ENTREVISTA VICENTE FRANZ CECIM \"Sem ouvir a Música do Mistério não se pode fazer Literatura\"

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ENTREVISTA Vicente Franz Cecim “Sem ouvir a música do Mistério não se pode fazer Literatura”

Após o lançamento de seu livro visível 'oÓ: Desnutrir a Pedra', literatura fantástica e um dos passos literário de seu não-livro, não-escrito “Viagem a Andara oO livro invisível”, que é literatura fantasma, segundo ele, Vicente Franz Cecim, nesta Entrevista, fala de Andara – a Amazônia transfigurada em região-metáfora da Vida. - Você lançou uma nova obra. A editora é mineira, a Tessitura. Por que lançar primeiro aqui, na Amazônia? Vicente Franz Cecim - Porque é a minha terra. Meus livros podem até ser lançados primeiro em outros lugares, mas sempre são lançados também aqui. Na Amazônia, que eu chamo de Floresta Sagrada, que lhes dá seiva. - Todos os seus livros se passam nesse lugar chamado Andara, que você começou a criar em 1979, com sua primeira obra: ‘A asa e a serpente’. O que é Andara? Vicente Franz Cecim - Andara é a Amazônia. Nasceu a partir da natureza amazônica, mas uma Amazônia sonhada, transfigurada em uma dimensão que simboliza toda a

vida. Quero dizer, desde o que vemos, as coisas ao nosso redor, até o que não vemos, mas pressentimos. Os livros que escrevo, os chamados ‘livros visíveis de Andara’, são sempre convites a viajar além, até o invisível. - Você reúne todos os livros que escreve sob um título geral: ‘Viagem a Andara oO livro invisível’, que diz ser um não-livro e não existir. Qual a relação dos livros individuais que você escreve e esse grande livro, que vai surgindo à medida que seus livros são criados? Vicente Franz Cecim- Repare que no título desse livro fantasma existem um ‘o’ minúsculo e um ‘O’ maiúsculo, lado a lado. Digamos que o menorzinho somos nós, homens, e as coisas visíveis, efêmeras, passageiras, e o grande é a Grande Origem Invisível de Tudo. A mesma relação é a que existe entre os livros escritos e o livro não escrito de Andara. Os livros de Andara, no seu todo, tentam refletir o Real como ele é: uma parte revelada, uma não-parte oculta. No Ocidente, um equivalente é o Uno, de Plotino, no Oriente, é o Tao, conforme dele fala Lao Tsé. Cada vez que um leitor está lendo um dos livros revelados de Andara, mesmo sem saber, está lendo simultaneamente a obra toda, fazendo a Viagem a Andara. - Você diz que faz ‘literatura fantasma’. É essa segunda leitura que você chama de ‘literatura fantasma’? Vicente Franz Cecim - Sim. Uma literatura que não existe, porque não é escrita. Não é legível, somente imaginável. - Há quem diga que os sete primeiros livros de Andara aboliram as fronteiras entre prosa e poesia. Sempre houve essa divisão entre poesia e prosa na literatura de outros escritores? Vicente Franz Cecim – O que se chama de prosa se dispõe a contar, a poesia se dispõe a cantar. Cantar e contar sempre andaram juntos, por exemplo, na obra de Homero, ‘Odisséia’, ‘Ilíada’, que são tão antigas quanto a Bíblia. Essa divisão é recente, não é natural e deve ser dissolvida. Faço a minha parte: desfaço essa fronteira. Para mim tudo se dá numa dimensão só, que passei a chamar de Escritura. A Palavra solta sobre a página em branco, em plena liberdade, avançando para o vazio da página ainda em branco – por vir. Andara nasceu da palavra andar, e foi se transformando em andasse, andaria. Escrevo no que chamo Tempo da Hipótese. A Palavra - ela canta e ela conta. A divisão entre prosa e poesia foi uma convenção gradualmente imposta. Sem se ouvir a música do Mistério não pode se fazer Literatura. E por que? Porque a Vida é isso que se é, mas não se sabe o qiue é. E a Literatura só pode saber se lhe for revelado. - Este livro novo ‘oÓ: Desnutrir a Pedra’, você diz que é uma Iconescritura. O que significa isso? Vicente Franz Cecim - Quando a própria escritura foi se esgotando à medida que eu escrevia os livros visíveis de Andara, surgiram cada vez mais páginas deixadas em branco nos meus livros. Nada novo nisso: quando a gente fala – embora falemos demais e ouçamos pouco uns aos outros – também alterna voz e silêncio. Assim, passaram a se alternar palavra e páginas brancas nos livros. Então, senti necessidade de me voltar para a origem das palavras. E a origem delas é a imagem. Passei a falar, também, através de

ícones. E surgiu uma escritura feita de palavras, páginas em branco e imagens. Assim foram escritos, primeiro, ‘K O escuro da semente” e depois este ‘oÓ: Desnutrir a pedra’. - Apesar de todas essas transgressões dos padrões literários, você ainda conta histórias em seus livros? Ou tudo está voltado agora para reinvenções de linguagem? Vicente Franz Cecim- Desde o primeiro, “A asa e a serpente”, sempre contei, e continuo contando histórias. Cada vez mais rarefeitas – quase como histórias balbuciadas. Aprendi a contar histórias ouvindo as que minha mãe, a escritora Yara Cecim, contava a mim e aos meus irmãos Paulo e Elizabeth, para nos fazer dormir e sonhar outros mundos, outras realidades. Ouvir histórias, contar histórias é uma necessidade humana muito profunda. Amplia nossas existências, nutre nossa imaginação, nos leva além de nossas limitações. - E qual é a história de ‘Desnutrir a pedra’ – aliás, um título curioso. O que há para desnutrir numa pedra? Vicente Franz Cecim - Tudo se nutre de sua própria natureza, daquilo que é em si mesmo. A água se nutre da água, o fogo se nutre do fogo. O homem se nutre de sua humanidade. A pedra se nutre de sua mineralidade. O livro conta a história de uma pedra que, por ter uma forma que lembra a humana, se põe a caminho para deixar a sua existência de pedra e se tornar humana. Portal ORM - E ela consegue? Vicente Franz Cecim - Bem, os livros de Andara, além de fundirem prosa e poesia, também existem para propor inquietações e interrogações de natureza filosófica e mística. E, para além de contar essa história com uma linguagem nova, de palavras, imagens e silêncios, neste se apresenta uma questão leitor: Devemos buscar ser o que não somos saindo de nós mesmos, ou nos tornar cada vez mais o que somos, não nos abandonando, mas nos aprofundando em nossa natureza, na forma de realidade com que o Universo nos manifestou? Muitos de nós sofremos permanentemente a angústia de tentarmos ser o que não somos, não é verdade? Nesse sentido, esses poderão se ver nessa pedra que anda, em Andara. O que a espera? Só lendo o livro para saber. Não é algo que possa ser dito fora da linguagem de Andara – é algo que só pode ser apreendido por uma vivência através da linguagem de Andara. - Você tem editado seus livros também em Portugal. Alguns já saíram lá, mas continuam inéditos no Brasil. Um deles foi ‘Ó Serdespanto’, apontado pela crítica portuguesa como o segundo melhor lançamento de 2001, esperou até 2006 para ter sua edição brasileira, outro foi ‘K O escuro da semente’. O Brasil é um país de leitores? Aqui um escritor pode viver da sua literatura? Vicente Franz Cecim - Portugal é Europa, gerou Pessoa, lê Kafka, Beckett, Proust com naturalidade. No Brasil se conhece Cervantes, mas quem já leu o ‘Criticón’, de Baltazar Gracián, contemporâneo de Cervantes, fundamental como ‘Dom Quixote’? O leitor pode determinar a qualidade das editoras. O leitor português faz isso. O nosso, apesar de termos Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Machado de Assis, Jorge de Lima, é visto

pelos editores como um consumidor, não como leitor, e o livro como produto. O processo leva o próprio escritor a ser tratado como um produtor de materiais para consumo. Para viver espiritualmente da minha literatura, eu jamais tentei viver materialmente dela. Os meus livros nascem livres de pressões de mercado e editores. Eles são instrumentos para interrogar ou celebrar a vida. É o que me interessa. - Você, que nasceu e vive na Amazônia, concorda com a regionalização da literatura? Vicente Franz Cecim – Não se trata de ser literatura regional ou universal. Mas de ser essencial, ou não. Essencial para quem escreve, essencial para quem lê. Juan Rulfo é um escritor profundamente mexicano, Guimarães Rosa é um escritor profundamente brasileiro, e são essenciais. Então - O Verbo sopra em toda parte. - Sim, mas é preciso que ele sopre do Mistério através da poética de alguém, para que exista Literatura. - Você recebeu o Grande Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, que também premiou com ele autores como Cora Coralina, Mário Quintana, Hilda Hilst, Manoel de Barros e foi aclamado por críticos como Leo Gilson Ribeiro, no Brasil, e Eduardo Prado Coelho, em Portugal. Qual a importância disso para um escritor? Você acha que a qualidade de uma obra literária depende desse reconhecimento? Vicente Franz Cecim - Os prêmios não são o mais importante. O que importa é se ver compreendido, é ter do outro lado do livro, não um crítico – sou a favor da abolição da crítica como instituição autorizada a dar a palavra final sobre uma obra – mas uma espécie de companheiro de aventuras e descobertas. Uma relação fraterna, cúmplice, não-institucional, humana. Aquela que Maurice Blanchot mantinha com os autores que lia. Nesse sentido, pessoas distantes como o Leo Gilson Ribeiro, em São Paulo, Eduardo Prado Coelho, lá em Portugal, ou próximas como Benedito Nunes, aqui em Belém, morando logo ali, na Travessa da Estrela, foram grandes companheiros de viagem. Sou grato a eles e a alguns outros por não ter me sentido tão só, porque a viagem a Andara é uma aventura muito solitária. - Onde os leitores brasileiros podem encontrar as obras de Vicente Franz Cecim? Vicente Franz Cecim - Uma parte no Brasil, outra em Portugal. Outra vaga pela dimensão virtual. Um dia, quem sabe, a viagem a Andara se encontre consigo mesma, reunida em um volume. Quem sabe?

VICENTE FRANZ CECIM nasceu e vive na Amazônia brasileira. Escreve os livros de “Viagem a Andara oO livro invisível”

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