Equidade, Desenvolvimento Sustentável e Preservação da Biodiversidade: algumas questões sobre parceria ecológica na Amazônia

July 15, 2017 | Autor: D. Lima | Categoria: Conservation, Community Based Natural Resources Management, Amazonia
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EQUIDADE, DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E PRESERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE: ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A PARCERIA ECOLÓGICA NA AMAZÔNIA Deborah de Magalhães Lima Departamento de Antropologia CFCH - UFPa Belém – Pará

(In: Faces do Trópico Úmido - conceitos e questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. Edna Castro e Florence Pinton, (eds). Belém: Cejup, 1997.)

A mobilização de populações locais pela defesa de recursos naturais essenciais para sua sobrevivência e a proliferação de organizações não governamentais que atuam em prol da preservação do meio ambiente são dois movimentos sociais encontrados na Amazônia hoje. Não raramente, estes movimentos se aliam, como no caso do movimento dos seringueiros e do movimento pela preservação de lagos. A essa parceria Hall (1994) chamou de "movimentos sócio-ambientais", ressaltando que a força das mobilizações locais se baseia justamente na aliança que estabelecem com organizações voltadas para a conservação produtiva da Amazônia. Em alguns casos a pressão política exercida por esses movimentos conseguiu obter respaldo governamental para legalizar suas propostas e um dos mecanismos jurídicos usados foi a criação de novas categorias de unidades de conservação, ou a redefinição de categorias já estabelecidas. A implantação de várias unidades de conservação na Amazônia se baseia em alianças deste tipo, como é o caso da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá,

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das diversas Reservas Extrativistas, do Parque Nacional do Jaú e da Floresta Nacional do Tapajós. Pela legislação federal, as unidades de conservação estão divididas em duas categorias: as de uso direto, que compreendem vários tipos de unidades onde o manejo sustentável é permitido, e as unidades de conservação de uso indireto, onde a preservação é integral. Existem 112 unidades de conservação federais e estaduais na Amazônia, que cobrem 420.000 km2 ou 8,7% da Amazônia Legal (Rylands, 1995). Somadas, as unidades de conservação de uso direto cobrem 245.910 km2, ou 4,9% da Amazônia Legal, uma área equivalente ao Reino Unido. Isto nos dá uma dimensão da área onde atuam ou vão atuar populações locais e conservacionistas em parceria. Há ainda vários projetos de desenvolvimento sustentado sendo implantados em áreas da Amazônia que não pertencem a unidades de conservação. A maioria dos projetos onde se dá essa parceria teve início no final dos anos oitenta e início desta década, quando mudanças no cenário sócioeconômico da Amazônia e o desenvolvimento de novos conceitos teóricos na biologia da conservação contribuíram para a formação de uma conjuntura favorável a sua implantação. O fator responsável pela formação desta conjuntura

foi

o

reconhecimento das

consequências

negativas

do

desenvolvimento de empreendimentos capitalistas na Amazônia que levaram a uma rápida devastação das florestas e a extinções localizadas de alguns recursos naturais, pondo em risco a biodiversidade da região e ameaçando a sobrevivência de populações locais. A construção de estradas e barragens, os incentivos à ocupação da terra por empresas capitalistas, o crescimento da pecuária, o crescimento das cidades e desenvolvimento da pesca comercial que levaram a um aumento da pressão sobre estoques pesqueiros da várzea,

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afetaram diretamente populações locais e chamaram a atenção da comunidade científica e da opinião pública nacional e internacional para a devastação da Amazônia. Ao mesmo tempo, a decadência do sistema de aviamento tradicional abriu espaço para a participação política das populações locais, antes presas à patronagem (Aramburu, 1994), que se mobilizaram para defender seus direitos sobre as áreas que ocupavam. A aliança entre ambientalistas e populações locais também foi favorecida pela existência de políticas de financiamento de instituições governamentais e não governamentais do Primeiro Mundo que, seguindo novas estratégias para a conservação, privilegiam projetos que integram conservação e populações locais. A proposta deste trabalho é discutir o envolvimento de populações locais na implantação de unidades de conservação a partir de uma reflexão sobre a experiência de Mamirauá, uma unidade de conservação que está sendo implantada em parceria com comunidades engajadas no movimento de preservação de lagos. Um aspecto importante a ser discutido é a concepção de populações tradicionais presente no pensamento ambientalista e recentemente incorporado na revisão, em andamento, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Atendendo às demandas geradas pelo movimento sócio-ambiental, o substitutivo em discussão propõe a criação de novas categorias de unidade de conservação que incluem populações humanas, cunhadas na proposta como populações tradicionais. A generalização do conceito de populações tradicionais tende a simplificar a diversidade de situações sociais e, mais grave, implicar em uma expectativa de permanência da pequena produção familiar, privilegiada pelo movimento ambientalista justamente por ser mais propícia à aceitação de modelos de uso sustentável do que a produção capitalista. Sem uma reflexão

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adequada, as expectativas conservadoras do modelo de uso sustentado podem ir contra a autonomia destas populações de decidir sobre seu futuro frente às aspirações modernas de níveis de consumo e definição de bem estar. De fato, a parceria ecológica tem sido constituída com base na desigualdade social. As populações pobres, no entanto, estão sendo integradas às unidades de conservação sem que se tenha definido com clareza a meta social a ser atingida. A única norma definida para o desenvolvimento, entendido como melhoria das condições de vida, é restritiva - que as atividades humanas não contrariem o objetivo de preservação da biodiversidade. Do ponto de vista conservacionista, a permanência de populações humanas é em si um benefício oferecido às populações, uma concessão de risco que se troca pela aceitação política da unidade de conservação e pela adoção de normas de uso sustentável dos recursos que servem para amortecer o contato da fronteira das áreas de preservação total com áreas não conservadas ao seu redor. Para as populações locais sua inclusão envolve uma série de sacrifícios que não são divididos igualmente com o resto da sociedade. É certo que em nenhum dos projetos em curso se verifica coersão, pelo contrário, o diálogo e o fortalecimento político das populações são procedimentos respeitados. Mesmo assim, não se pode deixar de reconhecer que o comportamento econômico que se espera destas populações, justificável em termos de um modelo ideal de adaptação humana ao meio ambiente, não é exigido de outros segmentos sociais. A

implantação

de

projetos

integrados

implica

em

várias

modificações na organização social das populações, nas suas relações de trabalho e no seu acesso e uso dos recursos. Como os recursos existentes nas áreas destinadas à exploração humana tendem a ser comunais, é possível que a população envolvida mantenha, internamente, uma ordem social mais

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igualitária, fundada na ausência de privilégios para o acesso aos principais meios de produção, terra e água. A organização social que se configure, mais ou menos igualitária, no entanto, estará inserida em uma ordem social diversa, com a qual a população local possui laços de dependência e que oferece ao meio urbano, e não o rural, seus maiores benefícios. É necessário, portanto, pensar também na fronteira social deste modelo de preservação da biodiversidade. Outro ponto importante a discutir é que critérios são usados para reconhecer determinados grupos sociais como populações tradicionais e atribuir a esses grupos, excluindo de outros, o direito de permanência em unidades de conservação. Em muitos casos, a parceria ecológica corre o risco de se envolver em conflitos locais e ser manipulada por grupos sociais que competem por territórios e pelo direito exclusivo ao uso de recursos naturais.1

A EXPERIÊNCIA DE MAMIRAUÁ A Reserva de Mamirauá é a maior unidade de conservação brasileira localizada inteiramente em área de várzea. Está situada no Estado do Amazonas, entre os rios Japurá, Amazonas e o Auati-Paraná, uma região de florestas inundadas que permanecem 6 meses submersas e sofrem variações anuais de até 12 metros no nível das águas. Decretada em 1990 pelo governo do Amazonas, possui uma área total de 11.240 km2. Desde 1991, um total de 80 pesquisadores, extensionistas e pessoal de apoio já participou de estudos e trabalhos de extensão destinados a implantar a reserva e elaborar seu plano de

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Ver por exemplo a discussão de Araújo (1994) sobre o conflito entre comunidades do Lago Grande de Monte Alegre gerado por uma portaria do IBAMA que fechou uma área do lago a pescadores comerciais. As comunidades incluídas na área preservada não querem permitir a entrada de comunidades que, mesmo localizadas no lago, ficaram fora da área protegida.

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manejo.2 Este trabalho inicial está sendo feito em uma área focal de 260.000 ha, localizada entre os rios Japurá, Solimões e o paraná do Aranapu, e os resultados alcançados servirão de base para a implantação do restante da reserva. Além de sua importância biológica conferida pelo alto número de espécies endêmicas, a implantação desta unidade de conservação desenvolve uma experiência nova ao incluir as populações de residentes e usuários da reserva no seu processo de implantação. A criação da reserva foi baseada em uma proposta inicial encaminhada pelo biólogo Márcio Ayres à antiga Secretaria do Meio Ambiente (SEMA) em 1984 para a conservação de uma área menor, de 712km2, destinada a preservar duas espécies de primatas, o uacari branco e o macaco-de-cheiro-de-cabeça-preta

(Cacajau

calvus

calvus

e

Saimiri

vanzolinii). Após o Estado do Amazonas decretar a reserva com uma área maior, que coincide com toda a distribuição do uacari branco, a Secretaria de Meio Ambiente Ciência e Tecnologia do Estado do Amazonas (SEMACTAm) assinou um convênio com o CNPq e Ministério do Meio Ambiente para a implantação da reserva. O Projeto Mamirauá foi criado com esse objetivo, e está ligado diretamente ao CNPq, inicialmente alocado no Programa do Trópico Úmido e atualmente na Diretoria de Institutos. Recebe apoio financeiro e logístico de várias instituições governamentais e nãogovernamentais do Brasil e exterior.3

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Para uma descrição dos programas de pesquisa do Projeto Mamirauá, ver Lima Ayres, Moura e Ayres, 1995. As principais instituições de apoio são CNPq, Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Federal do Pará, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, SEMACT-Am, Overseas Development Administration (ODA), World Wide Fund for Nature (WWF), Wildlife Conservation Society (WCS), European Union (EEC), e Aqualung.

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Paralelamente, foi criada a Sociedade Civil Mamirauá, em 1992, com o objetivo principal de administrar com maior flexibilidade os recursos recebidos

para implementar as atividades do projeto, além de se

responsabilizar pela manutenção a longo prazo do funcionamento da reserva. A parceria entre uma não-governamental e instituições governamentais combina a agilidade de manusear orçamentos com a garantia de continuidade dada por uma instituição governamental. No caso, o CNPq assegurou recentemente a continuidade do projeto se responsabilizando por 40% de seu orçamento e está criando um instituto de pesquisa sobre a várzea em Tefé. Originalmente, Mamirauá foi decretada como Estação Ecológica, uma categoria incompatível com o modelo sendo implantado. O fato de ser uma reserva estadual facilitou a aceitação da proposta de trabalho "irregular" pela SEMACT, o que não aconteceria caso fosse uma unidade de conservação ligada diretamente ao governo federal. A questão da legalidade do modelo adotado foi resolvida este ano com a mudança para uma categoria nova, chamada "Reserva de Desenvolvimento Sustentável" definida no projeto de lei elaborado pelo Professor Nelson Ribeiro. Esta categoria não obedeceu ao SNUC porque os modelos jurídicos existentes não eram adequados à realidade de Mamirauá. O Estado do Amazonas portanto apresentou uma inovação ao legislar autonomamente sobre unidades de conservação. A categoria se caracteriza essencialmente pela conjugação de três elementos:

preservação

do

patrimônio

natural,

pesquisas

sobre

a

biodiversidade e combate à pobreza pela promoção do desenvolvimento sustentado. A legislação prevê a implantação gradual da reserva, sendo que cada etapa se finaliza pela aprovação, por decreto, de um Plano de Manejo. Assim, a primeira etapa de implantação está sendo concluída com a

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finalização da redação do primeiro Plano de Manejo, que se refere à área focal da reserva (Projeto Mamirauá, 1996).

O MODELO Projetos que integram conservação e desenvolvimento comunitário (integrated conservation and development programmes ou ICDPs), também chamados na literatura de projetos de conservação baseados na comunidade (community based conservation ou CBC) têm gerado várias discussões sobre as implicações da integração de populações humanas aos objetivos de conservação da biodiversidade (Redclift, 1989; Robinson, 1993; Western & Wright, 1994). Em todos os projetos em andamento, o conceito de "sustentabilidade" é utilizado, principalmente após a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio em 1992. Com a controvérsia decorrente do uso deste termo associado à noção de desenvolvimento (desenvolvimento sustentado significando "crescimento constante", o que não denota a intenção proposta), a opção de emprego do conceito de uso sustentado de recursos naturais tem sido preferida. Não obstante, o objetivo de promover o desenvolvimento, no sentido de promover a melhoria de condições de vida das populações pobres que habitam a maior parte das áreas onde estes projetos são realizados, tem sido perseguido. Ocorre, portanto, a integração de dois conceitos, nem sempre bem definidos: sustentabilidade e desenvolvimento, este último como condição de eliminar a pobreza, considerada, ironicamente, como fator de depredação ambiental. Os conceitos de sustentabilidade e desenvolvimento denotam processos enquanto que a condição de pobreza seria o sujeito sobre o qual estes processos agiriam. O conceito de conservação utilizado atualmente é derivado desta integração de processos, como tem defendido seus

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proponentes mais modernos. De fato, a literatura atual sobre conservação apresenta o envolvimento da população local como uma estratégia aceita mundialmente. No Brasil, no entanto, ainda encontramos resistência `a aplicação deste modelo por parte de defensores da noção ortodoxa de preservação integral, com exclusão de qualquer interferência humana, em órgãos ambientais do governo. Em projetos integrados o conceito de sustentabilidade (ou manutenção ao longo do tempo) tem sido empregado de duas formas: para denotar a sustentação dos processos biológicos e evolutivos que se baseiam na não interferência humana em determinadas áreas destinadas à preservação da biodiversidade; e sustentabilidade dos recursos explorados pela população local. Nestes projetos há várias estratégias de integração da população humana: integração total, sem zoneamento; com zoneamento concêntrico e definição de zonas tampão; ou, como se desenvolve no Mamirauá, mosaicos de áreas com diferentes categorias de uso que, num certo sentido, seriam múltiplas áreas concêntricas, com possíveis interseções. A princípio, as populações locais devem garantir os dois princípios de sustentabilidade. Serviriam para garantir a sustentabilidade do uso, a partir da adoção de regras de manejo, e atuariam como vigilantes que garantiriam a sustentabilidade dos processos evolutivos e manutenção da biodiversidade nas áreas intocadas. Isto implica, para as populações humanas, em uma restrição do uso livre do espaço. Este sacrifício das populações humanas em projetos integrados só é aceito se acompanhado de um benefício utilitário concedido em troca. Em geral, este sacrifício tem sido justificado a partir da garantia dada à população local da manutenção seu modo de vida, por assegurar a não extinção dos recursos naturais mais importantes para sua sobrevivência. Portanto, uma terceira proposta de sustentabilidade se configura, que é a de

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continuidade da população ao longo do tempo. Isto implica na manutenção do processo de reprodução da população, processo este que envolve variáveis sociais e ecológicas. A garantia desta reprodução social requer um programa contínuo de pesquisas e monitoramentos que integrem as ciências naturais e sociais, como será discutido. Sendo uma experiência recente, a presença humana em unidades de conservação suscita muitas questões, a maioria sem respostas no momento. Questões mais diretas envolvem o desenvolvimento de pesquisas básicas da biologia das espécies de valor econômico, direcionadas para a definição de critérios de sustentabilidade e regras para manejo. Há questões mais complexas que implicam na tomada de decisões estratégicas, específicas para cada unidade de conservação. Por exemplo, em Mamirauá a questão das zonas de assentamento humano se depara com um problema específico da várzea que é o fato do ambiente ser instável. A solução encontrada pela população para sobreviver em uma área de intensa modificação geomorfológica é mudar o local do assentamento (Lima Ayres e Alencar, 1993). A definição das áreas de assentamento humano então precisa ser considerada temporária e revista periodicamente. Outro aspecto importante é a densidade demográfica. Em Mamirauá, por exemplo, a densidade demográfica atual é de 0,6 hab/km2. No presente, a população, embora estável numericamente, mostra-se altamente móvel, ou seja, há entrada e saída de indivíduos e famílias na área. Esta estabilidade numérica é mantida por uma alta taxa de emigração que compensa a taxa de crescimento da população, em torno de 4,1% ao ano. A questão se esta situação é desejável ou não para a preservação da biodiversidade não pode ser respondida de imediato. De qualquer modo, assegurar a densidade demográfica que se considere ideal vai implicar em discussões avançadas

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com a população local. Este é um exemplo de questões que necessitam de pesquisas futuras para serem respondidas. Projetos integrados apresentam a intenção de promover a melhoria das condições de vida da população como "retorno" por

sua cota de

sacrifício e como incentivo à sua aceitação da proposta de preservação. A razão política e ética de incluir a população humana, e não só as espécies ameaçadas de extinção, nos trabalhos de conservação e de manutenção de condições adequadas de reprodução e sobrevivência, é também pertinente, mas esta extensão do conceito de natureza a ser preservada é ainda tênue. A inclusão de populações humanas em unidades de conservação apresenta ainda muitas ambiguidades. Ao lado da questão de conhecer e garantir a reprodução social da população está a definição do "bem estar" desta mesma população. Mas exatamente o que se pretende e em que áreas se tem o direito de atuar? Tomando como exemplo o projeto Mamirauá, sua atuação tem sido direcionada às áreas de saúde, saneamento, e educação ambiental, respeitando os limites da atuação da sociedade civil em relação às obrigações do Estado. O trabalho de incentivo à participação comunitária também contribui para a melhoria das condições de vida na medida em que respeita os direitos da população sobre o uso do ambiente e promove o sentido de cidadania. Há ainda trabalhos de extensão agrícola e em silvicultura, com o objetivo de melhorar a produção, e propostas de implantação do turismo ecológico. Reconhece-se, portanto, que a reprodução social da população não oferece condições condizentes com os padrões modernos de bem estar social. Quadros da reprodução como alta taxa de mortalidade infantil, baixa escolaridade e situação sanitária precária, não representam situações adequadas de reprodução em relação aos padrões modernos.

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Os economistas medem "bem estar" pelo consumo, que, em sociedades inteiramente capitalistas, é medido pelo gasto monetário e confrontado com a poupança que a população decide fazer da sua renda. Frente a áreas onde a economia capitalista é totalitária, a situação econômica das

populações

integradas

a

unidades

de

conservação

apresenta

características distintas, comuns às sociedades camponesas modernas. Seu consumo é proveniente tanto da produção direta quanto do consumo de artigos industrializados adquiridos no mercado a partir da venda de produtos extraídos ou cultivados nas reservas. O aumento da renda monetária é apenas um indicador de condições de vida, e envolve critérios subjetivos de nível de satisfação das necessidades de consumo. Dada a prioridade de preservação da biodiversidade, também considerada indicador de condições de vida, deverão ser atribuídos normas e limites à exploração das espécies ameaçadas de extinção, o que talvez iniba o crescimento da renda monetária e do consumo indireto. O tipo de reprodução social das populações rurais da Amazônia, no entanto, facilita, por assim dizer, a definição de limites ao volume da produção. Sendo produtores familiares, têm sua capacidade de produção limitada pela mão de obra familiar. Têm também uma reprodução ligada a uma circulação simples de mercadorias, vendidas para comprar outras mercadorias. A circulação simples tem seu crescimento limitado, enquanto que a mercantil-capitalista apresenta possibilidades diretas de crescimento. No momento a reprodução social destas populações é do tipo camponesa, mas se, no futuro, os sistemas de manejo desenvolvidos pelos cientistas obtiverem resultados positivos e elevarem a densidade dos recursos manejados, a população poderá abandonar suas características de campesinato e adotar novas estratégias econômicas, como pequenos

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empresários ou capitalistas. Esta possível transformação econômica poderá ter duas implicações: requerer um maior controle e regulamentação do uso dos recursos para evitar uma sobre exploração, ou, se o empreendimento se tornar efetivamente organizado, pode facilitar a promoção do manejo sustentado a partir de um interesse espontâneo de empresários “esclarecidos” em desenvolver um gerenciamento planejado dos recursos naturais.

O MOVIMENTO DE PRESERVAÇÃO DE LAGOS A área de várzea do Médio Solimões é formada por centenas de corpos d’água chamados regionalmente de lagos, mas que na verdade são pequenos canais e paranás que cortam a região. São alargados em alguns trechos que ficam isolados na época da seca. Na cheia os cursos d'água são interligados e há dispersão dos peixes. São estes lagos o objeto de conflitos entre ribeirinhos e pescadores profissionais, principalmente na época seca, quando a pesca se torna mais produtiva pela concentração de peixes nestes lagos. A história do movimento de preservação de lagos teve início nos anos oitenta, a partir do apoio dado pela Igreja, através da Comissão Pastoral da Terra (CPT), para a organização do movimento. O conflito entre pescadores e ribeirinhos é, no entanto, anterior, e seu início coincide com decadência do sistema de aviamento. Por ser formada por áreas anualmente alagadas, não há propriedades privadas na várzea do Médio Solimões, classificadas pela legislação como terras de marinha. Mesmo assim, nas chamadas feitorias, patrões controlavam

a

exploração

dos

lagos

em

que

comercializavam,

principalmente, pirarucu e quelônios. Com a saída dos patrões, a ocupação humana da área se modificou. Os assentamentos passaram a se localizar quase exclusivamente nas margens dos grandes rios, por onde passam

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regatões, e o uso dos lagos ficou aberto para os moradores de assentamentos próximos. Um sistema informal de definição de territórios se formou, com cada assentamento, composto em média por oito grupos domésticos ligados por laços de parentesco, ocupando uma área correspondente à sua demanda por terras altas para agricultura e lagos para pesca. Nessa mesma época o Movimento de Educação de Base (MEB) começou a formar lideranças e, através da catequese, instituiu um sistema de representação política com a eleição de cargos de presidente, vice-presidente, secretário e tesoureiro. Os assentamentos que adotaram este sistema, antes chamados vilas ou sítios, passaram a se denominar comunidades. O termo comunidade tem, na região do Médio Solimões, portanto, a conotação de um tipo particular de organização política ligada à Prelazia. Posteriormente, a funcionalidade

desta

organização

foi

reconhecida

por

instituições

governamentais e não governamentais que atuam no meio rural e hoje ela perdeu a conotação estreita de um movimento da Igreja. Entretanto, a organização comunitária é mais forte nas comunidades que continuam participando dos treinamentos e reuniões promovidos pela Prelazia. A partir dos anos sessenta, com crescimento das cidades, houve um aumento na demanda de peixe e os pescadores profissionais, utilizando instrumentos que permitem um maior volume de pesca como as malhadeiras e redes de arrastão, passaram a explorar, com vantagem, os mesmos lagos em que os ribeirinhos pescam artesanalmente. O agravamento do conflito entre ribeirinhos e pescadores na década de setenta motivou a CPT, da antiga regional Amazonas/Roraima, a organizar várias reuniões entre ribeirinhos e pescadores para tratar da questão. Os ribeirinhos justificavam sua insatisfação não apenas por causa da competição desigual mas principalmente porque a exploração dos lagos era excessiva, e diminuía consideravelmente os

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estoques das espécies mais importantes. Sendo o peixe tanto a principal fonte de alimentação como de renda monetária, os ribeirinhos encararam a questão como uma luta por sua sobrevivência. Adotaram posturas agressivas para defender seus lagos, a exemplo dos empates dos seringueiros. Em 1986, a Pastoral de Tefé, liderada pelo falecido Irmão Falco, idealizou um sistema de preservação de lagos com o objetivo de garantir a sobrevivência dos ribeirinhos, chamado “Lei da Pesca”. Em várias reuniões, representantes comunitários foram incentivados a guardar dois lagos: um totalmente preservado, para a procriação dos peixes, e outro para a pesca de subsistência, chamado de lago de manutenção. Como os lagos se comunicam na cheia devido à variação sazonal do nível d’água, a preservação dos lagos na época seca garante o abastecimento dos lagos de manutenção das comunidades. Foram formados comitês de pesca encarregados de vigiar os lagos para proibir a entrada de peixeiros, porém surgiram problemas entre os próprios moradores. Alguns comunitários não aderiram à proposta e negociavam a entrada de peixeiros nos lagos em troca de promessas de receber dinheiro ou bens materiais, como motor de popa, nem sempre cumpridas. Outras vezes a comunidade mesmo decidia pescar nos lagos preservados, enfrentando o dilema de ter que decidir entre a economia da preservação e a necessidade da sobrevivência. A pressão exercida pelo movimento de preservação de lagos conseguiu sensibilizar algumas prefeituras do Médio Solimões que incluíram listas de lagos de procriação e de manutenção nas suas leis orgânicas, mas não alcançaram apoio legal do IBAMA para autuar invasores nem para obter portarias que determinassem o fechamento dos lagos (como conseguiram comunidades

do

representados

pela

Baixo

Amazonas).

Colônia

de

Os

Pescadores

pescadores de

Tefé,

profissionais, alegam

a

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incompatibilidade entre a legislação municipal e a federal, defendendo seu direito constitucional de ir e vir. Sem apoio legal efetivo, o movimento conta apenas com o apoio moral de não-governamentais como a CPT e com a perseverança de lideranças comunitárias que acreditam na eficácia do manejo de lagos. Na área de atuação da Prelazia de Tefé, que compreende os municípios de Tefé, Japurá, Alvarães, Maraã, Fonte Boa, Uarini, Jutai, Carauari e Itamarati, existem atualmente 143 lagos de preservação e 167 lagos de manutenção que envolvem diretamente 2.136 famílias (Ternus, 1996). O MEB passou a integrar as instituições de apoio ao movimento em 1992, quando criou o Grupo de Preservação e Desenvolvimento (GPD) que agrega 35 comunidades dos municípios de Tefé, Alvarães e Maraã. Por causa da ligação do movimento à Igreja Católica, as comunidades crentes se mantiveram afastadas. Uma crítica ao modelo católico feita por alguns pentecostais foi a de que o movimento promoveria a pobreza e não o desenvolvimento

por

não

definir

uma

categoria

de

lagos

para

comercialização. Ultimamente porém, a CPT, refletindo sobre a história do movimento, fez uma revisão da proposta original na qual sugere: a promoção geral da preservação, a busca de apoio de instituições de pesquisa para desenvolver sistemas de manejo que funcionem com bases científicas, estudar alternativas econômicas, definir critérios para a comercialização racional do peixe, instituir um sistema de rodízio dos lagos de procriação e manutenção, e fortalecer as bases através da criação de uma associação de preservadores nas comunidades (CPT-Amazonas,1996). Entre as diversas não-governamentais atuando em parceria com comunidades pela causa ambiental, a CPT talvez seja a que apresenta sua posição ideológica com mais clareza:

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“A ação da CPT deve redefinir constantemente a compreensão de pastoral, (…) entendida como a ação da comunidade para a libertação e desenvolvimento integral da pessoa humana e da natureza; a Pastoral da Terra, solidária com as lutas de resistência e iniciativas das classes subalternas no campo busca resgatar o termo ‘Sobrevivência’ como conteúdo da construção da nova sociedade (...). A partir do resgate da Teologia da Criação e de concepções culturaisreligiosas dos Povos da Floresta (…), a CPT entende a questão ecológica como a necessidade de lutar pela preservação/libertação da pessoa humana integrada e a serviço da criação (Gn. 20). A criação como ato contínuo de Deus, possui o direito universal da vida e coloca a pessoa humana como co-criador ou recriador da natureza. A luta permanente contra o caos (injustiça social e destruição ambiental), na busca da libertação integral, resgata esta dimensão recriadora da pessoa humana. Esta postura pressupõe uma profunda mudança na atual compreensão do progresso como lucro e acumulação” (CPT - A Grande Região Noroeste, 1996).

Inspirada na Teologia da Libertação, a CPT é também a instituição que apresenta a proposta mais radical em relação à transformação da sociedade, considerada como condição básica para se alcançar os objetivos de conservação da natureza. Sendo sua a proposta mais utópica, talvez seja a que mais dificuldade tenha de compartilhar seus ideais com os da população com a qual trabalha.

A PARTICIPAÇÃO DA POPULAÇÃO EM MAMIRAUÁ O envolvimento da população na implantação de Mamirauá, iniciado em 1991, em muito se valeu da precedência do movimento de preservação de lagos. O primeiro passo foi a realização de uma consulta à população residente, que não sabia da existência da demarcação da área, para propor sua participação. Foi somente porque houve uma resposta positiva da maioria da população, pelo fato da reserva atender a necessidade de apoio

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legal do movimento de preservação de lagos, que se deu continuidade aos trabalhos. A experiência de envolver a população de Mamirauá retrata a dificuldade específica de implantar este modelo novo de unidade de conservação a partir de uma proposta externa, que não partiu originalmente de uma demanda local. A transformação de um projeto vertical em um projeto horizontal, com a participação da população na gestão dos recursos e na elaboração do plano de manejo, é um processo longo. O projeto Mamirauá levou cinco anos até obter o apoio de praticamente todas as 60 comunidades diretamente afetadas pela criação da reserva.4 A organização de um sistema para a participação comunitária foi facilitada pela existência não só do movimento de preservação de lagos mencionado anteriormente como também pelo fato das comunidades já terem uma organização política formada com uma prática de discussão democrática de seus problemas desenvolvida desde o final da década de 1960 pelo MEB. Para facilitar o trabalho das lideranças no processo de definição de suas áreas de preservação, as comunidades de moradores e usuários da área focal foram agrupadas em 9 setores políticos. Cada setor tem um coordenador que organiza reuniões bimestrais e todas as lideranças comunitárias se reúnem anualmente em assembléias gerais. Apesar da participação ativa de representantes comunitários na escolha de áreas para preservação, as decisões tomadas em reuniões formais sofreram várias mudanças e surgiram disputas entre comunidades por lagos.

4

Além da população residente, as atividades do projeto envolvem comunidades do entorno que foram identificadas como usuárias de áreas da reserva e que dependem deste uso para realizar diversas atividades econômicas essenciais para sua sobrevivência. No total, 5.277 pessoas estão diretamente envolvidas, 1.668

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Os casos de conflito na escolha de áreas remetem a problemas políticos internos das comunidades, relacionados com a organização social dos povoados. Os assentamentos são formados por grupos domésticos ligados por laços de parentesco e há casos de disputa de autoridade entre parentelas distintas. A organização política formal implantada pelo MEB e reproduzida pelo projeto se sobrepõe a essa organização primária. Em alguns casos a liderança formal tem mais legitimidade na sua função de articular a comunidade com instituições externas do que no tratamento de questões da comunidade mesmo. Além disso, há divergência entre especializações econômicas dos chefes de domicílios, principalmente entre os que se dedicam mais à agricultura e os que obtêm maior parte de sua renda monetária da pesca. Essas divergências se refletem nas escolhas dos lagos de preservação e no compromisso de preservá-los. Dos 616 lagos registrados na área focal, em torno de 200 foram classificados pelas comunidades nas três principais categorias de zoneamento (para preservação, para subsistência e para comercialização). A disputa por alguns desses lagos, entre comunidades vizinhas e dentro das próprias comunidades, se refere a concepções de uso distintas e interesses econômicos contrários. Dois conflitos existentes, um entre a Colônia de Pescadores e comunidades, e outro referente à comunidade indígena Porto Praia, revelam a dificuldade de intervir imparcialmente, buscando a solução compatível não com interesses particulares mas com os objetivos da implantação da unidade de conservação. A decisão de permitir a pesca comercial, tomada em assembléia, se baseou no fato de que entre 10 e 20% do peixe vendido no mercado de Tefé que moram em 23 assentamentos localizados dentro da reserva, e 3.609 usuários de 37 comunidades fora da reserva.

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provém da área focal da reserva. Ficou acertado que a Colônia de Pescadores negociaria com um setor, o Jarauá (ver mapa), os lagos em que pescariam e o tipo de instrumentos de pesca permitidos. Até hoje, porém, este acordo não foi alcançado porque a Colônia insiste em pescar nos mesmos lagos que as comunidades. Também discutem as bases da diferenciação entre eles e os comunitários, alegando que se estes pescam para a venda são também pescadores e devem se registrar oficialmente como profissionais para ter direito a comercializar o pescado.

Sentindo-se marginalizados pelo

movimento de preservação, não têm comparecido às ultimas reuniões marcadas, estacionando o processo de negociação. Outro caso que mostra como o movimento ambientalista pode se envolver com disputas locais por territórios e pelo direito de uso de recursos refere-se à disputa entre a comunidade indígena Porto Praia, de descendentes de Ticunas, e comunidades vizinhas, pertencentes ao setor Liberdade (ver mapa). A definição da categoria de uso de dois lagos, Urucuri e Baú, tem sido disputada por essas comunidades antes mesmo da reserva ser decretada. Após várias negociações mediadas por extensionistas do projeto, o setor Liberdade, formado por 13 comunidades, firmou uma aliança para uso coletivo de alguns lagos e reservou o lago Urucuri para preservação. A comunidade Porto Praia não obedeceu ao acordo por querer o lago Urucuri para sua manutenção e comercialização, e invade frequentemente as áreas de preservação do setor tanto para pescar como para extrair madeira e caçar. O conflito se agravou com a proposta para criação da área Indígena Porto Praia. A portaria da Funai é de 1994, posterior portanto ao decreto que criou Mamirauá. A primeira proposta gerou muita polêmica porque a extensão sugerida, 10% de toda a área focal, afetaria não só as comunidades vizinhas mas também comunidades dos setores Jarauá e Horizonte.

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Atualmente Porto Praia não quer permitir o acesso das comunidades vizinhas ao que considera sua área, mesmo que ainda não tenha sido demarcada. A afirmação da diferença étnica dá a Porto Praia o privilégio de assegurar um território disputado desde 1987. A revolta dos ribeirinhos se refere ao fato de que eles foram os primeiros ocupantes da área, tendo lá chegado nas primeiras décadas deste século, enquanto que os residentes de Porto Praia chegaram de Fonte Boa em 1972 e agora: “querem por placa e tomar a área”. É fato conhecido na região que os moradores de Porto Praia se recusam a participar do movimento ecológico. A demarcação da área e afirmação de sua identidade étnica está sendo instrumental para liberar a comunidade do controle do movimento social de preservação. O Projeto Mamirauá se manifestou contrário à criação da área indígena e propôs uma revisão da proposta de criação (Reis, 1995). Existem duas outras áreas indígenas usuárias da reserva com quem o projeto tem trabalhado em boa parceria. A estratégia adotada pelo projeto para definição de usuários e para mediação de conflitos tem se baseado nos seguintes critérios: grau de dependência dos recursos da reserva, antiguidade, e, principalmente, aceitação da proposta de preservação da biodiversidade.

IDENTIDADE E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA Para se compreender as formas específicas como se relacionam “populações tradicionais” e grupos ambientalistas é preciso conhecer o contexto social em que vivem e suas histórias locais. Em geral, as populações locais têm, ao lado de uma identidade própria, uma imagem, muitas vezes estereotípica, atribuída a elas pelos grupos sociais com quem interagem na sociedade regional. No caso de Mamirauá, a população local apresenta duas categorias de referência, uma, a de caboclo, usada pela sociedade para

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identificá-los, e outra, a de pobres, que é a categoria mais abrangente com que se identificam. O conhecimento da história do grupo e de sua noção de identidade permite que se compreendam as intenções e expectativas que a população de Mamirauá apresenta na sua aliança com o Projeto Mamirauá. O termo caboclo, caa-boc, significa em tupi "aquele que vem do mato", e era usado inicialmente por tribos do litoral para designar povos do interior. O sentido de alteridade foi mantido tanto no uso inicial do termo pelos colonizadores (para designar índios aldeados e a população miscigenada), quanto no emprego atual, feito pela população urbana para se referir à população rural. O "caboclo típico" é o habitante das margens do rio, que usa a canoa como meio de transporte e é um grande conhecedor do ambiente natural. A representação cultural do "típico amazônida rural" não se limita a este simples retrato mas inclui também conceitos de valor, em sua maioria depreciativos, do habitante ribeirinho. A "indolência" e a "preguiça" do caboclo são elementos de um estereótipo que oferece uma interpretação moral de sua pobreza. Como a população "cabocla" se firmou em número e em importância econômica nos meados do século dezenove, quando as idéias racistas de Gobineau dominavam o pensamento social da elite ocidental e eram copiadas pelos brasileiros, a posição social da população cabocla foi explicada como sendo consequência do efeito deletério da mistura de raças. Essa busca por atribuições próprias para explicar a condição social inferior permaneceu no estereótipo do caboclo até os dias de hoje, ignorando-se o papel das políticas coloniais que determinaram a formação de uma classe camponesa subordinada, inicialmente por meios políticos à elite colonial, e hoje, dadas as condições desfavoráveis de sua reprodução simples, à estrutura

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de classes que acompanha a expansão mercantil-capitalista na Amazônia (Lima Ayres, 1992). O retrato do caboclo, no entanto, não corresponde a uma identidade social, e o termo é geralmente por eles rejeitado ou transferido a outras classes e categorias sociais. Sua própria construção de identidade não lhes confere uma noção de coletividade demarcada por uma nítida diferenciação social, como a noção de caboclo poderia supor. Em sua fala, a categoria de identidade mais abrangente que usam para referirem-se a si mesmos é a de "pobre", seguida, mais recentemente, da identidade de "ribeirinho", introduzida ao longo do trabalho de evangelização católica. Categorias menos abrangentes, que de fato distinguem sub-grupos entre a população rural, estão ligadas à atividade econômica ("o agricultor", "o pescador"), ao ambiente que habitam ("vargeiro" e "terra-firmeiro"), e à religião adotada ("crentes" e "católicos"). A identidade indígena é a mais excludente e a que possui conotações políticas mais fortes. No entanto, é, nesta região, considerada uma adoção artificial já que não há distinções culturais marcantes entre os que se identificam como "índios" e os outros, os "ribeirinhos". A identidade difusa de "pobres" é a que mais se reflete na maneira como os moradores da região de Mamirauá se relacionam com outras categorias e classes sociais que ocupam posições políticas e econômicas superiores à sua. De certo modo, incorporam, embora de forma invertida, o estereótipo que lhes é atribuído, já que sua condição estruturalmente desprivilegiada

lhes

oferece

a

possibilidade

de

negar

qualquer

responsabilidade por sua sorte e se posicionar como merecedores "naturais" de auxílio. Enquanto o estereótipo atribui a causa de sua pobreza à indolência natural de sua "raça", sua própria interpretação é de que como não são responsáveis por sua condição social são obrigatoriamente merecedores

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(carentes) de ajuda. Essa auto-imagem, reforçada e manipulada por patrões e políticos principalmente em época de eleição, é de baixa auto-estima, o que acarreta em dificuldades adicionais para alcançar as poucas chances disponíveis de ascensão social. Como conceito relativo, a noção de pobreza é sempre definida em relação a uma condição superior ou melhor, cabendo portanto definir a que se refere seu sentido de inferioridade e carência. Como conceito representativo de uma classe social, a pobreza é associada historicamente ao sistema de aviamento e à patronagem. Há um dizer local que especifica este entendimento de noção de classe ligada à dominação mercantil que predominou nas primeiras décadas do século: "só tem o rico porque tem o pobre para comprar" . Embora esta percepção da origem da divisão de classes ainda permaneça, o sentido de pobreza tem desenvolvido um sentido mais amplo com o processo de modernização e o estreitamento das relações entre os meios urbano e rural. A identidade de pobre não significa que não existam condições mínimas de sobrevivência na região. Os instrumentos de trabalho, embora simples, permitem que a pesca, agricultura, caça, coleta e extração de madeira supram as necessidades básicas. Como em outras situações de participação da produção doméstica na economia de mercado, a condição de pobre se refere ao fato de que o retorno monetário pelo trabalho investido na produção para a venda é muito baixo e garante apenas a reprodução simples dos grupos domésticos. Tem, em seu sentido econômico, portanto, o sentido do limite do que pode ser conseguido com o esforço do trabalho familiar.5 5

Entre os moradores de Mamirauá, a renda média anual de um grupo doméstico padrão, formado por 7 membros, é de R$900,00. Esta renda é obtida pela venda de uma produção média de 500kg peixe, 20 m3 de madeira e 200kg de farinha. A maior parte da renda monetária se destina à compra de alimentos básicos. Açuçar,

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No seu sentido mais amplo e atual, o conceito se refere ao fato de que a população rural da Amazônia não tem acesso direto às instituições básicas do mundo moderno como educação, saúde e o próprio mercado. Este sentido de exclusão social se reflete claramente no âmbito político. A falta de direcionamento político dos governos municipais e estaduais à área rural contribui para a migração urbana, onde as necessidades de consumo e de assistência social podem ser atendidas. Portanto, embora as condições econômicas permitam a sobrevivência básica, o meio rural não oferece condições plenas de reprodução social, e subsiste em relação de dependência ao meio urbano. Esta parcialidade, discutida na década de cinquenta na antropologia com a caracterização das sociedades camponesas modernas como part society (Redfield, 1953; Kroeber, 1948), está também associada à noção de pobreza, no sentido de dependência e inferioridade econômica, política e cultural do meio rural em relação ao meio urbano. Extensionistas do projeto que atuam nas áreas de saúde, educação e participação

comunitária

atestam

que

enfrentam

dificuldades

para

implementar seus trabalhos porque têm que lidar diretamente com esta incorporação negativa da identidade de pobres. De acordo com seus relatos, a população deposita uma expectativa exagerada nas instituições de extensão, esperando que estas encontrem uma solução imediata para seus problemas. Pedem constantemente ajuda material, e reagem com resistência quando as propostas de extensão implicam em assumir compromissos (M. Reis, com. pessoal ). A lógica da pobreza, regida por necessidades imediatas, parece ter mais força que os compromissos assumidos em reuniões, pois é ela que determina quando um trato deve ser rompido e até onde deve permanecer. café, sabão em barra, óleo de cozinha, leite em pó e sal compõem a cesta básica destas famílias, a um custo mensal de R$50,00.

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A parceria que se estabelece entre conservacionistas e comunitários envolve interesses específicos que podem ou não convergir e por isso requer que os acordos sejam negociados com habilidade e os interesses de cada parte reconhecidos. Não podemos esquecer que o interesse das chamadas populações tradicionais pela conservação se baseia em um interesse econômico específico, a sua sobrevivência. Por esse motivo, para que regras de uso sustentável sejam respeitadas é preciso que a população veja estas medidas como benefícios econômicos. As mudanças no comportamento econômico e na organização da produção vão levar tempo, e requerer uma atuação específica das equipes de extensão. O papel da organização comunitária também vai ser expandido, cabendo às comunidades gerenciar a produção econômica em termos do controle de suas áreas de uso. No presente, a produção econômica das comunidades é anárquica, no sentido de que o uso dos recursos não é regulado coletivamente. As decisões sobre a exploração da área são feitas individualmente pelos chefes dos grupos domésticos. Através da promoção de um gerenciamento econômico dos recursos, a racionalidade oportunista que caracteriza o comportamento econômico das populações rurais da Amazônia, e que dificulta a implantação de medidas reguladores, poderá ser modificada. A experiência de implantar este modelo de unidade de conservação mostra que há diferenças culturais presentes não só no diálogo entre membros do projeto e as populações locais, como também entre pesquisadores das ciências naturais e os das ciências sociais. A abordagem interdisciplinar impõe uma dificuldade adicional, decorrente das próprias formações acadêmicas diferentes, principalmente em relação a concepções distintas das populações locais que se refletem por exemplo nas decisões

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orçamentárias e maneiras de tratar a população local. Esse é mais um fator que faz com que o processo de implantação da unidade de conservação seja longo pois requer uma abordagem convergente das análises sociais e biológicas para a qual não temos especialistas formados, nem tradição de trabalho. É preciso aprender, durante o processo, nossas diferentes "linguagens" e enxergar as questões que surgem a partir dos vários pontos de vista presentes.

CONCLUSÃO Projetos que integram conservação e desenvolvimento social são experiências novas que retratam, por um lado, um esforço intelectual ambicioso de criar um modelo de exploração econômica sustentado para populações locais que ajuste as demandas dinâmicas do mundo social moderno à capacidade suporte de ecossistemas e à preservação da biodiversidade e dos processos evolutivos. Por outro lado, procura-se democratizar esta parceria, evitando o quanto possível expressões de autoritarismo advindas da desigualdade social existente entre as duas partes, principalmente em termos da autoridade do conhecimento científico, sujeitando o processo à avaliação das populações envolvidas e valorizando o conhecimento que possuem sobre o meio ambiente em que vivem. Entre as diversas situações em que se encontram populações rurais na Amazônia, o parentesco, a identidade, o acesso à terra e à água, a definição do sistema de herança e de sucessão à propriedade ou posse, as regras de usufruto de recursos comunais, são exemplos de fatores que distinguem categorias sociais e tipos de ocupação. Seringueiros, colocações, nordestinos, colônias, colonos, ramais, quebradeiras de coco, babaçuais, remanescentes de quilombos, são exemplos da diversidade de organizações

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sociais e formas de ocupação do espaço que demonstram que não se pode traçar um modelo único de envolvimento de populações em projetos de conservação. A diversidade social implica na necessidade de conhecer em profundidade as formas locais de reprodução social para então desenvolver modelos de participação, manejo e preservação, específicos para cada situação. Por isso, o envolvimento de populações locais em unidades de conservação não deve seguir um modelo rígido. Ao contrário, as experiências precisam ser construídas no decorrer de um processo de interação contínua com a população, ajustando as demandas e costumes locais à intenção de construir um sistema de uso sustentado do ambiente, que, combinado com a preservação da biodiversidade, garanta uma melhoria na qualidade de vida da população. As experiências em andamento mostram também que a implantação de uma unidade de conservação em parceria com populações locais não tem um ponto final. A evolução da sociedade e as mudanças na densidade e acesso aos recursos naturais, decorrentes da própria implantação da unidade de conservação, implicam na necessidade de reajustes contínuos, definidos a partir de um monitoramento das condições sociais e naturais e da manutenção do diálogo com a população.

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