Eros e Humanismo no canto IX de Os Lusíadas de Camões

July 7, 2017 | Autor: Yuri Zacra | Categoria: Humanism, Camões
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(CUNHA; GUINSBURG, 2012, p.64).
As citações de O Cortesão de Baldassare Castiglione são todas retiradas da edição de 1997 da editora Martins Fontes, respeitando a numeração consagrada.
Canto IX, 23.
Canto IX, 37.
Canto IX, 34.
Canto IX, 35.
Canto IX, 38.
Canto IX, 39.
Canto IX, 69.
Canto IX, 84.

Canto IX, 20.
Segundo Foucault a intenção de Kant em sua quarta Crítica (Opus postumum) era a de asseverar que o homem devido a sua condição de poder pensar tanto o mundo (empírico) quanto fundamentar-se em Deus (transcendental) seria o termo médio na relação entre estas duas instâncias: "[...]; ou então considerado apenas em sua forma, como se Deus, o mundo e o homem, em sua coexistência e suas relações fundamentais, restituíssem a própria estrutura do juízo sob o regime da lógica tradicional; a trilogia Subjeckt [sujeito], Praedikat [predicado]. Copula [cópula] define a figura da relação entre Deus, o mundo e o homem. Este último é, pois, a cópula, o liame - como o verbo 'ser' do juízo de universo." (FOUCAULT, 2011, p.68).

Canto IX, 91.
Canto IX, 89.
Canto IX, 92.
1

Eros e Humanismo no canto IX de Os Lusíadas de Camões.
Yuri Zacra da Silva
[email protected]
Introdução
O presente artigo pretende demostrar a variedade e a abastança nas representações do Amor presentes no canto IX de Os Lusíadas. Para tanto, na primeira parte, recorremos, em busca de um panorama de abordagens sobre o tema do amor, às obras de Juan Del Encina e Baldassare Castiglione, marcadas pela perspectiva estética renascentista, e a uma possível tipologia das representações de Eros na antiguidade sugerida pela leitura dos estudos do helenista Claude Calame. Por sua vez, na segunda parte, confrontamos todas essas informações ao próprio canto IX, a fim de entender as tensões e as aproximações que configuram este mesmo canto e como Camões articulou diversamente e também similarmente o legado clássico e suas visões sobre o Amor.

I
Dentre as representações do amor na literatura europeia do séc. XVI não se poderia deixar de notar a égloga de Cristino e Febea (aproximadamente 1507) de Juan Del Encina (1460-1529) por conta de sua qualidade tópica e exemplar. Seu enredo constituído por um argumento simplório expõe, contudo, com a maior das clarezas, a gramática ou a perspectiva pela qual o amor foi pensado, ou pelo menos como foi inicialmente pensado em seu núcleo, durante o período renascentista. Com a sua dramatização das potências do Amor em uma dimensão conflituosa, por assim dizer, entre as concepções do amor antigo-pagão e do amor cristão-medievo, Juan Del Encina oferece-nos algumas situações possíveis, juntamente com seu conjunto de questões, de como este mesmo amor foi compreendido, configurado em suas forças e poderes, alimentado em suas expectativas e disposto por seus limites afetando todo um campo de ação humana; temas e conteúdos que comandaram os discursos em seu entorno no renascimento. Em certa medida, ao compreender a natureza desta visão de amor lavrada por Encina, acabaríamos por despertar algumas ideias em nossa compreensão de boa parte da obra de Camões, que se assenta também de modo central sobre este mesmo tema, especialmente Os Lusíadas enfoque deste trabalho.
Em sua égloga conhecemos Cristino, pastor que ao pedir conselhos ao seu amigo e também pastor Justino sobre sua intenção de tornar-se eremita, expressa seu descontentamento com a pastoria e procura desvencilhar-se dos perigos e dos aborrecimentos de sua lida com seu retiro dedicado exclusivamente ao arrependimento e a fé. Cristino argumenta que, embora em outras circunstâncias tenha sido pastor dedicado e enamorado considerado, o amor exige, e quando entregue sem cuidado, acaba por desencadear as maiores aflições e tormentos; é aquilo que nos traz a felicidade e logo depois nos torna desgraçados, assim como o mundo que dele depende e que em suas palavras é bem definido: "como flor de verão, bela pela manhã e viçosa em botão, mas à noite malsão, já que ao longo do dia tudo se altera, e fenece a magia". Ao considerar este fenecer e perecer perpétuo como o encarregado da agitação própria do mundo, na qual cada coisa ocupa provisoriamente e precariamente seu lugar ou quase não o ocupa, Cristino passa a acreditar que apenas o bem fazer se encontra destituído desta temporalidade angustiosa e que a vida correta é aquela destinada a servir a Deus.
Contrário a esta tópica tão própria da interpretação cristã da realidade, a saber, seu efeito de real a partir da totalização do empírico na forma do mundo como fortuna, Justino recorda, representando a cosmovisão pagã, os deleites da vida pastoril que Cristino certamente sentirá falta e, ao fim, o alerta sobre a incerteza da empresa, considerando a natureza do amigo voltada aos festins e a inabalável força que o Amor impinge sem descriminações, pois este tudo acompanha e vigia. Com estes avisos por parte de Justino, Cristino põe em execução seu desígnio ao procurar sua ermida, contudo, sua despedida dos prazeres incorre com a aparição do deus do Amor (Eros), que aborrecido, reclama como divindade a irresistibilidade de seus encantos e efeitos.
No diálogo que se segue entre Justino e Amor, representado a partir da figura de Cupido, percebemos que a fim de realizar seu sacro projeto de isolamento, Cristino se coloca em um estado de desmedida perante o deus, configurando uma autêntica atitude de hybris. Este acontecimento irá marcar o enredo de forma peculiar, pois é por meio dele que Juan Del Encina diversifica sua égloga de tom cômico e satírico ao utilizar-se de um dispositivo próprio do drama clássico. Ao Amor cabe agora restituir seu espaço totalizante de ação, frente à pretensão de ser subjugado pelo martírio de Cristino, que fugindo de sua poderosa sanha despertara no deus a vontade de "vingar-se" e a maior de suas afrontas foi o querer "medir-se" com ele. A narrativa prossegue, sem muito mais do que nos possa interessar, na medida em que o deus Amor envia a fim de realizar a sua vingança Febea, uma ninfa mapeia, para atormentar lhe o coração e enfraquecer lhe o discernimento, fazendo com que Cristino se arrependa de sua escolha por uma vida ascética. Cristino volta à vida pastoril derrotado por Amor, prometendo-lhe eterna servidão, aonde é recebido por Justino, que entendendo sua recém situação vergonhosa o consola entoando um vilancico em louvor aos agravios provocados pelo desejo e pelas relações amorosas.
O que permanece ou se destaca da égloga de Cristino e Febea, e por isso seu caráter paradigmático, é o que se atribuí relativamente ao Amor, a partir da recuperação das noções da antiguidade, mesmo que confrontadas ainda aos princípios da cristandade. Por um lado, o Amor ainda é rivalizado às disposições da prudência que propiciam o bem viver, antagonicamente é então representado como sinônimo das tentações e da ruína humana, reproduzindo em recuo a inflexão cristã medieval. Por outro, e de acordo com nossa intenção tal representação se faz mais significativa, Juan Del Encina concebe também o Amor revestido por sua forma mitológica: pois, o amor não participa apenas da psicologia, da linguagem ou dos sentidos daqueles que por ele são acometidos, o amor não se encontra muito menos limitado pelas fronteiras do coração, apesar de nele procurar morada quando no homem, todavia, é entendido como força ou princípio fundacional, equivalido na figura de um deus, e conforme a hierarquia cosmológica ocupa o grau de mais ancestre ou primevo, pois ao Amor nada pode resistir e àqueles que lhe fazem resistência é forçoso os pensares, lembrando que até mesmo os deuses são, embora que da morte nada provem, inflamados por seus arroubos. O Amor retratado por Encina, participante da ordem das coisas extraordinárias, exige para si uma veneração restrita, rivalizá-lo sinaliza a própria desmedida e antecede a punição certeira; precaução e cuidados amorosos são então exigidos, tanto pelos efeitos do Amor quanto pelo Amor ele próprio, visto que de acordo com a visão estabelecida, estes e aquele se equiparam, se diferenciando apenas em seus modos de expressão. Deste modo, a atenção redobrada ao poder devastador das atuações do Amor, já intervenção do próprio deus em sua plena presença, se reflete no temor de submeter-se a uma impiedade e na apreensão, que em sua perspectiva crédula, torna-se idolatria ou respeito inspirado pela origem divina deste amor.
Esta mesma veneração em torno das potencialidades do Amor reaparece em dois momentos nas falas atribuídas a Pietro Bembo no O Cortesão de Baldassare Castiglione, obra também de destaque no período renascentista. Em um dado momento do diálogo voltado à discussão das virtudes da cortesania, Pietro Bembo intencionado a prescrever de que modo os velhos deveriam considerar a beleza, é interpelado por Morello de Ortona, que irritado pelo veto aos mais velhos do amor sensível atribuído apenas aos mais jovens, reclama não entender de que modo seria possível desfrutar da beleza descrita por Bembo na ausência dos corpos e dos prazeres afetivos, considerando assim sua ideia de amor, enquanto apenas possível na falta das relações concretas, como não passando de um sonho. Dom Federico ainda endossando os argumentos de Morello reflete que nem sempre participa da natureza do belo o bem, e que ao recordar dos eventos passados em Tróia, diz que muitas vezes as mulheres por sua beleza, que frequentemente está acompanhada pela soberba e pela crueldade, foram responsáveis por disputas, inimizades, guerras e muitos outros males presentes neste mundo.
Bembo ao respondê-los, repreende-os a fim de reaver em seus espíritos a consciência de que falar mal da beleza, e por acréscimo do Amor, pois para Pietro Bembo a atribuição verdadeira do amor traduz-se pelo desejo de fruir a beleza, é envolver-se: "na ira de Deus como profano ou sacrílego." (LVII, p.322). Em conformidade com o argumento de Dom Federico que intercede ao lembrar-se de Tróia, Bembo recorre à imagem da cegueira de Estesícoro, que como sabemos se encontra no relato de Sócrates no Fedro de Platão, advertindo seus opositores que por impiedade ao Amor o poeta foi punido. Estesícoro, contudo, poeta e também cego e por isso muitas vezes comparado a Homero, diferentemente do poeta épico, reconheceu a razão de sua cegueira como sendo o castigo por ter ofendido Helena, representação máxima da beleza que só às Musas é comparada, e recuperou sua visão logo após retratar-se por meio de sua palinódia. Sócrates desejando imitar o poeta lírico em sua atitude de retratação invoca-o no Fedro, ao meditar que haveria a necessidade de um segundo discurso louvando agora o Amor e seus dons, na medida em que fora ilícito afirmar que dos deuses, fontes de todo o bem, poderia advir algo de pernicioso, como foi dito no discurso de Lísias por ele interpretado, e em seguida, em seu próprio primeiro discurso, ambos ímpios sobre o amor, ao enaltecer apenas as diversas loucuras praticadas pelos amantes (243a). Assim como Sócrates, o que nos dera alguma prova da similaridade estrutural entre o Fedro e O Cortesão, Pietro Bembo recapitula o exemplo da figura lendária de Estesícoro a fim de também retratar-se com a divindade.
Em um segundo momento, Pietro Bembo intercala ao seu discurso sobre o Amor o reconhecimento de que sua fala e seu intelecto seriam demasiadamente impróprios na intenção de penetrar em segredos tão elevados, e que só obteriam força e vigor, caso o Amor ele-próprio lhe concedesse inspiração para continuar perseverando em sua demonstração de como o cortesão poderia cultivar o amor de outro modo além dos costumes profanos do vulgo (LXI, 326p.). Deste modo, Castiglione recupera pela voz de Bembo os laços, tópica própria da literatura clássica, que vinculam o Amor a um discurso inspirado, isto é, de natureza divina.
Por fim o que se pretende dizer, apesar de sabidas as diferenças de enfoque entre Castiglione e Encina, ambos selecionados com a intenção de ilustrar o que argumento como traço irredutível do período, ao qual Camões também pertence; é que o que estaria em jogo, como paradigma na interpretação de Eros, nestes dois textos essenciais seria a recuperação da concepção antiga de Eros como manifestação divina ou como força ou ímpeto primordial. Fora ainda desta concepção em comum, Camões, por um lado, se aproxima particularmente de Encina na medida em que dá a Eros também plasticidade e forma concreta, por outro, o autor luso se avizinha também de Castiglione por atribuir de mesmo modo a Eros, tendo já assumido este como potência fundadora, ares platonizantes devido a sua função transportadora na senda da ascese. Oliveira Martins atento também a isso, dedica-se a dimensionar este caráter hibrido, propriamente renascentista, que passa por Camões, em certa medida; o poeta ao conferir tal amplitude ao Amor no escopo de sua obra, exige uma reconfiguração do panorama representativo, que até então era limitado pelo imaginário cristão:
Quem o socorre, porém, é Vénus, porque na estrutura do poema [comentário ao canto VI, 81], acima dos sentimentos religiosos dos homens, está o coro dos antigos génios em que a imaginação tem de corporizar ainda os elementos naturais, pois que as criações amorfas da psicologia cristã não têm essa capacidade. Na Renascença, o mundo era outra vez pagão, de um modo até certo ponto novo: como poderia exprimir-se, pois, na linguagem espiritualista da transcendência medieval? O paradoxo dos Lusíadas é o de todas as artes da Renascença, e traduz o estado de plasticidade compreensiva dessa época. (MARTINS, 1952, 198p.)
Daí que a fim de uma análise mais completa seria propício ir de encontro, mesmo que indiretamente, às fontes do pensamento grego; sua poesia, suas narrativas de origem e sua filosofia para compreender melhor as perspectivas que foram reinterpretadas pela produção camoniana e que ao mesmo tempo exerceram sobre ela influência. Assim, de acordo com a pretensão do presente trabalho de não se aprofundar propriamente em tais assuntos, o estudo de Claude Calame (Eros na Grécia antiga) voltado à descrição dos diversos papéis institucionais e literários assumidos por Eros na cultura clássica nos sugere, em linhas gerais, a seguinte tipologia das representações em torno de Eros:
(1) O Eros da poesia mélica: As aparições de Eros presentes nos fragmentos da lírica de Álcman, Safo, Íbico, Alceu, Arquíloco, Anacreonte, entre outros, vozes já a muito perdidas, de certa maneira, convergem para alguns pontos centrais segundo Calame. A representação de Eros por parte destes poetas é marcada vigorosamente pelo duplo efeito do amor, enquanto seus poemas comprometem-se em consagrar a doçura e o deleite da experiência amorosa, estão inevitavelmente presentes também os temas da incompletude daquele que busca possuir seu objeto de desejo. Pois é a partir de uma assimetria constitutiva que a enunciação amorosa contida nestes poemas se estabelece: de um lado os sujeitos desejantes, estes poetas já adultos, tanto homens quanto mulheres, que cantam seus amores despertados pelos mais jovens, de outro, os objetos de seus afetos, adolescentes frequentemente do mesmo sexo, demarcados pela fuga e pela aversão ao amor, capazes de apenas propiciar, contrariando o forte anseio expresso nestes poemas, um desejo condenado à insatisfação devido a esta mesma assimetria de idade e de posição social. A célebre caracterização do amor como doce-amargo e como conciliador de contrários (Safo) ou ainda a comparação de Eros à abelha, símile recorrente, que empresta a Eros a predisposição de ao mesmo tempo ser produtora em seu pleno vôo de doce-mel e de estar à espreita de suas vítimas com sua ardida e impiedosa ferroada, constituem a própria imagem desta contradição que agita o coração destes poetas em seu âmago. É também neste conjunto de poetas que a fisiologia das afecções do amor passa a ser motivo de interesse. As regiões de inserção exploradas por Eros se somam desde o coração (kardia – Álcman), o diafragma (phren - Safo), até os órgãos mais complexos como o thymos (Alceu) e a alma (psyche – Anacreonte), compondo de acordo com a concepção grega arcaica os centos anatômicos dos sentimentos. Contudo, é pelos olhos que se inicia o vínculo deste jogo voluptuoso; órgão importantíssimo que permitirá a visão daquele que ama reconhecer no amado, pela imanência daquilo que nele se vê, a possessão do deus: a admiração de Eros no adolescente a partir do caráter efêmero da juventude em floração. Por conta disto, há nesta poesia, por assim dizer, algum tipo de mistura, na qual a voz emprestada na declamação destes poemas se confunde com o enunciador real do poema, quando não com o próprio autor: a poesia mélica frente à insatisfação que contém torna-se de fato um texto performático, ao não só descrever como o Eros acomete os desejosos, mas por pretender por aquelas palavras seduzir o jovem amado. Outro valor que está por base desta relação amorosa na poesia mélica é a noção arcaica de justiça (dikaia) como a reparação de uma dessimetria. Na medida em que o amante e amado se relacionam a partir de uma forma de troca, pois se ao poeta em nada é vergonhoso declarar-se, ao desejado tão pouco carece de beleza aceitar seu pedido, não estabelecer a philotês (amor recíproco e característico, como veremos, da épica) é, em certa medida, cometer um ato injusto. O reparo, contudo, não está na reconquista dos amados, mas no reconhecimento por parte do adolescente da inevitabilidade da força de Eros, pondo um fim nas disputas e fugas ao ter chegado com o período de seu amadurecimento ao estatuto também de um sujeito desejante.
(2) O Eros da poesia épica: Enquanto a poesia mélica, por assim dizer, apresenta um modo humano de vivenciar o amor, os poemas épicos, reconciliando se a um passado narrativo lendário, nos apresentam um modo heróico de união. A partir da análise do elo entre Páris e Helena, Anfitrião e sua esposa (em O Escudo [de Hércules], texto épico atribuído a Hesíodo), entre outros, Calame argumenta que o que é próprio da épica quanto à representação de Eros é a relação de amor baseada na philotês: palavra que por seu campo semântico determina uma forma de amor ligado ao compromisso mútuo ou ainda à troca de confiança recíproca. Na maioria das vezes, este aspecto fiduciário do amor épico era corroborado pelo uso no grego da flexão gramatical de número dual, marca particular desta forma afetiva que exige ser saboreada a dois e que retrata uma união ou um juramento conjugal que em certas condições de sobriedade pode se revelar feliz. A figura de maior importância que se presta a ambientar as cenas de amor recíproco é a figura do leito (eunê), é neste lugar ameno que encontramos o recolhimento para o sono amoroso dos dois amantes, e é ele que propicia à épica configurar seu modo distinto de dizer o Amor, isto é, a consagração da repetição da união paradigmática entre Zeus e Hera, que divinamente encontrará nos heróis sua renovação. O Amor épico, portanto, se restringe apenas ao modo narrativo destes feitos: Eros é visto como a causa de ações bem acabadas e de relações amorosas simétricas.
(3) O Eros cosmogônico e mistíco: Nas narrativas cosmogônicas, destaca-se o papel que Eros fundamentalmente parece cumprir na criação do cosmo, a saber, seu caráter de ação demiúrgica. Observamos, por exemplo, na Teogonia de Hesíodo que Eros assim como Gaia e Urano se apresenta como princípio não gerado. Contudo, diferentemente de Gaia e Urano que em seus simbolismos atingem entes concretos, Eros é, de fato, uma representação exclusiva e abstrata; uma força primordial que impulsiona todas as relações posteriores, e que dentro do conjunto de polarizações e refinamentos das divindades da Teogonia, só deixará de ser esta razão de origem ao ser substituído por Afrodite, que nas grandezas da ordem mítica passará a encarregar-se dos adornos e das mazelas do amor, por assim dizer, o amor em seu aspecto social: os ardis, as doces promessas de amor, os enganos, a tagarelice e o flerte. Mesmo com esta passagem a uma esfera mais voltada à urbanidade, desnível radical entre uma cosmogonia e uma teogonia, Eros representa amiúde, de acordo com as acepções cosmológicas arcaicas gregas, uma potência pura sempre-aí, violenta e desumana, sendo possível considerá-la como o desejo ele-próprio. Apesar de inicialmente muitas entidades em Hesíodo, como Érebo e a Noite, nascerem por partenogênese na beira do Caos, Eros é sem dúvida o mediador fecundante, princípio único e unificador, que gera a pluralidade, ou seja, é o responsável por promover a união, muitas vezes recíproca (philotês) entre duas entidades diferentes, separadas e sexuadas. Seu esquema de atuação se segue como: dualidade - unidade no amor - multiplicidade. Estas mesmas concepções circulavam também nos mistérios de Eleûsis e nas especulações do pensamento Órfico. Na versão paródica de Aristófanes nas Aves, texto que recupera e se aproxima muito dos Discursos Sagrados dos rapsodos discípulos de Orfeu, Eros acaba por assumir um papel estrutural similar ao que é exposto na Teogonia. No início haviam apenas numes obscuros, não definidos e aparentemente não ordenados por uma hierarquia, como o Abismo, Noite, Érebo, entre outros, até a chegada de um ovo, resplandecente por sua candura, trazido pelo vento. Deste ovo inaugural surge Eros cheio de desejo, e em oposição aos outros não possuía um caráter indistinto, mas assas de ouro luminosas. A partir de então, na união de Eros com Abismo, se produzira com o exemplo primeiro, consecutivas uniões duais e sexuadas, gerando a prole de deuses e coisas. Assim como em Hesíodo, Eros fora considerado pelos órficos o alicerce de toda propulsão criadora, ao desempenhar ao mesmo tempo o dever unificador e diferenciador.
(4) O Eros platônico: É evidente que os diálogos platônicos se soerguem tomando por suporte muito do que já fora ordinário no pensamento grego, porém operando no centro de seu caráter uma ampla revolução. Em O Banquete, diálogo destinado à exaltação da natureza do amor, se vai recolocando em cena, pelas vozes dos convivas participantes, toda uma tradição narrativa, poética e filosófica sobre Eros. Respeitando às convenções do elogio, são construídos arrazoados alegóricos de acordo com a contribuição de cada novo discurso, que nos fazem recordar, por exemplo; a importância ética de Eros por provocar a emulação sadia entre o amante e o amado; a sua afinidade com a arte médica, pois, de acordo com a concepção adotada desde os poetas mélicos de que Eros é o grande conciliador de contrários, ambos são capazes de restabelecer o equilíbrio, uma nos corpos, o outro na relação entre os homens e dos homens com os deuses; ou ainda, a sua capacidade de propiciar concórdia (homologia) e relações recíprocas (philia), criando um campo adequado para o desenvolvimento das quatro virtudes essenciais para o filósofo: coragem (andreia), justiça (dikaiosynê), moderação (sôphrosynê) e sabedoria (sophia). Contudo, Eros estimado por homens e por deuses encontra no diálogo sua última e mais acaba forma na fusão proposta por Sócrates, este mero avatar da intervenção de Diotima, a sacerdotisa da Mantinéia, entre o Eros cantado e louvado pela tradição poética e o campo da sedução mágica, da adivinhação e da iniciação aos mistérios. Diotima revela que a condução exercida nos homens por Eros se funda em um caminho ascendente; ir por esta estrada sublime é procurar elevar-se ao fundamento de sua própria essência como Eros: a beleza, a bondade e a sua natureza divina. Iniciar-se nos mistérios do amor, como pretende e descreve Diotima, é o mesmo que sondar pela fruição cada vez mais completa do belo, por isso a comparação dessa macha à figura de uma escada; subir por seus degraus depende da admiração e do entendimento consecutivo de um belo corpo juntamente com os belos discursos concernentes a ele, do conjunto daqueles (sua forma), das ações também belas, das leis e dos ofícios, dos belos conhecimentos, e assim, ao fim, do conhecimento cujo o conteúdo é o próprio belo em si. Deste modo, Platão parece manter ainda sobre Eros o seu caráter divino e primordial, porém alterando de modo extremo seu plano de fundo, ao modificar a maneira de relacionar-se com Eros: pelo meio da imanência mítica à transcendência filosófica. Uma vez que, com o acréscimo às qualidades de Eros de uma capacidade transportadora, que faria, aliada a uma perspectiva filosófica, a partir da experimentação do amor em suas formas sensíveis, a ascese a Eros ele-próprio em sua pura essência, sua apreensão inteligível, inalterável, sempre uniforme e fora do princípio de individuação (211a). Sócrates, ao final do diálogo, nos dá a impressão de assumir a mais autêntica representação de Eros, pois ambos são compreendidos, de certa maneira, como um guia iniciático privilegiado ao retorno à unidade da ideia (na forma emérita da kalokagathia) a partir da multiplicidade dos fenômenos, perfazendo exatamente o caminho inverso do que fora assentado na concepção cosmogônica ou mística de Eros.

II
Camões em sua pintura de Eros acolhe este segundo a narrativa mítica de que Cupido (Eros) é na verdade filho de Afrodite (Vênus). Contudo, como já descrito, cabe efetivamente a Cupido o porte do poderio atuante do amor; pois, como acompanhamos no canto, Vênus ao querer concretizar seus planos referentes a parabenizar os lusos nautas, recorre à ação propulsora encontrada apenas nas setas penetrantes dos meninos voadores de Cupido, fabricadas, como bem descreve a mais bela quadra do canto (31) destinada à forja de Eros, por meio das lágrimas e dos corações dos apaixonados a fim de temperar e de alimentar a frágua, que avivada em seu fogo não á nada além do que o desejo que nunca cessa:
Seu filho vai buscar, porque só nele
Tem todo seu poder, fero Cupido.

Ela [Vênus] por que não gaste o tempo em vão
Nos braços tendo o filho, confiado
Lhe diz: "Amado filho, em cuja mão
Toda minha potência está fundada;
A caracterização de Cupido por intermédio de uma forma infantil, só faz confirmar, apesar de sua elevada potestade, a inconsciência e a perversidade de seus atos e feitos, os quais provocam no gênero humano as mais graves afecções:
Destes tiros assim desordenados,
Que estes moços mal destros vão tirando,
Nascem amores mil desconcertados
Entre o povo ferido miserando;
Eis que a atuação atribuída por Camões ao Cupido e ao seu exército de querubins revisita a mesma tópica dos amores desencontrados estabelecida anteriormente na égloga de Juan Del Encina através de Cristino. O Amor visto sob esta perspectiva, sob sua forma mais intensa acompanhada das vontades mais frementes, não fazendo distinção aos atingidos, traduz-se em ações indignas e danosas:
E vós, ó poderosos, por pastoras
Muitas vezes ferido o peito vedes;
E por baixos e rudes, vós, senhoras,
Também vos tomam, nas Vulcâneas redes.
Uns esperando andais nocturnas horas,
Outros subis telhados e paredes;
Mas eu creio que deste amor indigno
É ais culpa a da mãe que a do menino.

Se por um lado, é conferido a Eros o papel de força desejante, recobrando o domínio próprio de Eros cosmogônico e mítico assemelhado ao Desejo ele-próprio, a Vênus, por outro, cabe o poder deliberador, voltado à mesma urbanidade recorrente a Afrodite de Hesíodo. A culpabilidade de Vênus pelos disparates do filho, vai além de um compromisso pedagógico materno, mas depende justamente do que Camões dispõe como caráter mesmo da deusa: é de responsabilidade da Deusa Cípria a distribuição justa dos afetos, tanto por agenciar a ordem da trama social a partir das relações sentimentais, quanto por organizar, em um plano transcendente, a ordem também das coisas.
A ideia justamente de recompensar os portugueses pelos trabalhos enfrentados e corajosamente superados é de Vênus. A favor sempre dos lusitanos, Vênus pretendera transfigurar na própria instância do mar, que a eles só oferecia inquietações e angústias, a ventura dos navegantes ao ter colocado em sua rota a ilha criada e abundante em deleites e amenidades. O favorecimento de Vênus, desafiando as injúrias de Baco passadas na Índia, opositor dos marinheiros de Camões, já se faz antigo e remete por glosa a mesma proteção e glória dos nautas de Virgílio:
E, porque tanto imitam as antigas
Obras de meus Romanos, me ofereço
A lhe dar tanta ajuda, enquanto posso,
A quanto se estender o poder nosso.
Sob as instruções de Vênus, Cupido vai desferindo sobre as águas, já acertando no pélago profundo as ninfas e nereidas, que despertadas para o amor, irão habitar prontamente a ilha estabelecida. A partir de tal empenho, Vênus assim completa seu propósito; com a abertura nos corações das ninfas, de amor feridas, será possível promover a restituição de que a deusa do amor é encarregada, ao chegarem os lusos, a reparação na distribuição dos afetos, perturbada pelas disputas entre os deuses pelo destino dos navegadores e pela própria historicidade da jornada, será principiada com o encontro destes com as aquáticas donzelas. É indubitável o papel que Vênus desempenha no canto como a divindade comprometida com a justiça, por fazer valer implacavelmente o reparo: "Tomando aquele prêmio e doce glória/ Do trabalho que faz clara a memória".
Mesmo nas preocupações anteriores de Cupido nos Montes Idálios já se desvela tal compromisso. Há algum tipo de forma adequada de amor subjacente defendida pelos deuses; no mundo qualificado como rebelde, teima-se por desobediência em conceder amor às coisas que exatamente a ele não são afeiçoadas. Eis que o canto (25-29) vai por um descerramento crítico ao reprovar, por exemplo, que nos governantes seria esperado de seu amor a posse da fraternidade, mas que apenas encontraríamos nestes o amor-próprio ou ainda que nos membros do clero que deveriam alimentar o amor divino, encontraríamos neles também, na verdade, o amor apenas ao poder e às riquezas. De mesmo modo, a interpretação do mito de Actéon demonstra que por não ter em seu juízo o que de fato é apropriado para as inclinações do amor, o caçador pensava fazer o bem ao desejar apenas o que lhe agradava, acuar e combater feras, e se ausentava de fruir a beleza das formas humanas, até que foi obrigado por impiedade a deparar-se com a atraente Diana, sofrendo as consequências nefastas já conhecidas.
Consoante a este mesmo espírito de conformação das relações amorosas, Vênus está, de fato, a partir das flechas de Cupido ocupando se em arranjar para os nautas relações baseadas na philotês, que como vimos, caracterizam o Eros épico. Apesar de toda encenação de recusa, meros rodeios iniciais da conquista, pelos quais as ninfas se simulam lascivas ao fingirem que vão fugindo, à espera de se fazerem vencidas, enquanto os que já chegam logo percebem que a cena, como Veloso anuncia numa introspecção da narrativa, é a revisitação da tópica clássica da caçada ou da perseguição das virgens: "'Senhores, caça estranha (disse) é esta!/ Se inda dura o Gentio antigo rito,/ A Deusa é sagrada esta floresta'", o que se evidencia é, na realidade, a criação dos laços de comprometimento a fim de perenizar a relação estabelecida nestes encontros na ilha dos Amores:
Destarte, enfim, conformes já as formosas
Ninfas cos seus amados navegantes,
Os ornam de capelas deleitosas
De louro e de ouro e flores abundantes.
As mãos alvas lhe davam como esposas;
Com palavras formais e estipulantes
Se prometem eterna companhia,
Em vida e morte, de honra e alegria.
Cada um ao seu modo, os marujos e as ninfas, o Capitão Gama e Tétis, destacada por ser filha mesma de Vênus e Celo, respeitando sempre as adequações hierárquicas, refazem a união feliz e fecunda do amor exemplar de Zeus e Hera, como bem quer o Eros épico: elo infinito e imantado dentre os homens e os deuses. A philotês é pois então dádiva daqueles que Vênus abençoara o vínculo, apenas alcançado como que por retribuição aos grandes feitos praticados, recompensa esta que eleva estes heróis lusitanos à imortalização por meio desta atualização do paradigma de amor divino.
A partir de uma passagem do mesmo canto IX, bem reflete e nos faz lembrar Eduardo Lourenço em seu texto A Amorosa Iniciação, preservando a presença de Camões devido ao seu tom arcaizante e poético, que a ascensão proposta por Eros também pode revelar-se como um caminho de mão dupla; encenação de toda a contradição da potência de Eros:
O seu papel [o de Eros] é o de humanizar os deuses e divinizar os homens, como o Poeta, verbo da acção transfiguradora do Amor no mundo e amador exemplar, no-lo recorda:
[Parece-lhe razão que conta desse
A seu filho, por cuja potestade]
Os Deuses faz descer ao vil terreno
E os humanos subir ao Céu sereno.
Esta nova versão do sonho de Jacob esconde um drama e a ladeira que une esta terra divinizada ao céu humanizado é mais fácil de descer que de subir. [...] O Eros camoniano, a sua ardente e sensual paixão da Beleza é o centro de um drama, humano e cósmico, espiritual e cultural, e constitui a essência mesma da rosa excelsa da melancolia plantada, como a ambígua árvore do paraíso, no jardim mítico do Renascimento. (LOURENÇO, 1983, p.4).
Este transporte oferecido por Eros presente nos Lusíadas e comentado por Lourenço pode ser melhor entendido caso consideremos novamente algumas palavras proferidas por Pietro Bembo em O Cortesão. Em um golpe argumentativo (LI, p.317), Bembo, procurando asseverar algumas determinações sobre o amor, propõe-se a determinar a natureza do amor e em o que consiste a felicidade dos amantes, se valendo de um esquema que aposta na reciprocidade entre as faculdades de conhecer e as de desejar em suas respectivas parelhas.
Primeiro, o amor não é nada mais que o desejo de fluir a beleza, e assumido que só podemos desejar o que é conhecido, Bembo afirma a precedência da cognição sobre o desejo, este que apesar de procurar o bem, não pode por si só conhecê-lo. Daí que a partir de cada virtude voltada ao conhecimento haja também em correlato uma virtude instintiva: (1) o sentido e o instinto, virtudes que nos vinculam com os animais brutos, (2) a razão e a escolha, virtudes medianas que são próprias do homem, (3) intelecto e vontade, virtudes divinizadas, pelas quais o homem se comunicaria com os anjos. Se por um lado, o sentido dá acesso somente às coisas sensíveis, fazendo com que o instinto as possa desejar apenas, e por outro, se o intelecto só se relaciona às coisas inteligíveis pela contemplação destas, permitindo à vontade se associar unicamente à beleza espiritual, caberia então ao homem, singularizado por sua razão e escolha, colocar-se no meio destes dois extremos. O par razão-escolha tomado como fundamento da essência do homem, assentando-o entre as bordas de dois termos distantes, faz repetir a mesma divisão defendida por Pico Della Mirandola, caracterizando o seu humanismo:
"Tu [fala destinada alegoricamente a Adão como o representante de todos os homens], pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determina-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo." (PICO DELLA MIRANDOLA, 2006, p.57).
O humanismo de Pico ou toda a sua vertente florentina realoca o homem dotando o de arbítrio no centro, ou melhor, no meio entre duas naturezas que nele próprio se externam e se rivalizam; entre a besta e o anjo, este duplo empírico-transcendental que é o homem e que o tornará o termo médio de um silogismo ontológico se estenderia, em certa medida, ainda como doutrina até Kant.
Deste modo, por ser habitante entre dois mundos e por ter o conceito de liberdade delimitando a essência da condição humana ela-própria como afirma Pico e Castiglione, este homem ideado ficaria exposto no campo dos afetos, tanto a um amor que o elevaria às regiões celestes, quanto ao seu oposto que o assolaria às mais baixas regiões terrestres. Ao último, a fim de evitar que caíssemos em impiedade, deveríamos negar até mesmo que em seu caso se tratasse de uma ação de Eros; a tendência platônica encontrada nestes autores, e incluiríamos relativamente Camões a eles, faz com que seja autorizado como ação real do deus do Amor, isto é, sua forma benéfica como vimos no Eros platônico, apenas a força desejosa que se relacionaria ao transporte em sua positividade do ser humano para o alto, munindo o amor da capacidade de purificação do corpo em direção às formas mais elevadas de existência, porque Eros, enquanto Eros, só pode ser, segundo a perspectiva platônica, sinônimo do influxo da beleza e da bondade divina.
Contudo as questões apresentadas pela obra camoniana se mostram, diferentemente das de Pico ou Castiglione, por exemplo, mais complexas. Se como observamos, a ascensão à divindade tem na economia do canto seu merecido destacamento, de mesmo modo ainda, a queda dos heróis ou dos deuses se faz presente como possível ou até mesmo como muito provável. Camões imputa inclusive aos deuses, que antes de terem feito as façanhas que lhes outorgaram tamanho reconhecimento, não passavam de simples mortais:
Não eram senão prêmios que reparte,
Por feitos imortais e soberanos,
O mundo cos barões que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos;
Que júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Enéias e Quirino e os dous Tebanos,
Ceres, Palas e Juno com Diana,
Todos foram de fraca carne humana.
Uma vez que a imortalização só pode ser alcançada pelos feitos gloriosos, na ausência destes, tanto os deuses podem desabar do céu dos merecidos, quanto aos homens destituídos de conquistas é vetado a elevação; em certa medida, quando a Fama parece suplantar o Amor no transporte entre mortais e deuses, seu caráter se apresenta sendo assaz dinâmico. É bom lembrar que a voz de Camões se projeta a partir de um tempo em que o traço dito heroico de Portugal se abrandara. É neste momento do canto IX que pela assimetria entre os tempos de renome e os atuais, e consequentemente, pela assimetria entre a presença positiva de Eros e a sua negatividade, já que faltam motivos pela gratificação de Vênus, o poema dobra-se sobre si mesmo refletindo sobre a natureza de seu simbolismo, censurando o que na atualidade tornou-se impossível:
Que as Ninfas do Oceano, tão formosas,
Tétis e a ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha:
Estes são os deleites desta Ilha.

Mas a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no mundo nomes tão estranhos
De Deuses, Semideuses imortais,
Indígetes, Heróicos e de Magnos.
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo.
A oficina revelada, o poema expondo se como alegoria, dada a possibilidade de substituição de todas as imagens proveitosas da ilha dos Amores pelo o que elas representam, isto é, o estado e as recompensas daqueles que de modo geral triunfaram em seus propósitos, inventa um desnível ou um outro plano da voz poética, enunciação externa que se verga reflexivamente sobre o poema, e que se arroja em sua fala aos vivos e aos seus contemporâneos, reclamando, dentre muitas coisas, a impossibilidade da realização de Eros naquele presente. Camões em seu ímpeto pretende fomentar o despertar deste "sono", próprio da ausência de ambição, tanto naqueles que leem seu poema, quanto metaforicamente na nação portuguesa; neste instante, estabelecemos a última ligação possível com os modos de enunciação e interpretação do Eros antigo, conhecida esta performatividade realizada e o que por ela vem reivindicada, a saber, a renovação da ação de Eros no seio da comunidade portuguesa e na cristandade, Camões sutilmente dialoga com as mesmas características presentes na representação de Eros da poesia mélica.
Bibliografia
CALAME, Claude. Eros na Grécia antiga. Tradução de Isa Kopelman. São Paulo, SP: Perspectiva, 2013. 
CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.
CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1997.
CUNHA, Newton; GUINSBURG, J. (org.); ARELLANO, Ignacio (cmm). Teatro espanhol do século de ouro. São Paulo, SP: Perspectiva, 2012.
FOUCAULT, Michel. Gênese e estrutura da Antropologia de Kant. São Paulo, SP: Loyola, 2011.
LOURENÇO, Eduardo. Poesia e metafisica: Camões, Antero, Pessoa. Lisboa: Sá da Costa, 1983.
MARTINS, Oliveira. Camões: os lusíadas e a renascença em portugual. 3. ed. Lisboa: Guimarães, 1952
PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa: Edições 70, 2006.

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