Entrevista concedida ao Instituto Socioambiental (ISA), em 2006

July 13, 2017 | Autor: Mércio Gomes | Categoria: Funai, ÍNDIOS
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Perguntas Para entrevista com Mércio Gomes, presidente da Funai – ISA em 4 de agosto de 2006 – para publicar no livro Povos Indígenas no Brasil 2001 - 2005 Bloco 1 – Estrutura da Funai Excluindo o período da ditadura militar, vc é o presidente da Funai que mais permaneceu no cargo (set de 2003 até o momento). Qual foi sua estratégia para se manter? Como vc encontrou a FUNAI quando assumiu? Qual a avaliação q vc faz da FUNAI hoje? Respostas: Em primeiro lugar, ser presidente da Funai já é uma glória. Sê-lo por tanto tempo tem sido um feito de que muito me orgulho. Quero dizer que pretendo ficar na Funai até o fim deste mandato do governo Lula, salvo alguma circunstância especial, e passar o cargo com toda a dignidade para a próxima pessoa que o Presidente da República escolher. Pode ser um índio ou um não índio, ele é que decidirá. O fato é que tantas outras figuras ilustres que por aqui passaram terminaram saindo amarguradas por não vencer as vicissitudes inerentes ao cargo e as dificuldades inesperadas que sempre aparecem. Uma a cada dia. Até pensei em fazer um seminário com os ex-presidentes da Funai para discutirmos nossas gestões, avaliarmos as grandes questões que enfrentamos e os erros e acertos que cometemos. Talvez consiga fazer isto até o fim do ano, ou em algum tempo no futuro, se é que todos eles topariam. Eu topo. Sob diversos aspectos, foi muita sorte minha ter vencido os primeiros obstáculos à minha gestão. Havia resistência de algumas pessoas importantes dentro do governo e houve até uma reação bastante negativa por parte de segmentos do movimento indígena e de ongs brasileiras e internacionais. Eles queriam porque queriam que o Presidente Lula nomeasse naquele momento um índio presidente da Funai, em meio ao caos que atingia a Funai e o movimento indigenista, após a desastrosa passagem do presidente anterior. Me lembro de ter conversado com alguns amigos, inclusive o Beto Ricardo, do ISA, sobre isso até antes de tomar posse. Muitos antropólogos e indigenistas me deram muita força, sempre com a cautela exigida e com um certo temor de que talvez a coisa não desse certo. Alguns, é claro, apostaram contra. O Ministro da Justiça, Dr. Márcio Thomaz Bastos, que não me conhecia anteriormente, me fez o convite com não mais do que 30 minutos de conversa séria e profunda sobre o que eu achava da questão indígena brasileira e da conjuntura de então. Daí por diante sempre me apoiou em todas as batalhas de ordem política que travei. Ele e toda sua equipe. O Presidente Lula, que também não me conhecia, demonstrou desde o início -- que coincidiu com a estratégia que o Ministro Márcio montou para a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol -- muita confiança no meu trabalho, na minha dedicação à causa indígena e na minha lealdade a ele e ao seu governo. Por outro lado, era preciso ganhar a confiança dos índios e dos funcionários da Funai. Aí é que entraram meu conhecimento de antropólogo, minha experiência em indigenismo, meu conhecimento participativo do movimento indigenista e das ongs e minha expectativa do movimento indígena, meus mais de 30 meses de campo direto com diversos povos indígenas do Brasil, minha visão da importância da Funai para os povos indígenas. Minha visão estratégica já estava delineada nos

dois livros que escrevi sobre índios e etnologia brasileira, Os Índios e o Brasil e O Índio na História, ambos publicados pela Vozes. Ao longo desses três anos minha visão da questão indígena brasileira se ampliou consideravelmente, já que, da cadeira de presidente da Funai, a situação indígena brasileira aparece com dimensões muito mais intensas e realísticas. Em uma única palavra, o que me segura como presidente da Funai é ter lealdade ao índio e à causa indígena. Por sua vez, uma visão estratégica só funciona se corresponde a uma realidade apreendida e a um objetivo a ser atingido. A realidade é esta que estava em setembro de 2003, incluindo a negatividade sensacionalista da imprensa e a agressividade dos políticos contrários aos índios, que foi se modificando aos poucos pelo peso dos acontecimentos e da nossa atuação. Ao final, meu objetivo principal, que acho que corresponde á visão global de todos os povos indígenas no mundo moderno, é a redenção dos povos indígenas diante da história. No caso brasileiro, isto significa a recomposição dos territórios indígenas, o crescimento demográfico, a ampliação do seu conhecimento do mundo moderno, sua autonomia econômica, a participação efetiva na vida político-cultural brasileira, enfim, a sua auto-determinação. Noto com alegria que esse pensamento é partilhado por quase todos os povos indígenas do mundo, especialmente por suas lideranças. Estive com muitos deles em reuniões pelo mundo afora, especialmente em Genebra, onde desde 1994 se tentava encontrar um consenso entre nações-estados e os povos indígenas sobre a idéia de se ter uma Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas. Nesses anos estive seis vezes em Genebra e algumas em Nova Iorque, Washington, México e Guatemala batalhando por essa Declaração e pela sua similar a ser feita exclusivamente para os povos indígenas das Américas. Ao final, em fins de maio deste ano, o recém-criado Conselho de Direitos Humanos, órgão da ONU sediado em Genebra, com voto do Brasil, que liderava o grupo latino-americano, aprovou o rascunho desta Declaração, o qual será enviado à Assembléia Geral da ONU agora em outubro para votação final. Este talvez seja o maior feito desses últimos anos para os povos indígenas do mundo inteiro e será a base dessa redenção a que aludo. Assim entendem todos os que trabalharam pela elaboração dessa Declaração, e é preciso que isso seja conhecido por todos os índios brasileiros e também pelos que acreditam no papel dos índios na nação brasileira. Ao terminar este mandato creio que deixarei uma Funai mais segura de si, mais consciente do seu papel. Tenho lutado muito para obter um plano de carreira indigenista, todo o governo é a favor, mas há algo incompreensível que esbarra no Ministério do Planejamento. É preciso que em prosseguimento haja um concurso público para aumentar e renovar os quadros do órgão. Como vocês sabem, a Funai é formada por índios e não índios. São pouco mais de 2.000 funcionários, entre os quais pouco mais de 700 indígenas, para um universo de 225 povos indígenas, 460.000 e tantos indivíduos, mais de 600 terras indígenas, enfim, 13,5% do território nacional. Não é pouca coisa a ser cuidada. Acredito que sem a Funai a questão indígena brasileira virará um caos. Ela é quem dá aos índios a segurança da presença do Estado diante de todas as forças que lhes são contrárias. Nenhum ministério, nenhum outro órgão tem tanta importância para os índios quanto a Funai. É preciso que se respeite isso. Tem gente que acha que, dada a amplitude da ação do Estado em relação aos povos indígenas, a Funai virou um órgão caduco. Nem sei como responder a isso, pela ingenuidade da idéia e pela falta de conhecimento histórico. [Até nos Estados Unidos cujos povos indígenas têm grande poder de auto-determinação, continua a existir o Bureau of Indian Affairs,

criado desde 1823. É verdade que muitos povos indígenas americanos prescindem do órgão, porque recebem assistência de outros órgãos federais, estaduais e municipais, além dos recursos de cassinos, mas a grande maioria dos índios de lá não quer acabar com o BIA. Os antropólogos concordam com isso. O Canadá e a Austrália, que abrigam porcentagens significativas de sua população como indígenas, também mantêm órgãos centralizadores da questão indígena. O México, neste governo Fox, extinguiu o INI, órgão equivalente à Funai, para criar uma espécie de secretaria de desenvolvimento dos povos indígenas. A idéia era se livrar dos indigenistas tradicionais do México e acelerar o processo de integração do índio à sociedade mexicana. Está dando com os burros n’água. Nem sei como vai se recuperar no futuro.] Outros países, como Colômbia, Peru, Chile, Venezuela, Paraguai, até a Argentina, têm órgãos indigenistas e gostariam que eles fossem um pouco como a Funai e que seus países tivessem o espírito indigenista que tem o Brasil. A Venezuela convidou a Funai recentemente para explicar como se demarcam as terras indígenas no Brasil, já que eles estavam tendo muitas dificuldades em começar... Só alguns dos nossos insignes antropólogos não reconhecem isso... Entretanto, concordo com aqueles que dizem que a Funai tem que ser melhorada e reestruturada. Como, é que a questáo. As idéias são muitas e o besteirol é grande. Tenho conversado com alguns antropólogos, indigenistas e índios sobre esse assunto e gostaria muito de deixar algumas idéias para serem implementadas no próximo governo. Preliminarmente, pretendo organizar um seminário para avaliar a atuação da Funai junto aos povos indígenas que foram contatados desde que foi criada, isto é, por volta de meados da década de 1960 em diante. Criei recentemente uma coordenação geral de índios recém-contatados para iniciar seus trabalhos com esse objetivo. Vou convidar todos os antropólogos, indigenistas e funcionários da Casa que trabalharam com esses povos indígenas. Junto aos próprios indígenas que participaram do contato e dos primeiros anos de relacionamento, vamos fazer uma avaliação do que aconteceu com esse contato. Precisamos saber como foi o contato, quais os grandes problemas surgidos e enfrentados, o que aconteceu de negativo ou positivo em termos de demografia, saúde, terra, relacionamento com a sociedade nacional, conhecimento do mundo, situação atual. Assim teremos um diagnóstico básico do que foi a Funai e a política indigenista brasileira como um todo em relação a esses povos. Sobre os demais povos indígenas, a avaliação tem que ser feita por um outro prisma, mas creio que não terei tempo para isto. Deixo para o próximo presidente dar impulso a essa avaliação e encontrar novos caminhos. No início da sua gestão houve rumores que diziam que a Funai seria reestruturada. Essa reforma envolvia a substituição da carreira de sertanista pela de ‘negociador indígenista’, a atribuição de poder de polícia aos servidores e a criação de uma corregedoria. Como era esse projeto de reestruturação, o que foi implementado e quais os problemas que impediram que ele fosse executado na íntegra? Rumores houve, mas nem com o Ministro Márcio, nem com ninguém do governo essa idéia de reestruturação foi discutida. “Negociador indigenista” é uma idéia que jamais passou pela minha cabeça e é a primeira vez que a escuto. A idéia de uma corregedoria nunca foi discutida, mas a de uma ouvidoria foi analisada e acho que é importante. Contudo, a coordenação geral de defesa dos direitos indígenas cumpre um papel equivalente e é dirigida por um hábil e seguro representante do povo

Guarani. Ela é que tem feito a defesa de diversas situações antagônicas aos índios, seja como indivíduos, seja como coletividades. Foi ela que coordenou a Conferência Nacional dos Povos Indígenas, realizada na Semana do Índio deste ano, e que foi precedida por nove conferências regionais. A Funai está tentando recuperar o atendimento à saúde indígena. Nos anos anteriores essa experiência não atingiu bons resultados. Por que essa iniciativa? Caso isso ocorra, o que vai ser feito para que os mesmo erros não sejam cometidos ? O que a Funai pensa fazer para efetivamente conter a corrupção e a ineficiência que sempre foram marcas do atendimento à saúde indígena? Até fins da década de 1990 a saúde indígena estava a cargo da Funai. Foi a partir de 1970 que os povos indígenas começaram a reverter a curva demográfica decrescente que havia desde 1500. Já escrevi sobre isto mostrando que não se pode dizer que foi uma ação do Estado brasileiro, da Funai em si, já que esta é uma tendência que aconteceu em quase todas as partes do mundo. Mas o fato é que a Funai contribuiu para diminuir a queda populacional indígena e acelerar o seu crescimento demográfico. A partir da década de 1980 até os povos indígenas recém-contatados passaram a crescer. Tudo isso é extraordinário, algo impensável anteriormente. Até Lévi-Strauss, o grande antropólogo dos últimos cinqüenta anos, pensava que os povos indígenas fossem se extinguir! Portanto, temos que comemorar o crescimento dos povos indígenas. Mas saúde significa uma série de aspectos além de taxa de mortalidade infantil, de morbidade, vacinações, saneamento básico e atendimento de vários níveis. Significa também bem estar físico geral, o que implica dieta adequada, condições ambientais, tranqüilidade social, etc. Nisso o Estado brasileiro está longe de providenciar para os povos indígenas. É uma luta imensa de todos aqueles que entendem de saúde encontrar as melhores condições para atender aos povos indígenas e aos brasileiros em geral. Digo que a Funai tem condições indigenistas de supervisionar melhor a saúde indígena do que a própria Funasa, tomando-se em conta esse conceito mais amplo de saúde. Gostaria de influenciar o governo para mudar o decreto que retirou da Funai a questão da saúde, mas não sei se vou conseguir. A Funasa poderia manter suas bases de atendimento mas deveria estar junto com a Funai e organizar-se estrategicamente junto com a Funai. Este é o sentido das mudanças na saúde que acho importante. Quanto à corrupção, não parece ter existido no tempo da Funai e nem sei bem quais as suas dimensões maiores na atualidade. Muitos acham que o processo de terceirização do atendimento via prefeituras, ongs e associações indígenas provocou muito desperdício de recursos, se não desvios e corrupção. Acho que o TCU está avaliando esse processo, mas não sei como vão modificá-lo em curto prazo. O certo é que a Funasa é mais acessível a influências políticas do que a Funai, que se mantém imune a indicações políticas. Você tem comentado sobre o “re-surgimento da figura do mameluco”, como uma alusão aos índios que acabaram assumindo, no passado, uma posição de “explorador” sobre seu

próprio povo, atribuindo as ONGs uma responsabilidade maior sobre este processo. Como se dá realmente esse processo e por que a FUNAI, com seu imenso número de funcionários índios, muitas vezes despreparados para o cargo que ocupam, é poupada como principal responsável nesta sua tese. O mameluco foi uma figura fundamental na formação do Brasil, muito maior do que nossa historiografia tem reconhecido até agora. Ele vai além do período colonial e passa por grande parte de nossa história. De certo modo, mais do que uma figura histórica, é uma entidade, uma instituição. Como é que um punhado de portugueses submeteu uma população vasta e diversificada ao seu domínio, expulsou outros estrangeiros que com eles rivalizavam e tornou-se hegemônica no poder em pouco mais de 150 anos se não fosse também pelo papel dos intermediários? Não há novidade nisso, todos os povos conquistadores usaram de intermediários para efetivar a conquista de novos territórios e povos. No Brasil o mameluco ajudou os portugueses a conquistar novos territórios e a expandir suas pretensões originais. Para o bem ou para o mal, eis o que somos no presente. Na literatura antropológica o mameluco seria uma espécie de “cultural broker”, em outras palavras, um “negociador indigenista”, tal como foi aludido na pergunta anterior. Seria a última coisa que eu gostaria que aparecesse na Funai. Mas ele existe na realidade do processo social e parece que tem se intensificado nos últimos anos. Por exemplo, no processo de arrendamento de terras indígenas ou na idéia de propriedade privada das terras indígenas. Me lembro que durante a Conferência Rio 92 a mulher do presidente da mesma, a Sra. Maurice Strong, aparentemente depois de intensas conversas com as ongs que participaram do evento, declarou que era uma vergonha o Brasil não dar a propriedade particular das terras para os índios. Ora, nem nos Estados Unidos isso existe. Lá os povos indígenas só têm um direito de posse, que eles chamam de “license of occupancy”, e não querem modificar isto. Porque sabem que, quando houve esse direito de propriedade, mais de um terço das terras indígenas foram vendidas e perdidas para terceiros em trinta, quarenta anos de vigência. Assim, do meu ponto de vista, essas idéias são mamelucas, e todos que as cultivam estão fazendo o papel de mameluco, porque dessas idéias é que se produzem fatos que irão resultar inevitavelmente, tal como no século XIX, na perda de terras e na inconsistência cultural dos povos indígenas.

O Megarom Txucarramãe, administrador da FUNAI de Colider, talvez seja a melhor expressão de uma geração de índios que se tornaram funcionários da FUNAI, ocupando cargos de direção cuja atuação oscila entre a do servidor público e a de representante e/ou intermediário dos interesses do seu povo, muitas vezes conflitantes com os interesses do Estado, ou com a postura normalmente esperada de um funcionário público. Um exemplo dessa situação é o fato dele estar liderando neste momento um bloqueio da Br 163 e solicitando publicamente sua demissão. Com você vê essa situação em relação a sua pessoa e em relação à perspectiva de estruturação de uma ação do Estado a partir de um órgão coordenado pelos índios.

Todos os indígenas que têm cargos na Funai sofrem pela ambigüidade a que estão sujeitos: por um lado, agentes do Estado, por outro, representantes lídimos de seus povos. A pressão sobre eles é muito grande, de um lado e do outro, e é só com muita habilidade política que eles conseguem encontrar as soluções para os problemas imediatos. Agradar aos dois lados não é fácil. Nos casos de projetos econômicos, de interesse do Estado, que, de algum modo, atingem terras indígenas ou interesses indígenas, é que esse dilema surge com grande força. Que fazer? Felizmente o bloqueio da BR-163 já acabou, com o entendimento de todos os presentes de que não foi por omissão da Funai que surgiram as razões para uma ação tão drástica como foi tomada. O interesse de outras organizações ficou patente naquele episódio, inclusive com o envolvimento de índios que não tinham nada a ver com o caso. A questão é que o estado do Mato Grosso precipitou o processo de asfaltamento no trecho que lhe foi consignado pelo governo federal, sem que todas as determinações de compensações estivessem sendo realizadas. A Funai e o ministério público, através do Dr. Mário Lucio Avelar, estiveram presentes na negociação final, junto com o governo do Mato Grosso e o ministério dos transportes. Creio que daqui por diante esse problema vai estar equacionado. Quanto ao pedido por minha demissão, creio que, ao longo desses meses, alguns líderes indígenas assim o desejaram e uns poucos tentaram com mais veemência. Algumas ongs também têm feito essa reivindicação. Até quem é eleito pelo voto popular e faz um bom governo também tem adversários cáusticos e alguns muito dignos, mas continua batalhando pelo que vem fazendo. Que posso fazer para agradar a todos?

Bloco 2 terras, emergentes, tutela etc. O que você pensa sobre as comunidades de “ressurgidos” que reivindicam a identidade indígena e, consequentemente, os direitos territoriais garantidos pela Constituição Federal? A quantidade de povos indígenas no Brasil tem limite? Como saber quem está dentro e quem está fora? Esta é uma questão difícil de ser resolvida. Tudo indica que a raiz do problema está na falta de assistência que muitas comunidades rurais brasileiras sentem. Grande parte delas descende do amalgamento de índios com negros e brancos, tal como descrito por tantos sociólogos e antropólogos brasileiros. Muitos vivem uma cultura sincrética, com elementos diversificados e reelaborados em padrões bastante singulares. Muitos se parecem com culturas indígenas, outros com variações de quilombos. Ressurgir como índios é uma decisão que algumas dessas comunidades querem tomar, com a ajuda de algumas ongs e alguns antropólogos que, de boa fé, acreditam que o processo histórico pode se abrir para isso. Talvez seja possível, na verdade, parece que alguns dos povos indígenas da atualidade advêm desse processo. Do ponto de vista da legislação brasileira, seja a Constituição, seja o Estatuto do Índio, seja a Convenção 169, é preciso que algumas condições sociais e culturais sejam preenchidas para que ressurgidos sejam reconhecidos como índios. Uma delas é serem reconhecidos pelos “outros” como diferentes; outra é serem de algum modo descendentes de culturas

indígenas; e, ao final, terem consciência de que são índios. Em muitos casos, querem começar o processo por este último aspecto. A questão dos ressurgidos está cada vez mais se parecendo com a questão de cotas para minorias. Há controvérsias grandes, e o encaminhamento terminará sendo político. Temos visto no atual mandato presidencial um arrefecimento no ritmo da identificação e demarcação de novas terras, com muitos casos parados há mais de um ano nos gabinetes do Ministério da Justiça sem qualquer encaminhamento e outros tantos que são devolvidos à FUNAI. Estudo recente do INESC aponta que, embora o orçamento para políticas voltadas aos povos indígenas tenha aumentado nos últimos seis anos, o mesmo não ocorreu com os recursos destinados à demarcação de terras indígenas, cujo orçamento anual baixou de R$ 67,1 milhões para R$ 42,5 milhões nesse período. Paralelamente, vc dá uma entrevista à Reuters na qual teria dito que o reconhecimento de direitos territoriais indígenas estaria chegando ao seu limite. É isso mesmo? Estaríamos chegando ao limite do reconhecimento de novas áreas ou a diminuição no ritmo de demarcações é um problema meramente conjuntural? Por que o Ministério da Justiça se transformou num obstáculo ao avanço do processo demarcatório? Não conheço esse estudo do INESC, mas, por esses dados apresentados, acho que não está correto. O orçamento da Funai tem crescido pouco, mas consistentemente nesse governo Lula. Os orçamentos de outros órgãos que paralelamente trabalham com populações indígenas têm crescido mais; na verdade, muitos deles surgiram nesse governo, como a carteira indígena, do MMA, e os recursos do bolsa família e outros benefícios, do MDS. Porém mesmo quando nosso orçamento não é grande, ao final, por meio de créditos suplementares, o investimento chega a mais uns 20 milhões de reais. Certamente a Funai nunca gastou 67 milhões de reais em demarcações em nenhum ano e nem mesmo chega a 42 milhões. Não há pessoal suficiente para gastarmos tanto, mesmo que dediquemos muito de nossa energia ao pagamento das benfeitorias de terceiros. Porém, além de termos um ritmo bastante alto de demarcações e estudos de identificação, temos feito esses estudos com muito mais qualidade do que anteriormente. Em administrações anteriores as argumentações eram tão frágeis que ficava fácil para um advogado de terceiros obter uma liminar em juízo embargando o processo. Assim, temos uma quantidade expressiva de liminares interrompendo os processos de demarcações de diversas terras indígenas, sobretudo no Mato Grosso do Sul. Vocês podem imaginar o quanto gastamos de energia para homologar a Terra Indigena Raposa Serra do Sol. Esta era a principal reivindicação tanto do movimento indígena quanto das ongs indigenistas, inclusive as internacionais. A Igreja Católica se empenhou muitíssimo a favor. Mas poucos a defenderam com a veemência que tivemos, o Ministro da Justiça, Dr. Márcio Thomaz Bastos, e eu, em todos os fóruns por que passamos, dos militares, dos políticos regionais e dos nacionais. Muitos deputados de esquerda se posicionaram contrários a essa homologação. No Estado de Roraima viveu-se um paroxismo de contestações contra mim, pessoalmente, que beirava o insurrecional. Aliás, houve insurreição no começo de 2004, quando o Ministro Márcio anunciou em fins de dezembro que o

Presidente Lula iria homologar dentro de trinta dias. Por sua vez, a lide jurídica foi impressionante e brilhante ainda a solução proposta pelo Ministro, que seguimos com todo afinco, para surpresa de muitos. Algum dia essa história será contada por algum dos participantes mais diretos. Ao final de seu mandato, o Presidente Lula terá homologado [mais de 60] terras indígenas, um pouco mais da média das terras indígenas homologadas no governo anterior. O Ministro Márcio concluirá seu termo de administração com mais de [ ] portarias de demarcação. E da minha parte, pelo menos [ ] terras indígenas teriam sido identificadas e seus relatórios publicados. Na verdade, nenhum presidente da Funai fez mais publicações ou enviou mais propostas de portaria de demarcação e decretos de homologação do que eu. Eu me orgulho muito desse papel de demarcar terras porque acho essencial para os povos indígenas. Na entrevista com a Reuters, que fui eu que convoquei para rebater os dados equivocados produzidos pelo CIMI e veiculados pela Anistia Internacional sobre os supostos assassinatos de líderes indígenas, falei que o Brasil devia se orgulhar do quanto vinha fazendo pelos povos indígenas, inclusive no reconhecimento e demarcação de suas terras. Comparei a nossa situação com a de países como o Canadá, a Austrália, os Estados Unidos, o México e outros, inclusive a Rússia, de onde vinha o repórter que me entrevistava, e chegamos à conclusão que o Brasil estava muito adiante desses países. Ter demarcado cerca de 12,5% do território nacional como terra indígena era um feito e tanto e ainda havia, na minha estimativa das terras indígenas que estão para serem reconhecidas, cerca de 1% a mais para ser demarcado. Disse ainda que havia muita demanda por parte de algumas ongs que trabalham com índios e que havia muitos processos parados no STF sobre a legitimidade de terras indígenas e que o STF precisaria tomar decisões muito sérias sobre esse assunto. Na verdade, o STF é que iria decidir o destino de diversas terras indígenas, como a dos Pataxó Hahahãe, a dos Potiguara de Monte Mor, a dos Guarani de Nanderu Marangatu, entre outras, e essas decisões iriam pesar sobre outros estudos a serem realizados. O STF foi muito importante para definir o destino da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e a ministra Ellen Gracie, em particular, foi fundamental para a volta dos Xavante à Terra Indígena Marãiwatsede. Assim, esse tema pára no STF e é dele que sairão muitas decisões para que a Funai possa ou não prosseguir no encaminhamento de futuras demarcações. Recentemente recebi uma carta da presidente do STF, Ministra Ellen Gracie, dizendo que ela irá priorizar as decisões sobre mais de 100 questões sobre assuntos indigenas que estão pendentes no STF. Gostaria muito que a questão Pataxó fosse colocada em julgamento ainda este ano. Enfim, o problema da entrevista não foi ela em si, mas a repercussão posterior reelaborada maldosamente por jornalistas que buscavam abrir uma celeuma negativa. Em entrevistas posteriores que dei ao Estado de São Paulo, tanto quando estive em Genebra, quanto em Brasília, esclareci todo esse assunto.

O PPTAL está perto do seu fim, mas não conseguiu gastar todos os recursos assegurados. O que será feito do saldo?

O PPTAL foi um programa muito importante para a demarcação de terras na Amazônia nesses últimos dez anos. O fato de estar concluindo sua atuação significa que cumpriu seu objetivo inicial e está se concluindo o processo de demarcação de terras indígenas na Amazônia. As que faltam seriam feitas pela Funai. Agradecemos muito à comunidade européia e especialmente ao governo alemão por essa valiosa contribuição. Já tivemos diversas conversas com seus líderes e com membros graduados do governo alemão sobre a possibilidade dessa ajuda ser diversificada e ampliada para outras atividades. A principal é a gestão territorial, mas há também possibilidades de investimento em defesa territorial, capacitação de índios em diversas atividades econômicas, projetos de silvicultura, etc. Acredito que alemães e comunidade européia estão sensibilizados para a questão indígena no Brasil. Eles consideram o PPTAL como a vitrine de sua atuação no Brasil. Há uma série de propostas legislativas tramitando no Congresso Nacional que objetivam modificar a sistemática de demarcação de terras indígenas e impor limites ao reconhecimento de direitos territoriais. Vc concorda que o capítulo dos direitos indígenas da Constituição de 1988, notadamente no que diz respeito aos direitos territoriais, deveria ser alterado? Se sim, em que sentido? Eu tenho lutado para que nem a Constituição brasileira nem o Estatuto do Índio sejam modificados por esta nem a próxima legislatura. A Conferência Nacional dos Povos Indígenas, realizada em abril deste ano, também não quer tais modificações por enquanto. O que parece estar sendo acordado entre diversas lideranças indígenas são mudanças pontuais, como o primeiro artigo que fala do propósito de integração do índio, a questão da tutela, sem deixar de lado a proteção especial do Estado às populações indígenas, e a classificação de povos indígenas por níveis de relacionamento social. Vc acha q o formato FUNAI é adequado para estabelecer as relações entre os índios e o Estado Nacional hoje no Brasil? Vc advoga q a FUNAI deveria ter o "monopólio" digamos, seja por execução direta, seja por coordenação, das relações dos índios com o Estado Nacional? Como falei anteriormente, tenho pensado em elaborar novos parâmetros para a reestruturação da Funai. Acho que ela deve ser o esteio da política indigenista brasileira pela tradição e respeito que conquistou. Acho que poderia coordenar as ações multifacetadas do Estado brasileiro, acho que deveria treinar, através de uma escola de indigenismo, funcionários e servidores do Estado que venham a trabalhar com povos indígenas e acho que ela deve representar o Brasil em fóruns internacionais que tratem da questão indígena sob o ponto de vista dos estados. Vc não acha q as disparidades entre os povos indígenas no Brasil (perfil demográfico, experiência de contato, localização no território, disponibilidade de terras demarcadas e de recursos naturais, etc) mereceria alternativas de interlocução diferenciadas com o Estado Nacional? Ou seja, entre isolados e emergentes, entre povos de contato recente e demografia reduzida e povos com 300 anos de contato e demografia avantajada, que alternativas o Estado Nacional deveria propor? O Estatuto das Sociedades Indígenas,

parado há mais de dez anos na Câmara dos Deputados, poderia ser uma alternativa? Por que não há interesse do Executivo em aprova-lo? Acho que as diferenças entre povos indígenas e suas situações de contato e relacionamento com a sociedade brasileira merecem distinções na forma do Estado se relacionar com eles. Na verdade, essas distinções existem em vários momentos de execução de ações indigenistas, e em outros todos são tratados como equivalentes. Não sei se a dosagem empírica é boa, acho que poderia ser melhorada e muito, e aí é que se encontram muitas situações de desentendimento. O problema é que, com outros órgãos que tratam de aspectos da questão indígena, a situação é mais desequilibrada. Eis onde a experiência indigenista da Funai ajuda. Não sei todas as nuances sobre porque o projeto de mudança do Estatuto do Índio está parado. Sei que nenhuma das três propostas é boa, isto é, melhoraria o Estatuto atual. Pelo contrário. Também tentar mudar o Estatuto com os grandes problemas que ainda correm pelo país e com um Congresso cheio de má vontade para com os povos indígena é uma grande temeridade. Creio que muitas ongs se deram conta disso nos últimos tempos e pararam de insistir com essa vontade de mudar o Estatuto. Em um contexto no qual cada vez mais os povos indígenas reivindicam autodeterminação, vc acha que a tutela ainda é um conceito legítimo? Como se daria a relação entre os índios e o Estado sem ela? A Funai sobreviveria a essa mudança? A tutela é a mais antiga instituição de interferência do Estado para com os povos indígenas. Bem ou mal é ela que permite a intervenção das várias instâncias do Estado, especialmente o Executivo e o Judiciário, em defesa dos povos indígenas. Ela está no imaginário de todos, até do mais distante juiz de comarca do nosso país. É por conta dela que um juiz pensa duas vezes em fazer uma condenação a um índio e o igualar aos demais. Muita gente boa acha isso ruim. Eu não acho e muitos juristas também não. Por exemplo, o Prof. Dalmo Dallari, que foi agraciado com a medalha do mérito indigenista pela Funai em 2004, considera a tutela como uma proteção a mais para os povos indígenas, não um fator de diminuição da pessoa do índio. Desde o processo que o STF decidiu sobre a liberdade de ir e vir do Mário Juruna, quando foi convidado para presidente o Tribunal Russel, no começo da década de 1980, que nunca mais houve qualquer contestação quanto ao completo sentido de cidadania dos povos indígenas e dos indivíduos indígenas. É claro que a Funai sobreviveria a essa mudança, quando ou se houver. Como será realizado o censo indígena? A Funai está em busca de parceiros? Nós tentamos fazer o censo indígena em 2005, mas não obtivemos a ajuda do IBGE. Assim só conseguimos fazer de alguns povos indígenas. Esse ano vamos tentar concluir com um censo mais simples, talvez um levantamento demográfico, e

esperarmos para que ajuda mais ajuda de outros órgãos para o censo completo no próximo ano. Bloco 3 – Organizações, Ongs etc.. Qual sua opinião sobre as chamadas organizações indígenas q proliferaram nos últimos anos? Em geral é positiva. Entretanto, acho que elas freqüentemente se comportam com divisionismo e acirram as contradições existentes em suas próprias sociedades. Algumas ongs indígenas são envolvidas por um discurso sociológico semelhante ao de organizações dos sem-terra e perdem o foco de sua finalidade. Pode ser que no futuro elas sejam a base de uma revolução no Brasil, mas esse dia ainda está longe. Acredito que os povos indígenas deveriam fazer um imenso esforço nos próximos anos para criar entidades políticas para si, com legitimidade conferida pela sua cultura e pelos seus líderes tradicionais. Tipo assembléias e conselhos, a partir das próprias aldeias, para depois criar comunidades e federações mais amplas, com legitimidade política para exercer um papel mais agregador, mais forte diante da sociedade brasileira e do Estado. E com relação ao papel das ONGs indigenistas? Na base, o papel das ongs é muito importante para ampliar a visão que os índios devem ter de sua realidade. Aí, a crítica que fazem à Funai é positiva. Há ongs, até ligadas à Igreja Católica, que trabalham diretamente com as aldeias e comunidades indígenas e fazem um papel assistencialista bastante positivo. Algumas até substituem a Funai. No plano político mais amplo, muitas ongs padecem da síndrome de perseguição da ditadura militar, algumas até acham que este governo, popular, legítimo, é antiindígena. Aí, fica difícil levá-las a sério. Como vc vê a aproximação recente das organizações ambientalistas com os índios? Na verdade, essa aproximação é antiga, vem do tempo do Chico Mendes e a chamada união dos povos da floresta. Acho bom, gostaria que se imbricassem mais, porém vejo algumas dificuldades essenciais, como a contradição entre preservação e desenvolvimento. Muitas organizações ambientalistas são pautadas pela preocupação mundial pelo meio ambiente, pela Amazônia, em particular. No caso do asfaltamento da BR-163, por exemplo, onde o movimento ambientalista é contra, os índios, que já a vêem como uma realidade, querem como compensação a construção de estradas rurais ligando suas comunidades à dita BR. Por outro lado, muitas terras indígenas são sobrepostas a reservas florestais ou parques nacionais. Os índios sofrem com a dificuldade de usufruir legitimamente de todos os benefícios que lhes cabem em suas terras. No caso da venda de artesanato, com uso de restos de animais, como penas, bicos, garras, cascos, etc., os ambientalistas querem que os índios parem de fabricar tais peças para venda porque poderiam pôr em risco de extinção diversos animais e plantas. O Ibama tem uma legislação contrária à venda desses animais e de seus restos, mas o Estatuto do Índio lhes garante o direito de vender. A Funai, que vinha comprando e revendendo artesanato indígena desde sempre, teve que se restringir na compra de qualquer peça que contenha restos de animais. Muitos povos indígenas tinham

renda razoável com a venda desse material e terminaram sofrendo. Estamos tentando equacionar essas duas legislações para permitir aos indígenas de produzirem e venderem artesanato sem porem em risco os animais e plantas que utilizam para tanto. Em março deste ano foi criada oficialmente a Comissão Nacional de Política Indigenista – CNPI, fruto de uma antiga reivindicação de organizações sociais indígenas e indigenistas. Apesar de sua aparente importância como espaço de articulação entre governo e sociedade civil, já se passaram mais de dois meses do prazo máximo para que ela seja instalada e o Ministério da Justiça sequer nomeou os membros indicados pelas organizações indígenas. Comenta-se que a FUNAI está bloqueando a nomeação dos indicados, e assim impedindo a instalação da comissão. A FUNAI é contra a existência desse órgão? Na sua opinião pode haver confusão entre o papel da comissão e da FUNAI na coordenação da política indigenista do Governo Federal? Acho importante o papel que essa Comissão e futuro Conselho poderá ter no futuro próximo. Eu mesmo fui favorável a isso durante as discussões do grupo de trabalho interministerial que decidiu pelos pontos importantes e necessários à formulação de uma nova política indigenista. Entre esses pontos incluíam-se o fortalecimento da Funai como fulcro do indigenismo, a Conferência Nacional dos Povos Indígenas e essa Comissão. Desde o início, o Ministro da Justiça pediu aos diversos ministérios que indicassem seus representantes. Os povos indígenas e as ongs ficaram de indicar os seus. Houve inclusive um mal estar porque, na reunião que decidiu quais ongs poderiam estar presentes nessa Comissão, ficou excluída a Associação Brasileira de Antropologia, que deveria estar presente, na minha opinião. Quanto ao atraso na nomeação dos membros dessa Comissão, o problema se deve ao fato de que o Ministério da Justiça e a Funai receberam indicações de 46 nomes de indígenas, para tão somente 18 vagas, e tanto o Ministro quanto eu ficamos sem saber quem nomear. Portanto, é preciso que os indicadores desses representantes indígenas se entendam para que o MJ possa processar o resultado e estabelecer a Comissão. Bloco 4 – índios e capitalismo Recentemente vc assinou uma instrução normativa reforçando a proibição do arrendamento nas terras indígenas. Além disso, há problemas de índios comercializando madeira, envolvidos com garimpo, etc. Como vc avalia as relações dos povos indígenas com o sistema capitalista? O que vc pensa sobre a do uso dos recursos naturais existentes no interior das Tis para fins não tradicionais e voltados ao mercado? Existe alguma política relacionada a isso? Considero o arrendamento de quaisquer porções de terras indígenas um perigo para a continuidade dos povos indígenas e a preservação de seus territórios. Há muito que intencionava emitir uma instrução normativa a respeito disso. Creio que ela está tendo boa repercussão em várias terras indígenas e irá reverter uma tendência que estava se alastrando por várias partes do Brasil. Recentemente estive entre os Kadiwéu, do Patanal matogrossense, que tinham esse problema em grande escala e eles logo se dispuseram a pensar alternativas ao processo que vinham sofrendo há tantos anos.

Penso que os povos indígenas são uns dos últimos bastiões anticapitalistas do mundo. Eles resistem a esse processo de vários modos, e por isso são freqüentemente incompreendidos. Entretanto, melhorar suas economias, ganhar produtividade e capacidade de comercialização naquilo que podem produzir não significa que deixarão de ter características anticapitalistas. Espero que novos modelos econômicos possam ser obtidos. Sei das dificuldades teóricas e práticas para isso, mas é preciso que continuemos procurando caminhos alternativos. Após as recomendações da Conferência Nacional de Política Indigenista, o governo ainda pretende apresentar um projeto de lei regulamentando a mineração em terras indígenas? Qual a posição da FUNAI sobre esse assunto? A situação mais dramática e drástica que ocorreu nesse meu período como presidente da Funai foi a morte de 29 garimpeiros na Terra Indígena Roosevelt, em abril de 2004. Foi difícil explicar ao povo brasileiro o que estava acontecendo para que não houvesse uma reação grave contra os índios. Quem conhece a situação de perto sabe dos problemas e do potencial negativo que existe. Por isso é que o governo brasileiro vem tentando de todos os modos manter esse garimpo fechado até que haja alguma legislação que permita aos índios garimparem ou minerarem em consórcio. Se houver qualquer proposta de projeto de lei para regulamentar esse e outros casos de mineração em terras indígenas os próprios indígenas serão consultados. Bloco 5 – Final Qual vc acha deveria ser a agenda prioritária da política indigenista para os próximos anos? Acho que os cinco pontos mais importantes para a questão indígena brasileira devem prevalecer, com modificações na medida em que eles forem abrindo caminhos diferentes. Esses cinco pontos são: consolidação dos territórios indígenas, com a ajuda do STF e do Ministério Público; crescimento demográfico e assistência à saúde, em bases indigenistas, isto é, com respeito aos índios; reformulação da questão educacional, trazendo a responsabilidade ao governo federal; autonomia econômica; e participação dos índios na sociedade brasileira através da política, da cultura e do seu etnodesenvolvimento. Para isso, creio que a Funai tem que ser fortalecida e reestruturada para coordenar as diversas instituições que têm ações indigenistas a partir do Estado. O estabelecimento do Conselho Nacional para Política Indigenista vai ajudar o governo em geral e a Funai em particular a tomar posições que tenham voz unívoca. Acredito que o surgimento de um Parlamento indígena é fundamental e deve ocorrer na medida em que aconteçam conferências anuais. Ao final, o Parlamento Indígena vai dar uma voz única aos povos indígenas; no processo de seu estabelecimento poderá ajudar os índios a se unirem, conhecerem seus problemas e encaminharem soluções mais amplas e gerais.

Uma das prioridades da Convenção de Diversidade Biológica (CDB), cuja 8ª Conferência das Partes (COP) se deu no Brasil (março/06), é a capacitação de povos indígenas e comunidades locais para o tema de proteção de conhecimento tradicional e repartição de benefícios. O ISA firmou parceria com o Instituto de Estudos Avançados da Universidade das Nações Unidas (UNU), organismo internacional, para realizar oficinas de capacitação junto a organizações e comunidades indígenas e quilombolas, conseguindo o apoio do MMA e do ponto focal do GEF no Brasil, mas sofreu veto da FUNAI, manifestado por vc. diante da própria Ministra de Meio Ambiente, sob o argumento de que o ISA não deveria ser o executor do projeto. Como vc. explica esse veto? De fato, não acho que o ISA tenha a capacidade para fazer essa capacitação em larga escala. Acho que deve ser o Estado, a Funai, o MMA, aí, sim, junto com o ISA e com outras ongs e associações indígenas, como o CIMI, a Coiab e outras que estão surgindo.

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