscando essa ótica, de que nós não estamos trabalhando só o Brasil, nós somos uma organização internacional e a solidariedade internacional para nós é um pilar. Está no nosso DNA, a gente nasceu pra fazer isso. Pergunta: E existe algum objetivo, nessa solidariedade, em termos regionais? De fazer maior contato? Resposta: A gente tem um contato muito intenso com as outras seções na América Latina, principalmente as seções sul americanas, porque é uma realidade muito próxima em vários casos, então a gente tem muitas conversas de âmbito regional, por exemplo, sobre o tema de Direitos Sexuais e Reprodutivos. Até porque, como a Anistia trabalha muito com o sistema ONU, esse sistema ONU está organizado em função das diversas regiões. Então se a gente quer definir, por exemplo, como é que nós vamos influenciar o debate na ONU sobre Direitos Sexuais e Reprodutivos, a gente tem que ter uma estratégia comum, pra abordar o grupo latino americano na ONU sobre esse tema. Ou o tema da Verdade, Memória e Justiça. Até aquela oficina que você veio aqui, não é, Lívia, tinham aqueles nossos colegas da Argentina, trouxemos gente do Peru. Justamente por entender que é uma conjuntura mais próxima àquela com a qual nós nos defrontamos no Brasil, e então que essas lições são mais fáceis de aplicar também. Agora, esse debate acontece também com muitas outras seções. Por exemplo, a gente 7

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tem muitas seções na Europa Ocidental e nos Estados Unidos que acompanham de perto o que acontece no Brasil, então a gente está sempre conversando com eles. Temos um diálogo muito bom e muito, muito interessante com a seção indiana, até porque eles são, um pouco, os nossos primos-irmãos, a gente foi criado junto, literalmente, e a gente tem conversado muito sobre como pode trabalhar mais em parceria. Então é isso, quer dizer, esse diálogo acontece em várias esferas, mas ele é particularmente bom e fluente com as seções sul americanas. Pergunta: Eu lembro a reação que a gente teve com a pessoa da Comissão da Verdade peruana, porque ela comentou que tinham 700 pessoas trabalhando na Comissão da Verdade deles, todas elas pagas... Resposta: É, os nossos colegas da Argentina descrevendo o que eles vivem lá, nessa área... Pergunta: É, mas o da peruana foi uma coisa! 700 pessoas pagas com o dinheiro que eles conseguiram de volta de corrupção na Ditadura, uma coisa fenomenal. E lá são 700 pessoas discutindo, aqui a gente tem essa Comissão e ninguém consegue chegar a lugar nenhum. Resposta: Eu estava comentando com a Lívia no almoço que eu, antes de trabalhar na Anistia, tinha escrito sobre a Anistia, mas depois de trabalhar aqui eu vi que algumas coisas que eu escrevi não eram, realmente, verdade. Embora eu estivesse reproduzindo um lugar-comum... Pergunta: É.. a primeira coisa que você falou, eu perguntei: mas não era o Chile? Porque a gente estava discutindo que as pessoas que trabalham com Direitos Humanos e ditaduras na América do Sul, na América Latina, de uma maneira geral... A gente sempre tem: “o marco das denúncias começa depois do golpe do Chile, é o golpe do Chile que vai trazer a atenção”, e ele mostra que não. Pergunta 2: Na verdade, aqui no Brasil, mesmo antes de 1972, tem aquele livro do Márcio Moreira Alves que denuncia uma série de torturas, e eu acho que é de 1966 esse livro. Ou 1965. Resposta: É possível. Na verdade, quando a gente começou essa pesquisa dento da própria Anistia, o que a gente ouvia era isso “olha, a gente acha que o golpe no Chile 8

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foi o grande marco, talvez vocês não encontrem tanto material assim sobre o Brasil”. E, pra minha surpresa, não! A gente está encontrando muita coisa sobre o Brasil, anterior ao golpe no Chile, em muitos casos. Inclusive coisas que foram muito importantes, eu acho, não só para o Brasil naquela época, mas para a Anistia como um todo. Determinados métodos e ferramentas que foram usados pela primeira vez no Brasil, e que depois viraram usuais para a organização. Por exemplo, a gente tem uma ferramenta chamada “ação urgente”, que é uma petição global que você faz para alguém que está em um risco iminente, alguém que está preso, sendo torturado. E a primeira “ação urgente”, que é de ’73, foi para um brasileiro, Luiz Basílio Rossi, que na época era um professor da USP, um historiador... Aliás, historiador e cientista político é uma categoria de risco, absolutamente... A gente defende a Anistia nem que seja por um instinto de sobrevivência! Mas enfim, foi um caso de “ação urgente”, e é até interessante, porque foi um caso bem sucedido. Ele tinha sido preso, estava sendo torturado, e o torturador vira pra ele e fala: “olha, você é mais importante do que a gente pensava, porque está chegando muita carta do exterior falando sobre você”. Pergunta: E aí piora a situação... Resposta: Não, ele diz o seguinte: a partir do momento que a prisão dele foi pública, e o caso dele estava muito conhecido, a repressão ficou com menos possibilidade, por exemplo, de desaparecer com ele. Pergunta: É, isso é interessante... Então vamos entrar logo, já que a gente começou no tema, a questão da Comissão Nacional da Verdade. A Anistia tem acompanhado, eu acho que a gente pode até dizer que tem participado... Resposta: Sim, sim. Inclusive a gente tem auxiliado a Comissão, com alguns documentos, conversado com eles... Pergunta: E é, pelo menos no meio acadêmico, aquela grande contradição. Como é que vocês têm visto o trabalho da Comissão? E eu acho que você pode até abrir para a questão das Comissões Estaduais também... Resposta: Exato. A gente tem acompanhado não só a Nacional, mas várias outras Comissões também. Pela estimativa mais recente, já são mais de 80 Comissões da Verdade. Acho que ninguém sabe o número real delas todas, já são mais de 80. E a 9

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gente tem trabalhado, principalmente, com a Nacional, com a Estadual do Rio de Janeiro, e agora estamos começando um trabalho também com a Estadual e Municipal de São Paulo. Bom, porque as Comissões são importantes no nosso trabalho? Basicamente, elas estão lidando com situações de violações de Direitos Humanos durante a Ditadura, e o modo como muitas dessas violações até hoje não passaram por reparações, não foram realmente levadas até a justiça. Do modo como nós vemos esse tema, a gente observa ele por três pilares. Um é o Direito à Verdade, as pessoas terem o direito de saber as circunstâncias em que ocorreram aquelas violações de Direitos Humanos. O segundo é o Direito às Reparações, que no Brasil tem sido trabalhado, sobretudo, pelo campo da indenização financeira, e que é muito além disso. É isso também, mas também é, por exemplo, temas como a construção de museus, memoriais, o Estado assumir publicamente a responsabilidade pelo que aconteceu naquele país, etc. E o terceiro pilar é o Direito à Justiça, quer dizer, que as pessoas que cometeram as violações aos Direitos Humanos sejam efetivamente julgadas e condenadas por conta disso. Então é uma agenda que está diretamente ligada com o trabalho das Comissões, e a gente tem tido um diálogo muito bom, temos acompanhado as audiências delas, apoiamos o processo de criação e instalação dessas Comissões, embora tenhamos críticas substancias ao modo como elas estão sendo operacionalizadas. Essas críticas são públicas, elas estão em artigos que nós escrevemos, artigos assinados por mim ou pelo Átila, que é o nosso diretor geral. Basicamente, resumindo um pouco a ópera: falta de diálogo das Comissões com as famílias das vítimas, com os sobreviventes; pouca transparência, sobretudo no âmbito da Comissão Nacional, pouca transparência na maneira como a Comissão opera. Por exemplo, você não ter um registro de quem foram as pessoas ouvidas pela Comissão, de quais foram as atividades que ela desempenhou, esse tipo de problema. Há outras dificuldades também, digamos assim, mais de conteúdo. Quer dizer, é natural que num país como Brasil, que se demorou 30 anos pra se criar esse tipo de Comissão, quando elas finalmente são implementadas há um manancial de demandas reprimidas, e todas elas querem ser atendidas ao mesmo tempo. Então isso é complicado também. As Comissões trabalham com equipes pequenas. Quer dizer, a Lívia citou o caso da peruana que tinha 700 pessoas... A Comissão Nacional da 10

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Verdade tem 50, e até onde eu sei é a maior, em termos de equipe. É uma outra dimensão. Não dá, com 50 pessoas, para você trabalhar todos os temas, tem que ser feita, realmente, uma priorização de certos temas. Há uma certa sobreposição, uma certa confusão... Você tem, por exemplo, casos que estão sendo trabalhados por quatro Comissões ao mesmo tempo: a Comissão Nacional, as Comissões Estaduais. Então está faltando uma organização melhor de tudo isso. E fora as nossas críticas mais políticas mesmo, como o posicionamento muito confuso, muito frágil, muito decepcionante da Comissão Nacional da Verdade com a Lei de Anistia. Uma ausência de um questionamento crítico forte da Comissão com relação a essa Lei. Acreditamos também que se deveria olhar mais as experiências internacionais, de outras Comissões da Verdade. Elas tem muito a ensinar para o Brasil. Já houve, dependendo do critério que vocês utilizem pra definir o que é uma Comissão da Verdade, já houve mais de 40 Comissões mundo afora, então o Brasil não precisa reinventar agora. Agora, o que o nosso processo tem de diferente, acho que são duas características. Primeiro é o fato de que essa Comissão vem muito depois do final da Ditadura. Quer dizer, estamos falando de coisas, na verdade, que para a maioria da população brasileira, que é uma população jovem, tem menos de 30 e poucos anos, é quase História Antiga. Então isso dificulta. Já se perde um certo sentido de urgência histórica e as Comissões precisam fazer um certo trabalho de persuasão, de convencimento, pra opinião pública, pra sociedade, de que aquele trabalho é importante. E essa necessidade é agravada pela fragilidade do sistema educacional brasileiro. Nós não fizemos ainda um levantamento sistemático disso, mas todas as conversas que eu tive, até agora, com professores que trabalham o tema da Ditadura nas escolas, estão apontando para um quadro de uma enorme fragilidade desses rapazes, dessas moças com relação ao conhecimento sobre a época da Ditadura. Eu já ouvi coisas absolutamente inacreditáveis de alunos universitários, que não sabiam que tinha havido uma ditadura no Brasil. Isso, mesmo com tudo que há na cultura popular, novelas, filmes, músicas. É surpreendente, mas eu acho que a gente nunca pode também esquecer do tamanho dessa fragilidade educacional brasileira, a gente tem que estar pensando nisso. O que aumenta, claro, a importância pedagógica das Comissões. E o segundo ponto é essa multiplicação de Comissões. Isso também é algo muito peculiar 11

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na experiência brasileira. Como eu dizia, a gente tem hoje, talvez 80 Comissões da Verdade operando no Brasil. Qual vai ser o legado dessa multiplicação? Vai ser positivo? Elas vão conseguir lidar com coisas que só a Comissão Nacional não daria conta? Ou vai ser uma bagunça? Cada uma vai falar a mesma coisa de uma outra maneira? O que vai acontecer? Pergunta: Mas tem algum tipo de organização entre elas? Por exemplo, elas fazem algum relatório e mandam pra Comissão Nacional? Pergunta 2: Existe uma oficialidade dessas 80 Comissões? Elas são 80 Comissões oficiais? Resposta: Boa pergunta. Não necessariamente. Algumas delas são Comissões oficiais, que foram criadas pelos Estados e pelos Municípios, evidentemente a Nacional também. E outras são Comissões da sociedade civil, Comissões que acontecem dentro de uma Universidade, ou de um Sindicato, ou das seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil... Pergunta: E o marco inicial foi a Comissão Nacional? Resposta: O marco nacional foi a Comissão. Eu diria que a Comissão Nacional foi criada... Havia essa fome, essa demanda reprimida, e várias organizações locais começaram: “opa! Por que não criar uma aqui?”. O que é muito positivo, isso não aconteceu em outros países, isso vai deixar alguns legados interessantes, quando mais não seja, o fato de que a gente vai ter algumas centenas de pessoas no Brasil treinadas nos métodos e práticas da justiça de transição, na temática de Verdade, Memória e Justiça. E pelo o que eu conheço da área, pela minha própria vivência, pelas pessoas que eu tenho encontrado, as pessoas não vão parar de trabalhar com esse tema quando as Comissões encerrarem. Elas vão continuar escrevendo, pesquisando... Então você pode ter fenômenos como, por exemplo, assessores de Comissões agora, que são jovens recém formados, que vão fazer mestrados ou doutorados, ou escrever livros sobre essa experiência. Então eu acho que isso vai dar um ganho para o país, em termos de qualidade de reflexão, em termos de produção de pesquisa histórica muito grande, e que vai pra além da consequência imediata dessas Comissões, da publicação de seus relatórios e o impacto político que elas tenham. Mas, respondendo a sua pergunta, 12

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algumas dessas Comissões são oficiais, outras são da sociedade civil. Agora, as oficiais, pelo menos, estão assinando convênios com a Comissão Nacional da Verdade. Pelo menos temos certo nível de colaboração e diálogo com ela. Mas ainda é um tanto quanto frágil, não há realmente uma coordenação central entre elas, ocasionalmente elas batem cabeça entre si. Pergunta: Eu queria te fazer duas perguntas. Primeiro, você mencionou a Lei de Anistia e a política da Comissão da Verdade sobre a Lei de Anistia. Então eu queria te pedir pra falar um pouco sobre essa política, ou a não política da Comissão da Verdade com relação à Lei de Anistia, e o que a Anistia Internacional pensa sobre a Lei de Anistia brasileira, e o que deve ser feito sobre isso... Resposta: Vamos lá! Qual é o cenário internacional hoje? “Hoje” eu falo dos últimos 10, 15 anos. Há um consenso hoje nos tribunais internacionais que lidam com crimes contra a humanidade, ou mesmo em muitas cortes nacionais que lidam com esses crimes, de que as leis de anistia são legítimas até certo ponto. Você pode ter uma Lei de Anistia como parte de um processo de transição política, onde determinados grupos que estavam em confronto acordam que vão perdoar certos tipos de crime, mas não todos os tipos de crime. O consenso é de que crimes contra a humanidade não são passíveis de serem anistiados, e também não podem ser prescritos, não podem deixar de ser condenados ao longo do tempo. O que são crimes contra a humanidade? Tortura, desaparecimento forçado, escravidão e apartheid, em qualquer circunstância. E em algumas circunstâncias, o homicídio e o estupro, quando esses crimes são cometidos como parte de um processo sistemático de repressão política contra determinado grupo. Então esse é o entendimento, por exemplo, que norteou as negociações sobre a Iugoslávia, ou sobre Ruanda. E vários outros tribunais internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, nas suas decisões jurídicas, também tem se pautado por isso. Então esses tribunais já disseram, com relação a vários países, inclusive ao Brasil, numa sentença de 2010, o caso Gomes Lund, o caso da Guerrilha do Araguaia, que a Lei de Anistia brasileira não pode servir de obstáculo para a perseguição criminal de violações graves de Direitos Humanos durante o período da Ditadura. E que, inclusive, nesse casos, os princípios habituais de Direito Penal, como a 13

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não retroatividade, não se aplicam. É uma categoria muito peculiar e muito especial de crimes. Então se você vai hoje em qualquer debate sobre Direito Internacional, o que eu estou dizendo agora é o óbvio ululante. Mas o debate político brasileiro e o debate jurídico brasileiro ainda é muito ensimesmado, ainda é muito fechado dentro do Brasil. A gente se alimenta pouco da discussão de outros países, inclusive no âmbito das Comissões da Verdade. Às vezes se fala um pouquinho da Argentina, um pouquinho da África do Sul, que são Comissões importantes historicamente, mas de modo nenhum são a vanguarda do que se faz, hoje, em Comissão. Quer dizer, a Comissão na Argentina tava limitada ao crime de desaparecimento forçado. A Comissão da África do Sul concedeu várias anistias que hoje não seriam mais validadas em cortes internacionais. Então tem uma experiência internacional muito rica, da qual a gente deveria beber mais, mas ainda não tem chegado tanto aqui. Então a posição da Anistia Internacional é, em linhas gerais, a mesma da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de que é possível ter uma Lei de Anistia no Brasil, mas que ela não deve servir de obstáculo com relação a essa perseguição. E isso, na verdade, é o que a Anistia tem dito desde ’79. Desde o momento em que essa lei começou a ser negociada, a Anistia Internacional já fazia esse tipo de crítica. E acho que parte-se muito também pela necessidade de nós, brasileiros, fazermos um debate político mais amplo, sobre o que foi as condições políticas de negociação da Lei de Anistia: um congresso absolutamente cerceado; tudo que representava ali aquela vigência ainda do AI-5; o próprio modo como, pelo menos em um primeiro momento, ela ainda é uma lei bastante restritiva, que não abarca, pro exemplo, pessoas que estão no “crimes de sangue”; e ainda, o que significa hoje em dia dar um carimbo, como o Supremo deu em uma decisão de alguns anos atrás, e dizer “não, olha só, essa lei é válida, ela fez parte de um processo de negociação para a transição”. Isso é muito questionável. E foi uma negociação que se deu em um ambiente absolutamente coercitivo, extremamente frágil, e está faltando fazer esse debate dentro do Brasil. Um debate político mais qualificado sobre os significados da Lei de Anistia. E claro que, para o contexto da época, ela foi percebida por muitos grupos como uma vitória. Mas depois, já nos anos ’80, ’90, tem um questionamento maior por parte dela, que diz “opa! Essa transição aqui foi uma transição muito incompleta, ela deixou 14

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lacunas muito graves”. E tem um cenário regional também, sobretudo na América do Sul, e quando a gente vê o que foi feito na Argentina, no Uruguai, no Chile ou no Peru, com relação aos seus próprios regimes autoritários, o tamanho da nossa deficiência fica muito mais evidente. Acho que isso leva também a um questionamento maior, em dizer “opa! Espera aí! Não era inevitável que a transição brasileira tivesse se dado da maneira como ela se deu. Ou que a gente tenha que aceitar hoje, em 2014, aqueles pressupostos de 79, 80, 81”. Então há toda essa crítica muito forte. Inclusive parte da nossa mobilização agora, nos 50 anos do golpe, vai ser lançar uma petição, exatamente defendendo a perseguição criminal, os processos criminais, contra pessoas responsáveis por graves violações de Direitos Humanos durante a Ditadura. Sobretudo casos de tortura, homicídio, desaparecimento forçado e estupro nesse contexto de repressão política. Pergunta: Você falou sobre cerca de 40 Comissões da Verdade pelo mundo... Há algum modelo de Comissão da Verdade ou modelo de transição que você considere ideal? Resposta: Eu não acho que exista um ideal, porque cada país teve a sua especificidade. Então, por exemplo, uma coisa é você falar de países que viveram uma guerra civil, outra coisa é falar de países que viveram um regime autoritário, que foi o caso brasileiro. Cada um tem seu modelo. Acho que o cada um deles tem são certas particularidades, certos formatos que são interessantes pro Brasil. Por exemplo, o caso peruano é um caso muito interessante, porque é uma Comissão grande, recente, da década passada, que já aprendeu muito com as experiências alheias. Foi uma Comissão que trabalhou muito bem questões ligadas à arte, cultura. O caso sul africano tem uma importância histórica gigantesca, mas ele é exemplar também no modo como aquela Comissão conseguiu uma visibilidade na mídia, pela imprensa traduzir, publicar aquele material. Enfim, há varias... o caso chileno, no sentido em que o Chile teve mais de uma Comissão da Verdade, então se não basta fazer uma Comissão, você pode perfeitamente ter esse processo, chegar ao final e dizer “olha, uma só não deu, vamos fazer outra, vamos fazer uma revisão”. O que eventualmente pode ser algo que aconteça no Brasil. Então cada uma delas tem a sua particularidade. Por exemplo, na América Central você 15

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teve Comissões em que todos os integrantes eram estrangeiros, porque aquilo era visto como algo que daria uma imparcialidade, uma legitimidade maior para o trabalho daquela Comissão. Naquele contexto específico, podia ser algo interessante, para o Brasil seria algo absolutamente inaceitável, porque a gente tem um cenário muito próprio. Pergunta: Outra coisa que eu acho interessante é o papel que a Anistia Internacional tem hoje em ações atuais relacionadas a um passado da Ditadura. Eu queria que você comentasse com a gente um pouco sobre a questão do “ex Dop”, que esta transformado em um lugar de memória, essa discussão, apropriação, e tudo isso. Resposta: Bom, como eu dizia para vocês, um dos pilares pelos quais a gente pensa esse processo é o Direito à Verdade e o Direito à Reparação, e a mistura desses dois dá margem às políticas de Memória sólidas, bem feitas. Então a gente faz parte de uma coligação de organizações que está tentando transformar o ex Dops do Rio de Janeiro em um espaço de memória, um museu. Já tem uma experiência bem sucedida em São Paulo, o Memorial da Resistência. Tem a proposta de se fazer algo igual em Petrópolis, na chamada Casa da Morte, que o exército manteve lá. Pergunta: Esse em São Paulo é aquele lá da Estação? Resposta: Da Estação da Luz, é. Que também era o antigo Dops em São Paulo. Inclusive eu já estive muito lá, é um museu muito interessante, tem várias coisas legais. Já é um dos museus mais visitados em São Paulo. E é muito interessante porque a equipe que coordena aquele museu, que é uma equipe que inclui vários presos políticos, eles têm uma característica de buscar um diálogo com a sociedade civil muito forte, e todo sábado eles fazem umas rodas de conversa, trazendo gente da periferia, trazendo gente do hip hop. Isso é algo muito importante também para o que a gente quer fazer aqui no Rio, porque é essa ideia de que a gente não está falando só de algo que aconteceu há 30 anos atrás na Ditadura Militar, a gente quer discutir também as permanências desse regime autoritário da democracia brasileira, sobretudo, mas não só, na área de segurança pública. Então a gente tem uma campanha pela desmilitarização da polícia. Como essa lógica militar da polícia reproduz todo um aparato, um modo de pensar da Ditadura. Isso é algo muito explícito. Por exemplo, semana passada, nesses 16

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protestos que aconteceram em São Paulo, alguns rapazes que foram presos relataram que eles apanharam da polícia nos carros e que os policiais diziam pra eles; “vocês vão ser julgados como terroristas, e se fosse a época da Ditadura, vocês já estavam mortos”. Então, por mais que eu já tenha ouvido de policiais militares que a polícia de hoje não é a polícia da Ditadura, e eu concordo, é diferente, mas tem um ranço que permanece. Então parte do que a gente quer fazer também nessas celebrações da memória é juntar, por exemplo, na mesma mesa redonda, um ex preso político dos anos 1970, com um rapaz ou uma moça que tenha sofrido violência policial agora, durante os protestos do ano passado, e eles compartilharem ideias, trocarem experiências, o que eles viveram de comum, o que é diferente. Quer dizer, é muito essa ideia de que há uma memória para um uso do presente. E, claro, também muito vinculada à ideia de não repetição: nunca mais! Tem que ser pra nunca mais! Pergunta: E aí a gente, historiador, vai fazer aquela pergunta clássica sobre a questão das disputas de memória que você vê nesses espaços. Eu sempre lembro muito do caso da Argentina em que o ex Centro Clandestino, a ESMA, quando ele foi transformado em um espaço de memória, foi quase uma baixaria, uma briga entre todos os grupos de Direitos Humanos e eles terminaram dividindo, cada um fica com uma cada e faz o que quiser na sua casa. Foi mais ou menos isso porque eles não chegam a um consenso. E vocês percebem isso aqui também? Resposta: Não, aqui eu tenho visto algo bem mais homogêneo, em termos do que se está buscando. Claro que há as divisões dentro da esquerda, da maneira como se pensa o trabalho da Comissão da Verdade, há aqueles grupos muito críticos. Eu já ouvi, por exemplo, de ex presos políticos ou de familiares de vítimas, que para eles aquela Comissão é um mero paliativo, é um cala boca pra não ter processo judicial. Eu não acho que seja assim, eu não acho que seja a intenção de que está lá, ou pelo menos de vários integrantes da Comissão. Há divergências também sobre como lidar com a Lei de Anistia, enfim, os posicionamentos em relação ao governo. Mas eu acho que há um consenso maior em termos da memória, em termos do passado. Talvez pelo fato de que no Brasil esses grupos não foram tão numerosos quanto na Argentina, é um outro cenário. Acho que tem muito mais um sentimento de que se eles não levantarem essa 17

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bandeira, esse tema não vai adiante. Porque acho que os grandes defensores das políticas de Memória no Brasil, em geral, foram os sobreviventes e as famílias das vítimas, eles que tocaram, durante muito tempo, esse barco aqui no Brasil. Pergunta: E sobre a questão dos projetos? Esse é um ano, como você mesmo comentou e já falou de alguns projetos que vocês tem em relação à comemoração dos 50 anos do golpe. O que a Anistia está preparando ou pensando? Resposta: Bom, primeiro a nossa ideia é aproveitar esse aniversário, que vai coincidir com o ano final de trabalho da Comissão Nacional da Verdade, e é também um ano eleitoral, um ano de mega evento, é um ano muito político no Brasil... de usar essa data para fazer uma série de atos e mobilizações e chamar a atenção da opinião pública brasileira, sobretudo dos jovens, sobretudo dessa nova geração está despontando aí, para a importância dessas discussões. Do ponto de vista institucional, a gente está preparando uma campanha, uma série de materiais, sobre a história do que a Anistia Internacional fez no Brasil durante a Ditadura. Então nós vamos gravar entrevistas em vídeo com pessoas que foram ajudadas pela Anistia naquela época, na qual elas vão contar um pouco da sua história. Estamos levantando documentos da Anistia sobre aquele período, relatórios, análises, petições, denúncias. Estamos levantando também documentos do governo brasileiro, sobretudo dos órgãos de repressão, sobre a Anistia, por exemplo, declarações desses órgãos, documentos internos, nos quais eles citam a Anistia e a Igreja Católica como organizações aliadas dos terroristas, como organizações com as quais era preciso ter um cuidado grande. Já pegamos histórias impressionantes, por exemplo uma vem em que a Ditadura tentou infiltrar na Anistia Internacional uma loira de olhos azuis, belíssima, fatal. Estamos procurando essa loira intensamente e infelizmente não a encontramos até agora, se souberem onde ela está, será bem vinda aqui para um café. Mas histórias realmente muito curiosas e que mostram o quanto a Anistia foi percebida como uma ameaça pelos órgãos de repressão, e inclusive uma ameaça que era necessário silenciar. Então há diretrizes do governo para que os jornais não publicassem as declarações sobre a Ditadura, as declarações da Anistia sobre a Ditadura, as denúncias sobre o Brasil. Há algumas cartas muito curiosas, por exemplo cartas de delegados do Dops para voluntários da Anistia na Europa, 18

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dizendo: “olha, nós brasileiros temos bom coração e sentimentos quentes, coisas que vocês, europeus,já não tem mais! Vocês são muito frios e vocês não entendem isso de Direitos Humanos”. O que soa cômico hoje, esse cretinismo mesmo da repressão, mas esse era o nível do embate da época. Então a gente está recuperando todo esse material, isso vai ser disponibilizado para o público via internet, e a ideia é que isso sirva não só para contar a nossa história, para apresentar a Anistia Internacional para uma nova geração de brasileiros, ou para aqueles que viveram a Ditadura, mas, enfim, não estavam muito envolvidos com ela na época, mas também que seja um recurso, uma ferramenta de educação em Direitos Humanos. Que um professor possa pegar um vídeo desses e usar em sala de aula com os alunos, ou, sei lá, um pai que queira conversar com os filhos sobre a Ditadura possa usar esse material. E a nossa ideia é fazer menos uma campanha de denúncia, porque a gente acha que esse papel já está sendo bem feito pelas Comissões, e por outras organizações, e mais ressaltar essa importância da solidariedade, de contar um pouco esse lado da solidariedade internacional, relembrar um pouco dessas histórias. E as histórias são muito fortes, do ponto de vista humano. São histórias de muito sofrimento, de muita violência, mas também histórias de fraternidade, de superação, de esperança. Então parte do que a gente está tentando recuperar agora, que é até um pouco mais difícil, porque não são os arquivos da instituição Anistia, mas os arquivos de voluntários, de pessoas que trabalharam com a Anistia naquela época, e que foram particularmente envolvidas com o Brasil. Então na semana que vem eu vou a São Paulo pra pegar o arquivo de uma senhora alemã, D. Brita, que ajudou inúmeros brasileiros na época e até hoje ela é lembrada com emoção por essas pessoas. Há uns dois anos elas fizeram uma homenagem especial pra ela. Há um outro caso de uma voluntária na Suécia, Marianne, que também está tentando entrar em contato. Enfim, isso é algo típico da Anistia, nós somos não só uma organização, mas também um movimento, então tem muita coisa importante feita pela Anistia que não está, necessariamente, no nosso arquivo oficial, porque fez parte dos voluntários que trabalharam com esse tema e que, por uma ou outra razão, se engajaram mais intensamente com o Brasil. Muitos foram importantes não só com o trabalho de denúncia, mas com o trabalho de receber os brasileiros que foram para o exterior como 19

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exilados, que ajudaram eles a reconstruir a vida na França, na Alemanha, na Suécia. Então é tentar contar um pouco dessa história Pergunta: Pra terminar, já que você falou nos documentos que você está buscando, há uma pergunta que o historiador não pode deixar de fazer. E a política de documentos da Anistia? Resposta: Olha, vai ser a mais aberta possível. Inclusive a gente está pensando em fazer algum tipo de parceria com alguma universidade, pra digitalizar todo esse arquivo. Então, por exemplo, o pesquisador que estivesse pesquisando a época da Ditadura, ou que quisesse entender como a Anistia trabalha e funciona, poderia, pela internet, ter acesso a toda essa documentação. Pergunta: Mas esses fundos documentais, vocês ainda estão buscando? É isso que está acontecendo? Ou eles já existem? Resposta: Olha, nessa etapa, o que nós estamos fazendo é localizar e identificar essa documentação. A gente já tem uma lista de todos os documentos sobre o Brasil que estavam arquivados no secretariado internacional, são em torno de 200 documentos do período da Ditadura, mas a gente ainda não tem todos esses documentos aqui no Brasil. algumas caixas já chegaram, outras estão a caminho ainda. Então a gente ainda está realmente olhando, analisando, vendo. E a nossa primeira reação é de que é mais documentação do que a gente imaginava, e pegando um arco de tempo mais longo do que a gente imaginava também, em um primeiro momento. E documentação muito rica, muito interessante, mostra uma Anistia engajada no Brasil desde a década de ’60, não só depois do AI-5. Tem várias petições para pessoas que depois se tornaram líderes políticos importantes no Brasil, presidentes, ministros. Aliás, é impressionante ver também como certos nomes na política brasileira tem uma permanência muito grande. A gente pedia nos anos ’70, por exemplo, paras as pessoas escreverem petições pro Sarney, pro Maluf, pro Marco Maciel. Pedindo pra eles libertarem pessoas que estavam presas pelas polícias dos seus estados. O meu caso favorito é uma ação urgente em defesa do Lula, no final dos anos ’70, quando Lula era líder sindical, na qual a gente pede ao então governador biônico de São Paulo, Paulo Maluf para liberar o Lula. Depois eles acabaram sendo aliados. Quer dizer, a vida é cheia dessas idas e vindas. 20

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Mas me impressiona também ver, na documentação da Anistia, o quanto a gente estava acompanhando e denunciando casos de tortura ou de repressão à imprensa, já bem avançados os anos ’80, casos de ’82, ’83. Porque às vezes tem essas versões: “ah, não, acabou o AI-5 e tudo foi resolvido, estava mais tranquilo”. Pergunta: Mas assim, essa documentação abrange o período da transição democrática e da democracia? Resposta: Olha, a gente tem documentos da Anistia no Brasil que vão de 2014 até a década de ’60. A gente está pegando pra esse projeto só até ’85. A gente para com a posse de Sarney, mas os casos continuam. Por exemplo, casos de violência no campo, ou quando começa a entrar o tema da segurança pública, mais nas grandes cidades, em meados dos anos ’80, que são casos que vão prosseguir com poucas mudanças ao longo da democracia. Então tem também o limite da nossa democracia. Sobretudo na área violência no campo isso fica muito claro, ou violência contra povos indígenas, que a gente também vê essa persistência. Pergunta: Esse projeto fica pronto quando? Resposta: A gente vai ter uma primeira versão desse projeto online uma semana antes do aniversário do golpe, final de março. E a nossa ideia é, ao longo do ano, até o período do relatório final da Comissão da Verdade, a gente ir alimentando esse site com mais documentos, com mais material. Inclusive a nossa expectativa é que quando esse material entre no ar, que a gente seja procurado por pessoas que foram ajudadas pela Anistia no passado, e que por uma razão ou outra, a gente não conseguiu identificar na nossa pesquisa inicial.

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