Entrevista com Paula Peres para a Revista nova escola

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Entrevista com Paula Peres para a revista Nova Escola, 22 jul. 2016 Carlos Palombini Quais são os subgêneros do funk? Li artigos que falam de alguns, citam outros, mas não vi ainda uma “lista oficial”, como a gente consegue encontrar mais facilmente para o hip hop. Não existe essa lista porque não existe história oficial do funk carioca. O que há de mais completo ainda é o livro de Silvio Essinger, Batidão: uma história do funk, de 2005. Diferentemente do funk carioca, o hip-hop norte-americano, bem mais antigo (oficialmente ele data de 11 de agosto de 1973), tem sido extensivamente estudado nas universidades norte-americanas, inclusive em departamentos de música. Estudos musicológicos do funk carioca só recentemente começaram a tomar forma. Uma lista de subgêneros poderia incluir: proibidão, putaria, melody, ostentação, montagem e consciente. Esses termos remetem preponderantemente a temáticas: o proibidão, à vida no crime; a putaria, a proezas eróticas; o melody, ao romance; a ostentação, ao alarde de bens. Mas também a técnicas: a montagem, à repetição de fragmentos vocais de procedências diversas; e a pontos de vista: o consciente, a perspectivas explicitamente críticas, pedagógicas ou moralizantes. Aos seis subgêneros poderiam acrescentar-se o gospel funk, designado por sua temática, e ainda o funk comédia e o funk neurótico, designados pelo ethos. Vejo textos que falam sobre o funk ter origem no soul, outros citam o Miami bass, outros dizem que é uma vertente do hip hop, outros falam que é um irmão carioca do hip hop paulista. Qual a informação correta? De onde o funk veio e como ele caminhou para tornar-se o que é? (Se quiser pode indicar um artigo ou livro que conte essa história). Todas essas gêneses estão corretas, mas nenhuma é verdadeira. Tampouco o é o conjunto das três afirmações. O soul norte-americano origina-se do rhythm and blues a partir do início dos anos 1950 por exacerbação de características da vocalidade gospel. Nos anos 1960 ele se divide entre o soul do sul (selos Stax-Volt) e o soul do norte (selos Tamla-Motown). Nos anos 1970 o soul do sul dá origem ao funk, e o do norte, à disco. Na década seguinte, o funk engendra o hip-hop, enquanto a disco engendra a house. O funk carioca descende não só do hip-hop, mas também de sua prole: o electrofunk, o electro, o Miami bass. Também contribuem o synthpop, o technopop, a house, o pop-dance e outros. Já o hip-hop brasileiro é mais ligado ao electrofunk de Afrika Bambaataa em sua origem. O funk carioca mantém vivo o espírito festivo do hiphop da Old School. Dos anos 1960 até o início dos anos 1990 essas músicas foram executadas por DJs fluminenses em eventos frequentados sobretudo por afrodescendentes em clubes de subúrbios e periferias. Os DJs, junto com os frequentadores dos bailes, passaram a exercer um grau crescente de manipulações sobre esse material, que, colocado em relação com musicalidades locais, deu origem ao funk carioca. Contei essa história num artigo publicado em 2009, “Soul brasileiro e funk carioca” (http://goo.gl/CHFECL), embora de lá para cá minha visão sobre o assunto tenha-se tornado mais detalhada e mais clara. Sobre o soul norte-americano, traduzi ao português o artigo de David Brackett para o New Grove Dictionary of Music and Musicians, de 2001 (http://goo.gl/VG5tcC).

Li um dos textos em que você fala sobre a autoria das batidas predominantes em cada década. Você diz que se sabe da autoria do Volt Mix, há controvérsias sobre o pancadão e a origem do beatbox é um enigma. Por que isso acontece? Está relacionado com o aumento da produção e da quantidade de mixagens ao longo das décadas? Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de tratar-se de construções coletivas. Nas palavras do DJ Grandmaster Raphael, em entrevista de 25 de janeiro de 2012: O tamborzão surge de uma mistura de vários samples de percussão. A partir de determinado momento, já na década de 1990 mesmo, começou-se a colocar percussão em cima do Volt Mix: atabaque tirado de discos de produção nacional. Tem um disco de bateria de samba, Alma brasileira; um disco se eu não me engano do próprio Afroreggae com essas percussões. Começouse a misturar essas percussões com o Volt Mix. Com o tempo o Volt Mix foi sendo abolido e ficamos só com a percussão. E aí, mistura daqui, pega de lá... [...] Eu acho que não tem inventor. Acho que tem uma colaboração de vários DJs fazendo uma coisa: eu faço uma coisa aqui, você pega a minha coisa e faz uma adaptação, aí ele pega, já bota outro tempero, e vai copiando, vai copiando, vai adaptando, vai equalizando diferente, quando vê, de um só, virou mil. Acho que é algo mais ou menos assim.

Se você fosse elencar os principais representantes do funk ao longo do tempo, quem seriam eles? Quem você acha que mudou o estilo, quebrou paradigmas etc.? É difícil porque definir marcos geralmente supõe uma narrativa direcional de caráter modernista que não está disponível. De todo o modo, destaco, no campo da montagem, o DJ Mamut e seu “Jack Matador”, gravado em 1994; no da performance vocal, o MC Cidinho; no da produção musical, o DJ Grandmaster Raphael; no da composição, Praga; no da putaria, a MC Deize Tigrona; no do melody, Claudinho e Buchecha; no do proibidão, o MC Orelha; no da poesia, o MC Galo; entre os bailes, o da Chatuba da Penha; entre os intérpretes, o MC Smith; entre os eventos, a Roda de Funk de São Gonçalo; pela personalidade, a MC Carol. Há uma infinidade de artistas extremamente originais no funk carioca, alguns muito pouco conhecidos. É impossível fazer justiça a todos quando você concebe essa música como uma construção coletiva. Quando você diz em um dos textos que ao longo do tempo houve “redução do calibre da base”, o que quer dizer com isso? Como explicar a uma pessoa leiga em musicologia? Tem alguns exemplos de músicas para ouvir e entender a diferença? Quero dizer que a base ou batida, um dos elementos da criação musical, ao lado do a cappella, dos pontos, das viradas etc., desocupa a região aguda na passagem dos anos 1990 para a primeira década milênio, e desocupa o grave na passagem desta para os anos 2010. Essas desocupações correspondem à ascensão das bases tamborzão e beatbox respectivamente. Isso significa que as regiões aguda e grave se abrem para outros elementos de modo a facilitar hibridações. Você pode ouvir essas bases nos canais Proibidão.org das plataformas Mixcloud e Soundcloud: Volt Mix, http://goo.gl/3I7BwR (terceira faixa); tamborzão, http://goo.gl/KJH5tx; beatbox, http://goo.gl/nVkEJr. Você acha que a indústria cultural se apropriou do funk? Ou ele conseguiu resistir como movimento independente e o que a indústria tem com seus artistas que estão fazendo muito sucesso é outro subproduto do funk?

 

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A mídia corporativa faz com o funk o mesmo que fez com a disco, a house, o hip-hop e outros gêneros surgidos no underground: ela os molda para consumo em massa e os coopta ideologicamente em maior ou menor grau. Não há dúvida de que esse processo seja nocivo à criatividade, à originalidade, à inovação e à natureza mesma de criação coletiva do funk, além de tudo atacado hoje em sua própria origem, os bailes de favela, pelo aparato de repressão estatal. Também se poderia considerar o pop funk um subgênero. A Nova Escola é uma revista para professores, então a primeira ideia é falar sobre como trabalhar o funk na escola. Existe contexto na escola para trabalhar, por exemplo, os movimentos corporais do funk? Ou isso é “coisa de adulto”? Existe contexto na escola para trabalhar com toda e qualquer coisa, inclusive com a realidade. Uma imensa parcela do público do funk é constituída por crianças e adolescentes. Sabemos que o funk enfrenta muita resistência da escola e dos professores. Tenho a impressão de que a sociedade veja o estilo como as pessoas nos Estados Unidos viam o soul e o jazz antigamente. Eu queria que você comentasse um pouco se a minha impressão tem sentido e sobre esse preconceito que o funk sofre. Essas comparações são possíveis e a comparação com o samba é frequente, embora os contextos sejam distintos. Seu denominador comum é o racismo. O problema se acentua porque o nosso é exacerbado e conta com a cupidez e com a natureza despudoradamente predatória de nossa elite econômica. Ele se agrava ainda dados o caráter de oligopólio de nossas mídias e a brutalidade sem par de nosso aparato terrorista de Estado. Sabemos que existe o preconceito, mas me parece também que o funk carregue alguns problemas da sociedade com ele. Retrata violência, objetificação da mulher, machismo... E nem sempre com um caráter de denúncia, mas algumas vezes de exaltação. Minha impressão, pelo que leio e conheço, é que o funk não é o gerador desses problemas, mas é o canalizador porque é a referência de produção musical que as pessoas têm para expressar sua realidade. É isso mesmo? Há mais coisas entre o céu e a terra do que a denúncia e a exaltação. O funk carioca não é apenas expressão da sociedade, como se funkeiros não fossem sujeitos, mas simples reflexos ou catalisadores de todos os males. Expressar posições estereotípicas pode ser também tomar ciência de contradições e tomar posição. E possivelmente, subverter estereótipos nos jogos de performance que o baile e a música ensejam. Mas, mesmo assim, são problemas sérios, sob pontos de vista que nem sempre devem ser encorajados pela escola. Como lidar com isso? O que fazer quando as referências de funk que a garotada conhece são o proibidão, são músicas que falam de sexo não consentido etc.? Encorajar o funk não é encorajar problemas porque o funk não é problema, mas, no máximo (e apenas em parte), sua representação. E o que é melhor, falar de tais problemas no abstrato ou diante de suas personificações no corpo e na voz daqueles aos quais eles afetam diretamente?

 

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