Epistemologias do Sul: o jurista penal crítico e sua relação com as “Ciências Criminais”. Notas breves e circunstanciais

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Epistemologias do Sul: o jurista penal crítico e sua relação com as “Ciências Criminais”. Notas breves e circunstanciais

Foto de: Antonio Pedro Melchior

Hermes Lima, cuja história pessoal confunde-se com a história da luta contra o arbítrio em nosso país, cunhou a frase que está gravada na Sala da Congregação da Faculdade Nacional de Direito.1 O mestre nos legou teses fundamentais sobre o direito e também a tese mais importante que um acadêmico em minha opinião pode formular: a de que se ensina pelo exemplo de vida, no caso o exemplo de vida pública e de investigação no campo jurídico. Inspirado por ele talvez fosse o caso do jurista das ciências criminais na América Latina interpelar a si próprio: "que imagem vejo refletida no espelho?" Os trabalhos de Gizlene Neder revelam o quanto parcela dos juristas do Sul projeta um Outro, hipoteticamente superior do ponto de vista intelectual, europeu (e, 1

Material para um conceito de direito é o livro de Hermes de Lima correspondente à tese de concurso para a cadeira de Introdução à Ciência do Direito na Universidade do Rio de Janeiro. São Paulo: RT, 1933.

acrescento, norte-americano) no reflexo com o qual ainda hoje imagina se deparar. Instintivamente pode haver aí o desejo de ser reconhecido por este Outro espectral e a consciência de que o reconhecimento é imprescindível para a constituição da própria identidade como jurista. Não será considerado jurista, nestes termos, aquele que não domine as técnicas ou que não esteja imerso na racionalidade que provenha de uma cultura tradicional, devidamente consagrada. Uma cultura que segue formulando seus cânones no Norte do mundo globalizado, um Norte conceitualmente não territorial, mas constituído pela minoria da população mundial que tem acesso privilegiado a bens e serviços. Este parece ser um fenômeno comum às ciências sociais, que mesmo os pensadores do Norte reconhecem. Na esfera da teoria social, o britânico William Outhwaite lembra o quanto os sociólogos "demoraram a se mover para a teoria pós-colonial", enfrentando o desafio identificado por Raewyn Connel de fugir do senso comum teórico consistente em enfatizar as "diferenças entre a civilização da metrópole e outras culturas cuja principal característica era o primitivismo".2 Do lado de cá do planeta as coisas são vistas, experimentadas, vividas de outra maneira. Não há como separar o sujeito "cartesiano", com inspiração jesuítica, das atividades mundanas dos jesuítas, das práticas comerciais configuradas por franquias de exportação de escravos em favor da Companhia de Jesus. Os inacianos eram exportadores de escravos.3 Percebendo estes pontos de contato, Enrique Dussel irá interpelar a epistemologia, estabelecendo relações onde, aparentemente, elas não existem.4 Pensar o direito hoje, na América Latina, pressupõe considerar até que ponto as condições de reconhecimento no campo jurídico e a titulação de "capital científico" dependem ou não de reflexões estranhas à nossa realidade. O quanto reverenciamos Descartes contemporâneos, sejam eles pessoas ou corpus de ideias. 2

OUTHWAITE, Raewyn. Questão pendente. In: Teoria Social: um guia para entender a sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. p. 112. 3 ALENCASTRO, Luiz Felipe. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 13-14 e 36. 4 DUSSEL, Henrique. Meditações Anticartesianas sobre a origem do antidiscurso filosófico da modernidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez. 2010, p. 352.

Não se trata apenas de uma questão de identificação das experiências propriamente jurídicas do Sul do mundo. A formulação das categorias necessárias à inteligibilidade e detecção da intencionalidade subjacente a essas experiências não são forjadas com independência da realidade social. O divórcio entre categorias e realidade social, no campo penal, é medido em vidas sacrificadas, em violência crua e em simbologias que, convertidas em "liturgias jurídicas", mimetizam instituições "republicanas e democráticas" que nem de longe são objeto de reconhecimento em nossa vida social. Entre as "instituições simuladas" o processo penal tem inegável destaque. Vejo com frequência reclamações dirigidas a juízes e tribunais, no sentido de que fazem uma "má aplicação" das leis e da Constituição, como se ao não seguirem o figurino europeu-norte-americano preconizado por nossa academia estes juristas práticos fossem uma espécie de "ignorantes" ilustrados. Contradição evidente. Os juristas em sua maioria estão convencidos de que entregam aos operadores uma "mercadoria íntegra", que estes danificam ao manipular erradamente. Não se questionam sobre o que entregam e em que circunstâncias o fazem. Claro que existem exceções e estas constituem uma espécie de resistência fundada no pensamento indisciplinar/indisciplinado. Tem havido no Brasil e na América Latina em geral, especialmente entre algumas juristas, reação decidida à forma tradicional de ver as coisas. O pensamento descolonial (ou decolonial) cobra uma perspectiva diferenciada do direito, que coloca em questão desde os conceitos particulares das diferentes áreas do saber jurídico até setores inteiros do direito, instituições que na vivência cotidiana são legitimadoras de arbítrios, abusos, injustiça. Pode-se dizer que, para usar uma imagem cara a LF de Alencastro, parte de nossa comunidade jurídica, obsequiosa com os padrões/standards das tradições do Norte, segue observando a Lua como antes dos vôos espaciais: somente "do lado que reflete o sol". Outra parte não admite ignorar a experiência que insiste em mostrar os efeitos dramáticos da exploração. Esse grupo de juristas e suas práticas são exemplares e

remetem à passagem da clássica tragédia de Shakespeare, Julio César: "Casca_ Cada escravo tem na própria mão o poder para cancelar o próprio cativeiro." O cativeiro concreto é sem dúvida causador de um sofrimento incomensurável. O cativeiro intelectual não é menos problemático, porque em geral faz do Outro a sua vítima, na forma do corpo sacrificado. A ambiência de nossa Faculdade, acrescentaria, é indisciplinar, voltada para a liberdade e a dignidade de todos os seres humanos.

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