ENTREVISTA COM PAULO MOTA PINTO (Interview with Paulo Mota Pinto) - Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Sergio Rodas

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ENTREVISTA COM PAULO MOTA PINTO INTERVIEW WITH PAULO MOTA PINTO OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR Professor Doutor de Direito Civil na Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP. [email protected]

SÉRGIO RODAS Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. [email protected]

REVISTA1 DE DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO – RDCC – O senhor nasceu em 1966 e viveu sua adolescência em pleno processo de redemocratização de Portugal, após a Revolução de Abril de 1974, o turbulento Processo Revolucionário em Curso – PREC, o Verão Quente de 1975 e o movimento de 25.11.1975, no qual o futuro general Ramalho Eanes retomou o controle da situação no país. Para além disso tudo, seu pai foi um importante acadêmico e político português, o professor e primeiro-ministro Carlos Alberto da Mota Pinto. Quais suas lembranças desse período final da década de 1970 e início dos anos 1980? Paulo Mota Pinto – É impossível resumir toda a memória da juventude numa resposta. Diria apenas que distingo uma fase, digamos até 1979-1980, em que os tempos pós-revolucionários estavam ainda muito vivos, e uma fase posterior, de progressiva estabilização. Tenho evidentemente muitas recordações quer do período em que meu pai foi primeiro-ministro, em 1978-1979, quer de quando foi vice-primeiro-ministro, entre 1983 e 1985. A mais relevante, e que melhor guardo, é talvez a do seu esforço por contribuir para que Portugal se tornasse uma democracia, segundo o modelo ocidental, com economia de mercado, e plenamente integrada na Europa. Esse esforço foi coroado de êxito.

1. A entrevista foi concedida aos 18.03.2016, na Sala das Becas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, quando o entrevistado proferiu conferência, a convite do Departamento de Direito Civil e da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. O texto foi posteriormente revisto pelo entrevistado. Utilizou-se a grafia indicada pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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RDCC – Sua licenciatura em Direito ocorreu na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra nos anos 1980. Quais professores e quais autores foram mais influentes em sua formação? Quando se deu a escolha pela especialização em Direito Civil? Paulo Mota Pinto – De entre tantos, e com risco de cometer alguma injustiça, destacaria os Professores Orlando de Carvalho (Teoria Geral do Direito Civil e Direitos Reais), Castanheira Neves (Introdução ao Direito, Metodologia Jurídica), Figueiredo Dias (Direito Penal) e Gomes Canotilho (Direito Constitucional), bem como, de uma geração mais jovem, o Professor António Pinto Monteiro (Direito Civil). A minha escolha pela especialização em direito civil deu-se no final do curso, em 1989, bem como durante minha estada em Munique logo depois, durante o ano letivo 1989/1990. RDCC – A influência da cultura jurídica alemã em Portugal é notória e teve seu ponto de inflexão no início do século XX, com o decisivo papel de Guilherme Alves Moreira, da Universidade de Coimbra. Sua trajetória acadêmica também se deu em parte na Alemanha. Como se deu esse processo de sua formação em contato com autores e instituições universitárias alemãs? Paulo Mota Pinto – Em 1989 tive uma bolsa do Deutscher-Akademischer Austauschdienst (organismo alemão para o intercâmbio académico) para estudar e investigar um ano na Alemanha. Já possuía antes interesse pela cultura jurídica e pela doutrina germânica, o que é natural na formação do jurista em Coimbra desde há muito. Estive esse ano na Alemanha, e pensei até em fazer aí as dissertações para obter meus graus académicos, mas optei por voltar, pois queria viver em Portugal e ficar na minha universidade – Coimbra. RDCC – A figura dos “catedráticos mandarins” é uma marca da vida política portuguesa. Nessa chave, encontram-se vários professores universitários, particularmente das faculdades de Direito, que também militam em partidos políticos. Sua atuação no Partido Social Democrático é uma parte relevante de sua biografia. O senhor poderia comentar alguns aspectos dessa interessante experiência no mundo da política? Paulo Mota Pinto – Separo os dois aspetos de minha atividade. Minha atividade jurídica, quer como professor, quer como jurisconsulto, é profissional, enquanto minha passagem pela política sempre a vi como um serviço público, e transitório, não como uma carreira. Em certa fase fui convidado para assumir responsabilidades no partido de que sou militante e para ser parlamentar, e achei que não devia recusar tendo em conta a fase difícil que Portugal ia atravessando. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA RDCC – Veja-se agora a questão sob outro ângulo: em que sua condição de professor de Direito Civil influenciou em sua atividade parlamentar? Paulo Mota Pinto – Eu fui deputado presidente de duas comissões de 2009 a 2015. Estive dois anos presidindo a Comissão do Orçamento e de Finanças em uma fase em que Portugal estava em dificuldades econômicas e teve de pedir ajuda externa. Minha experiência jurídica, mais do que civilista foi útil. O conhecimento da forma de funcionamento do parlamento, da forma do processo legislativo, foi bastante útil, mais do que a experiência como civilista. Na segunda metade de minha experiência na Assembleia da República, de 2011 a 2015, eu presidi uma comissão de assuntos europeus, que acompanhava a atividade europeia do Parlamento português. A experiência jurídica foi menos relevante nessa função. Sem dúvida, foi uma experiência enriquecedora. Enfim, eu não gostaria de voltar a ser deputado, mas penso que é uma experiência enriquecedora para quem gosta da carreira pública. Quanto ao Direito Civil, de modo específico, eu optei por não ter uma atividade parlamentar vinculada à área de minha atividade profissional, até para se evitar conflitos de interesses. Aí digamos, não posso dizer que minha condição de civilista tenha ajudado especificamente a meu ofício como deputado. No entanto, minha formação jurídica, de um modo geral, foi extremamente útil às funções que exerci na Assembleia da República. RDCC – O senhor foi o mais jovem juiz do Tribunal Constitucional da República Portuguesa, nomeado que foi aos 32 anos, no ano de 1998. Como se deu sua escolha para o tribunal e quais aspectos mais marcantes de seu mandato, que se encerrou em 2007? Paulo Mota Pinto – Fui eleito juiz do Tribunal Constitucional pela Assembleia da República (parlamento português), por maioria de dois terços, tendo sido indicado para a eleição por um dos partidos representados no parlamento, os quais devem indicar juristas de reconhecido mérito. Meu mandato decorreu entre 1998 e 2007, e participei em tantos acórdãos (fui relator de mais de 550) que tenho dificuldade em destacar um só aspeto. Há certamente alguns acórdãos que me deram particular gosto, por achar que dei um contributo relevante – é por exemplo o caso das decisões de que fui relator e que declararam inconstitucional, por violação do direito à identidade pessoal, o prazo que existia então no direito português (de apenas dois anos a contar da maioridade) para se intentar ação de investigação de paternidade. Hoje este regime mudou, sobretudo por causa dessas decisões. RDCC – Quais diferenças seriam mais marcantes entre o Tribunal Constitucional português e o Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF)? RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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O Tribunal Constitucional Português é um órgão com papel importante na realidade jurídica e também política portuguesa, mas tornou-se, talvez no plano político, mais central depois do programa de assistência financeira de 2011. Assim o entendo porque houve aí várias medidas e porque declarou inconstitucionais várias medidas contidas no orçamento de estado, que se colocaram no centro da autoridade política. Há uma diferença importante: o Tribunal Constitucional português apenas controla a construção de normas, não tem recurso de amparo ou ações diretas de inconstitucionalidade, nem possui a figura das “queixas constitucionais”, muito menos decide conflitos de competência. O Tribunal Constitucional apenas julga normas em fiscalização abstrata no caso concreto ou em um recurso que venha do caso concreto. Essa é uma diferença importante. Em segundo lugar eu diria que o STF brasileiro é um órgão que está mais no centro da atualidade porque chegam até ele muitos casos de grande relevância política, seja sob a forma de recursos, de ações diretas de inconstitucionalidade, em comparação com o Tribunal Constitucional português. Por outro lado, outra diferença importante está em que as deliberações do STF são filmadas e transmitidas em sessões públicas. Em Portugal, são públicos apenas o processo e o anúncio da decisão. Mas a deliberação, a discussão entre os juízes não é pública, não tem filmagem por câmera televisiva da sala de sessões. Isso tem vantagens e desvantagens. O STF, portanto, é um órgão sem dúvida muito importante, respeitável e que tem um papel relevante a desempenhar na ordem jurídica brasileira, que eu respeito bastante. Mas é um órgão com mais competências e mais no centro da atualidade do que o Tribunal Constitucional português, o qual é um órgão um pouco mais recuado, o que não quer dizer que não tenha tomado algumas decisões de relevância em termos políticos. Isso tem a ver com as diferenças de competências e com as diferenças de procedimento. RDCC – Em muitos países, de diferentes origens culturais ou tradições jurídicas, assiste-se ao crescente protagonismo do Poder Judiciário, especialmente das cortes constitucionais, na vida pública. Uma das consequências mais sensíveis desse processo é a chamada judicialização da política. Qual sua visão desse processo no cenário europeu? Paulo Mota Pinto – Dependendo dos países e dos casos isso tem realmente acontecido. Em Portugal, nós temos inquéritos e precedentes até criminais bastante notórios em relação a personagens políticas. Eu penso que “judicialização da política” talvez não seja a melhor expressão para tratar do que tem acontecido. Dito de outro modo, os tribunais têm realmente um papel a desempenhar e o têm desempenhado. Eu sou um observador e do que eu vejo é que os órgãos jurisdicionais estão RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA funcionando e atuam sem pré-juízos políticos. Isso é, a meu ver, bastante positivo. É uma grande vantagem para o Brasil mostrar que as instituições estão a funcionar, mesmo com os problemas que nós conhecemos. Na Europa, penso que isso também aconteceu. Um pouco na Itália, um pouco em Espanha, enfim. Não é uma evolução negativa, penso eu, mas o que é importante é que os tribunais saibam sempre fundamentar juridicamente suas decisões, com a maior transparência. É necessário que os juízes não resvalem para uma certa discricionariedade ou assumam posições dúbias, muito menos tangenciem para a arena do combate político, o que seria negativo e acarretaria perda de legitimidade. Os magistrados devem ter sempre a consciência do risco de sua deslegitimação. Enquanto se mantiverem na linha atual, que me parece uma linha de estrita fundamentação jurídica e de aplicação da lei igualmente para todos, eu penso que há um desenvolvimento positivo que corresponde a processos semelhantes ou paralelos, parecidos que aconteceram na Europa. RDCC – Um juiz pode ser ativista? Paulo Mota Pinto – Eu penso que um juiz não deve ser ativista. Não deve participar de iniciativas partidárias públicas ou com fins ativistas. Não sei se podem ou se é lícito no Brasil, mas em Portugal os juízes não podem participar de iniciativas partidárias. Saber o que é uma iniciativa política, uma ação ativista, uma manifestação ou o que é uma iniciativa partidária pode ser difícil. Definitivamente, os juízes não podem ter atuação partidária, a que título for. Muitas vezes, pode ser difícil distinguir política partidária de uma conduta típica do ativismo político. E mesmo que os juízes pudessem, eu penso que não deveriam ser ativistas, especialmente quando se tratar de ativismo em áreas nas quais as pessoas podem vir a ser chamadas a julgar. RDCC – E isso inclui fazer comentários em redes sociais? Paulo Mota Pinto – Eu penso que sim. Houve casos desses em Portugal, em redes sociais inclusive fechadas, com centenas de juízes. Por mais fechadas que sejam, coisas acabam a ser publicadas para fora e eu penso que isso não é bom e que desdobra em primeira linha logo para os juízes em causa e não é bom evidentemente para a justiça em geral. Portanto a minha tendência é para achar que elas não devem fazer isso. Não quer dizer que eu não posso praticar a minha liberdade de expressão, mas eu penso que deontologicamente o juiz não deve fazer isso, sobretudo se forem comentários em áreas nas quais eles podem vir a ser chamados para julgar. Quer dizer os juízes administrativos, os juízes de família, que não têm nem nunca virá a ter uma intervenção naquela matéria pública, talvez aí não seja tão importante, mas se não for assim penso que não devem fazer esses comentários. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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RDCC – A Reforma do Código Civil alemão, nas áreas de Direito das Obrigações e da prescrição, além das pequenas alterações que o BGB vem sofrendo desde 2001, são questões que têm incomodado grande parte dos civilistas da Alemanha. Teme-se que haja uma perda da centralidade do Direito Privado nacional em face de diretivas europeias, muitas delas consideradas mal escritas ou traduzidas de modo polêmico. Qual sua visão desse fenômeno que está a alterar o cenário jurídico europeu? O senhor acredita em um “código civil europeu”? Paulo Mota Pinto – Não penso que o direito europeu possa provocar a curto ou médio prazo uma perda da centralidade dos direitos privados nacionais dos estados-membros da União Europeia. O direito é também um produto cultural, e não sou favorável a uma uniformização jurídica na Europa. Nessa medida, os receios a que se alude são exagerados. As reações a tentativas de criação de regimes uniformes, ou a propostas da Comissão Europeia como a de um Regulamento sobre um direito comum da compra e venda, mostram isso mesmo. É claro, porém, que o direito europeu obriga a um confronto dos direitos nacionais com as liberdades fundamentais e os princípios da União, que é, e tem de ser, realizado a nível europeu, e não só pelos tribunais e juristas de cada estado-membro, bem como a um confronto com as soluções jurídicas noutros estados-membros. Para culturas jurídicas mais habituadas a uma certa autarquia, que rejeitam influências externas, isso pode ser difícil. Não é, felizmente, o caso português, em que sempre se deu muita relevância à comparação com outras ordens jurídicas. Quanto a um “código civil europeu”, há projetos que procuram encontrar um núcleo comum do Direito Privado europeu ou tentam estabelecer um quadro comum de referência com um conjunto de regras, o famoso projeto Draft Common Frame of Reference do Direito Privado europeu. Houve até recentemente, menos que um código civil, mas um projeto do regulamento europeu da compra e venda. No entanto, mesmo esse projeto não foi aprovado. Há algumas reticências sérias nos estados-membros quanto à hipótese de se substituir, ainda que parcialmente, os códigos civis nacionais. Isso também corresponde um pouco à ideia de que o Direito e o Direito Privado também são um produto cultural e a União Europeia não se deve fazer assimilando ou prejudicando a autonomia cultural, ao exemplo das línguas, das tradições e das instituições. Se isso ocorrer, só poderá se dar na medida em que isso for necessário para a livre circulação, para o mercado único, em nome da harmonização jurídica, mas sem substituição das especificidades nacionais. Respondo, portanto, à última parte da pergunta: penso que não é para hoje nem para amanhã, talvez para depois de amanhã ou um dia futuro termos um Código Civil europeu. Penso que a vocação de nosso tempo não é ainda do Código Civil europeu. Nosso tempo é o da harmonização de regras jurídicas na União Europeia, sobretudo na área econômica e do mercado. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA RDCC – Trazendo-se essa questão para a realidade sul-americana, o senhor acredita que é possível ou é conveniente avançar em um processo de harmonização ou de unificação normativa no Direito Privado para o Mercado Comum do Sul – Mercosul? Paulo Mota Pinto – Talvez, para harmonizar regras que tem a ver com a liberdade de circulação de bens e mercadorias, de serviços, de pessoas, por meio de diretivas ou regulamentos comuns e regras que visam evitar medidas que tenham efeito equivalente às restrições das importações. No domínio econômico, acredito que possam existir regras capazes de dificultar essa livre circulação. Desse modo, é conveniente identificá-las e harmonizá-las. No entanto, desaconselho o caminho em direção a um código comum, cujas dificuldades já mencionei na pergunta anterior. É claro que a União Europeia é constituída por um maior número de países e que estes são menos homogêneos do que os integrantes do Mercosul. Há mais diferenças culturais, institucionais ou de tradição entre um país do Sul, como Itália ou Portugal, e um país do Norte, como Suécia ou Holanda, do que entre o Brasil e o Chile ou a Argentina. Apesar disso, apesar de haver maior proximidade cultural na América do Sul, eu penso que não há condição para avançar para um código comum. Eu consideraria ser muito mais interessante seguir rumo a uma harmonização, como a União Europeia tem feito. RDCC – Volte-se ao Código Civil alemão. Outro aspecto importante da Lei de Modernização das Relações Obrigacionais no BGB está na substituição de eixos como a impossibilidade e a perturbação das prestações por conceitos como a violação do dever e a ampliação do conceito de inadimplemento. Esses câmbios normativos têm sido objeto de críticas por parte da academia alemã. Como o senhor analisa essas mudanças? Paulo Mota Pinto – A insuficiência da noção de impossibilidade para um regime completo do não cumprimento e da responsabilidade contratual é desde há muito reconhecida. Essa noção será relevante, quando muito, para o problema da extinção da obrigação em caso de não cumprimento. Considero positiva a alteração da noção central na responsabilidade contratual para a “violação de dever” (no BGB, Pflichtverletzung), o que, aliás, corresponde em certa medida já à forma como o direito vigente era entendido e aplicado, embora por criação jurisprudencial e construção doutrinal. Tendo, por isso, a não acompanhar as críticas ao novo regime, que também me parecem frequentemente eivadas de certo saudosismo pelo texto do BGB que vigorou mais de cem anos, ou até por certo conservadorismo excessivo. As críticas não são, aliás, generalizadas, mas apenas de uma parte da doutrina alemã, existindo grandes juristas (desde logo, o Prof. Claus-Wilhelm Canaris, de quem fui aluno em Munique) que têm sempre defendido e explicado a reforma, e com bons argumentos. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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RDCC – Sua tese Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo enfrenta um tema pouco explorado na literatura jurídica brasileira, sobre a medida do dano pré-contratual e contratual, que geralmente se utiliza das contribuições de Rudolf von Jhering, do século XIX. As circunstâncias do papel pouco relevante da responsabilidade extracontratual em face da responsabilidade contratual na Alemanha, infelizmente, não são levadas em conta quando se procede a um legal transplant de certos institutos e figuras jurídicas alemãs para um direito no qual a responsabilidade delitual é tão ampla. Como sua obra pode ser útil para o estudo do interesse contratual na realidade brasileira? Paulo Mota Pinto – O tema da medida do dano patrimonial na responsabilidade contratual e pré-contratual é relevante em qualquer ordem jurídica que conheça estas espécies de responsabilidade, como acontece na maioria delas, e também no Brasil. Esse tema é, aliás, tanto mais relevante quanto mais a determinação da medida do dano a indenizar seja efetuada pelos tribunais de forma rigorosa e séria, e não apenas “a olho”, ou com apoio apenas em juízos de equidade (como acontece em regra para o dano moral). Nesse sentido, quanto mais evoluída tecnicamente e rigorosa for a aplicação do direito, mais relevância ganha o tema. Ainda recentemente, tive conhecimento de uma tese de doutorado apresentada e defendida no Brasil justamente sobre esse tema. A relevância da distinção entre interesse contratual negativo e interesse contratual positivo não é, aliás, exclusivamente de origem germânica. No direito norte-americano, considera-se normalmente que o “artigo de direito dos contratos mais famoso que alguma vez foi escrito” (o “most famous contract law article ever written”) é The Reliance Interest in Contract Damages, de Lon Fuller e William Perdue, que já na década de 1930 do século XX tratou justamente da relevância do interesse negativo ou interesse na confiança (reliance interest) na indenização contratual. Trato também deste tema com algum detalhe no meu livro. RDCC – No Brasil, inicia-se um movimento de crítica aos excessos no recurso aos princípios, às cláusulas gerais e a pautas axiológicas. Trata-se de uma curiosa recepção tardia de semelhante debate ocorrido na Alemanha nos anos 1930, a exemplo do célebre opúsculo de Justus W. Hedemann, intitulado Die Flucht in die Generalklauseln: Eine Gefahr für Recht und Staat, de 1933. Conhecendo a realidade brasileira e inspirado na experiência portuguesa, como o senhor considera seria conveniente o problema ser examinado no Brasil? Paulo Mota Pinto – Em um sistema de direito legislado, as cláusulas gerais são indispensáveis. Elas constituem muitas vezes os espaços de flexibilidade e as “válvulas de escape” que permitem ao julgador adequar a solução ao caso concreto e fazer valer por via delas as valorações mais relevantes (incluindo os valores e princípios constitucionais, mas não só). No entanto, é preciso ter sempre presente RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA que uma cláusula geral (“ordem pública”, “boa-fé”, “função social” etc.) não pode ser entendida como uma autorização para o juízo discricionário ou para o livre-arbítrio do juiz. Este deve, pelo contrário, procurar sempre, na sua concretização no caso, pontos de apoio e referências objetivas, tais como casos precedentes, o entendimento do sentido da cláusula pela comunidade jurídica e na doutrina, a situação dos interesses em presença e o seu melhor equilíbrio, as consequências sociais e econômicas gerais daquele tipo de solução etc. Só assim estará minimamente assegurado o cumprimento do dever do julgador de obediência à lei, que como se sabe é, num regime democrático, desde logo uma exigência da democracia, e também uma condição de segurança e de certeza jurídicas. Neste sentido, mais do que o combate às cláusulas gerais ou a sua eliminação, deve defender-se a segurança e objetividade na sua concretização, o que suscita também um problema de metodologia jurídica. Finalmente, penso que há confusão entre a defesa da noção de dignidade da pessoa humana e o uso desta como um cheque em branco para o julgador avançar segundo o que é o seu próprio entendimento subjetivo da dignidade da pessoa humana. Essa confusão é indesejável e não se pode esperar que seja este o papel desse importante valor para a ordem jurídica. RDCC – Discute-se no Brasil a criação de um Estatuto da Família e das Sucessões, retirando essas matérias do Código Civil. Qual sua opinião a respeito? Paulo Mota Pinto – Sobre a localização formal do regime da família e das sucessões não tenho uma opinião definitiva. Tendo fortemente, porém, a privilegiar sua localização no Código Civil, que não impede certamente que se consagrem as soluções mais adequadas aos tempos atuais. Julgo até que, ao contrário do que se possa pensar, essa localização confere mais, e não menos, dignidade a essas áreas, centrais para a disciplina da vida do homem comum em sociedade – isto é, para a matéria do direito civil. RDCC – O senhor acredita que é útil a separação de matérias de Direito Privado em códigos distintos, como o Código Civil, o Comercial e o de Proteção ao Consumidor? No Brasil, tramita no Congresso Nacional um projeto de novo Código Comercial, o que iria de encontro à opção do codificador civil de 2002. Paulo Mota Pinto – A minha tendência é para entender que os três ramos de Direito Privado (Direito Civil, Direito Comercial e Direito do Consumidor) devem ter, cada um deles, a sua lei, o seu código. No Direito brasileiro, no entanto, havendo um Código de Defesa do Consumidor, eu não vejo o porquê de se ter um Código Comercial, depois de ter integrado parte deste no Código Civil. Como dito na pergunta, fez-se no Brasil um caminho próprio: unificaram-se no Código Civil as matérias civis e comerciais. Talvez não valha a pena fazer outro caminho e elaborar RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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um outro código para cortar já uma parte do Código Civil e instituir um Código Comercial autônomo. RDCC – A divisão entre Direito Público e Direito Privado ainda é útil no Direito contemporâneo? Paulo Mota Pinto – Creio que sim. Discordo das posições que defendem a “diluição” da distinção, e que resultam a meu ver de uma incompreensão do seu sentido mais profundo. Este corresponde a dois domínios da vida – o do contato com o poder público e o exercício deste, por um lado, e o da vida em relação na sociedade civil e na economia privada, por outro – que continuam a existir. E ainda bem! Rejeito tanto a privatização do exercício do ius imperium como a “colonização” das escolhas e dos atos dos privados por uma racionalidade pública imperativa (com eliminação da liberdade emocional, a imposição a todos de padrões de proporcionalidade etc. – isto é, com eliminação da liberdade dos privados). RDCC – O que dizer da autonomia epistemológica do Direito Civil e do risco da “colonização” desse ramo jurídico pelo Direito Constitucional? Paulo Mota Pinto – Não deve confundir-se o que resulta das exigências do princípio da constitucionalidade (conformidade de todos os atos do Estado, executivos, legislativos ou judiciais, às regras e princípios constitucionais) com a negação de autonomia ao direito civil e ao direito privado em geral. Esta última posição seria profundamente errada e nociva e, até, de inviável concretização. Defendo também que continuam a existir princípios jurídicos fundamentais que são específicos do direito privado (por exemplo, a autonomia privada, o reconhecimento e proteção da propriedade privada etc.), e que, neste sentido, ele mantém sua autonomia valorativa, desde que não desconforme com os princípios e regras constitucionais. O que muitas vezes alguns jusprivatistas afirmam é que a técnica dos direitos fundamentais não pode ser usada para substituir e ignorar as especificidades do Direito Privado, quer em suas construções, em suas soluções, em suas regras e até em seus valores. Nesse sentido, penso que o Direito Privado tem autonomia, possui um espaço próprio de elaboração em relação ao Direito Constitucional, em relação aos direitos fundamentais, sempre com respeito à Constituição. RDCC – Qual sua opinião sobre o conceito de Direito Privado Constitucional? Paulo Mota Pinto – A Constituição não é fonte de Direito Privado imediatamente, embora o Direito Privado deva sempre respeitar as regras e os princípios constitucionais. A principal fonte de Direito Privado é o Código Civil e as leis de Direito Privado. Embora, como disse, essas normas devam obedecer ao disposto na Constituição, é necessário fazer uma distinção essencial. A afirmação de que há um Direito Privado Constitucional significa, das duas uma: que o Direito Civil está RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA vinculado pela Constituição e pelos direitos fundamentais, ou que haveria uma substituição do Direito Privado, do Direito Civil, pelo recurso direto aos princípios e às regras constitucionais, aos direitos fundamentais. Eu penso que, no primeiro caso, tem-se uma redundância. E, no segundo caso, isso seria indesejável, um erro, algo até mesmo inviável. RDCC – Como o Código Civil português de 1966 e o Código Civil brasileiro de 2002 relacionam-se na experiência jurídica comparada e à nova ordem constitucional nos dois países? Paulo Mota Pinto – O Código Civil brasileiro de 2002 é um código jovem, que procurou incorporar alguns dos resultados da evolução, digamos, na segunda metade do século XX. São exemplos disso uma grande quantidade de cláusulas gerais, isto é de conceitos indeterminados que têm o conteúdo valorativo, tais como boa-fé, ordem pública, função social. Essa é uma evolução que já se encontrava no Código Civil português de 1966. Isso é um aspecto positivo, que significa confiar ao julgador o papel de concretizar essas válvulas de escape, essas portas de entrada de valorações constitucionais e até de valorações correspondentes aos direitos fundamentais. Nesse sentido, os códigos de 2002 e 1966 têm algo em comum. Por outro lado, ambos os códigos têm uma sistematização que é bastante parecida, embora o código português não possua o livro de Direito da Empresa, como possui o código brasileiro. O código de 1966 não fez incluir, portanto, o Direito Comercial. O código português também influenciou de certa forma alguns aspectos do código brasileiro, como outros códigos, como o código italiano. Então eu penso que o Código Civil de 2002 é o produto da doutrina brasileira da sua metade do século XX e que, enfim, é comparável com outras experiências jurídico-normativas do período. Na relação com a nova ordem constitucional está mais uma questão comum: ambos os códigos são anteriores às constituições democráticas, que surgiram com grandes catálogos de direitos fundamentais, e, por essa razão, tiveram, portanto, de sofrer adaptações à nova realidade constitucional do Brasil e de Portugal. Quer dizer, o código de 2002 não é mais o que foi o projeto dos anos 1970. O código português de 1966 teve de sofrer uma grande adaptação para se ajustar à ordem constitucional de 1976. Mas eu penso que a promulgação do novo Código Civil brasileiro e a reforma no Código Civil português, de forma nenhuma, diminuíram a autonomia do espaço civilístico, do espaço do Direito Privado em relação à Constituição, em relação aos direitos fundamentais. O Direito Civil deve obedecer aos direitos fundamentais, mas não pode ser substituído por eles. RDCC – Em sua conferência na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a convite do Departamento de Direito Civil e da Rede de Direito Contemporâneo, o senhor ofereceu uma série de exemplos sobre questões atuais em torno do RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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exercício ou da restrição a direitos fundamentais na esfera da autonomia privada e da autodeterminação das pessoas. Um deles é bastante relevante: um locador pode recusar-se a celebrar um contrato de locação por causa da crença ou da religião praticada pelo locatário? Assim também poderia um empregador deixar de contratar um empregado por este professar determinada fé? Paulo Mota Pinto – A regra é que não. Admito, porém, algumas exceções ligadas à esfera privada dos contratantes. Nos exemplos da pergunta: seria admissível a recusa quando o locador queira alugar um quarto em sua própria casa. Admissível também seria o empregador rejeitar um empregado para uma função específica, como a de baby sitter, na qual a atividade é restrita para se trabalhar aos fins de semana. Nessa hipótese, o empregador poderia rejeitar uma pessoa de religião que a impeça de trabalhar aos sábados ou aos domingos. No segundo exemplo, há uma razão substancial: seria impossível que o candidato à vaga (trabalhador de fim de semana) pudesse executar suas funções. No primeiro exemplo, contudo, tem-se uma limitação ditada pelos limites da esfera privada da pessoa. Mas, salvo nesses casos específicos, não se poderia rejeitar locatários ou empregados. Essa proibição alcançaria incluir tais restrições nos classificados ou anúncios de empregos ou de locação. Muito menos seria lícita a invocação de tais questões para se negar à firmatura de contratos de locação ou de trabalho. RDCC – O senhor utiliza a expressão “elementos suspeitos” para fazer essas distinções. Poderia explicá-la? Paulo Mota Pinto – Os “elementos suspeitos” são compreensivos de origem étnica, língua, aparência, raça, orientação sexual, religião, independentemente de sua utilização em sua expressão pública ou como fundamento para a recusa a contratar. Os elementos suspeitos, quando tomados de per si, não bastam ao exercício de restrições a contratar com outras pessoas em razão desses elementos. Só são aceitáveis quando houver uma razão substancial. Neste caso, eu já dei por exemplo a contratação de uma pessoa para trabalhar aos fins de semana, quando sua religião o impede de exercer tal ofício no sábado ou no domingo. Ou o exemplo da contratação de um ator para determinado papel que tem de ser desempenhado por uma pessoa com certa aparência étnica. O critério está, portanto, em saber se há ou não um motivo substancial para a recusa e que este seja aplicado proporcionalmente. A proporcionalidade entraria, por exemplo, no mesmo caso da pessoa que não pode trabalhar no sábado ou no domingo: se o emprego é para mais dias na semana, a circunstância de um deles recair no sábado ou no domingo não torna proporcional a recusa à contratação. Poder-se-ia acomodar a religião com o trabalho nos demais dias. Deve-se ressaltar que essa regra vale tanto para empregadores e locadores quanto para empregados e locatários. Ela protege aqueles tanto quanto estes últimos contra o uso de “elementos suspeitos” para se recusar à contratação. Embora sejam RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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DIÁLOGOS COM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA muito mais raros os casos em que locadores e empregadores terminem por ser prejudicados quando a recusa parte de locatários ou empregados. A razão substancial facilita a análise da proporcionalidade. Não há, na maior parte dos casos, a razão substancial quando o problema se resolver apenas na esfera privada. Retomo o exemplo anterior: uma pessoa quer alugar um cômodo de sua própria casa. Se o locador é de determinada religião e isso for relevante para suas convicções, ele tem o direito de não querer permitir em sua própria casa uma pessoa de outra religião, que possa ter outra prática religiosa. Essa é uma questão de esfera privada, que se não confunde com o exemplo do empregado e do empregador. RDCC – Haveria distinção se a locação ocorresse em uma hospedaria ou em um hotel? Paulo Mota Pinto – Sim. Há um caso conhecido na Inglaterra. Trata-se da recusa de hospedagem de um casal do mesmo sexo por hoteleiros cristãos, de fortes crenças religiosas. Os donos da hospedaria negavam-se a alugar quartos ou a celebrar contratos de hospedagem com pessoas que não fossem casadas. A questão foi judicializada e entendeu-se que a recusa era ilícita, porque baseada na discriminação em função da orientação sexual. Não havia uma decisão fundada na esfera privada, por que era um estabelecimento aberto ao público. Esfera privada aí deve ser entendida estritamente. RDCC – A discriminação das contratações pode abranger o gênero dos contratantes? O exemplo clássico é o que atribui valores maiores ou menores aos prêmios nos contratos de seguro de automóveis se o condutor for homem ou mulher. Paulo Mota Pinto – Há uma diretiva europeia que proíbe a diferenciação de prêmios de seguro em função do gênero. Os estados-membros da União Europeia têm de assegurar que os critérios que são aplicados aos contratos de seguro conduzem ao que se costuma designar como prêmios unissexo, prêmios uniformes para os dois gêneros. Tal isonomia deve prevalecer mesmo que estatisticamente exista um risco maior em um dos gêneros que no outro. Entende-se que é preciso fomentar a igualdade de gênero e uma das vias é realmente proibir a diferenciação de prêmios e de prestações de seguro com base no critério de sexo. Note-se que essa regra não vale para idade. Mas há certas propensões a doenças que podem ser utilizadas na celebração do contrato de seguro. Há discussão sobre se é lícita a utilização de tais critérios nos contratos de seguro. Quanto à idade, ela continua a ser admitida como critério de discriminação, porque a idade é um fator importante e o histórico de acidentes, o histórico anteRODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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rior médico, tudo isso pode ser considerado e é considerado evidentemente. Tal se dá porque são fatores diretamente ligados ao perfil de risco da pessoa. RDCC – Atualmente, discute-se muito sobre a crise do ensino jurídico. No Brasil, esse debate passa pela revisão de métodos de ensino, pela crítica à aula magistral e pelo fim das divisões de matérias publicísticas e privatísticas. Observando-se a experiência europeia, que é particularmente bem-sucedida, todas esses pontos criticáveis são a regra na prática pedagógica dos grandes centros de cultura jurídica, o que é, no mínimo, curioso. Qual sua leitura a respeito dessa polêmica? Paulo Mota Pinto – Defendo a continuação da existência de preleções ou aulas magistrais, mas entendo que elas devem ser complementadas por uma oferta pelo menos equivalente de aulas de tipo prático (em que se discuta o direito aplicado, e se resolvam casos práticos) e de seminários (para permitir o diálogo científico e aprofundamento também aos estudantes). Discordo do fim da divisão pedagógica entre matérias privatísticas e publicísticas, como resulta, aliás, da minha posição sobre a distinção entre direito público e direito privado. Mas é claro que tem de existir diálogo e coordenação entre essas duas áreas. Não podem ser vistos e ensinados como sendo dois mundos separados. RDCC – O senhor considera que é relevante o ensino do Direito Romano nas escolas jurídicas em pleno século XXI? Teria essa disciplina perdido sua importância em um mundo dito pós-moderno? Paulo Mota Pinto – Discordo da ideia de que o ensino do direito romano perdeu relevância e deve ser dispensado dos planos de estudos das faculdades de direito. Qualquer bom privatista sabe seguramente a importância central que o direito romano teve para a formação do direito privado e que tem para a formação do jurista. Entendo, porém, que esse ensino não deve ser feito em perspectiva apenas histórica, nem devemos ficar agarrados a soluções apenas porque elas são as romanísticas. Pelo contrário, penso que conhecer o direito romano é fundamental, mas este deve ser estudado e ensinado numa perspectiva atualista, tendo em conta a sua explicação do direito atualmente vigente. Também entendo que argumentos como os dos efeitos das soluções ou da determinação e prossecução de uma certa teleologia são bem mais relevantes do que o argumento histórico, que terá sobretudo interesse cultural e explicativo (sem excluir ainda, por vezes, uma certa presunção de adequação da solução que historicamente vigorou aos interesses e valores que então a determinavam).

RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; RODAS, Sérgio. Entrevista com Paulo Mota Pinto. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 367-380. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016.

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