escalas e ventriloquos

September 1, 2017 | Autor: Flora Sussekind | Categoria: Literatura Brasileira Contemporânea
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Escalas & ventríloquos


Flora Süssekind



Talvez se possa observar a literatura brasileira produzida nos últimos anos
não segundo o consenso negativo dos balanços de fim de década, mas sob a
perspectiva tripla de uma crise de escala, de uma tensão enunciativa e de
uma geminação entre econômico e cultural que, se não exclusivas do período,
por conta de intensificação e disseminação generalizadas, se converteriam
em premissas dominantes da experiência literária contemporânea. Chama a
atenção, nesse sentido, sobretudo no último decênio, uma espécie de
variação sistemática de escala, manifesta tanto em exercícios, por vezes
paradoxalmente concomitantes, de expansão e compressão, quanto em
movimentos de narrativização da lírica, de um lado, e de miniaturização
narrativa, de outro, ou quanto na retomada de gêneros como a novela ou o
conto mínimo, no campo da prosa de ficção, ou como o poema em prosa e a
sequência poética, no da lírica. Variações que teriam contraparte plástica
em pinturas que se avolumam, trabalhos bidimensionais que se projetam em
direção ao espectador, ou em figuras escultóricas transparentes, abertas,
corroídas internamente por fatias, vazios, parecendo fadadas, por seu
turno, à autodestruição, ao despedaçamento. Passagens de uma dimensão a
outra, múltiplas proporcionalidades, relações variáveis de medição,
reduções, ajustes que parecem atribuir ao referente genérico, à proporção,
a função simultânea de modelos e avessos ativos no interior dos processos
de formalização a que se acham vinculados. E que talvez possam mediar, ao
mesmo tempo, via escalas móveis, um exercício crítico de correspondências
genéricas (entre prosa em redução e poema em expansão), artísticas (entre
produção plástica e literária) e conjunturais (entre cultura e economia).

Miniaturização, narrativização


Quanto à miniaturização na ficção brasileira contemporânea, ela é
perceptível desde a redução cada vez maior das "ministórias" de Dalton
Trevisan à opção formal pela "novela", por exemplo, por Silviano Santiago
em "Uma História de Família" e "De Cócoras", por Jean-Claude Bernadet em
"Aquele Rapaz", Modesto Carone em "Resumo de Ana" e "Ciro", Zulmira Ribeiro
Tavares, em "Jóias de Família", Vítor Ramil, em "Pequod", Valêncio Xavier
em "Menino Mentido" e "Minha Mãe Morrendo"; desde as fábulas de Carlos
Felipe Saldanha às mínimas prosas incluídas por Zulmira Ribeiro Tavares ou
Vilma Arêas nas suas coletâneas ou às microficções de João Gilberto Noll
divulgadas regularmente na Folha. Desde a experimentação rítmica
empreendida por Rubem Fonseca no seu retorno ao conto em "Romance Negro" e
"O Buraco na Parede" à rarefação das palavras, que "vão indo" e "não
voltam", no último texto de "Cortejo de Abril", de Zulmira Ribeiro Tavares,
numa espécie de problematização direta, mas em escala reduzida, do seu
próprio processo narrativo.


Exemplar, em termos de um emprego crítico das mudanças de escala e da
autonomização de pequenos blocos narrativos, é a prosa de Modesto Carone.
No seu caso, ainda nos livros de contos dos anos 70-80 -"As Marcas do
Real", "Aos Pés de Matilda" e "Dias Melhores"-, variados exercícios de
aproximação e afastamento, oscilações entre o gigantesco e o minúsculo,
funcionavam como exposição indireta do processo narratorial.


Pupilas, pêlos, rugas, crânios, pés que adquirem proporções desmedidas, de
um lado; miniaturas, restrições de perspectiva, um mínimo jardim de
inverno, de outro lado, apontando para o explícito trabalho de mensuração e
regulação de distâncias que funciona simultaneamente como recurso de
autofiguração para o narrador-protagonista e de conscientização -via
instabilização- do processo ficcional em curso. O que, no seu livro "Resumo
de Ana", de 1998, díptico novelesco composto de duas breves histórias de
vida, se converteria em princípio de estruturação interna. Pautado, nesse
caso, pela rejeição da forma romanesca mais vasta, contínua, em prol de
"resumos", de quadros autônomos, mas interligados por uma mesma voz
narrativa, a do neto que fala da avó Ana e do tio Ciro. A redução de escala
própria ao novelesco, a estruturação descontínua, contrastada,
intensificando, a partir de um foco narrativo aparentemente coeso (o do
narrador-memorialista), a visualização, ao contrário, no seu método de
composição, exatamente das heterogeneidades, das variações de distância e
de tom, das desestabilizações de perspectiva e enquadramento temporal, que
o orientam e acentuam o tensionamento particularmente crítico que o define.


Movimento inverso, de expansão, marcaria a expressão lírica. O que já se
ensaiava desde os anos 80, em parte como resposta à dominância dos
brevíssimos poemas-minuto e como desdobramento narrativo de uma produção de
caráter eminentemente expressivo como a do decênio anterior. Lembre-se,
nesse sentido, trecho da carta enviada por Ana Cristina Cesar a Caio
Fernando Abreu em 17 de novembro de 1982: "Sabe que eu também acalento a
sombra de um poema inteiro interminável, tipo William Carlos Williams? Às
vezes acrescento um mote. Charles, até Chacal andam alongando seus versos.
Waly Salomão, na homenagem a Torquato, leu um belo poema longo bem beat".
Indícios de um alongamento trabalhado sob formas bastante diferenciadas na
poesia da década seguinte. Passando das séries poéticas -de Sebastião Uchoa
Leite (como a dos dez poemas-de-hospital que abrem "A Ficção Vida"), Paulo
Henriques Britto (como os "Sete Estudos para a Mão Esquerda" ou os "Dez
Exercícios para os Cinco Dedos") ou Carlito Azevedo (como a sua sequência
de banhistas, o tríptico "Vieira da Silva" ou as "Variações Cabralinas")- à
retomada do poema longo por Haroldo de Campos em "Finismundo" ou por
Bernardo de Mendonça nas suas refigurações de formas características da
poética popular (a peleja, o recitativo, o abc). Ou à reconceituação do
poema em prosa, cuja presença naprodução brasileira recente passa por
disseminação singular. Manifesta ora em textos isolados no interior de
alguns livros (como nos de Angela Melim, Duda Machado, Rodrigo Garcia
Lopes, Augusto Massi, Carlito Azevedo, João Moura Jr.), ora como registro
preferencial (vide Josely Vianna Baptista e Leonardo Fróes), ora como
notação auto-reflexiva, com funções distintas, no interior de coletâneas
dominadas por poemas em versos, como as de Sebastião Uchoa Leite, Rubens
Rodrigues Torres Filho, Régis Bonvicino, Júlio Castañon Guimarães. E, se um
recurso como esse servia a José Paulo Paes em "Prosas", por exemplo,
sobretudo para exercitar um memorialismo a meia distância, Sebastião Uchoa
Leite, por sua vez, aproxima-se, por meio das suas prosas, tanto de uma
perspectiva descritiva, como nos "Informes" de "A Ficção Vida", quanto do
exercício com uma primeira pessoa a tal ponto autodescritiva e "informe"
que parece, por fim, ausentar-se de um texto como "Worm Hole".


Por vezes, porém, o que está em pauta é a tensão entre o emprego de uma
estrutura sintática linear, compacta, e de formas particulares de
supressão, de que é exemplar o exercício de interrupção empregado pelo
próprio Sebastião Uchoa Leite em "Memória das Sensações 1 e 2". Ou a
retirada de acentos e nomes (vide "Apesar do Cheiro" e "Tirando o" em
"Regis Hotel"), o apagamento do nexo causal (vide as enumerações de "Nesta
Noite", em "33 Poemas"), trabalhados por Régis Bonvicino. Já em
"Corpografia", de Josely Vianna Baptista, vocabulário e sinais de pontuação
correntes se deixam invadir por brancos e pausas que, num diálogo constante
com fotos de corpos e vistas, ao mesmo tempo, figuram e desfiguram, de
dentro, cada texto, num duplo movimento de auto-engendramento e destruição
da forma, característico a um gênero marcado simultaneamente pela
desconfiança de leis formais prévias e por um formato ditado por sua
própria lógica interna. E funcionando de modo verdadeiramente exemplar,
nesse sentido, o caráter autodefinitório pelo avesso, ao longo de dez
mínimas páginas, de um texto como "NÃO", de Augusto de Campos.


Variação de escala que não se limitaria, porém, ao terreno literário.
Adotando-se uma perspectiva panorâmica, seria o caso de assinalar, nessa
linha, então, a título de amostragem, tanto os exercícios em formato
reduzido, expostos no Rio de Janeiro em 1999, por um artista como Eduardo
Sued, em geral voltado para telas de maiores dimensões, quanto o movimento,
em direção oposta, de José Bechara, passando de seus trabalhos com telas
relativamente pequenas, conhecido como "Anjos", ao emprego, como suporte,
de imensas lonas usadas de caminhão, sobre as quais aplica camadas
ferruginosas de diferentes espessuras. Tanto as formas expansivas, a escala
monumental das esculturas com toras de madeira, expostas na Pinacoteca do
Estado de São Paulo em 1998 e 1999, e realizadas por Elisa Bracher, quanto
as séries de pinturas em telas de cerca de três metros de largura, exibidas
em março de 2000 no Paço Imperial (Rio de Janeiro) por Afonso Tostes. Ou,
ainda, tanto o desdobramento, por parte de Monica Barki, das suas pinturas
em acrílico, mimetizando padronagens têxteis, numa sucessão de trouxas
independentes de roupa; quanto o adensamento, operado por Leda Catunda, na
década de 90, da superfície pictórica, por meio de sistemáticas
sobreposições de vestidos, toalhas, camisetas, meias e tecidos almofadados
e costurados uns aos outros. Tensões entre expansão e redução, superfície e
volume, bi e tridimensionalidade, que seriam trabalhadas de modo
particularmente consequente, mas distinto, nos métodos artísticos de Nuno
Ramos e Angelo Venosa. Na produção do primeiro, o transbordamento de
materiais e relevos de todo tipo, as crostas, os encaixes, resíduos, o
espessamento, o desfocamento do quadro, que cresce em direção ao
espectador; na do segundo, o diálogo com o pictórico, a frontalidade, o
vazamento interno -fatias, pontos, transparências-, como se, nas esculturas
de Venosa, seu princípio serial convertesse o espaço, os vazios,
simultaneamente em fator de dinâmica construtiva e de uma auto-rarefação
potencial. Regiões limítrofes, entre o pictórico e o escultórico, nas
quais, não parecendo haver lugar para linguagens exclusivas, não à toa
referências à escrita (no trabalho de Venosa, peças de cera e dente,
dispostas em linha, sobre a parede, com pequenos intervalos regulares; no
caso de Nuno Ramos, o emprego de letras ampliadas, de palavras em parafina
sobre placas de vidro, de textos em braile) funcionariam, nos dois casos,
como contraparte reflexiva, noutro registro, das tensões características à
própria prática artística. E como indicadoras, ainda, dessas
miniaturizações e expansões que se afiguram dominantes noutro território, o
da escrita literária propriamente dita.

Questões de escala e de valor


Há, pois, a reiterada exposição de uma situação de "desmedida". O que, se
enfatiza, em áreas diversas, o caráter problemático da forma e da própria
prática cultural, nessa situação histórica específica, parece dialogar, de
perto, igualmente, com a experiência contemporânea da financeirização da
economia, da dessolidarização nacional, do esvaziamento estatal, da
inserção brasileira num mercado global marcado por uma instabilidade
sistêmica. Lançando-se, assim, para o primeiro plano, no panorama cultural
atual, por meio da ênfase na dificuldade de determinar a própria dimensão,
a discussão das simbologias do valor e a reconceitualização da forma a
partir exatamente de seus fatores de instabilização, de suas relações de
escala, de suas equivalências com alguns dos mecanismos dominantes do
mercado financeiro.


Se, de 1964 a 1984, pois, durante as duas décadas de autoritarismo militar,
os traços mais característicos da práxis de resistência cultural brasileira
pareciam ser a solidariedade interna antitotalitária, a inserção
obrigatória na esfera política, com o propósito de fortalecimento da
sociedade civil e das instituições democráticas; desde o restabelecimento
de eleições e de um regime liberal-democrático no país e, sobretudo depois
da aplicação sistemática de programas de estabilização econômica,
sustentados pelo continuísmo político (patente na reeleição de Fernando
Henrique Cardoso), pela busca de consensos partidários (tornando
praticamente simbióticos PSDB, PFL e PMDB) e pela globalização passiva da
economia, passa-se a viver, mesmo entre os setores mais críticos da
sociedade brasileira, sob uma despolitização generalizada e diretamente
proporcional à disseminação de uma financeirização todo-poderosa -a
invocação recorrente das leis do mercado e de uma espécie de "livro
mercantil do mundo", apontando para a sua onipresença autoritária, acoplada
à experiência neoliberal. E a problematização do valor, da idéia mesma de
estabilização, presente nessa sucessão de escalas móveis da prática
artística dos últimos anos, parecendo evidenciar, exatamente, esse traço
autoritário embutido, de modo aparentemente menos cruento do que no período
militar, mas acentuado, dominante, no quadro brasileiro atual.


O enlace crítico com o paradigma econômico-financeiro não é, no entanto,
por si só, explicação suficiente para essas reduções e ampliações, para
esses problemas estruturais de dimensionamento e formalização na cultura
brasileira recente. Pois, em certo sentido, essa instabilização da medida,
da escala, a rigor, se conjugaria até melhor à situação inflacionária
explícita anterior ao Plano Real, no Brasil, na qual o valor, mesmo dos
alimentos e objetos mais corriqueiros, parecia alterar-se quase
cotidianamente. E, sob outro ponto de vista, essa dificuldade de
formalização, como analisa Rodrigo Naves, em "A Forma Difícil" (livro não à
toa divulgado nesse período), não seria também exclusiva do momento atual,
mostrando-se necessária a especificação dos nexos próprios às questões de
escala contemporâneas.



Moeda sem substância


A passagem de uma moeda de difícil conversão, porém, para outra mais
maleável à conversão universal, mas sem qualquer substância, e cujo câmbio
passaria a se apoiar artificialmente numa perda acelerada de reservas,
parece hiperpotencializar, a seu modo, não só a sensação de
desmaterialização do dinheiro, já característica à situação inflacionária,
mas também a convivência com a ausência de garantias e medidas ideais de
valor e a dependência crescente de mercados financeiros desregulados e de
uma economia baseada em maleabilidades estruturais. Não sendo de estranhar,
nesse sentido, por um lado, esforços de estabilização diretamente
proporcionais a tais desmaterializações e instabilidades estruturais. Daí
uma espécie de nostalgia igualmente estrutural, manifesta na vida literária
recente pela reafirmação dos cânones, do valor de culto dos "grandes nomes
e obras", expresso exemplarmente no nome de publicações como "Cult" ou
"Bravo!", ou no caráter comemorativo (de eventos, centenários, mortes) dos
suplementos de cultura dos jornais de maior distribuição do país, pelo
retorno estratégico a uma poética baseada em valores artesanais cultos
(vide Bruno Tolentino) ou populares-arcaizantes (vide Ariano Suassuna)
supostamente meta-históricos, a um exercício crítico pautado numa espécie
de liberdade individual sem outras fronteiras (éticas, acadêmicas ou
ideológicas) além das do mercado, das impostas pelo movimento editorial,
exemplarmente manifesta em artigo publicado na revista "Veja" de 25 de
junho deste ano, em defesa do impressionismo, do comentário opiniático, de
um modelo de interferência intelectual pautado, a rigor, no jornalismo
literário brasileiro dos anos 40, mas, de fato, na transformação, em curso,
das páginas de cultura em simples "guias de consumo".



Sintonias perversas


Não sendo de estranhar, por outro lado, ainda no âmbito literário,
sintonias e exposições curiosamente perversas desse quadro de
financeirização generalizada. De que é exemplar a propositada
desmaterialização da trama narrativa, convertida em jogo amoroso por
Bernardo Carvalho, em "Medo de Sade", em jogo de truco ou xadrez por José
Roberto Torero, no seu relato em torno da Guerra do Paraguai, em truque de
mágica por Valêncio Xavier, em "13 Mistérios + O Mistério da Porta Aberta",
em roleta por Carlos Felipe Saldanha, no seu "Oraklo do Conde Arpad". Ou a
ausência de qualquer "substância estável" de personagens em sintomática
sintonia com as transformações no conceito de valor, com as práticas
financeiras de representação, processo de que são exemplares o fluxo de
figuras-cliché em "Sexo", de André Sant'Anna, os personagens-variáveis de
"As Iniciais", de Bernardo Carvalho, o José Maria/Maria José de "Subsolo
Infinito", de Nélson de Oliveira, a Ana C. do "Teatro", de Bernardo
Carvalho, e o irmão que vira mulher, mas sempre mantendo o cheiro de macho,
em "A Céu Aberto", de João Gilberto Noll. Chegando-se mesmo, por vezes, a
explicitar ironicamente um inviável ponto de fuga desses exercícios de
desmaterialização. "Descoberto e abortado plano de destruir o sistema
financeiro do país", lê-se, a certa altura, em "Medo de Sade".


Pois, se o quadro inflacionário já forçava a convivência direta com certa
onipresença do dinheiro na vida social -"o dinheiro está, de modo
devastador, no centro de todos os interesses vitais", "impõe-se em toda
conversação", dizia Benjamin sobre a inflação alemã-, a relativa
estabilização monetária -mesmo quando "relações estabilizadas" são "a
miséria estabilizada", como se lê em "Rua de Mão Única"- parece envolver
igualmente um tipo peculiar de insegurança ligada à possibilidade de
despossessão, mesmo do mínimo obtido. Daí, de certo modo, o vigor do gênero
policial na literatura brasileira recente. Tratando-se, nesse caso, porém,
de instabilidade de ordem patrimonial bastante distinta da que é
configurada propositadamente pelas variações de escala, com função auto-
reflexiva, da arte e da literatura brasileiras contemporâneas, expansões e
reduções geminadas criticamente aos próprios princípios de formalização e
organização que as orientam. Daí, por outro lado, o desconforto narrativo
que parece acompanhar por vezes a prática dessas ficções em torno de uma
insegurança endêmica, de uma criminalização sistemática das questões
sociais, como é o caso de romances policiais de grande sucesso comercial,
como os de Rubem Fonseca e Patrícia Melo. O que os compele à produção de
uma espécie de sub-relato legitimador (ou capaz de criar um efeito de
cumplicidade junto ao leitor), em meio à trama central, de que são
exemplares os desdobramentos metadiscursivos de "E do Meio do Mundo
Prostituto..." ou "Elogio da Mentira". Ou que, por vezes, parece sugerir
guinadas de ponto de vista, como a que orienta a fala sem culpa dos
protagonistas de "Monstro", de Sérgio Sant'Anna, e "O Matador", de Patrícia
Melo. O que não invalidaria, porém, que também símbolos patrimoniais, papel-
moeda, operações bancárias tivessem se convertido em motivos poderosos para
o trabalho artístico desde o período de alta inflação na economia
brasileira. Daí os trabalhos de Meireles, Waltércio Caldas ou Jac Leirner,
voltados, no Brasil dos anos 70 e 80, tanto para as relações entre produto
artístico e a forma financeira moderna da mercadoria, entre dinheiro,
representação e valor, como já foi assinalado por Marc Shell num dos seus
estudos sobre arte e moeda, quanto para a própria funcionalidade dos
sistemas de medida e dimensionamento que orientam a prática e a percepção
artística. Parecendo exemplar, nessa linha, um trabalho como "Eppur si
Muove" (1991), de Meireles, na verdade uma série de ações bancárias,
envolvendo extrema perversidade cambial e flutuação de valor, por meio das
quais se tratava de realizar 12 câmbios sucessivos, em moedas diferentes,
tomando como ponto de partida mil dólares canadenses. Operações ao final
das quais a quantia inicial acabaria se reduzindo a US$ 4 e alguns
centavos, guardados em pequenos cofres transparentes com formato de
porquinho.

Fora da referência financeira simulada, porém, são particularmente
significativas, no trabalho de Cildo Meireles, sobretudo das últimas
décadas, a quantidade e a variedade de materializações de questões de
valor, peso, tamanho, medida. É o que assinalam "Glove Trotter", também de
1991, uma coleção de bolas de cores e tamanhos variados recoberta pela
mesma vasta malha, ou "Fontes", em que se estabelece um desdobramento de
tensões entre diferentes instrumentos e medidas -réguas de carpintaria
penduradas, relógios nas paredes, números soltos no chão- e entre conceitos
e referentes diversos -as noções de espaço e de tempo-, por meio dos quais
se parece simultaneamente expor e desestabilizar os processos de
quantificação e dimensionamento e a própria operação de mensuração postos
em jogo nessa instalação de 1992. Sublinhando-se, desse modo, tanto uma
espécie de "desmedida" semelhante à dos desdobramentos de orientação e
proporcionalidade quanto a tensão enunciativa (entre exposição e
desestabilização) que caracterizariam a literatura brasileira na virada do
século 20.



Tensão enunciativa


Se, do ponto de vista dos processos de formalização, produziu-se, então,
uma desproporcionalidade sistemática, sua contraparte, do ponto de vista da
dicção, parece ter sido um ventriloquismo acentuado. O que, no terreno da
lírica, se manifestaria por meio de uma utilização recorrente, com funções
distintas, do monólogo dramático, das teatralizações internas do poema.


É nesse sentido que apontava, ainda em 1990, um poema como
"cançãonoturnadabaleia", de Augusto de Campos, no qual, em diálogo
inequívoco com o albatroz baudelairiano, o poeta se autofigurava como Moby
Dick, e ao próprio poema como instância dupla, tensão entre negro e branco,
voz e visualidade, voz lírica e voz ficcional, forma poética e método
dramático.

" "
"É em direção conservadora "
"que se pode entender a "
"imposição editorial do "
"modelo da vasta narrativa "
"histórica à prosa brasileira"
"recente, passando do caráter"
"de quase roteiro de "
""Agosto", de Rubem Fonseca, "
"ao anedótico de Jô Soares "
" "


É, nesse sentido, igualmente, que se pode compreender o exercício de
escuta, o dar voz ao outro, que caracteriza a proliferação de vozes
heterogêneas, antagônicas, em que se converte a escrita poética de
Francisco Alvim. Ou a tensão entre expressão lírica e enredo policialesco,
entre soneto e contrabando, em "Até Segunda Ordem", de Paulo Henriques
Britto, ou entre forma convencional e dicção antilírica nos sonetos
recentes de Glauco Mattoso. Ou as composições em eco, de Lu Menezes, nas
quais espelhamentos mútuos, homofonias, assonâncias, analogias, sublinham
não apenas sucessivas diferenciações a princípio imperceptíveis, mas um
tensionamento simultâneo entre fala e voz, entre sucessivas figurações e
subtrações da voz lírica.



Ventriloquismo


Esse princípio dramático não ficaria restrito, porém, a essas divisões
líricas da voz. E o ventriloquismo -explicitado no título "Ventriloquist"
de espetáculo recente, em que se sucedem dublagens, clonagens de figuras
reconhecíveis da mídia, repetição, a três vozes, de trechos da "Valsa nº 6"-
se converteria em elemento estrutural do método cênico de Gerald Thomas,
por exemplo. Tensão enunciativa presente, mas trabalhada de modo distinto,
na dramaturgia de José Celso Martinez Corrêa, como observa Luiz Fernando
Ramos, na sua análise de "Cacilda", ao sublinhar aí a expansão da rubrica,
o contraste entre indicação cênica e parte dialogada, por meio do qual se
figura, indiretamente, o adensamento do campo conceitual em que se move o
encenador. Problematização da locução perceptível também no uso de
legendas, interferências e nas alterações estratégicas de volume adotadas
por Bia Lessa na sua versão de "As Três Irmãs", na passagem de um registro
ficcional para o discursivo no método performático de Denise Stoklos, na
oposição entre relato corrido e ações físicas fragmentárias que orienta um
espetáculo como "Bugiaria", de Moacir Chaves. Desdobramento vocal que seria
estrutural, igualmente, num filme como "Santo Forte", de Eduardo Coutinho,
em que o que está em questão é o servir-se de voz ou corpo a um outro, que
pode ser a pombagira, uma reencarnação qualquer, uma figura familiar que
volta para dizer alguma coisa, um santo, um exu. Ou, no ainda no terreno
literário, são exemplares dessas cisões numa só voz, ou desses exercícios
de duplicação problemática, desde os personagens e narradores-dobradiça de
Silviano Santiago (retomados em "Viagem ao México") ao contraste entre
monólogo interior e imagens de televisão que orienta "Amor", de André
Sant'Anna, da composição em dípticos contrastantes, como em "Teatro" e
"Medo de Sade", de Bernardo Carvalho, ao tensionamento da própria dicção
entre um movimento de expansão serial ("As Banhistas") e de intensificação
rítmico-imagética interna ("Sob a Noite Física") que tem marcado o trabalho
poético recente de Carlito Azevedo, das sucessivas figurações da morte
autoral de Valêncio Xavier ou dos epitáfios de José Paulo Paes, ao livro
enviado num caixão, como foi o caso do "Decálogo da Classe Média", de
Sebastião Nunes, ou à dissecação da máquina de escrever em "Cortejo de
Abril", de Zulmira Ribeiro Tavares.

Desdobramentos ficcionais, variações de acento, auto-supressões que parecem
apontar para uma espécie de figuração intelectual agônica, de desconfiança
sistemática da própria legitimidade, da possibilidade de consideração não
mercantil da atividade literária ou da interação crítica com leitores-
consumidores. Figuração pouco complacente, mas particularmente tensa,
passível, portanto, de movimento, de historicização. De armar, como sugere
Beatriz Sarlo, "uma perspectiva para ver" essa "deriva organizada do
mercado". Mas, se esses desdobramentos da voz, miniaturizações narrativas,
narrativizações do poema e variações plásticas de escala podem funcionar,
portanto, no sentido da intensificação de uma autoconscientização da
própria prática artística, assim como de suas "inserções em circuitos
ideológicos" (para empregar expressão de Cildo Meireles), de suas relações
com os modelos financeiros, com a instabilidade e a volubilidade dos
mercados econômicos, com o conservadorismo político mascarado de política
de estabilização, esses mesmos processos podem, no entanto, dar lugar a
respostas bastante distintas, movidas, por vezes, por um pânico de
"catástrofe iminente", semelhante ao do período inflacionário alemão
descrito por Benjamin, solidificando, dessa maneira, no plano cultural,
mecanismos de estabilização conservadora semelhantes aos que têm
justificado a globalização autoritária e o continuísmo governamental na
história latino-americana recente.





Imposição editorial


É em direção conservadora semelhante que se pode entender, por exemplo, a
imposição editorial do modelo bem-sucedido da vasta narrativa histórica à
prosa brasileira recente, passando da erudição histórico-epistemológica de
Isaias Pessotti à pesquisa bem documentada de João Silvério Trevisan, do
caráter de quase roteiro de "Agosto", de Rubem Fonseca, ao anedótico de Jô
Soares. Ou certa disseminação aforística, lapidar, em várias áreas
culturais. Das receitas de bem viver, enunciadas em tom oracular, nos
livros de Paulo Coelho, ao frasismo que tomou conta desde os jornais aos
livros de poemas, como os mais recentes de Manuel de Barros. Enquadramento
histórico e redução ao sentencioso que funcionam como tentativas de
reorientação estabilizadora para os dimensionamentos problemáticos,
instabilizações, expansões, compressões, e para certa "desmedida" metódica,
convertidos, via variações recorrentes de escala, distância e processos de
mensuração, em fator constitutivo de uma intensificação autocrítica da
prática cultural no panorama brasileiro contemporâneo.


Flora Süssekind é crítica literária e pesquisadora da Fundação Casa de Rui
Barbosa, autora, entre outros, de "A Voz e a Série" (7 Letras) e
"Cinematógrafo de Letras" (Companhia das Letras).
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