EPISTEMOLOGIA EM ÉTICA E NAS ÉTICAS APLICADAS

May 28, 2017 | Autor: Gilson Diana | Categoria: Ética, Bioética, Epistemologia
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EPISTEMOLOGIA EM ÉTICA E NAS ÉTICAS APLICADAS
Gilson Matilde Diana
RESUMO
O presente trabalho é uma análise da possibilidade de lidar com epistemologia em ética e nas éticas aplicadas. Falar de epistemologia é falar da possibilidade de conhecimento e como esse conhecimento se processa. É uma exigência metodológica ao falar de epistemologia falar como se dão as nossas crenças, se elas são verdadeiras e como podemos justifica-las. E em ética, não diferentemente, ao se falar de epistemologia teremos que dar cabo destas três questões. Alguns autores trataram destas questões, e dentre eles podemos listar a polêmica entre Kant e Hume, em que o primeiro acreditava na possibilidade das questões éticas serem derivadas da razão, e o segundo que as questões éticas derivam de nossas emoções ou paixões. Se seguirmos o segundo autor, não podemos falar de conhecimento em ética, mas apenas em afecções emocionais. Se seguirmos o primeiro, podemos sim falar da possibilidade de conhecer as questões éticas, e estas não serem apenas conteúdos subjetivos da natureza humana.

Palavras-Chave: Epistemologia moral. Ética. Ética aplicada. Conhecimento moral. Metaética.
INTRODUÇÃO
A epistemologia é a disciplina que lida com questões relacionadas com o conhecimento. Em uma simples resposta possível, ela lida com o ramo da filosofia que se ocupa do conhecimento, pelo que também é designada como teoria do conhecimento. Uma definição tradicional de conhecimento que nos vem desde Platão, no dialogo Teeteto, e que se repete em Agostinho, Descartes, Russell, Ayer, entre outros é que conhecimento é uma crença, verdadeira e justificada.
Assim, para haver conhecimento, levando em consideração a definição tripartite listada acima, considera-se envolvidos: (a) um sujeito 'S' que tem que acreditar em algo; (b) uma proposição 'P' verdadeira; (c) o sujeito 'S' estar justificado em acreditar em 'P'. Desta forma, estaremos alcançando todos os ambitos da definição de conhecimento: crença, verdade e justificação.
Observe-se que, o que se chama de conhecimento, muitas vezes, são pequenas porções entre aquilo que são opiniões dos sujeitos (doxas), opiniões verdadeiras e opiniões justificadas. Isso porque existem opiniões que são verdadeiras, mas não são justificadas; bem como opiniões que são apenas opiniões e não são verdadeiras; e há opiniões verdadeiras e justificada, que são as que chamamos conhecimento. (DUTRA, 2010, p. 20).
Na modernidade, outro passo importante nas questões epistemológicas foi lançado. Para dar cabo das questões de justificação, os modernos lançaram mão de duas formas de fundação do conhecimento: o racionalismo – que tem como representante Descartes, Leibniz, Espinosa e Kant; e o empirismo – que tem como representante Locke, Berkeley e Hume.
Assim, são caros alguns conceitos à epistemologia, tais como: crença (proposição, juízos, enunciados), que implica questões sobre internalismo e externalismo em epistemologia. Teorias da verdade, tais como teorias da correspondência, teoria semântica, pragmática, que vão lidar com questões de fato x valor, objetivos x subjetivos, etc. E as formas de justificar o conhecimento (explicando-o, descrevendo-o ou justificando-o), por meio de um fundacionalismo, coerentismo ou uma epistemologia naturalizada. E desafiando todas estas questões até aqui colocadas, estas posições terão que enfrentar as formas de falibilismo e ceticismo que aprecem desafiando os postulantes da epistemologia.
1 questões epistemológicas para ética
As questões éticas relacionadas a epistemologia em ética normalmente envolvem uma área de estudo denominada metaética. De acordo com Beauchamp e Childress (2013, p. 2 – Grifos no original)
[...] metaethics, which involves analysis of the language, concepts, and methods of reasoning in normative ethics. For example, metaethics addresses the meaning of terms such as right, obligation, virtue, justification, morality, and responsibility. It also concerned with moral epistemology (the theory of moral knowledge), the logic and patterns of moral reasoning and justification, and the possibility and nature of moral truth. Whether morality is objective or subjective, relative or nonrelative, and rational or nonrational are prominent question in metaethics.
O tratamento atual das questões a respeito da filosofia moral tem comumente sido dividido em partes: uma que se ocupa com questões normativas da ética, também denominada discurso de primeira ordem; e outra que se que ocupa com questões metaéticas, denominada discurso de segunda ordem. No discurso de primeira ordem, normalmente encontram-se regras de condutas para uma determinada sociedade, como agir, o que fazer. Esse discurso é padronizado num campo prático e normativo, e quem participa desse discurso toma parte efetiva nas deliberações morais.
O discurso chamado de segunda ordem se preocupa exclusivamente com o status e a natureza dos juízos de valor feitos pelos participantes dos discursos de primeira ordem, se têm um significado literal, se são enunciados factuais, como eles se correspondem com o mundo, etc. Essa é a tarefa da metaética, às vezes também chamada de ética analítica. A ética analítica tentará dar uma resposta à questão "qual a natureza dos valores morais?". E buscar a resposta para a questão sobre a natureza dos valores morais é adentrar na busca do significado filosófico dos conceitos que usamos. E uma vez que usamos conceitos de valor moral, nada mais justo que perguntar:
O que é valor moral?
Responder a essa pergunta, com o intuito de buscar o significado dos conceitos de valor moral, implica enfrentar dois problemas.
O primeiro tentará dar conta das seguintes questões: a que tipo de realidade se refere as questões de valor? Se procurarmos no mundo que conhecemos e vivemos, encontramos aquilo que denominamos de valor (tal como o bem, o mal, o certo, o errado, etc.)? Um juízo de valor se refere a alguma realidade objetiva? Este é o chamado problema metafísico (ontológico).
Colocado o primeiro problema, junto a ele surge o segundo, o problema epistemológico. Através de qual faculdade podemos conhecer as verdades morais (se é que elas existem)? Qual o acesso que temos aos fatos morais (se é que eles existem)? Temos acesso aos valores morais tal como temos acesso às considerações das ciências, da matemática?
É na análise desses problemas, dentro do discurso de segunda ordem, que teve origem o debate de que aqui se trata: o debate entre o cognitivismo e o não-cognitivismo. A posição que assegura que os juízos morais são objetivos, isto é, são capazes de ser literalmente verdadeiros ou falsos, denomina-se cognitivismo (realismo). A posição que nega a objetividade dos juízos morais denomina-se não-cognitivismo (não-realismo). Como já foi enfatizado, a metaética iniciou-se justamente com uma posição cognitivista (realista) chamada intuicionismo, segundo a qual, semanticamente, os juízos morais são literalmente verdadeiros ou falsos; metafisicamente, uma propriedade moral é uma propriedade não natural; e, epistemologicamente, o conhecimento moral repousa sobre verdades evidentes, descobertas por intuição. A reação a esse comprometimento metafísico e epistemológico dos intuicionistas é que gerou o desenvolvimento do não-cognitivismo.
A preocupação com estas questões não escapa também das questões relacionadas às éticas aplicadas (ou ética prática que Beauchamp e Childress usam como sinônimos – p. 2), e dentre elas a bioética. Os autores do livro Principles of Biomedical Ethics reconhecem que estes problemas têm que ser enfrentados e os endereçam em seu livro, seja na primeira parte, que trata do tema Moral Foundations, ou seja, na última parte, que darão tratamento às questões de Theory and Method.
Mas ao mesmo tempo, lidar com estas questões é navegar em águas turvas. Isso porque, mesmo nas questões relacionadas ao conhecimento científico em ciências naturais apresentam-se algumas formas de ceticismo. O que pensar da possibilidade de lidar com estas questões do conhecimento em questões éticas ou morais? Qual o significado do discurso moral? Como distinguir o uso moral do uso não-moral desses termos? Qual o significado dos termos ou conceitos correlatos? Os julgamentos éticos e de valor são passíveis de justificativas lógicas? Algumas destas questões já haviam sido endereçadas por William K. Frankena em seu livro Ética (1975, p. 113-114).
Assim, por exemplo, o principialismo em bioética – um dos estudos fundamentais em bioética –, antes de se apresentar como uma boa alternativa para as questões de tomada de decisão em questões biomédicas, este deveriam mostrar quais são os seus fundamentos epistemológicos. Esta foi a principal crítica que o principialismo sofreu e sofre relacionado às suas abordagens. Um dos principais críticos: Bernard Gert, Danner Clouser e C. Culver direcionaram suas críticas na ausência de uma teoria ética de sustentasse o principialismo. Clouser e Gert (1990, p. 230) já havia identificando a concordância dos autores do principialismo com o seguintes esquema, partindo de juízos e ações particulares implicando regras, princípios e por fim teorias éticas:
(1) Juízos e ações particulares (2) Regras (3) Princípios (4) Teorias éticas.
Num capítulo de livro posterior, Gert, Cluver e Clouser (1997, p. 72-74) enfatizam que:
Our criticism focuses only on the theoretical account of morality. […] we are concerned about the widespread popularization of principlism throughout the biomedical ethics world […]. These principles were clearly intended to be generalized guides for protecting humans as subjects in biomedical and behavioral research. Also, they seem less to have derived from a theory of any sort and more to have abstractions from ethical expressing particular moral concerns.
Assim podemos notar em quão turvas águas está se navegando quando se trata destas questões de epistemologia em ética. De acordo com Miguel Kottow (2006, p. 25) "Para esclarecer a validade de um eventual principialismo bioético é preciso se perguntar previamente pela existência de uma teoria do conhecimento moral, que está longe de se encontrar esclarecida". E isso não só para o principialismo. Qualquer teoria ética, quando se pergunta sobre os fundamentos epistemológicos, precisa dar conta de todas estas questões. E a primeira delas o próprio Kottow (2006, p. 25) já endereça em seu texto: "[...] uma epistemologia do discurso ético só é possível caso as asserções éticas possam ser submetidas a critérios de veracidade ou falsidade".
Pode-se notar que ao retornarmos à definição de conhecimento (crença, verdade e justificação), Kottow nos encaminha para o segundo âmbito: o problema da verdade. Mas já faz alusão ao primeiro âmbito – crença – quando uso o termo "asserção", que poder ser assumido como enunciado ou proposição. Mas estas proposições ou asserções éticas são descritivas ou prescritivas? Se são descritivas, elas descrevem propriedades naturais (e aqui aparece novamente o problema ontológico)? Se são prescritivas, são mais expressões de emoções do que fatos. Estas duas distinções são essenciais, pois tratar delas fará com que possivelmente superemos a falácia naturalista – que nos termos de David Hume seria derivar um é de um dever ser – a distinção is-ought; e nos termos de G. E. Moore (Principia Ethica) de atribuir propriedades naturais (mas o mesmo valeria para propriedades sobrenaturais) aos termos que não comportam tal referência descritiva.
Uma outra posição mais abrupta, denominada teoria do erro, John Mackie (Ethics: Inventing Right and Wrong) adverte que como as pessoas usam essa linguagem para ressaltar os aspectos dos objetos e das ações morais de uma certa maneira, tendem a atribuir esse aspecto ressaltado às próprias coisas, e então pensam que os juízos morais podem ser verdadeiros. De acordo com Mackie, isso é um erro, pois juízo moral algum é verdadeiro porque não existem propriedades morais. Os valores não são objetivos porque eles não são partes do tecido do mundo.
Assim podemos notar algumas questões que a epistemologia moral tem que lidar. Diante disso, podemos apresentar uma pequena taxonomia elaborada por Peter Railton para quem se aventurar a lidar com estas questões, que possivelmente os comprometerá com uma forma de realismo moral.
As repostas são dadas gradualmente neste modelo que Railton nos apresenta e sucessivamente vai emergindo cada vínculo que uma teoria deve ter para ser sustentada. Cada coluna representa uma evolução gradual e a cada resposta, "sim" ou "não", existe um comprometimento com uma certa postura em relação à moral.
1. São os enunciados éticos avaliados em termos de verdade?
Não
Não-cognitivismo
Emotivismo Simples (Ayer)
Sim
Cognitivismo
Intuicionismo (Moore, Ross,...).

2. Pelo menos algumas afirmações centrais da ética são verdadeiras?
Não
Teoria do erro (Mackie)
Sim
Não-teoria do erro
3. São os termos em ética determinados numa interpretação literal?
Não
Não-realismo Cognitivista (Smith)
Relativismo (Harman, Williams, Wong)
Sim
Literalismo

4. O descritivismo oferece uma correta explicação da semântica moral?
Não
Não-descritivismo
Emotivismo (Stevenson)
Prescritivismo (Hare)
Quase-Realismo (Blackburn)
Expressivismo (Gibbard)
Sim
Descritivismo
(Platts, Frankena, Foot, McDowell, Nagel, Dancy, Railton, Brink, Sturgeon, Putnam...)
5. São as práticas e os discursos éticos objetivos?
Não
Não-realismo
Sim
Realismo
(McDowell, Platts, Brink, Sturgeon, Railton, Nagel, Dancy, …)
6. As propriedades morais sobrevêm às propriedades naturais?
Não
Não-Naturalismo
(McDowell, Platts, Dancy, Nagel, ...)
Sim
Naturalismo
(Railton, Sturgeon, Brink,... )
7. São as propriedades morais redutíveis e propriedades naturais?
Não
Realismo Moral Britânico
(McDowell, Platts, Dancy, Nagel,…)
Sim
Realismo Moral Americano
(Railton, Sturgeon, Brink,… )
Assim, pode-se notar no emaranhado de questões a que levam os debates sobre a possibilidade de conhecimento moral. Os positivistas partidários de um empirismo lógico-científico afastaram a possibilidade de a ética fazer parte das questões de conhecimento e a endereçaram para questões de sentimento. Seja no primeiro Wittgenstein (Tractatus Logico-Philosophicus) ao prenunciar que sobre aquilo que não se pode falar deve-se calar, ou com Alfred Jules Ayer (Linguagem, verdade e lógica) com o princípio de verificação, que diz que reconhece como verdadeira a proposição que for empiricamente verificada. Para Ayer as sentenças éticas não fazem nenhum enunciado e, portanto, não tem sentido perguntar se o que diz é verdadeiro ou falso. Elas simplesmente expressam juízos morais não dizem nada. São puras expressões de sentimento e como tais não estão compreendidas na categoria de verdade e falsidade.
2 Defendendo a epistemologia em ética e nas éticas aplicadas
Léon Olivé, em artigo intitulado Epistemologia na ética e nas éticas aplicadas, afirma que um argumento comumente apresentado para afastar a possibilidade de epistemologia em ética é que "a epistemologia e ética pertencem a compartimentos estanques" (2006, p. 121). Postula-se comumente a neutralidade da ciência e a não participação de valores em seus contextos, ao passo que a ética está permeada de valores. Após tais afirmações, Olivé adverte que sustentará justamente o contrário, que "a epistemologia é indispensável para a ética, e particularmente para as éticas aplicadas, como é o caso da bioética". (2006, p. 121).
Para defender tal posição, Olivé nos propõe seguir a posição de um "normativismo naturalizado", como foi sugerido por Larry Laudan (filósofo da ciência), em que mesmo tendo um caráter a priori, as normas não necessariamente seriam absolutas e universais. O apriorismo das normas advém de sua condição de possibilidade em proferir um juízo de valor por qualquer ser linguisticamente desenvolvido, mas que não afastam o aprimoramento moral pelas mudanças das normas. Olivé identifica que tanto a epistemologia quanto a ética possuem uma dimensão descritiva e outra normativa. Da mesma forma pensam Garrafa e Azambuja (2007, p. 346 ss) quando afirmam que: "Tanto la epistemología cuanto la ética, o la bioética, en particular, poseen una dimensión descriptiva y otra normativa".
Uma situação descritiva em epistemologia, usando os paradigmas de Kuhn para tal explicação, é o período em que se encontra em ciência normal – período em que em que o paradigma é aceito, sem qualquer tipo de contestação, no seio da comunidade científica, pois se encontram de acordo com as normas em vigor. A produção científica está em voga, sem muitas contestações. Já uma situação prescritiva ocorre quando a ciência normal entre em um estado de crise e revolução, em que um novo paradigma se impõe – solicitando revisões epistemológicas – o que mais tarde se tornará novamente ciência normal.
A epistemologia é indispensável para ética principalmente nas questões relacionadas a justificação de nosso conhecimento moral. Beauchamp e Childress destinou um capítulo final de sua obra para a questão do método e da justificação moral. A questão que eles levantam neste capítulo é: como podemos justificar conclusões morais em ética biomédica? (2013, p. 390 ss). Eles asseguram que a justificação em ética é um assunto e apresentam vários modelos. O primeiro é o modelo dedutivo (top-downs models), em que se deriva uma conclusão de premissas, baseados em modelos lógicos dedutivos. Outro modelo é o modelo indutivo (bottom-up models), baseados em modelos lógicos indutivos, contrários aos modelos dedutivos. Este modelo uso muitos exemplos de casuística, em que a partir da semelhança entre casos, faço comparações para tirar conclusões morais. Os dois modelos têm limitações, de acordo com os autores. Então, eles propõem que terão suporte no modelo que chamam de "equilíbrio reflexivo" que se baseia numa forma de coerentismo. Este termo deriva de John Rawls, autor da obra Uma teoria da justiça. O coerentismo é uma posição epistemológica que se baseia num conjunto coerente de crenças, e não em crenças ou enunciados individuais. Isto gera uma cadeia de crenças em que certo conhecimento está alicerçado. A justificação se dá, então, pelo conjunto de crenças e não por crenças individuais, separadas.
Proponents argue that a theory or a set of moral beliefs is justified if it maximizes the coherence of the overall set of beliefs that are accepted upon reflective examination.
Method in ethics, in this account, properly begins with a body of beliefs that are acceptable initially without argumentative support. Rawls calls these starting points 'considered judgments', that is, the moral convictions in which we have the highest confidence and believe to have the least bias. (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013, p. 405).
Por meio deste modelo de equilíbrio reflexivo, Beauchamp e Childress tentam justificar a aceitação de uma teoria da moralidade comum. Esta moralidade comum exige muito pouco de considerações supranaturais. Eis, de acordo com os autores, alguns aspectos das teorias da moralidade comum:
First, they rely on ordinary, shared moral beliefs for their starting content. Second, all common-morality theories hold that an ethical theory that cannot be made consistent with these pretheoretical moral values falls under suspicion. Third, all common-morality theories are pluralistic: They contain two or more nonabsolute (prima facie) moral principles. (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2013, p. 410-411).
Considerações Finais
O principialismo, ao defender princípios prima facie, aproxima-se de uma teoria ética intuicionista. Esta teoria foi cunhada nos moldes da defesa de princípios por G. E. Moore. A preocupação central era justamente dizer o que faz uma ação ser considerada correta. Moore (Principia Ethica) ligou esta resposta ao fato da ação ser boa. De acordo com David Ross (1998, p. 17), a teoria proposta por Moore era muito mais atrativa que alguma forma de hedonismo ou utilitarismo. Abaixo, veremos algumas pressuposições de teorias éticas feitas por Beauchamp e Childress, na tentativa de justificar a opção pela teoria da moralidade comum.
A justificação da moralidade comum (2013, p. 419) pode se dar por várias teorias éticas. Os autores apresentam quatro teorias influentes que são indispensáveis para um estudo reflexivo da ética biomédica. As teorias são o utilitarismo, Kantianismo, teoria dos direitos e teoria das virtudes. Todas estas teorias são teorias cognitivistas, ou seja, pressupõe a possibilidade de um conhecimento moral.
A teoria ética utilitarista deriva de uma posição teleológica, consequencialista, que pressupõe uma forma de universalismo ético. Peter Singer (2006, p. 20) escolheu uma posição utilitarista para seu projeto de ética prática, sugerindo que "[...] o aspecto universal da ética oferece, de fato, uma razão convincente, ainda que não conclusiva, para que se possa assumir uma posição francamente utilitarista". E mais adiante ele continua: "Inclino-me a sustentar uma posição utilitarista [...] Mas não pretendo ver o utilitarismo como a única posição ética digna de ser levada em consideração". (2006, p. 22).
Já o Kantismo parte de uma visão deontológica e não consequencialista, que sustenta um racionalismo moral para afirmar as aspirações kantianas da ética: se tais juízos éticos são juízos sintéticos a priori. A teoria moral kantiana está assentada nas razões e não em nossas intuições ou atitudes emocionais. Basicamente, as nossa razão nos exige que se eu sei que algo é errado, é motivo bastante para não fazê-lo. A questão principal é eu saber que algo é errado e não algo ser errado. O simples fato de mentir ser algo errado e motivo bastante para não mentir. Isso nos conduz a imperativos categóricos. Rawls, Alan Donagan, Christine Korsgaard são representantes contemporâneos de uma forma kantiana de ver o mundo.
A teoria dos direitos evoca os direitos individuais contra a força do estado nas suas decisões políticas. Alguns direitos são invioláveis, ou seja, são afirmações prima facie. Os direitos precedem as obrigações. Tenho obrigação em preservar a vida, primariamente porque tenho direito e preservação de minha vida – e não o contrário. Ronald Dworkin e W. D. Ross são sugestões do autor para estas questões ligadas a uma teoria dos direitos. Para Dworkin os direitos são mais fortes que as afirmações morais criadas para convívio em comunidade.
A teoria das virtudes é uma teoria independente das teorias anteriores. As teorias anteriores, principalmente a utilitarista e a deontologista, se assentam mais nas questões relacionadas sobre o que é o dever moral. Elizabeth Anscombe, ao observar que o excesso de normas morais não tornou o ser humano melhor, faz menção para que olhemos novamente para a questão do ser humano virtuoso – um retorno ao homem virtuoso de Aristóteles. Mas o que pode a teoria das virtudes ajudar a moralidade comum? De acordo com Beauchamp e Childress (2012, p. 380) as virtudes tornam as pessoas hábeis tanto para discernir sobre o que deve fazer, bem como estar motivado em fazer certas coisas em certas circunstâncias, sem a necessidade de regras preexistentes.
As teorias acima devem ser convergentes, e não competidoras, nas questões relacionadas à ética médica, conforme expõe Beauchamp e Childress (2013, p. 383-384). "We have maintained that there is no reason to consider one type of theory inferior to or derivative from the other, and there is good reason to believe that these types of theory all show insights into our common moral heritage and how it can be called upon to help us develop contemporary biomedical ethics."
Buscar um fundamento epistemológico da bioética é um passo importante para assentar suas bases conceituais e lidar com sua transição para uma maioridade científica. Essa transição já está em processo, uma vez que a bioética já obtém – podemos assim dizer – o monopólio das questões relativas aos procedimentos éticos em questões de pesquisas que envolvam questões médicas e de saúde pública. Além disso, é preciso dar cabo de todas as questões, listadas acima, que implicam na adoção de alguma posição moral, seja específica, seja em conjunto com outras, no caso de teorias convergentes. Como exemplo, podemos citar que a escolha de uma teoria suporte, tal como uma teoria utilitarista, implicaria a defesa de uma forma de universalismo, consequencialista, teleológico e cognitivista. Deve-se sempre ter em conta os custos e desafios ontológicos (metafísicos), epistemológicos, lógicos e éticos de tal escolha.
REFERÊNCIAS CONSULTADAS
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O autor é mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília, aluno especial da disciplina Fundamentos de Bioética – mestrado e doutorado – do programa de pós-graduação em Bioética da Universidade de Brasília.
[...] metaética, que envolve a análise da linguagem, conceitos e métodos de raciocínio em ética normativa. Por exemplo, metaética aborda o significado de termos como direito, obrigação, virtude, justificação, moralidade e responsabilidade. Ela também se preocupa com a epistemologia moral (a teoria do conhecimento moral), a lógica e os padrões de raciocínio moral e justificação, bem como a possibilidade e natureza da verdade moral. Se a moralidade é objetiva ou subjetiva, ou relativa ou não relativa e racional ou não racional são questões proeminentes na metaética. (Tradução livre)
Quando forem usados aqui os termos ética e moral ou filosofia moral, eles estarão sendo usados como sinônimos. Isso evitará incompreensões conceituais. Seguimos aqui neste sentido Peter Singer (2006, p.9) que usa indiferentemente estas duas palavras – ética e moral. (Tradução livre)
Alguns dos principais argumentos aqui apresentados, nestes parágrafos, podem ser encontrados em DIANA, G, M. O Debate entre o Não-Cognitivismo e o Cognitivismo Moral. 2004. 98 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Departamento de Filosofia, Universidade de Brasília, Brasília, 2004. Cap. 2.
De acordo com Wolney Garrafa (2005, p. 127) "os bioeticistas estadunidenses, principalmente, vêm trabalhando a bioética a partir de uma base conceitua estabelecida sobre princípios preestabelecidos. A teoria principialista, universalizada por Beauchamp e Childress, tomou como fundamento quatro princípios básicos – autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça –, os quais seriam uma espécie de instrumento simplificado para uma análise prática dos conflitos que ocorrem no campo bioético."
Outras abordagens às questões bioéticas, que não ficam presas apenas às questões dos princípios é a abordagem Sul Americana, de Volnei Garrafa (Universidade de Brasília) – denominada bioética de intervenção; e a de Miguel Kottow (Universidade do Chile) e Fermin Roland Schram (Escola Nacional de Saúde Pública – Fiocruz) – denominada de bioética de proteção – que lidam com problemas persistentes de grupos vulnerados que se verificam na realidade concreta, dentre outros autores.
Nossa crítica se concentra apenas na descrição teórica da moralidade. [...] Estamos preocupados com a popularização generalizada do principialismo para todo o mundo da ética biomédica [...]. Estes princípios foram claramente destinados a serem guias generalizados para proteger os seres humanos como sujeitos em pesquisas biomédica e comportamental. Além disso, eles parecem menos terem sido derivados de uma teoria de qualquer espécie e sim serem abstrações de regras éticas que expressam preocupações morais particulares. (Tradução livre)
Peter Railton agradece a Gideon Rosen que desenhou um primeiro esboço do quadro que segue e foi publicado no artigo "Realism" no Blackwell Companion to Metaphysics, J. Kim e E. Sosa (eds.), A Companion to Metaphisics (Oxford: Blackwell, 1995).
Este quadro foi primeiramente apresentado em (DIANA, 2004, p. 64-65).
Os defensores argumentam que uma teoria ou um conjunto de crenças morais está justificado se ele maximiza a coerência do conjunto global de crenças que são aceitos após análise reflexiva.
O método na ética, nesta consideração, devidamente começa com um conjunto de crenças que são aceitáveis inicialmente sem apoio argumentativo. Rawls chama esse ponto de partida de 'julgamentos considerados', isto é, as convicções morais em que temos a maior confiança e acreditamos que temos o menor preconceito. (Tradução livre)
Primeiro, elas dependem de crenças morais comuns compartilhadas como ponto de partida. Em segundo lugar, todas as teorias da moralidade comum afirmam que uma teoria ética que não pode ser consistente com os valores morais pré-teóricos cai em suspeição. Em terceiro lugar, todas as teorias da moralidade comum são pluralistas: elas contêm dois ou mais princípios morais, não absolutos (prima facie). (Tradução livre)
Sustentamos que não há nenhuma razão para considerar um tipo de teoria inferior ou derivada de outra, e há boas razões para acreditar que todos esses tipos de teorias mostram insights sobre nosso patrimônio moral comum e como ele pode ser considerado a nos ajudar a desenvolver a ética biomédica contemporânea. (Tradução livre)
Neste sentido pode ser conferido Larry Laudan. O Progresso e seus problemas: rumos a uma teoria do crescimento científico. São Paulo: UNESP, 2011.
Conferir neste sentido Ted Honderich (Ed.) The Oxford Companion to Philosophy. New York/Oxford: Oxford University Press, 1995, parte em que trata de Mapas da Filosofia (p. 927 ss).
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