Enunciação Colectiva e Crítica

July 23, 2017 | Autor: Susana Caló | Categoria: Gilles Deleuze, Gilles Deleuze and Literature
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(Registo da comunicação proferida no âmbito do evento "Práticas da Arte e da Crítica" do projecto "Algumas razões para uma arte não demissionária", com Ricardo Nicolau, Liliana Coutinho, e Nuno Crespo no Laboratório das Artes, Guimarães, 30 Out.2014, org. Eduarda Neves e Grupo Arte e Estudos Críticos, CEAA, ESAP)

Enunciação Colectiva e Crítica Susana Caló

Introdução Após alguma ponderação, pesando o facto de não ser artista, crítica ou curadora de arte, achei que a melhor forma de contribuir para o tema desta noite "Práticas da arte e da crítica" seria de trazer uma série de noções para a mesa que me parecem ser interessantes para o tema, a partir de uma investigação que tenho feito no âmbito da questão da literatura, como crítica, na obra de Gilles Deleuze, mais particularmente, o investimento político desta na medida de uma produção de sintomatologia e enunciação colectiva. Em jeito de resumo, podemos dizer que na obra de Deleuze devotada ao pensamento da literatura, a crítica (no sentido literário) é tratada como uma questão de sintomatologia por comparação com a clínica (no sentido médico). 'É o que é designado de projecto críticoclínico em Deleuze. Segundo este, cabe ao crítico ou escritor auscultar o mundo e abrir espaços de enunciação que possam romper com a expressão maioritária da língua, criando regimes de visibilidade para modos de vida e subjectividades até então obliterados. Isto é, produzir novos quadros sintomatológicos do mundo. Como tal, nesta perspectiva, a potência política da crítica residiria na sua capacidade de operar uma conexão ao domínio emergente da multiplicidade do social. Ora, então, o que irei fazer é precisamente explorar a ideia subjacente ao projecto críticoclínico de Deleuze, que do meu ponto de vista se completa com a conceptualização de um devir-menor da língua, que acontece no estudo do caso literário da obra de Kafka, e a quem Deleuze dedica, em colaboração com Félix Guattari, um livro em 1975. Aqui precisamente se torna mais evidente o pensamento da crítica e da sua dimensão política na condição de um comprometimento com a construção de um colectivo ou da abertura de espaços para a expressão de um colectivo sempre emergente.

Mas, comecemos então pelo início. O que significa pensar a crítica, no sentido literário, como produção de sintomatologia que em geral associamos a um contexto médico?

 

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Crítica e Clínica Deleuze dedicou uma série de obras a figuras da literatura e à natureza do próprio acto crítico. Referindo-se a esses estudos de obras literárias, Deleuze diz numa entrevista que a sua ideia “ não foi a de aplicar conceitos psiquiátricos à literatura, mas ao contrário de extrair conceitos clínicos não pré-existentes nos trabalhos eles próprios (Desert Islands, 133). E em Crítica e Clínica, livro editado de Deleuze, publicado em 1993, e que condensa uma série de ensaios publicados entre 1963 e 1989 todos eles dedicados a um escritor ou livro, Deleuze abre o texto dizendo que: "clínicos que são capazes de renovar uma perspectiva sintomatológica produzem uma obra de arte, do mesmo modo, artistas são clínicos, não em respeito do seu próprio caso, nem em respeito de um caso em geral, mas em vez disso, eles são clínicos de uma civilização." Sabemos que a abordagem de Deleuze se firma numa contra-proposta ao modelo psicanalítico clássico muito em voga na altura que primava pela interpretação da obra artística como sublimação ou produto de uma história de vida pessoal pré-determinada. Tal concepção da literatura presa à análise edipiana das causas ou pressupostos pessoais e familiares projectadas sobre a obra ofuscavam o discernimento da natureza específica da produção literária, que para ele se prendia não com a relação do autor ou a sua vida pessoal com a obra, mas com o que a obra exprimia fora deste circuito pessoal num agenciamento com um contexto social mais alargado. Isto é, em vez do clínico ler a obra e aplicar conceitos clínicos à produção literária, a proposta de Deleuze é de que o clínico como crítico será tanto mais um artista quanto tentar ao invés extrair a esses mundos criados na literatura, outros e diversos quadros ou conceitos clínicos para além dos pré-existentes. Para tal seria preciso que o sintoma fosse lido não a partir de causas projectadas a priori sobre a manifestação sintomática - as causas biográfico-pessoais, no caso da psicanálise, que fechavam o sintoma na redoma do pessoal -, mas através de um sentido que deveria ser procurado nas forças que produziam o sintoma em primeiro lugar e que estariam para além de uma manifestação individual. É portanto é neste sentido que a questão sintomatológica força o pensamento da literatura a questões como: 'o que produz a literatura?', e 'para que serve a literatura?', ou "o que traz a literatura para o campo da clínica?". Tal como o sujeito é produzido na intersecção de uma multiplicidade de factores, desde o social, ao pessoal, à técnica e à linguagem, também a literatura deveria ser vista como uma manifestação desse espectro de relações maiores. Só colocando de lado a ideia da obra literária como espelho das experiências de um autor individual é que se poderia descobrir na literatura o esforço do escritor em abrir, através do seu trabalho, janelas para modos de vida obscurecidos e sem expressão, ou sem campo de visibilidade, se quisermos usar uma expressão mais Foucaultiana.

 

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Ora, este exercício que acabamos de descrever é o que poderia ser designado de críticoclínico.

O caso de Sacher-Masoch O livro de Deleuze sobre o escritor Leopold Von Sacher Masoch permite-nos concretizar estas questões. Intitulado Présentation de Sacher-Masoch este foi o primeiro livro em que a questão crítico-clínica foi enunciada em termos que ecoam Nietzche, como contundentemente

nota François Zourabichvili em Kant avec Masoch (François Zourabichvili, 2006, Multitudes 2006/2, n.25): " Deleuze pode dizer que a verdadeira crítica é sintomatológica (ou clínica) porque ela não se contenta só com a forma do fenómeno, mas procura a vontade que está investida nele". O próprio título do livro: "apresentação" de Sacher-Masoch, indica como Deleuze pretende apresentar Masoch talvez como nunca o foi antes ou de certa forma corrigir um erro na sua comum/dominante 'apresentação'. O chamamento para esta nova apresentação advém de um equívoco que Deleuze pretende corrigir em relação a Masoch. Notoriamente, sabemos como o nome do escritor Marquis de Sade, e o nome de Sacher Masoch, foi apropriado pela semiologia clínica, para designar e classificar as entidades clínicas de, respectivamente, 'masoquismo' e 'sadismo'. A primeira vez que isto acontece é na obra do psiquiatra austro-alemão Krafft-Ebing em Psychopathia sexualis (1886). Este evento representa para Deleuze um sinal da eficácia literária das suas obras. Que maior feito pode a literatura ou a crítica ambicionar que abrir caminho a novos modos de vida, de extrair novas configurações entre os limites do invisível, tornando visíveis e possíveis novas dimensões do humano que se afirmam como modos de vida genuínos? E dar nome - abrindo espaço na expressão - a novas formas de sexualidade: 'sadismo' e 'masoquismo'? Ora, com a posterior confluência das duas entidades no termo 'sadismo-masoquismo', nomeadamente na teoria freudiana, que une as duas entidades numa só, como se se não formos sádicos temos que ser masoquistas, e se não formos masoquistas temos de ser sádicos, e que estabelece também relações de subordinação, implica a perda da singularidade das duas entidades separadas. Por isso, ao termo inventado de 'sado-masoquismo' Deleuze chama de um monstro semiológico no sentido em que obscurece as constelações de forças e movimentos específicos e diversos que encarnam os signos.

 

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Como entender a proposta de Deleuze de apresentar Masoch, como se nunca tivesse sido realmente apresentado? A sua apresentação consiste na separação das duas entidades através da refutação da teoria freudiana que 1 - associa as duas entidades e 2 - confunde o escritor masoch com uma personalidade masoquista. Segundo, Deleuze nem Sade, nem Masoch, são necessariamente sádicos ou masoquistas. Assumir tal seria condenar as suas obras a uma leitura biográfica perdendo a positividade do que foram capazes de ver no mundo e abrir espaços para essas novas dimensões através seu trabalho literário. O encontro do pessoal com o colectivo, com esse campo social maior, faz parte de um programa existencial e político do crítico ou do escritor. Em relação a Masoch, Deleuze diz que ("Re-présentation de Masoch", 1989, republicado em Critical and Clinical, pp. 53-55): " mais do que um paciente, o escritor é um médico, ele faz um diagnóstico, mas aquilo que ele diagnostica é o mundo, ele segue a doença passo a passo, mas é a doença genérica do Homem". Desse ponto de vista, o masoquismo não é só o masoquismo de Leopold von Sacher Masoch, mas inscreve e re-encena o movimento de libertação do mundo num programa de masoquismo: o escritor faz o diagnóstico do mundo e avalia as hipóteses de uma nova saúde, ou de um outro homem, no sentido anterior de outros modos de vida até aí obliterados. Assim, o entendimento da crítica, no sentido literário, como sintomatologia passa por operar duas inflexões de pensamento: a literatura é um modo de abertura ao mundo, pois está mais do lado do 'mundo' - o escritor como o clínico da civilização' - e do colectivo do que do pessoal, a afirmação da produção literária na medida de um renovar das condições de possibilidade de emergência de novas subjectividades, e formas de vida.

Kafka e Devir menor No livro dedicado a Kafka, (Kafka: Pour une littérature mineure, 1975), escrito em conjunto com Félix Guattari, parece-me que o investimento político do exercício crítico-literário se afirma completamente de um ponto de vista que interessa abordar aqui também. À concepção de produção de sintomatologia acrescenta-se o movimento concreto que a crítica deve fazer, do maior ao menor, num processo de um devir-menor da língua. Nunca é de mais alertar já para o facto deste menor não ter nada a ver com mais pequeno, marginal ou minoria num sentido quantitativo para não nos perdermos numa apologia das excepções e das minorias:

 

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Como Deleuze e Guattari explicam: "Por maioria nós não entendemos uma quantidade relativa maior, mas a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias.” Mille Plateaux p. 321. (…) Certamente as minorias são estados que podem ser definidos objectivamente, estados de língua, de etnia, de sexo, com suas territorialidades de gueto; mas devem ser consideradas também como germes, cristais de devir, que só valem enquanto detonadores de movimentos incontroláveis e de desterritorializações da média ou da maioria.” Mille

Plateaux p. 116 – 117.

A distinção crucial é que o maior determina o padrão ou a regra a partir da qual todos os outros usos são avaliados: representações de poder e de saber, normas e leis, imanentes tanto ao conteúdo como à forma, que regulamentam não só as práticas discursivas, mas também comportamentos, formas de falar, de fazer e de pensar. A ideia é de que "a unidade", neste caso, a unidade da língua esconde uma manobra política, e que as línguas unas, hegemónicas pretendem reforçar a homogeneização, e a identidade. Ora, o conceito de devir-menor refere-se sobretudo uma prática e não a um estado. Isto é, não defende um estado de menoridade, mas um processo de tornar menor. Ele pretende definir uma práxis cujo propósito é de arrancar a língua às relações de poder que a imprisionam num estado de inércia. Ele diz respeito a um processo pelo qual, num contexto dominado por uma língua hegemónica, se criam espaços e passagens para a variação e multiplicidade que não é reflectida nas formas de representação dominantes e que caracteriza a experiência do mundo. Para qual é preciso uma expressão colectiva, diversa e aberta. O caso de Kafka ilumina estas questões: Kafka é um judeu checo, mas que escolhe escrever não em checo, não em yiddish, mas em alemão, a língua oficial no império AustroHúngaro, isto é, na língua maior. Do mesmo modo o alemão de Praga pode em certas circunstâncias qualificar-se de menor por relação com o de Viena ou de Berlim, e por aí fora. E ao ao fazê-lo, segundo Deleuze e Guattari, Kafka faz um duplo ou triplo tratamento menor da língua oficial. Mais especificamente, segundo Deleuze e Guattari, a literatura menor implica uma capacidade de afectar a língua maior com um grau relevante de desterritorialização que provoca uma série de deslocamentos e renegociações que a confrontam com o seu próprio limite. No caso de Kafka este efeito é particularmente realizado devido a deslocamentos contextuais (em Metaformose, por exemplo) que produzem situações cuja natureza

 

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convoca simultaneamente a renegociação de estruturas familiares, económicas, burocráticas ou jurídicas. Ora, esta confrontação da língua com os seus limites expõe a rede de elementos da qual a efectuação de um enunciado depende, deste modo entendendo-se melhor a língua como um sistema dinâmico com quebras e transições, na fronteira de micro e macro-lutas que reflectem modulações de poder, num certo momento do tempo e revelam o contexto de relações de poder segundo as quais se a expressão é distribuída. Com efeito, o que está em jogo na concepção de devir menor é que a política não pode ser reduzida à dimensão maior das representações ou das instituições, mas passa também pelas formas de vida e processos de produção de subjectividade, tanto como pelo “modo como falamos” ou “do que pode ser dito”.

~ Mais, Deleuze e Guattari propõem a invenção de condições de possibilidade de um povo por vir, povo esse que está em falta. Todavia, é fundamental entender que este povo não se refere a um grupo particular ou ideal, mas convoca a questão da política do por-vir, como de outras formas de vida, outros valores e outros modos de pensamento para os quais as condições de possibilidade de acontecimento têm de ser produzidas. não de um povo específico, utópico, ou unidade pré-definida, mas de um povo sempre outro que está ausente, (um povo por vir). Este movimento que forja uma re-distribuição da expressão, que força o menor sobre o maior, que descobre por detrás de um sintoma uma manifestação colectiva, desvelando por detrás da aparente unidade da expressão a multiplicidade que corre no mundo, e criando a possibilidade de expressão de novos mundos, deve ser relevado para uma prática crítica, num exercício do qual a crítica não se deve demitir correndo o risco de alienar a sua potência política.

Guimarães, Outubro 2014

 

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